09.10.2017 Views

OUTUBRO 2017 - nº 234

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

28 Lusitano<br />

NEUROCIÊNCIA<br />

Faleceu<br />

D. Manuel<br />

Martins<br />

ANTÓNIO M. RIBEIRO (UHF)<br />

Passo os olhos pelas capas dos jornais de<br />

hoje e recordo com facilidade os versos<br />

que um dia escrevi na canção “Um Tiro na<br />

Solidão” (“Santa Loucura”, BMG, 1993):<br />

“O bom poeta/É um homem morto/Tudo<br />

lhe presta/E dói-lhe pouco”. De poeta<br />

para bispo não vejo diferença.<br />

Se o Correio da Manhã o indica como<br />

o “bispo dos pobres”, o Público a ele se<br />

refere por denunciar “a fome e o desemprego”.<br />

O I é textual, apontando-o como<br />

o “bispo vermelho”. O Jornal de Notícias<br />

coloca-o como “o bispo que deu ‘o grito’<br />

da fome”, e o Dário de Notícias não lhe<br />

atribui lugar na primeira página.<br />

Por estes títulos se revela a dicotomia<br />

conservadora como hoje ainda<br />

se define esquerda e direita, uma<br />

batalha bem sensível na campanha<br />

eleitoral que estamos a<br />

cruzar, um imobilismo de ideias<br />

feitas onde uns e outros se barricavam,<br />

embebidos por uma pureza<br />

(ou falta) ideológica duvidosa.<br />

Não sei nem me interessou alguma<br />

vez saber se o emérito bispo<br />

da Diocese de Setúbal, D. Manuel<br />

Martins, era “vermelho” ou seguia<br />

a estrita doutrina do catolicismo<br />

apostólico romano. O que dele<br />

guardo é a voz inquieta quando<br />

apontou ao país que havia densas<br />

franjas de fome, subsidiárias de<br />

um desemprego galopante porque<br />

o rumo da industrialização<br />

mudara no distrito de Setúbal –<br />

o mundo estava a mudar, contra<br />

a vontade dos que se apoiavam<br />

numa industrialização ultrapassada.<br />

D. Manuel Martins ergueu a voz para o<br />

poder político – na década de 1990, este<br />

vosso escriba viu com olhos de ver marchas<br />

da fome silenciosas com bandeiras<br />

negras erguidas, é aterrador, acreditem –,<br />

apontou o dedo ao laxismo que sempre<br />

tolhe o rumo da transformação, ao porreirismo<br />

dos compinchas no poder, afastados<br />

da realidade pelos muros altos ministeriais,<br />

longe do choro e do cheiro da fome. Foi<br />

assim no meu distrito e eu não esqueço.<br />

Felizmente, porque as dificuldades aguçam<br />

o engenho, Setúbal encontrou soluções<br />

para vencer a crise – um distrito não<br />

morre, transforma-se. Também por isso,<br />

quando a crise de 2008/09 nos submergiu<br />

(havia na altura um primeiro-ministro que<br />

clamava pela ‘robustez’ da nossa economia<br />

para enfrentar o tsunami mundial, lembram-se?),<br />

Setúbal já encontrara as suas<br />

soluções e hoje voga em prosperidade<br />

crescente. Indústria pesada, qualificada,<br />

exportação, turismo de excelência, agricultura<br />

e vinhos, cultura e beleza natural.<br />

Recordarei D. Manuel Martins, “vermelho”<br />

(seria do Benfica?) e dos “pobres”,<br />

como uma personalidade que usou o cargo<br />

eclesiástico para acordar uma sociedade<br />

amassada de indiferença, barricadas,<br />

manias e lamúrias. Direi sempre: é muito<br />

mais importante (e inteligente) o que nos<br />

une que o nos separa. Mas isso tiraria<br />

trabalho e visibilidade a uns quantos profetas<br />

de pífias profecias com desejo de<br />

varrer o pensamento livre para o oceano<br />

dos afogados.<br />

Em boa hora nos coube este homem do<br />

norte.<br />

Um livro: o novo do Ken Follett, “Uma<br />

Coluna de Fogo”, da Editorial Presença<br />

(<strong>2017</strong>). Século XVI, as guerras entre católicos<br />

e protestantes, como a Europa se<br />

definiu enquanto civilização entre o final<br />

do Império Romano e o domínio feroz do<br />

papado. Quaso 800 páginas imparáveis.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!