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Crónica<br />
Julho + Agosto 2018 25<br />
O preço do medo<br />
Miguel<br />
Szymanski (*)<br />
Jornalista<br />
NÃO É POSSÍVEL<br />
RESGATAR A<br />
HIPOTECA E MUITAS<br />
PESSOAS SENTEM<br />
A SUA IDENTIDADE<br />
AMEAÇADA QUANDO<br />
UM GOVERNO DÁ<br />
BENEFÍCIOS FISCAIS<br />
A REFORMADOS<br />
FRANCESES,<br />
ALEMÃES E<br />
ESCANDINAVOS<br />
MAS MANTÉM<br />
OS REFORMADOS<br />
PORTUGUESES NA<br />
PENÚRIA<br />
Poucas pessoas na Alemanha<br />
sabiam o que quer que<br />
fosse sobre Portugal quando<br />
para lá fui viver nos anos<br />
1970. Os meus amigos na escola,<br />
na maior zona metropolitana<br />
da RFA, iam de férias<br />
para Itália, de carro ou de<br />
caravana. Os mais ousados<br />
tinham descoberto Espanha.<br />
Só quem tinha mais dinheiro<br />
podia apanhar um avião e ir<br />
para as Canárias ou para as<br />
ilhas gregas. Portugal era<br />
terra incógnita. Com a Revolução<br />
de Abril saiu durante<br />
uns meses da total obscuridade,<br />
mas rapidamente para<br />
lá voltou.<br />
Quando os jornais, revistas e<br />
televisões falavam de Espanha<br />
e ilustravam a notícia com um<br />
mapa, era frequente esquecerem-se<br />
de recortar Portugal. E<br />
lá estava o império espanhol<br />
filipinamente a ocupar toda a<br />
Península Ibérica. Quando não<br />
se esqueciam de tirar Portugal<br />
do mapa de Espanha, o jardim<br />
à beira-Atlântico plantado era,<br />
no melhor dos casos, literalmente<br />
um buraco no mapa.<br />
Graficamente e na cabeça de<br />
muita pessoas Portugal, era<br />
um espaço negativo no mapa<br />
de Espanha. De vez em quando<br />
a comunicação social ainda<br />
se esquece de que a Jangada<br />
de Pedra é composta por dois<br />
países. Mas nos últimos seis<br />
anos Portugal ganhou uma<br />
enorme projeção internacional.<br />
A grande aldeia da roupa branca<br />
conseguiu voltar às luzes<br />
da ribalta. Só que o preço pode<br />
ser a hipoteca da sua identidade,<br />
património e futuro. Uma<br />
hipoteca tão onerosa que pode<br />
não ter resgate nem distrate.<br />
Depois de vendidos os anéis,<br />
foram-se os dedos: para começar,<br />
a EDP e a PT. Os antigos<br />
impostos escondidos que os<br />
portugueses pagavam para telefonar<br />
e iluminar a casa já não<br />
ficam no país: transformaram-<br />
-se em dividendos que saem<br />
para os bolsos dos novos donos<br />
sediados em praças financeiras<br />
algures no mundo. Mas<br />
não foram só os dedos, foram<br />
também as mãos: um milhão<br />
de mãos foram trabalhar para<br />
outras bandas, amputadas do<br />
seu próprio país.<br />
Teria ajudado, se nos anos<br />
de crise se tivesse investido,<br />
por exemplo na formação das<br />
pessoas. Em vez disso, o governo<br />
desistiu das pessoas. A<br />
verdade é que foram os políticos<br />
em Berlim e Bruxelas que<br />
forçaram Portugal a fazê-lo,<br />
seguindo a ideia que antes das<br />
pessoas era urgente salvar os<br />
bancos. Mas isso não melhora<br />
o resultado. Foi assim que<br />
em meia dúzia de anos o país<br />
perdeu a sua força de trabalho<br />
mais jovem, ativa e empreendedora.<br />
Por isso se espera<br />
hoje dois anos ou mais por<br />
uma consulta no maior hospital<br />
público do país. Por isso<br />
as escolas não têm dinheiro<br />
para comprar aquecedores no<br />
inverno. Por isso os processos<br />
judiciais se arrastam cada vez<br />
mais tempo.<br />
Mas é tarde, esses portugueses<br />
não voltam. Estão a trabalhar,<br />
a ganhar dinheiro, o<br />
suficiente para sustentar as<br />
suas famílias, coisa que em<br />
Portugal não conseguiam. É<br />
fácil perceber porque é que já<br />
não voltam: sempre que aparece<br />
um empresário ou empreendedor<br />
a queixar-se de<br />
que não arranja pessoal para<br />
trabalhar, faço a mesma pergunta.<br />
Quanto é que paga? Ah<br />
pois, paga o ordenado mínimo.<br />
Porque é esse o valor da maioria<br />
dos contratos recentes e já<br />
um milhão de portugueses é só<br />
isso que recebe. Dá 516 euros<br />
líquidos por mês. Por isso os<br />
portugueses foram saindo e<br />
entrando os estrangeiros, os<br />
ricos, reformados, investidores<br />
e ex-pats; e os pobres, miseráveis,<br />
que vão para as obras<br />
clandestinas, para as estufas e<br />
para as lojas de conveniência<br />
abertas 24 hora por dia.<br />
Não é possível resgatar a hipoteca<br />
e muitas pessoas sentem<br />
a sua identidade ameaçada<br />
quando um governo dá benefícios<br />
fiscais a reformados<br />
franceses, alemães e escandinavos<br />
mas mantém os reformados<br />
portugueses na penúria;<br />
quando um governo vende<br />
vistos gold a russos ou a chineses<br />
que passem um cheque<br />
mas os cidadãos nacionais são<br />
empurrados à força para fora<br />
das suas vidas.<br />
Seria bom se Portugal tivesse<br />
mais para oferecer ao exterior<br />
do que sol e as casas de quem<br />
se teve de ir embora. Seria<br />
bom que os habitantes deste<br />
jardim pudessem viver num<br />
clima económico que não os<br />
diminuísse e cuspisse. Mas os<br />
sucessivos governos parecem<br />
ter esquecido quem os elege<br />
e a sua função principal: criar<br />
uma sociedade mais justa e<br />
equilibrada.<br />
A reação face à ameaça de<br />
perda de identidade é sempre<br />
a mesma: a deriva para o<br />
populismo, o radicalismo e a<br />
xenofobia. É esse o preço do<br />
medo. Ou será que os proverbiais<br />
brandos costumes existem<br />
mesmo e servirão de baluarte?<br />
(*) dn.pt<br />
Autor escreve segundo o novo AO