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Lusitano Zurique - nº 243 & 244

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Crónica<br />

Julho + Agosto 2018 25<br />

O preço do medo<br />

Miguel<br />

Szymanski (*)<br />

Jornalista<br />

NÃO É POSSÍVEL<br />

RESGATAR A<br />

HIPOTECA E MUITAS<br />

PESSOAS SENTEM<br />

A SUA IDENTIDADE<br />

AMEAÇADA QUANDO<br />

UM GOVERNO DÁ<br />

BENEFÍCIOS FISCAIS<br />

A REFORMADOS<br />

FRANCESES,<br />

ALEMÃES E<br />

ESCANDINAVOS<br />

MAS MANTÉM<br />

OS REFORMADOS<br />

PORTUGUESES NA<br />

PENÚRIA<br />

Poucas pessoas na Alemanha<br />

sabiam o que quer que<br />

fosse sobre Portugal quando<br />

para lá fui viver nos anos<br />

1970. Os meus amigos na escola,<br />

na maior zona metropolitana<br />

da RFA, iam de férias<br />

para Itália, de carro ou de<br />

caravana. Os mais ousados<br />

tinham descoberto Espanha.<br />

Só quem tinha mais dinheiro<br />

podia apanhar um avião e ir<br />

para as Canárias ou para as<br />

ilhas gregas. Portugal era<br />

terra incógnita. Com a Revolução<br />

de Abril saiu durante<br />

uns meses da total obscuridade,<br />

mas rapidamente para<br />

lá voltou.<br />

Quando os jornais, revistas e<br />

televisões falavam de Espanha<br />

e ilustravam a notícia com um<br />

mapa, era frequente esquecerem-se<br />

de recortar Portugal. E<br />

lá estava o império espanhol<br />

filipinamente a ocupar toda a<br />

Península Ibérica. Quando não<br />

se esqueciam de tirar Portugal<br />

do mapa de Espanha, o jardim<br />

à beira-Atlântico plantado era,<br />

no melhor dos casos, literalmente<br />

um buraco no mapa.<br />

Graficamente e na cabeça de<br />

muita pessoas Portugal, era<br />

um espaço negativo no mapa<br />

de Espanha. De vez em quando<br />

a comunicação social ainda<br />

se esquece de que a Jangada<br />

de Pedra é composta por dois<br />

países. Mas nos últimos seis<br />

anos Portugal ganhou uma<br />

enorme projeção internacional.<br />

A grande aldeia da roupa branca<br />

conseguiu voltar às luzes<br />

da ribalta. Só que o preço pode<br />

ser a hipoteca da sua identidade,<br />

património e futuro. Uma<br />

hipoteca tão onerosa que pode<br />

não ter resgate nem distrate.<br />

Depois de vendidos os anéis,<br />

foram-se os dedos: para começar,<br />

a EDP e a PT. Os antigos<br />

impostos escondidos que os<br />

portugueses pagavam para telefonar<br />

e iluminar a casa já não<br />

ficam no país: transformaram-<br />

-se em dividendos que saem<br />

para os bolsos dos novos donos<br />

sediados em praças financeiras<br />

algures no mundo. Mas<br />

não foram só os dedos, foram<br />

também as mãos: um milhão<br />

de mãos foram trabalhar para<br />

outras bandas, amputadas do<br />

seu próprio país.<br />

Teria ajudado, se nos anos<br />

de crise se tivesse investido,<br />

por exemplo na formação das<br />

pessoas. Em vez disso, o governo<br />

desistiu das pessoas. A<br />

verdade é que foram os políticos<br />

em Berlim e Bruxelas que<br />

forçaram Portugal a fazê-lo,<br />

seguindo a ideia que antes das<br />

pessoas era urgente salvar os<br />

bancos. Mas isso não melhora<br />

o resultado. Foi assim que<br />

em meia dúzia de anos o país<br />

perdeu a sua força de trabalho<br />

mais jovem, ativa e empreendedora.<br />

Por isso se espera<br />

hoje dois anos ou mais por<br />

uma consulta no maior hospital<br />

público do país. Por isso<br />

as escolas não têm dinheiro<br />

para comprar aquecedores no<br />

inverno. Por isso os processos<br />

judiciais se arrastam cada vez<br />

mais tempo.<br />

Mas é tarde, esses portugueses<br />

não voltam. Estão a trabalhar,<br />

a ganhar dinheiro, o<br />

suficiente para sustentar as<br />

suas famílias, coisa que em<br />

Portugal não conseguiam. É<br />

fácil perceber porque é que já<br />

não voltam: sempre que aparece<br />

um empresário ou empreendedor<br />

a queixar-se de<br />

que não arranja pessoal para<br />

trabalhar, faço a mesma pergunta.<br />

Quanto é que paga? Ah<br />

pois, paga o ordenado mínimo.<br />

Porque é esse o valor da maioria<br />

dos contratos recentes e já<br />

um milhão de portugueses é só<br />

isso que recebe. Dá 516 euros<br />

líquidos por mês. Por isso os<br />

portugueses foram saindo e<br />

entrando os estrangeiros, os<br />

ricos, reformados, investidores<br />

e ex-pats; e os pobres, miseráveis,<br />

que vão para as obras<br />

clandestinas, para as estufas e<br />

para as lojas de conveniência<br />

abertas 24 hora por dia.<br />

Não é possível resgatar a hipoteca<br />

e muitas pessoas sentem<br />

a sua identidade ameaçada<br />

quando um governo dá benefícios<br />

fiscais a reformados<br />

franceses, alemães e escandinavos<br />

mas mantém os reformados<br />

portugueses na penúria;<br />

quando um governo vende<br />

vistos gold a russos ou a chineses<br />

que passem um cheque<br />

mas os cidadãos nacionais são<br />

empurrados à força para fora<br />

das suas vidas.<br />

Seria bom se Portugal tivesse<br />

mais para oferecer ao exterior<br />

do que sol e as casas de quem<br />

se teve de ir embora. Seria<br />

bom que os habitantes deste<br />

jardim pudessem viver num<br />

clima económico que não os<br />

diminuísse e cuspisse. Mas os<br />

sucessivos governos parecem<br />

ter esquecido quem os elege<br />

e a sua função principal: criar<br />

uma sociedade mais justa e<br />

equilibrada.<br />

A reação face à ameaça de<br />

perda de identidade é sempre<br />

a mesma: a deriva para o<br />

populismo, o radicalismo e a<br />

xenofobia. É esse o preço do<br />

medo. Ou será que os proverbiais<br />

brandos costumes existem<br />

mesmo e servirão de baluarte?<br />

(*) dn.pt<br />

Autor escreve segundo o novo AO

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