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Este projeto só aguenta

porque é assente numa

relação muito próxima e

de amor

Acho muito interessante,

e desafiante, esta ideia de

‘a tradição exclui pessoas

como nós’

Quem são as Fado Bicha e porquê ir pelo

Fado e não por outro género musical?

L.F.: O projeto ‘Fado Bicha’ foi concebido

muito antes do projeto que é hoje em dia e

de uma forma muito genuína. Comecei [Lila

Fadista] a fazer o projecto ainda não cohecia

o João. Vivi fora de Portugal e quando

voltei para Portugal um dos meus grandes

objetivos foi tentar perceber o que é que

poderia construir dentro do fado. Nunca

tinha cantado fado, nunca tinha estado ligada

às casas de fado mas já gostava de fado.

Na adolescência, era o estilo musical que eu

sentia que, se algum dia viesse a cantar de

uma forma mais séria, seria o estilo musical

que quereria desenvolver. Fado Bicha surge

de uma forma pouca pensada porque surge

mais da vontade de fazer, de experimentar

e de criar um novo lugar juntando referências

dispersas e espalhadas pelo tempo e

onde eu me pudesse expressar, utilizando

o fado como ferramenta. Eu sempre quis

cantar fado, mas trazendo-me a mim por

inteiro, com as minhas experiências, sentimentos

e género. O João Já cantava fado

e tocava viola de fado em casas de fado há

já algum tempo, mas vinha sentindo algum

desconforto com a forma como funcionava

o meio, a rigidez do fado, o conservadorismo

de grande parte das pessoas da comunidade

de fado com as quais contactava...

Tomou conhecimento do meu projeto,

identificou-se com o mesmo e abordou-me

de uma maneira despretensiosa: «olha, se

precisares de ajuda, posso te ajudar». E foi

assim. Ambas tínhamos essa atração pelo

fado há muito tempo, não foi uma escolha

estratégica no sentido de chocar ou de ver

o que vai ser mais chocante. Foi porque fazia

mais sentido para nós, porque era exatamente

aquilo que nós queríamos fazer à

revelia de uma tradição que excluia pessoas

como nós, e quando digo que excluia pessoas

como nós é porque nós não poderíamos

estar por inteiro dentro dessa tradição,

ou seja, poderíamos fazer parte dela mas

com condições, e nós não estávamos dispostas

a aceitar essas condições.

Se a Amália tivesse tido a oportunidade

de vos ouvir, o que é que acham que ela

diria?

- Olha, não faço ideia...Quando ela morreu

éramos muito novas, o mundo era um lugar

muito diferente... Se ela fosse hoje viva

já teria passado por novas experiências,

teria lido novas coisas, teria conhecido novas

pessoas e teria outras informações, o

que a tornaria diferente do que era quando

morreu. A Amália de hoje seria certamente

muito diferente da Amália de 1999. No entanto,

ela é muito importante para nós, especialmente

para mim [Lila Fadista] porque

foi através dela que comecei a me ligar ao

Fado. Vários elementos da arte da Amália e

da sua pessoa fazem parte do meu caldeirão

criativo - ela é uma das minhas grandes

referências artísticas. Mas o certo é que, eu

e o João decidimos muito cedo que não iríamos

depender da legitimação de ninguém,

nem da comunidade do fado nem de fora

da comunidade do fado, não faríamos depender

o nosso projeto da aprovação ou da

legitimação de outrém e que íriamos traçar

e fazer o nosso trabalho da forma que

nós sentíssemos que fosse mais verdadeiro

para nós. É a nossa essência no projeto.

Mas gostaria muito de imaginar – e às vezes

imagino – que a Amália entenderia o que

nós fazemos. Ela própria foi uma inovadora

em muitos aspetos da sua carreira e da

sua vida. Introduziu novidades no fado que

foram olhadas de lado, mas sim, acho que

ela se poderia ligar a nós. Ela tinha muitos

amigos LGBT e dissidentes... Sim, acho que

ela se ligaria com esse lado dissidente ou resistente

que nós fazemos. Quero, e gostaria

de acreditar que isso aconteceria.

Já atuaram em diversos países. Como é

que foram essas atuações?

- Já atuámos em 7, 8 países ou mais, a maioria

na Europa, como Islândia, Luxemburgo,

França, Bélgica, Reino Unido, Espanha, mas

também no Brasil. É muito interessante ver

a forma como o público interioriza e se liga

à nossa música e ao nosso espetáculo. Não

é qualquer pessoa que vá ver um concerto

Fado Bicha em Portugal ou no Brasil - no estrangeiro

eles não sabem o que significa a

palavra ‘bicha’ mas quando nos vêm e assistem

ao espetáculo, sabem ao que vêm

e o que nós fazemos, e o que nós fazemos

é uma invenção ‘queer’ [queer é um termo

guarda-chuva da língua inglesa para minoras

sexuais e de género, ou seja, que não

são heterossexuais ou não são cisgénero]

do fado, então vêm com essa disponibilidade

e abertura. Fizemos um concerto na praça

central da capital do Luxemburgo onde

esteve muita gente e foi muito interessante.

Tem sido muito bom atuar lá fora porque

as pessoas conseguem sentir e ligam-se

com este nosso exercício. Temos reações

incriveis de pessoas que não entendem

uma palavra de português e se emocionam

e vêm ter conosco no final, emocionadas.

Costumo falar muito durante os concertos,

conto a história das músicas, faço piadas e

observações sobre o local onde o espetáculo

decorre e então as pessoas gostam muito

disto, desta ligação que também acontece

quando abordamos o passado e situações

mais sensiveis como a história colonial de

saber novembro 2022

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