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A Lei dos<br />
Marginais<br />
Underworld U.S.A Ao encarar o assassino moribundo<br />
de seu pai, Tolly Devlin murmura entre os<br />
dentes: “Eu, que sou o retrato de meu pai,<br />
Tom Devlin”. A Lei dos Marginais é a literal<br />
ilustração desse credo filial: o close no rosto<br />
do protagonista arremata cada sequência do<br />
filme, inaugura todo embate. Os incidentes<br />
e personagens com que sua marcha se choca<br />
são subsumidos por esta figura esfíngica:<br />
uma consciência aqui se forja e se prova<br />
através de uma ominosa trama de acidentes,<br />
uma trilha perversa de pais substitutos (os<br />
chefões) e duas figuras femininas (Cuddles,<br />
a matronal dona do bar; Sandy, a frágil “flor<br />
1961, 35 mm, 99 min, 1.85 : 1<br />
Direção: Samuel Fuller<br />
roteiro: Samuel Fuller<br />
Fotografia: Hal Mohr<br />
Montagem: Jerome Thoms<br />
Música: Harry Sukman<br />
Produção: Samuel Fuller<br />
Companhia Produtora: Globe Enterprises<br />
elenco: Cliff Robertson, Dolores Dorn, Beatrice Kay, Paul Dubov,<br />
Robert Emhardt, Larry Gates, Richard Rust, Gerald Milton,<br />
Allan Gruener, David Kent, Tina Pine, Sally Mills, Samuel Fuller<br />
Classificação Indicativa: 16 anos<br />
Aos quatorze anos, Tolly Devlin (Cliff Robertson), um pequeno<br />
delinquente, vê seu pai sendo assassinado em um beco. Vinte anos<br />
mais tarde, descobre que os assassinos fazem parte do alto escalão do<br />
sindicato do crime, e infiltra-se nele para pôr sua vingança em prática.<br />
do lodo”) que prometem refúgio para a atormentada<br />
hybris do justiceiro. O modelo descrito<br />
aqui corresponde a um gênero clássico<br />
na literatura ocidental: o romance de formação<br />
(Bildungsroman). Através do encontro<br />
com várias figuras, um menino vai sendo<br />
aliciado por um vórtice aterrador, um no<br />
man’s land inominável, ao qual é impossível<br />
resistir: crescer, este opróbrio.<br />
Experiência terrivelmente dialética:<br />
identificando-se com os modelos com que<br />
se defronta e, em um mesmo movimento,<br />
ultrapassando-os, substituindo-os, traindo<br />
-os; vingando-se de sofrer o que lhe fazem<br />
sofrer: crescer, esta maldição. A clivagem<br />
esquizofrênica que atravessa a obra de Fuller<br />
– na qual um personagem sempre se vê<br />
seduzido ou ameaçado pela possibilidade<br />
de tornar-se um Outro – aqui se refrata e<br />
se distribui ao longo de uma cadeia de personagens<br />
venais (os chefões), de escalas na<br />
trajetória de reconciliação com o passado<br />
que o personagem empreende.<br />
A questão aqui é de natureza ontológica:<br />
Tolly não é mais um menino, mas permanece<br />
aferrado às suas origens, faz da sua vida um<br />
meio de servir a um móbil primordial: permanecer<br />
à sombra do Pai. A infância é presente,<br />
mas como um fantasma; como todo<br />
fantasma – vivência passada que não foi<br />
simbolizada, integrada ao logos – , ela volta,<br />
mas franzida de assombro: a surra mortal<br />
no pai; as bonecas de Cuddles, em grandes<br />
angulares; o assassinato da menina. Nessas<br />
sequências onde refulge um chiaroscuro<br />
febril, o expressionismo aparece em Fuller<br />
com propósitos de conjuração; uma certa<br />
infância do cinema serve ao terror de uma<br />
outra infância – à presentificação de um outro<br />
espectro, agora individual.<br />
Este é, com Cão Branco, o grande filme<br />
de horror de Fuller; o filme em que as<br />
presenças (e o mundo noir onde se movem)<br />
flutuam na gravitação de uma Origem trágica,<br />
um fatum fantasmático. Ao contrário do<br />
calvário final de Brando no filme de Kazan, a<br />
via crucis com que A Lei dos Marginais se<br />
conclui – um estertórico plano-sequência do<br />
personagem em agonia – não sublima, mas<br />
eterniza a culpa e a maldição.<br />
Luiz Soares Jr.<br />
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