NOVEMBRO 2016 - edição 223
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Novembro <strong>2016</strong><br />
Crónica<br />
Lusitano de Zurique<br />
21<br />
foto: afp<br />
surpresa, foi-nos chegando a informação<br />
reconfortante dos méritos da tua<br />
prestação, dos cuidados que punhas nas<br />
questões humanitárias que tocavam os<br />
mais desvalidos de entre todos quantos,<br />
apesar do desespero ou talvez por ele,<br />
não lhes faltou a coragem de partir em<br />
busca de paz e da tranquilidade que só<br />
ela potencia. De enaltecer também a<br />
gestão que fizeste dos sempre escassos<br />
recursos, ao diminuíres o peso da máquina<br />
administrativa que comandavas e<br />
os desviares para quem deles mais precisava,<br />
os refugiados, afinal a razão da<br />
criação do Alto-Comissariado. Por aqui<br />
se vê que as tuas preocupações não se<br />
esgotam nos problemas mais mediáticos.<br />
Tu olhas à volta, sentes ou pressentes<br />
e procuras ser justo, com uma visão<br />
das questões humanitárias que em ti<br />
cava mais fundo e ultrapassa a ideologia.<br />
Aqui entramos em matéria que não partilhamos,<br />
mas isso não pesa nada. Se todos<br />
os homens religiosos fossem como<br />
tu, talvez eu não deixasse de acreditar.<br />
Na verdade, pelas ligações que sempre<br />
mantiveste com a Igreja Católica,<br />
mas também porque te fizeste homem<br />
quando se começavam a ver os primeiros<br />
resultados palpáveis do Concílio Vaticano<br />
II, no que concerne a uma Igreja<br />
mais virada para o Homem e menos para<br />
ela própria; uma Igreja mais próxima de<br />
Jesus Cristo como gostamos de o entender<br />
- homem justo e bom -, porque<br />
mais solidária com quem sofre, bebeste<br />
dessa cultura e tomaste-a como tua, até<br />
porque, no fundo, ela casa na perfeição<br />
com os fundamentos humanistas do socialismo<br />
democrático a que cedo aderiste.<br />
Por tudo quanto para trás ficou, facilmente<br />
se percebe a enorme alegria que<br />
senti quando naquele domingo, que<br />
ameaçava passar rápido, como todos,<br />
mas acima de tudo sem surpresas, o teu<br />
nome começou a surgir no rodapé da televisão<br />
como vencedor da última e decisiva<br />
votação no Conselho de Segurança,<br />
para secretário-geral da ONU, e então<br />
sem votos contra. Por outras palavras,<br />
a breve prazo serias tu o ocupante do<br />
lugar. A surpresa foi muita, não por desmereceres<br />
a vitória, bem pelo contrário,<br />
mas devido aos jogos de bastidores que<br />
haviam surgido nos últimos dias. A entrada<br />
na corrida de uma segunda búlgara,<br />
que contava com o apoio declarado<br />
da Alemanha, levou-me a concluir que,<br />
apesar das vitórias convincentes que<br />
havias obtido em todas as eleições preliminares<br />
realizadas até ali, vitórias que<br />
resultaram das provas que prestaste e<br />
logo da demonstração das tuas competências,<br />
saber e cultura, jamais chegarias<br />
ao lugar. Foi isto que pensei, mas<br />
pensei mal.<br />
Em jeito de defesa, recorro à convicção<br />
que senti de que a tal segunda senhora<br />
da Bulgária não avançaria naquela<br />
fase tão adiantada do concurso senão<br />
tivesse obtido a garantia da vitória. No<br />
meu sentir, errado já se vê, calejado no<br />
entanto pelos constantes atropelos à<br />
ética, de que nos vamos apercebendo, a<br />
Alemanha já se havia entendido com os<br />
EUA e com a Rússia e vencidos estes dois<br />
obstáculos, o caminho ficaria escancarado<br />
para levar os restantes membros<br />
permanentes do Conselho de Segurança<br />
a apoiá-la e com eles, todo o Conselho.<br />
Tudo estaria bem cozinhado como temos<br />
aprendido e tanto assim era que,<br />
sabendo que aquele era o dia decisivo,<br />
fiquei desligado, abstraindo-me com as<br />
doçuras de um domingo caseiro e sereno,<br />
veloz por ele, porque corria que se<br />
desunhava, mas sereno no seu passar,<br />
caseiro e doce. Daí a enorme, mas muito<br />
agradável surpresa, não tanto por seres<br />
português, que, claro, também teve o<br />
seu peso, mas essencialmente por ter a<br />
certeza de que contigo aos comandos,<br />
a ONU, que apesar de algum desgaste<br />
continua a ter um papel único e determinante<br />
na condução deste nosso mundo,<br />
ficará muito melhor entregue. Pelas<br />
tuas características pessoais de bom diplomata,<br />
de humanista dotado de uma<br />
inteligência incisiva, és o homem certo<br />
para aquele lugar nesta fase turbulenta<br />
que este nosso mundo atravessa e que a<br />
ONU não deixa de reflectir.<br />
E agora, António? Era o ponto de partida<br />
e nesta altura do texto, com cerca de<br />
5.500 caracteres, seria talvez suposto<br />
que algumas das respostas ou pelo menos<br />
algumas questões com que te vais<br />
debater a partir de Janeiro, estivessem<br />
já visíveis, mas não. Como já vai longa a<br />
escrita, fica a promessa de que, em nova<br />
investida pela crónica como género,<br />
abordarei o que aqui não consegui, procurando<br />
então obter o que não me foi<br />
possível, prometendo igualmente manter<br />
o título, apenas com um acrescento:<br />
“Parte II”. Boas…<br />
(*) Carlos Ademar é escritor e exerceu a actividade<br />
de investigador criminal na Secção de Homicídios.<br />
Actualmente é professor na Escola de Polícia<br />
Judiciária.