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vivos dos mortos. Os sobreviventes tinham mãos macabras e braços<br />
ossudos com números tatuados, um conto de Edgar Allan Poe<br />
que virou realidade. Tínhamos que trabalhar com trapos sob nossos<br />
narizes porque o fedor das pilhas de corpos provocava automaticamente<br />
ânsia de vômito. Quando carregávamos um sobrevivente de<br />
peso pena, era como ninar uma criança. Os trabalhos forçados e a<br />
malnutrição teriam graves consequências. Nós estávamos liberando<br />
-os. Mas não havia jeito de salvá-los. Muito poucos sobreviveriam.<br />
Eles só estavam livres para morrer.<br />
A cidade de Falkenau era uma comunidade respeitável com uma<br />
população honrada vivendo em casas limpas com jarros de flores<br />
em suas janelas. Não parecia possível que logo depois da colina havia<br />
centenas de infelizes em condições sub-humanas que só tinham<br />
duas saídas. Uma rápida, pela câmara de gás. Ou a lenta, via morte<br />
ou inanição.<br />
O comandante de nosso batalhão, capitão Kimble R. Richmond,<br />
levou um esquadrão para Falkenau e juntou o prefeito, o açougueiro,<br />
o padeiro e outros representantes respeitados. Ele queria saber<br />
como diabos eles podiam continuar com suas vidas de sempre enquanto<br />
as pessoas estavam morrendo no campo ali do lado. Todos<br />
eles juraram que não tinham ideia do que estava acontecendo no<br />
Konzentrationslager. A maioria disse que era contra Hitler. Capitão<br />
Richmond sentiu asco. Nós aprendemos a duvidar das confissões<br />
dos civis durante toda a campanha. Todo árabe na África do Norte<br />
afirmava que era antinazista. Todo francês jurava obediência à<br />
França livre. Os sicilianos odiavam Mussolini. Os belgas detestavam<br />
Hitler. Nós descobrimos, como era esperado, mais e mais alemães<br />
que nunca haviam sido membros do partido nazista.<br />
O Capitão Richmond ordenou que uma delegação de moradores<br />
aparecesse nos portões do campo na manhã seguinte ou então teriam<br />
que enfrentar o pelotão de fuzilamento. Richmond queria ter<br />
certeza de que aquelas pessoas iriam descobrir o que estava acontecendo<br />
apenas a alguns poucos passos das entradas de suas casas.<br />
Naquela noite, eu fui chamado para o batalhão CP. Richmond e eu<br />
tínhamos uma boa relação desde que ele sofrera um ligeiro ferimento<br />
de bala nazista que tinha furado seu capacete de aço. Quando<br />
ele saiu da clínica, ele procurou em todo canto por seu capacete.<br />
Ele considerava-o seu talismã de boa sorte. Fui eu que guardei o<br />
capacete para ele.<br />
“Filho da puta”, disse o Capitão Richmond, sorrindo enquanto eu<br />
entregava a ele o capacete com o buraco de bala, “Se você quiser um<br />
capacete como esse, Fuller, vai ter que levar bala!”<br />
Richmond sabia que minha mãe tinha me enviado uma câmera<br />
de cinema Bell & Howard 16mm portátil. O capitão queria que no dia<br />
seguinte eu me postasse numa parede com boa vista do campo de<br />
concentração para filmar o abominável espetáculo. Eu estava prestes<br />
a fazer meu primeiro filme.<br />
Comecei fazendo imagens do capitão Richmond dando suas<br />
ordens aos honrados cidadãos de Falkenau. Eles tinham que preparar<br />
as vítimas para um funeral decente, depois levá-las ao local<br />
do enterro numa carroça. Daquela forma, eles nunca poderiam dizer<br />
novamente que eles não sabiam o que estava acontecendo em<br />
seu próprio quintal. Eu filmei umas duas dúzias de cadáveres sendo<br />
retirados daquela cabana pútrida colada à parede do campo e sendo<br />
preparados para o enterro, um por um, embrulhados em lençóis<br />
brancos no chão, e posteriormente empilhados na carroça. Quando a<br />
carroça estava cheia de cadáveres, os moradores a empurravam até<br />
o local do enterro especialmente preparado. Prisioneiros de guerra,<br />
a maioria dos adolescentes Hitlerjugend, ajudaram a colocar os<br />
corpos amortalhados numa cova coletiva. Por mais reles que fosse a<br />
consolação, essas vítimas nazistas foram enterradas com dignidade.<br />
Meus vinte minutos de película 16mm registraram o solene dia<br />
do juízo daqueles civis. O espetáculo era de torcer o coração, e me<br />
deixou entorpecido. Eu registrei provas da indescritível crueldade do<br />
homem, uma realidade que os perpetradores poderiam tentar negar.<br />
No entanto, uma câmera de cinema não mente. Quando eu finalmente<br />
cheguei em casa, no outono de 1945, eu guardei aquela filmagem e<br />
nunca mexi nela novamente. Seria doloroso demais assistir, traria de<br />
volta todos os horrores dos anos de guerra. Aqueles vinte minutos<br />
foram um testamento para as vítimas de Falkenau e para os milhões<br />
de pessoas que morreram nos campos de concentração nazistas.<br />
Numa inspeção final dos prédios do campo, nosso sargento ouviu<br />
um gemido por trás de uma pilha de roupas surradas. Ele girou e quase<br />
atirou numa garota cadavérica que lentamente levantava a cabeça.<br />
Seus olhos pretos e afundados estavam aterrorizados. Ela parecia ter<br />
por volta de dezoito anos porque ela estava tão frágil e esquelética. Ela<br />
podia ser mais velha ou mais nova. O sargento pegou a garota em seus<br />
braços e levou-a para as instalações do ex-comandante da SS.<br />
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