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revista “Querer é Poder” - Instituto Pupilos do Exército

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Eros e Psique<br />

Análise <strong>do</strong> texto (continuação <strong>do</strong> número anterior)<br />

A primeira estrofe inscreve a narrativa na tradicional «lenda»<br />

de uma princesa que havia si<strong>do</strong> sujeita a um encantamento<br />

e estava, por isso, em esta<strong>do</strong> de <strong>do</strong>rmência. Só um infante<br />

(príncipe) que chegasse de terras longínquas poderia quebrar<br />

tal sortil<strong>é</strong>gio maligno. É relevante observar que não há aqui<br />

qualquer referência ao amor, aspeto essencial <strong>do</strong> conto<br />

tradicional, bem como <strong>do</strong> mito de Eros e Psique. Parece,<br />

pois, que o percurso <strong>do</strong> príncipe em direção à princesa não<br />

<strong>é</strong> motiva<strong>do</strong> pelo amor, mas por qualquer outro valor cujos<br />

contornos ainda não são evidentes.<br />

12<br />

ESCRITOS<br />

O tema <strong>do</strong> a<strong>do</strong>rmecimento feminino, bem como o <strong>do</strong> seu<br />

despertar por obra <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> elemento <strong>do</strong> par (o elemento<br />

masculino) prov<strong>é</strong>m tanto <strong>do</strong> conto tradicional como <strong>do</strong> mito<br />

grego.<br />

Mas o itinerário que haveria de conduzir o infante à princesa não<br />

seria fácil. Na segunda estrofe, refere-se que o infante estaria<br />

sujeito à tentação (de seguir o caminho erra<strong>do</strong>: o caminho<br />

mais fácil, o caminho <strong>do</strong> prazer?). Certo <strong>é</strong> que tal tentação,<br />

sem contornos bem defini<strong>do</strong>s, o haveria de impelir para longe<br />

da princesa. Há, portanto, <strong>do</strong>is percursos alternativos: o que<br />

conduz à princesa (o caminho certo) e o que o afasta dela (o<br />

caminho erra<strong>do</strong>). Numa primeira leitura, temos a sensação de<br />

estar perante a tradicional dicotomia <strong>é</strong>tico-metafísica bem-mal.<br />

Mas o segun<strong>do</strong> verso falsifica tal hipótese. A tentação a que o<br />

infante está sujeito <strong>é</strong> precisamente a de enveredar pelo caminho<br />

<strong>é</strong>tico-metafísico <strong>do</strong> mal e <strong>do</strong> bem. Pelo contrário, o caminho<br />

que há de conduzir à princesa não vê a ação humana restringida<br />

por regras ou valores morais que inscrevem o comportamento<br />

humano num da<strong>do</strong> arqu<strong>é</strong>tipo pr<strong>é</strong>-estabeleci<strong>do</strong>. E quan<strong>do</strong> o<br />

narra<strong>do</strong>r alude à libertação <strong>do</strong> infante, tal condição só parece<br />

poder ser interpretada como libertação <strong>do</strong>s valores <strong>é</strong>tico-morais<br />

que, em princípio, impedem o herói de alcançar o propósito<br />

da sua existência, representa<strong>do</strong> pela princesa em esta<strong>do</strong> de<br />

a<strong>do</strong>rmecimento e pelo caminho certo que a ela conduz.<br />

Esta ideia de um percurso para lá <strong>do</strong> bem e <strong>do</strong> mal relembra<br />

a filosofia de Nietzsche. A relação entre este filósofo e Pessoa<br />

<strong>é</strong> evidente (Dix, 2008: 530-533) não apenas pelo contacto<br />

direto com algumas (poucas) obras <strong>do</strong> pensa<strong>do</strong>r alemão, mas<br />

indiretamente atrav<strong>é</strong>s da leitura de vários int<strong>é</strong>rpretes dele. «(…)<br />

evocan<strong>do</strong> as referências de Pessoa à “transformação <strong>do</strong>s valores”<br />

podíamos dizer que ele foi ainda um leitor <strong>do</strong> livro Para lá <strong>do</strong><br />

bem e <strong>do</strong> mal, embora cada confirmação neste senti<strong>do</strong> não<br />

deixe de ser uma mera especulação» (Dix, 2008: 531).<br />

Se bem que encontramos em Pessoa uma avaliação ora positiva<br />

ora negativa da obra nietzschiana, certo <strong>é</strong> que os <strong>do</strong>is autores<br />

advogam, pelo menos no que se refere aos principais heterónimos<br />

de Pessoa, a recusa <strong>do</strong> universo de valores cristãos, interpreta<strong>do</strong>s<br />

como renúncia ao mun<strong>do</strong> da vida, e a instauração <strong>do</strong> processo<br />

criativo de novos valores, ínsitos ao sujeito humano. Quer<br />

interpretemos este passo <strong>do</strong> texto pessoano como referência<br />

a Nietzsche, quer o não façamos, certo <strong>é</strong> que o caminho da<br />

libertação humana se concretiza a partir de um universo que<br />

não remete para a <strong>é</strong>tica <strong>do</strong> bem e <strong>do</strong> mal.<br />

A terceira estrofe focaliza a narração na princesa. A sua<br />

condição de inconsciência a<strong>do</strong>rmecida pode fazer-nos duvidar<br />

de que espere o que quer que seja. É que para esperar, para<br />

ter esperança, para mover a própria consciência em direção a<br />

um futuro deseja<strong>do</strong>, mas ausente, <strong>é</strong> preciso que se esteja na<br />

posse plena da própria consciência. A sua aparente atitude de<br />

espera, se existir, <strong>é</strong> passiva, inconsciente, não motivada, alheia à<br />

vontade. É a condição de quem está ali como um ser inanima<strong>do</strong><br />

está onde está. Contu<strong>do</strong>, talvez uma r<strong>é</strong>stia de esperança se possa<br />

colher no sono. A consciência não está inteiramente apagada,<br />

pode sonhar, pode criar, sem que a sua vontade seja convocada,<br />

mun<strong>do</strong>s inexistentes. E <strong>é</strong> exatamente isso que lhe acontece:<br />

sonha a sua vida. O facto de a sonhar envolve-a num esta<strong>do</strong> de<br />

irrealidade que <strong>é</strong>, por princípio, contraditório com a vida, com<br />

o que verdadeiramente existe. É por isso que «sonha em morte»,<br />

no esta<strong>do</strong> letárgico da sua inexistência. É um mero arreme<strong>do</strong> de<br />

vida, a situação em que encontra; na linha de fronteira entre a<br />

morte e a vida, o nada e o ser.<br />

O quarto verso desta estância reforça os aspetos já referi<strong>do</strong>s.<br />

Numa bela hipálage («fronte esquecida»), o narra<strong>do</strong>r descreve<br />

a mente da princesa nesse esta<strong>do</strong> letárgico, esquecida de si<br />

mesma e da vida. Todavia, uma grinalda de hera orna-lhe a<br />

fronte. Talvez remeta para Hera, a deusa grega, irmã e mulher<br />

de Zeus, protetora <strong>do</strong> casamento e da fidelidade conjugal. A sua<br />

teimosa vaidade fez dela a maior inimiga de Afrodite, a deusa<br />

<strong>do</strong> amor. E, porventura, a sua aparição no poema relaciona-se<br />

com a ausência <strong>do</strong> amor enquanto propósito das personagens.<br />

De qualquer forma, trata-se de uma grinalda ornamental, verde<br />

(viçosa, por oposição à princesa), indício de que a vida ainda se<br />

não esfumou daquela mulher que descansa na fronteira entre a<br />

vida e a morte.<br />

A quarta estrofe regressa ao infante e ao seu percurso. O narra<strong>do</strong>r<br />

precisa que o protagonista ainda se encontra longe da princesa<br />

e que, sem consciência alguma <strong>do</strong> seu propósito, se esforça por

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