Controlando o poder de matar - Núcleo de Estudos da Violência
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principalmente, o que tá aqui <strong>de</strong>ntro [apontou para o seu e o meu coração] é complicado. Ain<strong>da</strong><br />
bem, né! Assim vocês têm o que estu<strong>da</strong>r [rimos, nós duas].”<br />
É, Dona Matil<strong>de</strong>, a senhora mesma respon<strong>de</strong>u a sua pergunta. Esta tese é<br />
“exatamente” isso: meu modo <strong>de</strong> recortar o que já foi recortado por outros, tanto do<br />
“mundo <strong>de</strong> fora” quanto do “mundo dos corações”, e acabou chegando aos plenários do<br />
Júri. Antropólogos recortam recortes e, com isso, <strong>de</strong> certa forma, também simplificam o<br />
que não tem limites <strong>de</strong>finidos. Mas se não fosse assim, não existiria Antropologia, nem<br />
ciência, nem teses <strong>de</strong> doutorado.<br />
<br />
Noutra ocasião, antes do início <strong>de</strong> um julgamento, fui apresenta<strong>da</strong> <strong>da</strong> seguinte<br />
forma pelo juiz ao promotor, ao <strong>de</strong>fensor e à escrevente que atuariam naquela sessão 2 :<br />
“Esta é a Dr a Ana Lúcia que, além <strong>de</strong> ser nossa colega, advoga<strong>da</strong>, também é socióloga, ou melhor,<br />
antropóloga. Enfim, ela está escrevendo sua tese <strong>de</strong> doutorado sobre o Júri e por isso tem vindo<br />
aqui acompanhar várias sessões. Provavelmente, perceberá coisas que fazemos e que nós<br />
mesmos nem imaginamos...”.<br />
Todos me olharam com uma simpatia <strong>de</strong>sconfia<strong>da</strong>.<br />
“E o que a Sr. a já está percebendo, Dr. a ? Po<strong>de</strong> nos contar ou é segredo?”, perguntou-me<br />
o promotor. Respondi-lhe: “Há várias maneiras <strong>de</strong> perceber uma situação, Dr.: <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro, <strong>de</strong><br />
fora. Vocês estão <strong>de</strong>ntro do Júri e eu fora. Interessa-me tanto o que vocês percebem, o que os<br />
jurados percebem, os funcionários, quanto os assistentes e eu mesma. Por enquanto, estou só<br />
observando, entrevistando pessoas...”<br />
E o juiz tornou a falar: “Ela está sendo humil<strong>de</strong>, para não nos intimi<strong>da</strong>r. Um antropólogo<br />
é uma espécie <strong>de</strong> psicólogo. Quando observa já está interpretando e percebendo algo mais, não é<br />
mesmo?”<br />
Foi então a minha vez <strong>de</strong> ficar meio <strong>de</strong>sconcerta<strong>da</strong>, e a conversa interrompeu-se,<br />
pois o julgamento começaria.<br />
Essa maneira <strong>de</strong> eu ser apresenta<strong>da</strong>, <strong>de</strong> me ser conferi<strong>da</strong> uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> que,<br />
simultaneamente, igualava-me aos operadores técnicos — advoga<strong>da</strong> — e diferenciava-me<br />
<strong>de</strong>les — socióloga, ou melhor, antropóloga — e mesmo o modo como respondi ao promotor<br />
não saíram <strong>de</strong> minha lembrança, bem como a pergunta formula<strong>da</strong> por Dona Matil<strong>de</strong>.<br />
Nos dois casos, registrei, em meu diário <strong>de</strong> campo, reflexões sobre a relação<br />
sujeito-objeto, especificamente sobre minha postura que, certamente, causava<br />
interferências nas situações observa<strong>da</strong>s, sem contar o peso que as hipóteses e<br />
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