Itaú Cultural
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7 LEVINAS, E. L’au-delà<br />
du verset. Lectures et<br />
discours Talmudiques.<br />
Les éditions de minuit,<br />
98 , p. 6.<br />
8 O Talmude é a versão<br />
escrita das lições e das<br />
discussões dos doutores<br />
rabinos que ensinavam na<br />
Palestina e na Babilônia nos<br />
séculos que precederam<br />
e seguiram o início da<br />
nossa era, doutores que<br />
continuavam provavelmente<br />
antigas tradições. A Thora,<br />
uma parte do Talmude onde<br />
se insere a passagem sobre as<br />
cidade-refúgio, é considerada<br />
como exprimindo o cerne<br />
mesmo da vontade de Deus<br />
à qual devem obedecer os<br />
judeus ditos ortodoxos. “O<br />
Talmude [...] consignado por<br />
escrito entre o século II e<br />
o fim de século V da nossa<br />
era – é nos seus 68 tratados<br />
um texto imenso, de mais<br />
de mil páginas in- folio<br />
coberto de comentários<br />
e comentários dos<br />
comentários”, idem, p. .<br />
9 LEVINAS, E. L’au-delà<br />
du verset. Lectures et<br />
discours Talmudiques.<br />
Paris: Les éditions de<br />
minuit, 98 , p. 7.<br />
do sangue”, a quem, por outro lado, seria acordado um direito parcial.<br />
Esse direito parcial se origina, por seu turno, do entendimento que<br />
vê no homicídio involuntário, igualmente uma falta de atenção, de<br />
prudência, em suma: um erro. É devido à prevalência do direito pleno<br />
sobre esse direito parcial que uma Lei designa as cidades-refúgio<br />
onde o matador e o “vingador do sangue” terão mais dificuldade<br />
de se encontrar. Uma vez que esse direito parcial acordado ao<br />
“vingador de sangue” permanece até o fim do pontificado do avô<br />
contemporâneo ao matador, o lugar de refúgio se torna também<br />
um exílio, no sentido de uma sanção. Lévinas destaca o duplo<br />
efeito da cidade-refúgio: “Há então, na cidade-refúgio, proteção da<br />
inocência que é também punição do objetivamente culpado. Os<br />
dois ao mesmo tempo [...] A imprudência, a falta de atenção, limitam<br />
a nossa responsabilidade?”. 7<br />
Na verdade, se a imagem da cidade-refúgio, oriunda do Talmude, 8<br />
resta um caso limite e hipotético, onde justamente certa<br />
homogeneidade religiosa reinaria, o próprio Lévinas lança sua<br />
correlação aos dias atuais numa multiplicação de diásporas:<br />
Estas mortes, cometidas sem que os matadores as tenham querido,<br />
não se produzem por outro meio que não a lâmina que se solta do<br />
machado e vem derrubar o passante?<br />
Na nossa sociedade ocidental, livre e civilizada, mas sem igualdade<br />
social, sem justiça social rigorosa, será absurdo se perguntar se as<br />
vantagens das quais dispõem os ricos frente aos pobres – e todo o<br />
mundo é rico frente a alguém no Ocidente –, se estas vantagens,<br />
paulatinamente, não são elas próprias a causa de alguma agonia, de<br />
certa parte?<br />
Não existem, em alguma parte do mundo, guerras e matanças que<br />
são a conseqüência disto? Sem que nós daqui, habitantes de nossas<br />
cidades-capitais sem igualdade, é certo, mas protegidas e abundantes,<br />
sem que nós daqui, tenhamos querido mal a quem quer que seja?<br />
O vingador ou o redentor de sangue “de coração aquecido” não ronda<br />
ao nosso redor, sob forma de cólera popular, de espírito de revolta<br />
ou mesmo de delinqüência em nossos subúrbios, resultado do<br />
desequilíbrio social no qual nós estamos instalados?<br />
As cidades onde nós moramos e a proteção que, legitimamente,<br />
em razão de nossa inocência subjetiva, nós encontramos na nossa<br />
sociedade liberal (mesmo se nós a encontramos um pouco menos<br />
do que outrora) contra tantas ameaças de vinganças sem fé nem lei,<br />
contra tantos corações inflamados, não serão elas, de fato, a proteção<br />
de uma semi-inocência ou de uma semi-culpabilidade – tudo isto<br />
não faz das nossas cidades, cidades-refúgio ou cidades de exilados? 9<br />
Ao deixar essa pergunta aos nossos ouvidos, Lévinas estabelece<br />
equivalência em um só ato, inequívoca entre as cidades-capitais “abastadas”<br />
de todo o mundo e, por conseguinte, entre migrantes, imigrantes e<br />
exilados pobres de todo o mundo. Ele caracteriza uma relação de forças<br />
em que a “inocência subjetiva” não pode mais se eximir dos danos objetivos<br />
que, numa engrenagem já previsível, fazem das cidades contemporâneas<br />
apenas um outro cenário de sangrentos confrontos.<br />
O intervalo entre 980 e 00 marcou a perversa multiplicação<br />
do fenômeno de campos de refugiados (cuja invasão do Iraque<br />
é apenas a face mais midiatizada) perpetuando um estado de<br />
exceção do direito, como analisado por Giorgio Agamben 0 nas<br />
antípodas de qualquer hospitalidade. É a presença do (i)migrante<br />
que nos parece constituir o “núcleo” do desafio ao mesmo tempo<br />
político e o mais intrinsecamente cultural: o que confere a<br />
especificidade e a originalidade (ainda que utópica) de uma<br />
política cultural comprometida com o seu tempo. Nesse horizonte,<br />
os governos locais são de fato agentes fundamentais tanto para<br />
a diversidade cultural quanto para a criação de condições para a<br />
paz. Valor também buscado por Emmanuel Lévinas que, porém,<br />
desloca o assunto de uma filosofia política para uma filosofia ética;<br />
em outras palavras, colocando o foco no papel de cada um, sem<br />
cair numa ode ao individualismo, mas também re-investindo o um<br />
de uma responsabilidade para com o outro. Acusado de utópico ou<br />
moralista, sendo um pensador radical, Lévinas nos ajuda a retomar<br />
o espaço de ação de cada um, numa época em que um poder<br />
quase místico é atribuído à sociedade civil e aos governos locais,<br />
como se estes existissem pairando acima de uma abstração!<br />
Como vimos, é urgente repensarmos nossas cidades atuais como<br />
intrinsecamente cidades-refúgio e cidades-exílio, onde lidar com cultura<br />
é cada vez mais lidar com multilingüismo e intraduzibilidade. Não<br />
precisamos ver os indonésios e muçulmanos na Holanda, procurar a antiga<br />
Somália, os surinameses, os indianos em Londres, ou a diáspora armênia<br />
na França. Basta pensarmos nos palestinos no Chuí, nos muçulmanos em<br />
Campinas, no Paraná ou no bairro do Brás, em São Paulo; na migração<br />
intrametropolitana na Baixada Santista, nos migrantes de Paulínia, ou nos<br />
pescadores migrantes entre Amazônia e Pará... Poucos exemplos que<br />
flagram a atualidade e a proximidade do tema das diásporas e o abismo<br />
em que se encontram os termos de hospitalidade!<br />
Somente a modificação das relações na cidade reflexiva, apogeu da<br />
cidade-espetáculo (para Lévinas equivalendo ao ocidente como um<br />
todo), poderá causar modificações neste estado de coisas. Nesse<br />
encadeamento de idéias, poderíamos dizer que a hospitalidade<br />
escapa a essa ordem hierárquica, pois ela parece infiltrar-se mais<br />
naquelas situações que tendem antes à Babilônia do que à pólis.<br />
0 AGAMBEN, G. Homo<br />
Sacer. Le pouvoir<br />
souverain et la vie nue.<br />
Paris: Ed. du Seuil, 997.<br />
Os amálgamas operados entre<br />
imigrantes e delinqüência não<br />
cessam de repaginar-se ao fio<br />
das décadas. Já em 98 todos<br />
os que quisessem podiam<br />
surpreender-se ao saber que<br />
“o relatório do Sr. Mangin<br />
precisava 7, % de estrangeiros<br />
entre condenados às bases<br />
(para crimes), enquanto que<br />
representam 8% da população e<br />
mais especificamente , % da<br />
população ativa masculina entre<br />
a qual se reencontra a quase<br />
totalidade dos delinqüentes:”<br />
a grande delinqüência saberia<br />
ser atribuída à imigração [...]<br />
Porém revela-se que à idade<br />
e condição social equivalente<br />
a pequena delinqüência não<br />
é mais forte nos imigrantes<br />
que nos franceses. Conforme<br />
Françoise GASPARD,<br />
L’information et l’expression<br />
culturelle des communautés<br />
immigrés en France, 98 . Citado<br />
por P. ESTÈBE et E. REMOND, Les<br />
communes au rendez-vous de<br />
la culture – pour des politiques<br />
culturelles municipales. Paris:<br />
Syros, 98 , p. 9.<br />
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