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BH, um canteiro de obras BH, um canteiro de obras - Fato Relevante

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MÁRIO RIBEIRO<br />

Memórias vicentinas<br />

Antes <strong>de</strong> chegar ao novo<br />

século (ou ao novo<br />

milênio), a fábrica<br />

fechou: ela, que <strong>um</strong> dia<br />

re pre sentou evolução,<br />

cerrava as portas e<br />

calava seus velhos<br />

teares transformados<br />

em sucata, fenômeno<br />

ocorrido com gran<strong>de</strong><br />

número <strong>de</strong> fábricas <strong>de</strong><br />

tecidos por todo o<br />

Brasil.<br />

Na história da minha terra natal, ocorreu<br />

durante décadas <strong>um</strong> paradoxo: o distrito<br />

<strong>de</strong> São Vicente sobrepunha, em<br />

po<strong>de</strong>r eco nô mico a se<strong>de</strong> do município, Baldim.<br />

Explica-se: São Vicente fora escolhido pela<br />

Cia. Cedro e Cachoeira para instalar ali <strong>um</strong>a uni -<br />

da<strong>de</strong> industrial <strong>de</strong> fiação e tecelagem, enquan to<br />

Baldim seguia o padrão agro pe cuá ria/co mér cio.<br />

Houve algo <strong>de</strong> heroico na implantação da<br />

fábrica <strong>de</strong> tecidos em São Vicente: os teares, importados<br />

da Inglaterra, <strong>de</strong> Belo Horizonte até a<br />

altura <strong>de</strong> Funilândia foram levados via balsas<br />

pelo rio das Velhas, até então navegável e livre<br />

da poluição que inspirou muitas décadas <strong>de</strong>pois<br />

o livro <strong>de</strong> Wan<strong>de</strong>r Pirolli sobre a questão ambiental,<br />

“Os rios morrem <strong>de</strong> se <strong>de</strong>”.<br />

Mais ainda: <strong>de</strong> Funilândia ao então arraial <strong>de</strong><br />

São Vicente, algo em torno <strong>de</strong> 20 quilômetros, as<br />

pe ças dos teares foram levadas em lombo <strong>de</strong> burros.<br />

Com evi<strong>de</strong>nte atraso, a revolução industrial<br />

inglesa se instalou ali e tocava <strong>um</strong>a fábrica que<br />

agrupava seiscentos ou mais funcionários em<br />

três turnos <strong>de</strong> trabalho.<br />

Meu avô, Tonico Ribeiro, tecelão respeitado<br />

por seu trabalho na Cedro, foi <strong>de</strong>slocado para<br />

São Vicente com a família. Entre seus méritos,<br />

além <strong>de</strong> administrador, trazia a fama <strong>de</strong> ter <strong>de</strong>senvolvido<br />

<strong>um</strong>a trançagem também inovadora, a<br />

que <strong>de</strong>u o título <strong>de</strong> 3R. “R” <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong> Ribeiro,<br />

mas não sei porque o “3”, talvez relativo à forma<br />

como o pano era feito, na verda<strong>de</strong>, a chamada<br />

“chita”, que fez sucesso estrondoso no país,<br />

principalmente no Nor<strong>de</strong>ste, certamente contribuindo<br />

para o crescimento da empresa.<br />

No seu entusiasmo, Tonico Ribeiro adquiriu<br />

terras n<strong>um</strong> lugar chamado “Varge do Capim” e<br />

cuidou ele também <strong>de</strong> importar <strong>um</strong>a máquina<br />

dos sonhos daquela época: o locomóvel, na verda<strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a locomotiva a vapor, estática, para<br />

fornecer e ner gia à pequena fazenda.<br />

Deixo para outra vez contar a epopeia do<br />

transporte e instalação do locomóvel, operações<br />

que me levam às lágrimas pela coragem e empreen<strong>de</strong>dorismo<br />

dos personagens.<br />

Personagens <strong>de</strong> <strong>um</strong>a época que a globalização<br />

já conseguiu praticamente apagar da história<br />

e que, muito em breve, apagará <strong>de</strong> vez. Esquecemo-nos<br />

que a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> sempre existiu em<br />

várias épocas da história da civilização, como<br />

escreveu Marshal Berman, no seu livro “Tudo<br />

que é sólido <strong>de</strong>smancha no ar”.<br />

Em 1998, quando escrevia <strong>um</strong> res<strong>um</strong>o do<br />

livro “As megatendências para o ano 2000”, <strong>de</strong>i<br />

<strong>um</strong>a paradinha para ver o “Jornal Nacional” e<br />

quase caí da ca<strong>de</strong>ira: Cid Moreira anunciava a<br />

queda do Muro <strong>de</strong> Berlim, visto também como<br />

símbolo do fim das i<strong>de</strong>ologias, tese que acabara<br />

<strong>de</strong> ler minutos antes no livro <strong>de</strong> John Naisbitt.<br />

É. Realmente, tudo que é sólido <strong>de</strong>smancha<br />

no ar, digo para reverenciar novamente Marshall<br />

Berman, citado anteriormente, quando contava a<br />

aventura da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> pela qual passou o<br />

mo<strong>de</strong>sto distrito <strong>de</strong> São Vicente com a implantação,<br />

ali, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a fábrica <strong>de</strong> tecidos no início do<br />

último século do milênio passado.<br />

Antes <strong>de</strong> chegar ao novo século (ou ao novo<br />

milênio), a fábrica fechou: ela, que <strong>um</strong> dia re pre<br />

sentou evolução, cerrava as portas e calava seus<br />

velhos teares transformados em sucata, fenômeno<br />

ocorrido com gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> fábricas<br />

<strong>de</strong> tecidos por todo o Brasil.<br />

A fábrica <strong>de</strong> tecidos era praticamente tudo<br />

para aquela comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> três mil<br />

pessoas. Seu fechamento significou terrível<br />

baque para as gerações que se seguiram ao início<br />

da fábrica. De longe, recordando os feitos <strong>de</strong><br />

meu avô Tonico Ribeiro e do meu pai Joãozito<br />

em torno da indústria, me vi absolutamente incapaz<br />

para oferecer i<strong>de</strong>ias e projetos para os que<br />

me procuraram pedindo ajuda.<br />

Mas os velhos operários juntaram as economias<br />

e montaram pequenas instalações quase<br />

domésticas, com os teares arrematados da companhia.<br />

Fazem, por exemplo, panos <strong>de</strong> prato. O<br />

marketing intuitivo lhes ensinou que <strong>de</strong>veriam<br />

grafar nos panos a palavra “açúcar”, porque as<br />

donas <strong>de</strong> casa da cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>ram que<br />

pano <strong>de</strong> prato bom é o que resulta <strong>de</strong> panos <strong>de</strong><br />

sacos <strong>de</strong> açúcar.<br />

Minha informante das coisas <strong>de</strong> São Vicente<br />

conta que, hoje, a maioria da população é formada<br />

por aposentados, como ocorre na maioria<br />

<strong>de</strong> pequenos municípios brasileiros. Os jovens<br />

saem cedo para tentar a vida em Belo Horizonte<br />

ou Sete Lagoas. A tradição tecelã possibilitou a<br />

criação <strong>de</strong> pequenas comunida<strong>de</strong>s familiares<br />

para a produção <strong>de</strong> tricô, croché e trabalhos<br />

manuais em linha, que o mundo novo acha que<br />

<strong>um</strong> dia as máquinas liquidarão também.<br />

É sabido que os panos <strong>de</strong> pratos produzidos<br />

em São Vicente sofrem ataques pesados <strong>de</strong><br />

novos produtos <strong>de</strong> limpeza. Mas o ataque pior,<br />

no enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> minha informante, é dos carros<br />

daqueles que chegam da Capital para passar o<br />

fim <strong>de</strong> semana e abrem o som nas noites <strong>de</strong> sá -<br />

bado para promover, nas ruas pacatas do arraial,<br />

baladas insuportáveis, que vão até o sol raiar.<br />

A mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> dos nossos ancestrais fazia mais<br />

sen tido. Pelo menos se fundamentava em valores<br />

mais nobres e, sobretudo, menos barulhentos.<br />

44 DEZEMBRO DE 2009

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