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104<br />

vivos dos mortos. Os sobreviventes tinham mãos macabras e braços<br />

ossudos com números tatuados, um conto de Edgar Allan Poe<br />

que virou realidade. Tínhamos que trabalhar com trapos sob nossos<br />

narizes porque o fedor das pilhas de corpos provocava automaticamente<br />

ânsia de vômito. Quando carregávamos um sobrevivente de<br />

peso pena, era como ninar uma criança. Os trabalhos forçados e a<br />

malnutrição teriam graves consequências. Nós estávamos liberando<br />

-os. Mas não havia jeito de salvá-los. Muito poucos sobreviveriam.<br />

Eles só estavam livres para morrer.<br />

A cidade de Falkenau era uma comunidade respeitável com uma<br />

população honrada vivendo em casas limpas com jarros de flores<br />

em suas janelas. Não parecia possível que logo depois da colina havia<br />

centenas de infelizes em condições sub-humanas que só tinham<br />

duas saídas. Uma rápida, pela câmara de gás. Ou a lenta, via morte<br />

ou inanição.<br />

O comandante de nosso batalhão, capitão Kimble R. Richmond,<br />

levou um esquadrão para Falkenau e juntou o prefeito, o açougueiro,<br />

o padeiro e outros representantes respeitados. Ele queria saber<br />

como diabos eles podiam continuar com suas vidas de sempre enquanto<br />

as pessoas estavam morrendo no campo ali do lado. Todos<br />

eles juraram que não tinham ideia do que estava acontecendo no<br />

Konzentrationslager. A maioria disse que era contra Hitler. Capitão<br />

Richmond sentiu asco. Nós aprendemos a duvidar das confissões<br />

dos civis durante toda a campanha. Todo árabe na África do Norte<br />

afirmava que era antinazista. Todo francês jurava obediência à<br />

França livre. Os sicilianos odiavam Mussolini. Os belgas detestavam<br />

Hitler. Nós descobrimos, como era esperado, mais e mais alemães<br />

que nunca haviam sido membros do partido nazista.<br />

O Capitão Richmond ordenou que uma delegação de moradores<br />

aparecesse nos portões do campo na manhã seguinte ou então teriam<br />

que enfrentar o pelotão de fuzilamento. Richmond queria ter<br />

certeza de que aquelas pessoas iriam descobrir o que estava acontecendo<br />

apenas a alguns poucos passos das entradas de suas casas.<br />

Naquela noite, eu fui chamado para o batalhão CP. Richmond e eu<br />

tínhamos uma boa relação desde que ele sofrera um ligeiro ferimento<br />

de bala nazista que tinha furado seu capacete de aço. Quando<br />

ele saiu da clínica, ele procurou em todo canto por seu capacete.<br />

Ele considerava-o seu talismã de boa sorte. Fui eu que guardei o<br />

capacete para ele.<br />

“Filho da puta”, disse o Capitão Richmond, sorrindo enquanto eu<br />

entregava a ele o capacete com o buraco de bala, “Se você quiser um<br />

capacete como esse, Fuller, vai ter que levar bala!”<br />

Richmond sabia que minha mãe tinha me enviado uma câmera<br />

de cinema Bell & Howard 16mm portátil. O capitão queria que no dia<br />

seguinte eu me postasse numa parede com boa vista do campo de<br />

concentração para filmar o abominável espetáculo. Eu estava prestes<br />

a fazer meu primeiro filme.<br />

Comecei fazendo imagens do capitão Richmond dando suas<br />

ordens aos honrados cidadãos de Falkenau. Eles tinham que preparar<br />

as vítimas para um funeral decente, depois levá-las ao local<br />

do enterro numa carroça. Daquela forma, eles nunca poderiam dizer<br />

novamente que eles não sabiam o que estava acontecendo em<br />

seu próprio quintal. Eu filmei umas duas dúzias de cadáveres sendo<br />

retirados daquela cabana pútrida colada à parede do campo e sendo<br />

preparados para o enterro, um por um, embrulhados em lençóis<br />

brancos no chão, e posteriormente empilhados na carroça. Quando a<br />

carroça estava cheia de cadáveres, os moradores a empurravam até<br />

o local do enterro especialmente preparado. Prisioneiros de guerra,<br />

a maioria dos adolescentes Hitlerjugend, ajudaram a colocar os<br />

corpos amortalhados numa cova coletiva. Por mais reles que fosse a<br />

consolação, essas vítimas nazistas foram enterradas com dignidade.<br />

Meus vinte minutos de película 16mm registraram o solene dia<br />

do juízo daqueles civis. O espetáculo era de torcer o coração, e me<br />

deixou entorpecido. Eu registrei provas da indescritível crueldade do<br />

homem, uma realidade que os perpetradores poderiam tentar negar.<br />

No entanto, uma câmera de cinema não mente. Quando eu finalmente<br />

cheguei em casa, no outono de 1945, eu guardei aquela filmagem e<br />

nunca mexi nela novamente. Seria doloroso demais assistir, traria de<br />

volta todos os horrores dos anos de guerra. Aqueles vinte minutos<br />

foram um testamento para as vítimas de Falkenau e para os milhões<br />

de pessoas que morreram nos campos de concentração nazistas.<br />

Numa inspeção final dos prédios do campo, nosso sargento ouviu<br />

um gemido por trás de uma pilha de roupas surradas. Ele girou e quase<br />

atirou numa garota cadavérica que lentamente levantava a cabeça.<br />

Seus olhos pretos e afundados estavam aterrorizados. Ela parecia ter<br />

por volta de dezoito anos porque ela estava tão frágil e esquelética. Ela<br />

podia ser mais velha ou mais nova. O sargento pegou a garota em seus<br />

braços e levou-a para as instalações do ex-comandante da SS.<br />

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