Academia Espírito-santense de Letras - Instituto Sincades
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REVISTA DA ACADEMIA ESPÍRITO-SANTENSE DE LETRAS | 2012<br />
e por diferentes tonalida<strong>de</strong>s. A do pai, em tom baixo, por obrigação <strong>de</strong> ofício, um breve barítono.<br />
A da mãe em tom grave, bravio, não estri<strong>de</strong>nte, ameaçador e repetitivo. Soprano. Irmãos e<br />
parentes emitiam agudos que, muitas vezes, o incomodavam. Nessas ocasiões, ele tampava,<br />
com as mãos, os ouvidos. Esse gesto era tomado como uma <strong>de</strong> suas esquisitices. As vozes eram<br />
distinguidas também pela sua clarida<strong>de</strong> e registro. As vozes da família eram permanentes, e o<br />
perturbavam muito. Não cessavam, mas eram diferentes; divergência que ele não conseguia<br />
explicar, nem para si mesmo, que diferença era essa.<br />
Intrigavam-lhe a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> idiomas, a varieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> assuntos, as diferentes angústias,<br />
vozes femininas, masculinas, infantis, <strong>de</strong>safinadas, não i<strong>de</strong>ntificadas, que lhe invadiam.<br />
Alguns nomes o perturbavam tanto que resolveu externá-los, verbalizando-os em voz<br />
baixa, para mais controle ter sobre a insistência <strong>de</strong>les na cabeça. Começou por secretamente<br />
trocar o nome <strong>de</strong> amigos ou parentes. Ao sobrinho, que se chamava Bruno, passou a chamá-lo,<br />
mas somente para ele, silenciosamente, <strong>de</strong> Marx; a prima, amiga <strong>de</strong> infância, era i<strong>de</strong>ntificada<br />
silenciosamente por Maria, e ela se chamava Mariluce. A lista era enorme e esse verda<strong>de</strong>iro<br />
ritual muito o ajudou a diminuir a insônia.<br />
Bem tardiamente <strong>de</strong>scobriu que podia partilhar as vozes com algumas poucas pessoas.<br />
Pessoas essas que frequentavam os mesmos ambientes, teatro, cinema e boteco. “Por que, diabo,<br />
me preocupo eu <strong>de</strong>sta maneira e sofro todas estas inquietações por causa <strong>de</strong> uma bagatela?”, pensou,<br />
sorrindo estranhamente. Hum! Sim, é isso, está tudo ao alcance do homem e tudo lhe vem parar às mãos,<br />
simplesmente, o medo... Isto é um axioma... É curioso: <strong>de</strong> que será que as pessoas têm mais medo? O que<br />
mais temem é o primeiro caso, a primeira palavra... Mas parece-me que já estou falando <strong>de</strong>mais. Afinal,<br />
não faço mais nada senão falar. Embora também se pu<strong>de</strong>sse dizer que, se falo, é porque não faço nada. A<br />
verda<strong>de</strong> é que durante este último mês <strong>de</strong>u-me a mania <strong>de</strong> falar, enquanto me <strong>de</strong>ixo ficar estendido ruminando<br />
no meu canto... sobre ninharias. Bem, e afinal, aon<strong>de</strong> vou eu? Serei capaz disso? Será isso uma coisa<br />
séria? Não, <strong>de</strong> maneira alguma. Divirto-me, mas é à custa da minha imaginação, é uma brinca<strong>de</strong>ira!<br />
É isso mesmo, uma brinca<strong>de</strong>ira! Muitas vezes os personagens brincavam na sua cabeça, adquiriam<br />
uma vida in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Esses personagens algumas vezes queriam dominar o seu ser que<br />
resistia com uma estranha força que separava sua própria personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses personagens,<br />
na maioria não acabados, que ele carregava. – Quando Gregor Samsa <strong>de</strong>spertou, certa manhã, <strong>de</strong> um<br />
sonho agitado viu que se transformara, durante o sono, numa espécie monstruosa <strong>de</strong> insecto. As vozes,<br />
nestas ocasiões, calavam momentaneamente como se tivessem dando uma trégua ou espaços<br />
para que outras se manifestassem. Elas, na verda<strong>de</strong> não brigavam entre si, mas alternavam-se<br />
com certa regularida<strong>de</strong> muitas vezes influenciado pelo ambiente externo no sentido lato senso<br />
e no sentido do seu pensamento, distinguido como próprio. Às vezes, pensou que essas vozes<br />
po<strong>de</strong>riam se transformar em seus pensamentos, e o seria legítimo, pois faziam parte <strong>de</strong> seu<br />
íntimo e intransferível pensar...<br />
De certa feita, extremamente cansado, tanto <strong>de</strong> procurar um certo en<strong>de</strong>reço on<strong>de</strong> teria<br />
marcado uma consulta médica quanto das vozes que se aguçavam na sua cabeça, resolvera<br />
estacionar a esmo, na primeira sombra encontrada. Um oásis, pensou. A tar<strong>de</strong> estava ensolarada<br />
e abafada. Tinha mesmo perdido seu tempo até agora. Descansava ainda no carro que per-<br />
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