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Edição Nº 237 - Janeiro 2018

Centro Lusitano de Zurique

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Crónica<br />

JANEIRO <strong>2018</strong> 21<br />

existe nenhuma escola que<br />

prepare os jovens para as artes<br />

e os horários dos autocarros<br />

para a grande cidade não<br />

se ajustam às necessidades.<br />

Quando andava na Universidade<br />

havia um autocarro que<br />

os levava a todos. Pensou em<br />

procurar algo para trabalhar<br />

neste Natal assim poupar algum<br />

para a Faculdade e escreveu<br />

vários currículos on-line.<br />

Ao saber desta intenção do<br />

neto, Arminda sente uma<br />

grande alegria e um calor interior<br />

que anima os seus dias de<br />

solidão. Chamou o António e<br />

este deu-lhe conta da vontade<br />

de começar a trabalhar numa<br />

tenda de campanha de Natal<br />

a poucos quilómetros de sua<br />

casa.<br />

Os horários não permitem ir e<br />

vir à sua aldeia. Teve a ideia<br />

de se instalar na casa da Avó<br />

Arminda.<br />

Que alegria fez estremecer o<br />

coração da Avó, quando António<br />

lhe manifestou esta vontade.<br />

Ele é carinhoso e responsável.<br />

À primeira não quis<br />

tentar porque não quer ser um<br />

peso para a avó, mas sempre<br />

se animou, prometendo que a<br />

ajudará em tudo o que precisa<br />

a avó, em sua casa.<br />

Arminda sabe isso de cor e<br />

salteado e o António nunca foi<br />

um peso, antes pelo contrário.<br />

Sempre foi aquele netinho singular<br />

(sem o dizer a ninguém<br />

para não criar ciúmes).<br />

A avó Arminda sabe que as<br />

aulas estão a correr bem e<br />

acredita que António ainda<br />

tem dúvidas. Ao ver o seu entusiasmo,<br />

insiste para que António<br />

venha para sua casa e a<br />

sua presença lhe basta.<br />

Após a conversa entre avó e<br />

neto, Arminda sente-se menos<br />

cansada e mais tranquila.<br />

António sabe que não lhe vai<br />

tirar anos de vida aos 81 anos<br />

da avó, mas traz-lhe a esperança,<br />

alimenta-lhe a ilusão.<br />

Com o António, está a chegar<br />

uma época de alegria que Arminda<br />

não esperava.<br />

Será que o Senhor ouviu a sua<br />

oração?<br />

Certamente. Este ano, o advento<br />

trouxe a esperança boa<br />

à sua vida.<br />

Esta história de Arminda remete-nos<br />

para a certeza esquecemos<br />

todos os dias: o inferno<br />

e a tortura das avós Armindas<br />

somos nós tanto como o paraíso<br />

e a felicidade dos que estão<br />

juntos de nós podem ser todos<br />

os Antónios do mundo.<br />

Quantas vezes cedemos é inútil<br />

e megalómana tentação de<br />

querer mudar o mundo, essa<br />

entidade abstracta que é igual<br />

a zero em humanidade. É uma<br />

carapaça mental para justificar<br />

a nossa falta de vontade. Depois<br />

diremos, bem tentei, mas<br />

não consegui.<br />

A realidade é concreta. A avó<br />

Arminda é real e está próxima,<br />

ao lado, e é através da nossa<br />

presença junto dela que os<br />

Antónios podem melhorar o<br />

mundo.<br />

A avó Arminda desta história<br />

é realidade pura e os Antónios<br />

desta História deixaram de ser<br />

coincidência.<br />

Todos sabemos que existem<br />

Armindas e Antónios dando a<br />

volta aos problemas e à solidão<br />

sem os chutar das suas<br />

vidas mas tu, eu, nós, devemos<br />

contribuir para a partilha<br />

de esperanças desde que os<br />

Antónios se aventurem ao encontro<br />

com as avós Armindas<br />

Finalmente, os Antónios também<br />

devem avisar as avós<br />

Armindas para não pensarem,<br />

nunca, que as suas dores e<br />

maleitas nos molestam. Há-de<br />

aparecer-lhes um António —<br />

sem se dar conta — para as<br />

ajudar.<br />

As avós Arminda deste tempo<br />

de isolamento em cidades<br />

enormes devem assumir que,<br />

na sua fragilidade, tem de<br />

aprender a pedir ajuda aos Antónios,<br />

ainda disponíveis para<br />

fazer das fraquezas força. A<br />

redoma da solidão transforma-<br />

-se num castelo inexpugnável.<br />

As avós Arminda devem acreditar<br />

nos Antónios que ainda<br />

percebem que “não há justiça<br />

nem paz social enquanto Lázaro<br />

jazer à porta da nossa<br />

casa (cf. Lc 16, 19-21)”.<br />

Existem ainda Antónios que<br />

tratam do Lázaro, pedinte,<br />

coberto de úlceras e faminto<br />

ao ponto de se contentar com<br />

comer das migalhas caídas da<br />

mesa do dono da casa a cuja<br />

porta estava.<br />

O emigrante é uma qualquer<br />

forma de Lázaro, não por ser<br />

pobre, mas porque está distante<br />

dos bens de que necessita,<br />

a eles não tem acesso,<br />

mesmo que esteja fisicamente<br />

próximo deles.<br />

A sua condição primeira de excluído<br />

não é económica, ética<br />

ou política, mas antropológica:<br />

nasce da desclassificação da<br />

sua realidade humana.<br />

Gosto da expressão “atirar pela<br />

janela fora” porque o emigrante<br />

está do lado de fora da casa:<br />

quem está dentro consideram-<br />

-se verdadeiramente humanos<br />

e dignos do banquete.<br />

Mesmo que este “atirar pela<br />

janela fora” se devesse a algo<br />

que Lázaro fizera, a sua erradicação<br />

do meio dos seres humanos<br />

seria sempre excessiva,<br />

pois a nenhum ser humano<br />

compete negar a comum humanidade<br />

a outro. É no seio da<br />

humanidade que os problemas<br />

humanos individuais devem<br />

ser resolvidos.<br />

Hoje, Lázaro é uma pessoa,<br />

um ser humano. Não é para<br />

isto que a humanidade é, para<br />

ser assassina de si mesma.<br />

O possuidor de pão em abundância<br />

que tem Lázaro à porta<br />

esperando pelas migalhas<br />

casuais não é um ser humano,<br />

uma pessoa, mas um ser que<br />

age como se uma besta fora.<br />

Não reconhecer o que é humano<br />

no outro, é não reconhecer<br />

o que tem em comum comigo.<br />

Não se recusa o pão ao amigo.<br />

A recusa do pão é um acto de<br />

inimizade que implica a necessidade<br />

de migrar, para preservar<br />

a vida ou a dignidade.<br />

Negar o pão a alguém é um<br />

acto ético, não de um cão, não<br />

de uma máquina. O mais são<br />

desculpas bem estudadas por<br />

quem é bem pago para as estudar.

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