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mundo onde aparência e realidade se confundem a tal ponto que<br />
seu domínio sobre a realidade inevitavelmente fraqueja. Em um<br />
mundo maluco, a postura mais racional pode ser a loucura; assim, a<br />
insanidade não aparece para as personagens de Fuller apenas como<br />
uma ameaça, mas também como um conforto, uma fuga dos dilemas<br />
intoleráveis propostos pela dialética do mundo por onde vagueiam.<br />
Pois as personagens de Fuller, por desejarem completa liberdade,<br />
vivem em um mundo de perpétua escolha. “Para mim, quando chego<br />
a um ponto do filme em que há uma encruzilhada, ao instante<br />
em que as personagens podem seguir várias direções diferentes, em<br />
que há uma verdadeira escolha, fico satisfeito.” Portanto, essas personagens<br />
precisam conter, nos limites de seus eus, um grande número<br />
de possibilidades conflitantes. Além disso, precisam fazer uma<br />
escolha entre essas possibilidades com base em evidências que, por<br />
experiência própria, sabem que é totalmente não confiável. O que<br />
Fuller diz sobre sua própria experiência da guerra também vale para<br />
suas personagens: “Quando a gente está na linha de frente, fica num<br />
estado constante de tensão.” Essa tensão advém do esforço de se<br />
manterem forças incompatíveis em equilíbrio; por exemplo, no caso<br />
de uma guerra, a incompatibilidade entre o medo básico da morte<br />
e a situação em que se encontra o soldado. O principal objetivo do<br />
sargento Zack é sobreviver; ainda assim, ele se realistou por vontade<br />
própria para ficar em uma posição na qual corre perigo de vida.<br />
Essas tensões levam a uma fissura, pois são voltadas para dentro.<br />
A sociedade é vista não como um meio de realização do eu, mas<br />
como uma anulação do eu. Assim, todos os conflitos e tensões do<br />
mundo amontoam-se sobre a consciência individual solitária. Em O<br />
Quimono Escarlate (The Crimson Kimono, 1959), não é permitida<br />
a Joe nenhuma válvula de escape social para seus problemas; Fuller<br />
não lhe concede o luxo de dizer “eu sou uma vítima indefesa da<br />
questão racial; a culpa é da sociedade, não minha”. Não, é o caso dele,<br />
e ele precisa superá-lo. No fim das contas, o indivíduo está completamente<br />
só, porque apenas ele pode viver dentro de sua própria<br />
consciência, e essa consciência define suas possibilidades. Joe diz a<br />
Chris: “Você não pode sentir pena de mim se não for eu.” E Merrill,<br />
ao médico da unidade: “Como você pode saber o que eu consigo<br />
suportar?” Mas o corolário desse individualismo puro é o de que<br />
ninguém mais pode fazer suas coisas por você, não há escapatória<br />
para o dilema do eu. É possível adiar o instante da escolha, o que<br />
geralmente fazem as personagens de Fuller. Em Baionetas Caladas,<br />
Denno chega ao extremo de arriscar a própria vida no campo minado<br />
para não assumir as responsabilidades do comando; em Anjo<br />
do Mal, Skip joga com todas as possibilidades, até que a surra levada<br />
por Candy o obriga a escolher um lado; O’Meara prefere tentar<br />
tornar-se um sioux a enfrentar os ódios que dividem os Estados<br />
Unidos. Mas, ao fim e ao cabo, é preciso encarar a escolha, sempre<br />
considerada importante por causa dos seus efeitos no indivíduo. O<br />
êxito de Denno em assumir responsabilidade é visto como positivo<br />
não para os Estados Unidos, nem para o exército, nem para o esforço<br />
de guerra, mas para ele mesmo. Toda consideração externa<br />
é tida como irrelevante. A natureza pessoal autocentrada das escolhas<br />
é exprimida com grande beleza na cena de Baionetas Caladas<br />
em que o enfermeiro amedrontado faz uma operação em si mesmo<br />
para retirar uma bala. A câmera começa nele e em seguida faz uma<br />
panorâmica de 360 graus pelos rostos na caverna, voltando ao enfermeiro<br />
justamente em seu momento de triunfo, quando remove a<br />
bala. O sentido do ato começa e termina nele.<br />
Muitas vezes, o eu não é capaz de suportar mais a tensão. Uma<br />
solução, como vimos, é o suicídio. As outras são a violência e a insanidade,<br />
que, nos filmes de Fuller, estão estreitamente relacionadas.<br />
No caso da violência, as forças irracionais que movem o homem são<br />
voltadas para fora e colidem diretamente com forças semelhantes<br />
em outro indivíduo; um dos conflitos vivenciado pelos personagens<br />
do diretor é aquele entre o próprio eu e o Outro, o mundo exterior<br />
que continuamente circunscreve sua liberdade de ação. A violência<br />
é uma tentativa de solucionar essa confusão mediante a destruição<br />
do Outro. No mundo de Fuller e na sociedade norte-americana, a<br />
violência é, portanto, produto inevitável de uma raça de homens<br />
sem senhor. Assim, a guerra é a negação das outras nações, e o<br />
ódio racial, a negação das outras raças. A violência com que a polícia<br />
de Chicago investiu nos manifestantes da Convenção Democrática<br />
Nacional de 1968 foi uma tentativa da polícia e das forças por ela<br />
representadas no sentido de negar a complexidade da sociedade,<br />
de negar as possibilidades de divergência, não tanto na sociedade<br />
quanto nelas mesmas. Agiram como Zack em Capacete de Aço, que<br />
atira no major norte-coreano, não por ele ler em voz alta a oração<br />
de Short Round “– Por favor, faça o sargento Zack me amar” –, mas<br />
porque ele acrescenta: “Que oração idiota.” O major forçou Zack a<br />
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