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OPINIÃO<br />
Outubro <strong>2017</strong><br />
17<br />
As estrelas<br />
da fama<br />
Nesta foto, o Belcanto, de<br />
José Avillez apresenta-nos<br />
um “Cozido à Portuguesa”<br />
PEDRO BARROSO<br />
O AUTISMO<br />
GASTRONÓ-<br />
MICO ASSIM,<br />
ELITISTA E<br />
CIRCULAR,<br />
SATURA E<br />
CONFUNDE.<br />
Ao recusarem as estrelas do guia<br />
Michelin, vários chef’s (Karen<br />
Keygnaert, Bernard Loiseau, Fredrick<br />
Dhooghe...) ganharam o meu<br />
profundo apreço.<br />
É um mundo falso, cínico e corporativo,<br />
onde alguns lóbis se cruzam,<br />
num trajecto melífluo e complexo<br />
de influências e benefícios. Uns<br />
mais suspeitos, outros evidentes...<br />
Ok. São belíssimos artistas, investigadores<br />
exímios e luxuosos,<br />
criativos dos sabores invulgares e<br />
das combinações mais delicadas.<br />
São pintores de pratos em arte,<br />
extravagância e delírio. Pronto.<br />
Ganharam a taça da sobranceria<br />
e do snobismo. Ganharam o campeonato<br />
da presunção e - por que<br />
não? - do palato circense. Parabéns,<br />
portanto.<br />
São espaços onde até se come, por<br />
vezes, razoavelmente bem.<br />
De vez em quando experimento,<br />
por encargo ou convite. Por casualidade<br />
ou derivada culpa. Celebração<br />
ou obséquio. Acontece.<br />
Nunca saí completamente feliz.<br />
Lamento.<br />
Tal como os detestáveis concursos,<br />
tão na moda, também aqui se imprime<br />
à gastronomia alta pressão<br />
e inusitado stress; onde deveria<br />
haver convívio e paz. Frieza; onde<br />
exijo calor. Distância; onde quereria<br />
proximidade. Altivez; onde desejava<br />
comunhão.<br />
Ide portantissimamente badamerda,<br />
eis o que devem ter decidido<br />
os saturados chef’s. Fizeram bem.<br />
Fizeram óptimo.<br />
Claro que há vantagens em termos<br />
alguma orientação de estilos<br />
e sabores, quando buscamos um<br />
jantar fora de certa extravagância<br />
e devaneio. Mas. Cozinhar deve<br />
ser prioritariamente um gosto,<br />
um divertimento, um acto de prazer.<br />
Nunca uma competição de<br />
estrelas. Ainda por cima sujeita a<br />
classificações sem vídeo árbitro,<br />
determinadas por deuses desconhecidos<br />
e arvorados de uma superior<br />
infalibilidade. Muitas vezes<br />
escondendo interesses inconfessáveis.<br />
Um dia explico.<br />
Comer é um momento de reconciliação<br />
com a vida e a sua exigência.<br />
O cansaço e a perda exigem-nos<br />
a compensação e o gosto de um<br />
breve estar entre amigos. Negociar,<br />
celebrar, admirar, encantar-<br />
-se, apaixonar-se – eis actividades<br />
complementarmente muito toleráveis<br />
para estarmos a mesa. Mas<br />
haja prioridade absoluta ao sabor;<br />
humano, étnico, cultural e ancestral.<br />
Estar ali é uma forma de estar<br />
vivo. Estamos ali para comer. Preferentemente<br />
bem. Forma e conteúdo.<br />
E supostamente, gostar.<br />
Esse prioritário entendimento não<br />
parece constar, nem na ácida e<br />
tensa elaboração, nem da tal posterior<br />
semântica na avaliação classificativa.<br />
O autismo gastronómico assim, elitista<br />
e circular, satura e confunde.<br />
O nível de ansiedade exigido impede<br />
o gosto de apurar as coisas<br />
com o temple e o tempo de dar<br />
prioridade ao lenho da história,<br />
em vez do complexo laboratório<br />
da vaidade. Ao elevarem a fasquia<br />
na estratosfera dos sabores, todos<br />
agradecemos, desvanecidos. Mas<br />
no meu caso, depois de experiências<br />
várias e difusas, sempre senti<br />
estes génios astrais completamente<br />
afastados dos gostos, dos apetites,<br />
da saciedade e do gozo pleno,<br />
do prazer absoluto e godo – talvez<br />
celta…- de estar à mesa.<br />
Ditadores exímios de conceito.<br />
Sem direito a contraditório. Cometas.<br />
Pois bem. Derramemos vinho na<br />
toalha. Ponhamos útil babete no<br />
peito. Chuchemos o osso e a cabeça.<br />
Chupemos o tutano. Porra.<br />
Dêem-me festa.<br />
Que se erga no ar, depois, o genuíno<br />
cante corso, grego, bávaro ou<br />
alentejano. Siga o gosto na panela<br />
dos avós, sff. A estrela máxima<br />
do meu neurónio palatal vai para o<br />
apuro, a amizade e a sábia sapidez<br />
das coisas simples e apuradas.<br />
Palmas sinceras e muito solidárias<br />
aos recusativos chef’s.<br />
Honra lhes seja feita. De pneus já<br />
eu estou farto.