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O Quimono<br />
Escarlate<br />
The Crimson Kimono<br />
1959, 35 mm, 82 min, 1.85 : 1<br />
Direção: Samuel Fuller<br />
roteiro: Samuel Fuller<br />
Fotografia: Sam Leavitt<br />
Montagem: Jerome Thoms<br />
Música: Harry Sukman<br />
Produção: Samuel Fuller<br />
Companhia Produtora: Globe Enterprises<br />
elenco: Victoria Shaw, Glenn Corbett, James Shigeta, Anna Lee,<br />
Paul Dubov, Jaclynne Greene, Neyle Morrow, Gloria Pall, Pat<br />
Silver, George Yoshinaga, Kaye Elhardt<br />
Classificação Indicativa: 16 anos<br />
Em Los Angeles, dois amigos, veteranos combatentes da Guerra<br />
da Coreia, trabalham juntos como detetives da divisão de homicídios e<br />
estão encarregados de resolver o assassinato de uma dançarina. Durante<br />
as investigações, eles se apaixonam por uma misteriosa mulher.<br />
Na Main Street de Los Angeles, às oito da<br />
noite, Sugar Torch, uma loira belzebu, faz um<br />
striptease na casa Burlesque, onde é a atração<br />
principal. Ao entrar no camarim depois<br />
de fazer um gracejo no segurança distraído,<br />
encontra uma figura de sobretudo, chapéu e<br />
óculos escuros que atira na pintura pendurada<br />
na parede e em seguida dispara em sua<br />
direção. A stripper sai correndo pela rua e<br />
é alvejada por um tiro em meio ao trânsito<br />
de carros. O que esse trecho inicial nos revela?<br />
Muito. Isso não quer dizer que nesse<br />
início o filme nos dê as chaves de compreensão<br />
do mistério, mas induz o espectador a<br />
uma imersão singular em um universo, tanto<br />
que começa em um plano geral aéreo, seguido<br />
de outro que revela a rua de inferninhos,<br />
na sequência um striptease, e, depois dos<br />
tiros, a câmera volta à rua em meio ao movimento<br />
urbano noturno onde Sugar Torch<br />
é assassinada miseravelmente. Sua morte é<br />
exato oposto da morte de dimensões épicas<br />
de Tony Camonte em Scarface. Morre como<br />
“qualquer uma”. O tempo não para, e ela é só<br />
mais um cadáver na noite. No dia seguinte,<br />
a imprensa marrom já fez o seu trabalho, e<br />
a polícia começa o seu. Estamos em um dos<br />
grandes filmes noir de Samuel Fuller.<br />
O fato de o diretor trabalhar nas caracterizações<br />
e regras do gênero – seja noir,<br />
guerra ou western – dá a ele esta possibilidade<br />
de conceber universos atravessados<br />
pela contradição, sem apelar para truques<br />
de roteiro e psicologia vagabunda. Todos os<br />
personagens que conhecemos, entre o assassinato<br />
da garota e a descoberta do autor<br />
do crime em O Quimono Escarlate, estão<br />
expostos em suas ambiguidades. Os policiais<br />
de Fuller, como seus bandidos e mercenários,<br />
são profundamente afetados pelo elemento<br />
humano em jogo. As paixões, sejam elas<br />
quais forem, é o que os desestabiliza, mas<br />
não os arrefecem. O assassinato da stripper<br />
é um ponto de partida para o desnudamento<br />
de algo que, no entanto, não dissimula sua<br />
imagem: uma comunidade urbana, moderna,<br />
com diferenças profundas – conciliáveis ou<br />
inconciliáveis – e injustiças flagrantes entre<br />
seus membros.<br />
Durante o filme, o crime parece se tornar<br />
secundário, porém, se vimos tudo começar<br />
nele, voltamos para ele em seu final. Nesse<br />
ínterim, temos os dois policiais, o branco e o<br />
nissei, ambos apaixonados por uma pintora a<br />
quem protegem e amigos de uma outra pintora,<br />
mais efusiva e inteligente só que constantemente<br />
bêbada. Há também uma observação<br />
curiosa sobre mistura de culturas, com freiras<br />
coreanas e ocidentais engajados na cultura<br />
japonesa, cemitérios de heróis de guerra<br />
nisseis que lutaram contra o país de seus pais<br />
e etc. Para tanto, uma mise en scène que<br />
relaciona fatores distintos. Fuller conjuga os<br />
interiores (estúdio) e exteriores, a construção<br />
de um espaço dramático e o agenciamento<br />
caótico de uma locação a céu aberto. Enfim, o<br />
realismo colateral de Samuel Fuller que aqui<br />
explora todas as suas ambivalências com uma<br />
elegância bruta (na ação, nas asserções) e sutil<br />
(no ritmo, nos detalhes).<br />
Francis Vogner dos Reis<br />
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