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1<br />
Regras ditadas pelo<br />
Instituto de Altos Estudos<br />
Cinematográficos,<br />
comumente designado<br />
IDHEC [n.d.t.].<br />
rushes que esta cortou, a Universal recortou e a Rank cortou ainda<br />
mais. Com razão, ninguém acreditava no sucesso de um filme que<br />
Sam Fuller realizou com seus pés, como o disse graciosamente Mrs.<br />
Sarita Mann: o porquê da distribuição ter sido sabotada. Mas os<br />
cortes não parecem ter tirado grande coisa ao valor de Renegando:<br />
o filme é isento do que não falta jamais às grandes produções em<br />
série, os sempiternos raccords improvisados e ridículos.<br />
FIlMar é FáCIl Para ele<br />
O que mais nos importa aqui é que este animal Fuller tenha<br />
livremente perambulado pelo Arizona por cerca de cinco longas semanas<br />
– uma de suas filmagens mais longas! –, com um orçamento<br />
de quatrocentos milhões – Deus sabe o que ele pode ter feito com<br />
isso! –, e para nos oferecer o quê? Cento e cinquenta planos, que<br />
na projeção darão duzentos, encadeados por fusões impossíveis. E<br />
que planos! Seu estilo já não possui nada de ordinário (salvo no seu<br />
primeiro ensaio, desajeitadamente clássico): é um belo estilo de um<br />
bruto! Nele, o plano americano, figura perfeita do classicismo, ou é<br />
raro ou medíocre. Quando se interessa por vários personagens ou<br />
objetos, planos gerais; se é por um ou dois, closes. Fuller é o poeta<br />
do close, que, por seu caráter elíptico, é sempre rico em surpresas<br />
(a abertura de Capacete) e que dá um relevo insólito a rostos ou<br />
fiapos de grama, objetos habituados pelo cinema comercial a pouca<br />
reverência. Mas, aqui, ele se esforça ainda menos: fala-se – muito,<br />
ou age-se – muito; quando alguém diz algo de interessante, ele não<br />
está interessado em artifícios de interpretação ou em multiplicar<br />
os ângulos para desteatralizar a cena. Cark tenta colocar O’Meara<br />
no bom caminho. Longo discurso. Contracampo? Ainda espero por<br />
este. Durante, no mínimo, quatro ou cinco minutos, assistimos aos<br />
dois, sentados imóveis um ao lado do outro, dando adeus ao A.B.C.<br />
idhecal 3 .<br />
Essa desenvoltura irrita, mas quantas riquezas surgem dali! É<br />
errado dizer que Fuller é inspirado, uma vez que isso pressuporia<br />
a possibilidade de que Fuller não fosse inspirado, quando na realidade<br />
filma ativamente. Instintivo, cineasta-nato, filmar é fácil para<br />
ele; basta-lhe permanecer idêntico a si mesmo a cada instante – o<br />
que poderíamos dizer a propósito de um Nicholas Ray menor como<br />
Quem Foi Jesse James? (The True Story of Jesse James, 1957). Seus<br />
esboços são insólitos, e mais fortes e reveladores que uma sólida<br />
construção. Ele pode se permitir a mistura de estilos: há de tudo em<br />
Fuller, um mundo neste deserto vivo, com seus bosques de árvores<br />
esféricas, até o delírio de O’Meara, perdido na fumaça, dessas traquinices<br />
plásticas a la Eisenstein à composição rigorosa e fordiana<br />
dos planos mais gerais do ataque ao forte. Descobriríamos também<br />
Fritz Lang em Casa de Bambu, na organização geométrica da cena<br />
do assalto ou naquela da partida de bilhar, ou ainda em Anjo do Mal<br />
(a morte de Moe). De que importa! Por uma espécie de homogeneidade<br />
poética, tudo isso permanece sempre Fuller, com sua força do<br />
instantâneo e do inacabado.<br />
MarlOwe e shakesPeare<br />
Aceitamos com mais facilidade a cena – que para a reflexão possui<br />
valor simbólico – na qual um jovem índio mudo vê-se preso na<br />
areia movediça e é salvo por um soldado nortista que, irritado com<br />
os acordes sincopados emitidos pelo jovem índio através de uma<br />
gaita, salva-o ao preço de sua própria vida, precisamente por essa<br />
não ser integrada ao filme: assim as intenções são constantemente<br />
corrigidas pela mise en scène. Fuller, que parecia tão fiel às suas<br />
belas ideias a respeito da América e sobre a beleza da vida democrática,<br />
se contradiz a cada imagem: é evidente que os costumes dos<br />
Sioux lhe inspiram e agradam infinitamente mais que a perspectiva<br />
da vida tranquila ao pé do fogo, que souberam tão magnificamente<br />
cantar um Brooks e um Hawks, como bem testemunham as múltiplas<br />
platitudes da mise en scène, neste sentido mise en scène de<br />
crítico, de político e de moralista.<br />
É assim que, ao fim e ao cabo, Fuller segue no itinerário inverso<br />
ao de Welles, e pode-se dizer que há entre eles uma diferença – que<br />
se inscreve igualmente no domínio dos valores – da mesma ordem<br />
que aquela entre Marlowe e Shakespeare, com todas as consequências<br />
subentendidas por esta.<br />
Embora, a princípio, sempre tenha negado isso, Welles tentou,<br />
através das diferentes formas de sua arte (que o revelam ao<br />
mesmo tempo como romântico e civilizado) produzir a síntese de<br />
suas aspirações físicas e morais; ao passo que Fuller, faustiano em<br />
princípio e prometéico de fato, embora consciente da necessidade<br />
de tal síntese e ativamente procurando por ela, é mais cedo ou<br />
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