NOVEMBRO 2016 - edição 223
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Novembro <strong>2016</strong><br />
Opinião<br />
Lusitano de Zurique<br />
25<br />
O V Império começa assim?<br />
foto: Joana Cabrita<br />
Antonio Manuel Ribeiro (*)<br />
Não me acho poeta, já o disse por várias<br />
vezes, antes um escritor de canções que<br />
às vezes escreve poemas, apesar dos<br />
três livros de inéditos publicados. Mas<br />
hoje sou um poeta a escrever-vos.<br />
Invoco Fernando Pessoa e Agostinho da<br />
Silva e arremesso ideias proféticas (estão<br />
a ver?) a propósito da eleição do António<br />
Guterres (engenheiro com currículo profissional<br />
vasto) para a regência da ONU,<br />
depois de tanta votação positiva e uns<br />
truques de última hora a lembrar que há<br />
figurinos da antiga Europa de Leste que<br />
levam muito tempo a corromper. Guterres<br />
ganhou. E isso trouxe-me à presença<br />
aquela ideia, sobre a qual duvido tanto,<br />
do destino traçado para este Império<br />
dirigir a Humanidade, um Império da palavra<br />
que uns habilidosos colocaram ao<br />
nível do disparate científico (a casta do<br />
Erro a que chamaram Acordo Ortográfico)<br />
– se renegamos o étimo de uma língua,<br />
acabamos com uma linguagem de<br />
esferovite.<br />
Será Guterres, depois de Durão, com todos<br />
os senãos que conhecemos a este último<br />
e a que se junta o apetite pelo Golda<br />
Saca (versão popular de Goldman Sachs),<br />
serão eles os indícios desse Império<br />
que há-de vir, a língua que se cumpre, o<br />
prosseguimento da palavra e da genuína<br />
cultura que Pessoa anteviu, Saramago<br />
elevou, por Eça e Camões é brilhante,<br />
Vieira da Silva pintalgou, Siza Vieira edifica,<br />
António Lobo Antunes (que renega<br />
o génio de Pessoa, e a diatribe só lhe fica<br />
bem) continua a expandir, quais descobridores<br />
sem necessidade de acantonar<br />
a terras inóspitas caravelas de lenha, levando<br />
a espada e a cruz por utensílios, os<br />
de hoje, o nosso Agora? Teremos a nação<br />
dormente e adormecida para tanto ver e<br />
enaltecer?<br />
Conheci António Guterres em 1987 e firmámos<br />
amizade e respeito. Trabalhámos<br />
juntos para uma campanha política que<br />
falhou – Constâncio perdeu, só podia perder.<br />
Um abraço forte por seres a pessoa<br />
certa nesse alicate de poderes, um saco<br />
de boxe onde todos irão experimentar o<br />
seu jeito. A ONU fez-se para que o mundo<br />
não mais se entregasse a uma guerra<br />
global. Andamos muito perto de retomar<br />
o episódio a que chamámos II Guerra<br />
Mundial e o cortejo das vítimas em tempo<br />
de ‘paz’ é hediondo. Precisamos de<br />
homens bons a dirigir a massa crítica da<br />
espécie. Chegaste ao posto certo.<br />
Um livro:<br />
“Eu e os Políticos – O Livro Proibido”, de<br />
António José Saraiva – <strong>edição</strong> Gradiva<br />
(<strong>2016</strong>). Foi o primeiro livro que li e não<br />
comprei, porque me foi oferecido por<br />
um amigo em formato PDF, facto muito<br />
estranho porque o formato digital que<br />
recebi é a prova final que as editoras enviam<br />
aos autores para a última revisão.<br />
Ou seja, quem colocou aquele livro à disposição<br />
alheia é muito próximo do editor<br />
ou da gráfica onde foi impresso. A não<br />
ser que o Saraiva…<br />
Chamo à colação este livro porque de<br />
proibido tem muito pouco e de ajuste<br />
de contas bastante, apesar de o autor<br />
afiançar que não. É, tecnicamente, um<br />
livro sem génio literário, um sortido de<br />
redacções que a minha velha quarta classe<br />
impunha com rigor – constata-se que<br />
passou muito tempo em restaurantes<br />
e pouco mais. Mas já era assim que eu<br />
via a escrita do arquitecto AJS, quer no<br />
Expresso, quer no Sol. Os assuntos até<br />
poderiam ser interessantes, o prisma de<br />
abordagem curioso, mas a veia literária<br />
era mais de régua e esquadro, básica.<br />
Fui ‘obrigado’ a ler este livro, e até me<br />
deu jeito. Há um par de semanas estive<br />
por três dias no Funchal, e no regresso<br />
nocturno o avião atrasou-se duas horas<br />
e dez minutos. Como era o último voo<br />
escalado as lojas foram fechando e os<br />
passageiros, esticados por todos os assentos<br />
disponíveis, ficaram entregues<br />
ao pouco disponível para comer, beber<br />
ou ler. Terminara o livro que andava a ler<br />
nessa manhã, lembrei-me então do e-<br />
-mail do meu amigo e dediquei a espera<br />
à leitura digital no tablet. A primeira vez.<br />
Tem uma entrada sobre Guterres, incómoda<br />
e patética, mazinha até, se é que<br />
a voz escrita de AJS chega ou chegou a<br />
algum lado, apesar de ele julgar que sim.<br />
Duvido que tenha incomodado a classe<br />
política: alguns já morreram, não se podem<br />
defender, e os outros continuarão a<br />
fazer pela vida. Ao longo da prosa, AJS<br />
coloca-se por vezes como sinaleiro do<br />
nosso teatro democrático, mas cada um<br />
tem o espelho que quer. Mesmo para ex-<br />
-director do Expresso. Julgar que este livro<br />
pode contribuir para a história deste<br />
tempo, é ele que o afirma, soa a anedota<br />
suave. Nem para roteiro dos restaurantes<br />
lisboetas, por serem mencionados<br />
sempre os mesmos.<br />
(*) Escritor, compositor, fundador e vocalista<br />
do mais antigo grupo de Rock português - UHF