05.11.2016 Views

NOVEMBRO 2016 - edição 223

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Novembro <strong>2016</strong><br />

Crónica<br />

Lusitano de Zurique<br />

21<br />

foto: afp<br />

surpresa, foi-nos chegando a informação<br />

reconfortante dos méritos da tua<br />

prestação, dos cuidados que punhas nas<br />

questões humanitárias que tocavam os<br />

mais desvalidos de entre todos quantos,<br />

apesar do desespero ou talvez por ele,<br />

não lhes faltou a coragem de partir em<br />

busca de paz e da tranquilidade que só<br />

ela potencia. De enaltecer também a<br />

gestão que fizeste dos sempre escassos<br />

recursos, ao diminuíres o peso da máquina<br />

administrativa que comandavas e<br />

os desviares para quem deles mais precisava,<br />

os refugiados, afinal a razão da<br />

criação do Alto-Comissariado. Por aqui<br />

se vê que as tuas preocupações não se<br />

esgotam nos problemas mais mediáticos.<br />

Tu olhas à volta, sentes ou pressentes<br />

e procuras ser justo, com uma visão<br />

das questões humanitárias que em ti<br />

cava mais fundo e ultrapassa a ideologia.<br />

Aqui entramos em matéria que não partilhamos,<br />

mas isso não pesa nada. Se todos<br />

os homens religiosos fossem como<br />

tu, talvez eu não deixasse de acreditar.<br />

Na verdade, pelas ligações que sempre<br />

mantiveste com a Igreja Católica,<br />

mas também porque te fizeste homem<br />

quando se começavam a ver os primeiros<br />

resultados palpáveis do Concílio Vaticano<br />

II, no que concerne a uma Igreja<br />

mais virada para o Homem e menos para<br />

ela própria; uma Igreja mais próxima de<br />

Jesus Cristo como gostamos de o entender<br />

- homem justo e bom -, porque<br />

mais solidária com quem sofre, bebeste<br />

dessa cultura e tomaste-a como tua, até<br />

porque, no fundo, ela casa na perfeição<br />

com os fundamentos humanistas do socialismo<br />

democrático a que cedo aderiste.<br />

Por tudo quanto para trás ficou, facilmente<br />

se percebe a enorme alegria que<br />

senti quando naquele domingo, que<br />

ameaçava passar rápido, como todos,<br />

mas acima de tudo sem surpresas, o teu<br />

nome começou a surgir no rodapé da televisão<br />

como vencedor da última e decisiva<br />

votação no Conselho de Segurança,<br />

para secretário-geral da ONU, e então<br />

sem votos contra. Por outras palavras,<br />

a breve prazo serias tu o ocupante do<br />

lugar. A surpresa foi muita, não por desmereceres<br />

a vitória, bem pelo contrário,<br />

mas devido aos jogos de bastidores que<br />

haviam surgido nos últimos dias. A entrada<br />

na corrida de uma segunda búlgara,<br />

que contava com o apoio declarado<br />

da Alemanha, levou-me a concluir que,<br />

apesar das vitórias convincentes que<br />

havias obtido em todas as eleições preliminares<br />

realizadas até ali, vitórias que<br />

resultaram das provas que prestaste e<br />

logo da demonstração das tuas competências,<br />

saber e cultura, jamais chegarias<br />

ao lugar. Foi isto que pensei, mas<br />

pensei mal.<br />

Em jeito de defesa, recorro à convicção<br />

que senti de que a tal segunda senhora<br />

da Bulgária não avançaria naquela<br />

fase tão adiantada do concurso senão<br />

tivesse obtido a garantia da vitória. No<br />

meu sentir, errado já se vê, calejado no<br />

entanto pelos constantes atropelos à<br />

ética, de que nos vamos apercebendo, a<br />

Alemanha já se havia entendido com os<br />

EUA e com a Rússia e vencidos estes dois<br />

obstáculos, o caminho ficaria escancarado<br />

para levar os restantes membros<br />

permanentes do Conselho de Segurança<br />

a apoiá-la e com eles, todo o Conselho.<br />

Tudo estaria bem cozinhado como temos<br />

aprendido e tanto assim era que,<br />

sabendo que aquele era o dia decisivo,<br />

fiquei desligado, abstraindo-me com as<br />

doçuras de um domingo caseiro e sereno,<br />

veloz por ele, porque corria que se<br />

desunhava, mas sereno no seu passar,<br />

caseiro e doce. Daí a enorme, mas muito<br />

agradável surpresa, não tanto por seres<br />

português, que, claro, também teve o<br />

seu peso, mas essencialmente por ter a<br />

certeza de que contigo aos comandos,<br />

a ONU, que apesar de algum desgaste<br />

continua a ter um papel único e determinante<br />

na condução deste nosso mundo,<br />

ficará muito melhor entregue. Pelas<br />

tuas características pessoais de bom diplomata,<br />

de humanista dotado de uma<br />

inteligência incisiva, és o homem certo<br />

para aquele lugar nesta fase turbulenta<br />

que este nosso mundo atravessa e que a<br />

ONU não deixa de reflectir.<br />

E agora, António? Era o ponto de partida<br />

e nesta altura do texto, com cerca de<br />

5.500 caracteres, seria talvez suposto<br />

que algumas das respostas ou pelo menos<br />

algumas questões com que te vais<br />

debater a partir de Janeiro, estivessem<br />

já visíveis, mas não. Como já vai longa a<br />

escrita, fica a promessa de que, em nova<br />

investida pela crónica como género,<br />

abordarei o que aqui não consegui, procurando<br />

então obter o que não me foi<br />

possível, prometendo igualmente manter<br />

o título, apenas com um acrescento:<br />

“Parte II”. Boas…<br />

(*) Carlos Ademar é escritor e exerceu a actividade<br />

de investigador criminal na Secção de Homicídios.<br />

Actualmente é professor na Escola de Polícia<br />

Judiciária.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!