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última página<br />
valio84sl/iStock<br />
Retorno<br />
a Veneza<br />
Stalimir Vieira<br />
Volto a Veneza 38 anos <strong>de</strong>pois da minha<br />
primeira visita. Em 1980, saltei do trem<br />
por volta das 5 horas <strong>de</strong> uma madrugada <strong>de</strong><br />
outono, <strong>de</strong>sci as escadarias da estação Santa<br />
Lucia e, diante <strong>de</strong> uma lua cheia fabulosa,<br />
experimentei o ruído das águas batendo<br />
às margens do Canal Gran<strong>de</strong>. Só quando<br />
amanheceu é que tive noção do que realmente<br />
era aquilo.<br />
Passei um dia inteiro perambulando pela<br />
cida<strong>de</strong> e parti para Roma tão zonzo quanto<br />
cheguei. Em <strong>2018</strong>, <strong>de</strong>sembarco do avião no<br />
aeroporto Marco Polo e, em menos <strong>de</strong> meia<br />
hora, estou hospedado às<br />
margens do rio San Felice.<br />
Em duas semanas, esquadrinhei<br />
a cida<strong>de</strong> inteira e daqui<br />
para a frente pretendo imiscuir-me<br />
ainda mais por suas<br />
travessinhas.<br />
Aproveito para estudar e<br />
compreen<strong>de</strong>r um pouco melhor<br />
esse pedaço <strong>de</strong> mundo<br />
improvável, construído sobre o terreno pantanoso<br />
<strong>de</strong> 118 ilhotas que, <strong>de</strong> 1951 para cá, já<br />
per<strong>de</strong>u dois terços <strong>de</strong> sua população, atualmente<br />
em 55 mil habitantes.<br />
Hoje, a evasão <strong>de</strong> moradores é da or<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />
mil por ano. Mesmo período em que é visitada<br />
por 30 milhões <strong>de</strong> turistas. Ou seja, torna-se<br />
cada vez menos um habitat e cada vez mais<br />
um produto. Contribui para essa constatação<br />
a disputa <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s grupos econômicos por<br />
alguns <strong>de</strong> seus edifícios mais importantes,<br />
como a antiga se<strong>de</strong> dos correios convertida<br />
em shopping, uma obra <strong>de</strong> restauração e preservação<br />
magnífica, por sinal.<br />
Há quem diga que, por conta <strong>de</strong>ssa excessiva<br />
mercantilização da cida<strong>de</strong>, se faz necessário<br />
caminhar para além da Piazza <strong>de</strong> San<br />
Marco e da Ponte do Rialto para encontrar<br />
“Hoje, a evasão <strong>de</strong><br />
moradores é da<br />
or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> mil por<br />
ano. mesmo período<br />
em que é visitada<br />
por 30 milHões<br />
<strong>de</strong> turistas”<br />
a “verda<strong>de</strong>ira Veneza”. Foi o que fiz num<br />
<strong>de</strong>sses dias ensolarados e <strong>de</strong> temperatura<br />
extremamente agradável da primavera veneziana.<br />
Saí do Cannaregio e, evitando a muvuca <strong>de</strong><br />
San Marco, fui à esquerda em direção ao Castello,<br />
atravessei o Jardim Público, indo parar<br />
nas ilhas <strong>de</strong> Santa Elena e <strong>de</strong> São Pedro. No<br />
percurso, uma Veneza muito sossegada, moradores<br />
cuidando da vida, crianças saindo da<br />
escola, as mães fazendo uma paradinha no<br />
parque infantil antes do almoço.<br />
Não senti em momento algum a tal fobia<br />
aos turistas. Pelo contrário, <strong>de</strong> um modo<br />
geral esbarrei na simpatia<br />
das pessoas. Mas é fato que<br />
Veneza tem sofrido e não é<br />
pouco. Só este ano os canais<br />
já secaram e houve nevasca<br />
e inundações. Além do que<br />
o excesso <strong>de</strong> turistas obrigou<br />
as autorida<strong>de</strong>s a regularem o<br />
tráfego <strong>de</strong> pe<strong>de</strong>stres, como se<br />
faz com os automóveis nas cida<strong>de</strong>s<br />
normais, o que ocorreu<br />
no feriadão <strong>de</strong> primeiro <strong>de</strong> <strong>maio</strong>.<br />
Cheguei no dia 2 e apenas fiquei sabendo<br />
do fato. Veneza é, a princípio, uma cida<strong>de</strong> cara<br />
e faz sentido, consi<strong>de</strong>rando suas peculiarida<strong>de</strong>s.<br />
Mas para quem alugou um apartamento<br />
pelo Airbnb e faz compras no supermercado<br />
para comer em casa, torna-se bem razoável,<br />
em termos <strong>de</strong> custo/benefício. Principalmente<br />
se comparamos com São Paulo e se tratando<br />
do consumo <strong>de</strong> produtos nacionais: o azeite,<br />
a pasta, o risoto, a mozzarella, o procciutto,<br />
o vinho... Acredito que é muito mais interessante<br />
comer bem em casa do que arriscar um<br />
“menu turístico” na rua, já que comer bem na<br />
rua custa, <strong>de</strong> fato, bastante caro.<br />
Melhor <strong>de</strong>ixar as extravagâncias para uns<br />
drinques no Florian ou no Harry, o que faz<br />
muito mais sentido.<br />
Stalimir Vieira é diretor da Base Marketing<br />
stalimircom@gmail.com<br />
58 <strong>14</strong> <strong>de</strong> <strong>maio</strong> <strong>de</strong> <strong>2018</strong> - jornal propmark