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“FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE” - Fadisp

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FACUL<strong>DA</strong>DE AUTÔNOMA DE DIREITO - FADISP<br />

PROGRAMA DE MESTRADO<br />

EM<br />

FUNÇÃO <strong>SOCIAL</strong> DO DIREITO<br />

<strong>“FUNÇÃO</strong> <strong>SOCIAL</strong> <strong>DA</strong> PROPRIE<strong>DA</strong>DE”<br />

SÃO PAULO<br />

2007<br />

FRANCISCO JOSÉ CARVALHO


FRANCISCO JOSÉ CARVALHO<br />

<strong>“FUNÇÃO</strong> <strong>SOCIAL</strong> <strong>DA</strong> PROPRIE<strong>DA</strong>DE”<br />

Dissertação de Mestrado apresentada à<br />

Banca Examinadora da Faculdade<br />

Autônoma de Direito - FADISP, como<br />

exigência parcial para obtenção do título de<br />

Mestre em Função Social do Direito, sob a<br />

orientação do Professor Doutor José Manoel<br />

de Arruda Alvim Netto.<br />

SÃO PAULO<br />

2007<br />

1


______________________________________________<br />

______________________________________________<br />

______________________________________________<br />

2


Dedico este trabalho ao professor<br />

Doutor José Manoel de Arruda Alvim<br />

Netto, a quem sou imensamente grato<br />

pela oportunidade de aprender novas e<br />

incomparáveis lições de Direito Civil e<br />

Direito Processual Civil.<br />

3


Agradeço a Deus, por mais esta oportunidade. Sem ele, nada poderia fazer.<br />

Agradeço a Silvia e a Pedro, mulher e filho, razões de minha constante<br />

insistência.<br />

Agradeço ao meu orientador, Professor Doutor José Manoel de Arruda<br />

Alvim Netto, exemplo de ontem e de hoje no ensino das letras jurídicas.<br />

Agradeço a Professora Doutora Thereza Celina Diniz de Arruda Alvim,<br />

pela dedicação e amor com que coordena o mestrado da <strong>Fadisp</strong>.<br />

Agradeço a Universidade Empresarial Sabesp, nas pessoas de seu corpo<br />

gerencial, por permitir o desenvolvimento e capacitação de seus<br />

profissionais, na busca incansável de consolidar a gestão do conhecimento,<br />

razão última do aprimoramento do homem, do trabalhador e da pessoa<br />

humana.<br />

Agradeço também aos professores Doutores:<br />

Carlos Eduardo Bianca Bittar<br />

Donaldo Armelim<br />

Enrique Ricardo Lewandowski<br />

Everaldo Augusto Cambler<br />

Joaquim de Souza Campos<br />

Marcio Romeiro<br />

Maria Isabel do Prado<br />

Mônica Bonetti Couto<br />

Rolando Maria da Luz<br />

Tércio Sampaio Ferraz<br />

Agradeço ainda a todos os colegas da turma do mestrado M1 e M2, por<br />

possibilitar os debates das questões relevantes, suscitadas nas aulas e nas<br />

pesquisas desenvolvidas.<br />

Enfim, aos funcionários, colegas e amigos da <strong>Fadisp</strong>, o meu muito<br />

obrigado.<br />

4


RESUMO<br />

A propriedade, no nosso entender, é um dos temas mais polêmicos e<br />

emblemáticos de todos os tempos. Por essa razão, tem merecido do<br />

profissional do direito, constante dedicação no seu estudo, na tentativa de se<br />

descobrir o seu conceito, seu conteúdo, seus elementos, suas características<br />

e sua importância no âmbito dos direitos reais.<br />

A configuração da propriedade é um tema sempre presente na ciência<br />

jurídica. No direito romano ela foi concebida como um direito absoluto.<br />

Essa conotação, de certa forma, foi alterada na Idade Média, assumindo<br />

uma concepção peculiar para a época. Na Idade Moderna, a filosofia<br />

fornece novos elementos, que possibilita retomar as antigas características<br />

do direito romano, com um ideário ainda maior, ou seja, a propriedade<br />

como um direito absoluto e imprescritível. Na Idade Contemporânea, o<br />

direito de propriedade passa por profundas transformações no campo da<br />

ideologia jurídica e social, passando a ser admitida, como um direito que<br />

deve atender a uma função social, fundamentada no Estado Social de<br />

Direito, inaugurado com a Constituição do México de 1917 e a Constituição<br />

da Alemanha de 1919.<br />

Essa dissertação procura retratar o direito de propriedade, não apenas como<br />

um direito absoluto, marca que procura preservar mesmo com o advento da<br />

função social do direito. Interpreta, ainda, a figura da função social da<br />

propriedade, como uma cláusula vetora da destinação econômica da<br />

propriedade, ordenadora da política urbana, rural e ambiental, que impõe<br />

um poder dever ao proprietário de atender a esta cláusula. Com isso, se<br />

pretende contribuir com a ciência do direito, naquilo que é objeto desse<br />

trabalho.<br />

5


ABSTRACT<br />

The property, in ours to understand, one of the emblematics subjects most<br />

controversial and of all the times. Therefore, it has deserved of the<br />

professional of the right, constant devotion in its study, the attempt of if<br />

discovering its concept, its content, its elements, its characteristics and its<br />

importance in the scope of the rights in rem.<br />

The configuration of the property is a always present subject in legal<br />

science. In the Roman law it was conceived as an absolute right. This<br />

connotation, of certain form, was modified in the Average Age, assuming a<br />

peculiar conception for the time. In the Modern Age, the philosophy<br />

supplies new elements, that it makes possible to retake the old<br />

characteristics of the Roman law, with a still bigger set of ideas, or either,<br />

the property as an absolute and imprescriptible right. In the Age<br />

Contemporary, the property right passes for deep transformations in the<br />

field of the legal and social ideology, passing to be admitted, as a right that<br />

must take care of to a social function, based on the Social State of Right,<br />

inaugurated with the Constitution of the Mexico of 1917 and the<br />

Constitution of Germany of 1919.<br />

This dissertation looks for to portray the property right, not only as an<br />

absolute right, mark that it looks to preserve exactly with the advent of the<br />

social function of the right. It interprets, still, the figure of the social<br />

function of the property, as a vector clause of the economic destination of<br />

the property, collator of the urban, agricultural and ambient politics, that<br />

imposes a power to have to the proprietor to take care of to this clause. With<br />

this, if it intends to contribute with the science of the right, in that it is<br />

object of this work.<br />

6


SUMÁRIO<br />

Introdução................................................................................................ 12<br />

Capítulo I<br />

1. A PROPRIE<strong>DA</strong>DE NA HISTÓRIA....................................... 15<br />

1.1. Introdução................................................................................... 15<br />

1.2. A propriedade em Roma ............................................................ 16<br />

1.3. A propriedade na Idade Média................................................... 25<br />

1.4. A noção de propriedade para a Igreja Católica........................... 30<br />

1.5. A propriedade na Idade Moderna............................................... 33<br />

1.6. A propriedade na Idade Contemporânea.................................... 34<br />

1.7. A propriedade como um direito relativo.................................... 38<br />

1.8. O papel da filosofia do direito para enrijecer o individualismo<br />

da propriedade francesa.............................................................. 41<br />

1.9. A doutrina socialista sobre a propriedade ................................. 48<br />

1.10. A evolução do direito de propriedade ....................................... 51<br />

1.11. A propriedade nos dias atuais .................................................... 55<br />

Capítulo II<br />

2. CONFIGURAÇÃO <strong>DA</strong> PROPRIE<strong>DA</strong>DE.............................. 62<br />

2.1. Introdução................................................................................... 62<br />

2.2. Conceito de propriedade............................................................. 62<br />

2.3. A propriedade como um direito subjetivo.................................. 72<br />

2.4. Do objeto do direito de propriedade........................................... 73<br />

2.5. Do conteúdo do direito de propriedade...................................... 77<br />

2.6. Propriedade, direito de propriedade e direito à propriedade....... 79<br />

2.7. Regime jurídico da propriedade.................................................. 84<br />

2.8. A propriedade e os novos valores sociais................................... 88<br />

2.9. Características dos direitos pessoais e reais................................ 91<br />

2.10. Diferença dos direitos pessoais para os direitos reais................. 91<br />

2.11. Características do direito de propriedade................................... 94<br />

2.12. Características dos direitos reais................................................. 96<br />

7


2.13. Publicidade................................................................................. 98<br />

2.14. Numerus clausus......................................................................... 99<br />

2.15. Oponibilidade erga omnes.......................................................... 100<br />

2.16. Seqüela........................................................................................ 101<br />

2.17. Preferência.................................................................................. 102<br />

2.18. Perpetuidade............................................................................... 104<br />

2.19. Localização do direito de propriedade no Direito Civil............. 105<br />

2.20. Teorias que explicam o direito de propriedade........................... 108<br />

2.21. Natureza jurídica da propriedade................................................ 111<br />

2.22. A propriedade privada e a propriedade pública.......................... 112<br />

2.23. Regime jurídico da propriedade privada e da propriedade<br />

pública........................................................................................ 118<br />

Capítulo III<br />

3. FUNÇÃO <strong>SOCIAL</strong> <strong>DA</strong> PROPRIE<strong>DA</strong>DE.............................. 122<br />

3.1. Introdução................................................................................... 122<br />

3.2. A Doutrina da Função Social do Direito.................................... 122<br />

3.3. A Doutrina da Função Social da Igreja....................................... 136<br />

3.4. Objetivo da função social da igreja............................................ 136<br />

3.5. Fontes da Doutrina Social da Igreja............................................ 137<br />

3.6. Principiologia da Doutrina da Função Social da Igreja ............. 138<br />

3.7. Origens históricas da Doutrina Social da Igreja......................... 140<br />

3.7.1. A Rerum Novarum e o Direito de Propriedade........................... 142<br />

3.7.2. Outros documentos eclesiásticos que fundamentam a<br />

existência da Doutrina Social da Igreja...................................... 145<br />

3.7.3. Encíclica Quadragésimo Anno de Pio XI de 1931..................... 145<br />

3.7.4. Encíclica Mater et Magistra de João XXIII 147<br />

1961............................................................................................<br />

3.7.5. Encíclica Pacem In Terris de João XXIII de 1963..................... 150<br />

3.8. Função social e socialização do Direito...................................... 151<br />

3.9. Espécies de função social aplicadas ao Direito.......................... 152<br />

8


Capítulo IV<br />

4. FUNÇÃO <strong>SOCIAL</strong> <strong>DA</strong> PROPRIE<strong>DA</strong>DE NO DIREITO 153<br />

COMPARADO............................................................................<br />

4.1. Introdução..................................................................................... 153<br />

4.2. No direito francês.......................................................................... 154<br />

4.3. No direito alemão.......................................................................... 161<br />

4.4. No direito italiano.......................................................................... 162<br />

4.5. No direito espanhol....................................................................... 167<br />

4.6. No direito português...................................................................... 168<br />

4.7. No direito mexicano...................................................................... 171<br />

Capítulo V<br />

5. FUNÇÃO <strong>SOCIAL</strong> <strong>DA</strong> PROPRIE<strong>DA</strong>DE NO DIREITO<br />

POSITIVO BRASILEIRO......................................................... 174<br />

5.1. Introdução...................................................................................... 174<br />

5.2. A Constituição Federal de 1824.................................................... 175<br />

5.3. A Constituição Federal de 1891.................................................... 176<br />

5.4. A Constituição Federal de 1934.................................................... 177<br />

5.5. A Constituição Federal de 1937.................................................... 178<br />

5.6. A Constituição Federal de 1946.................................................... 179<br />

5.7. A Constituição Federal de 1967.................................................... 183<br />

5.8. A Constituição Federal de 1988.................................................... 186<br />

5.9. A função social da propriedade como princípio jurídico.............. 190<br />

5.10. A função social da propriedade como direito humano<br />

fundamental................................................................................... 193<br />

5.11. A função social da propriedade..................................................... 203<br />

5.12. Conceito de função social............................................................. 210<br />

5.13. Da razão da função social.............................................................. 220<br />

5.14. A função social individual da propriedade e a função social<br />

coletiva da propriedade................................................................. 224<br />

5.15. A função econômica da propriedade............................................. 226<br />

5.16. A propriedade na ordem econômica.............................................. 228<br />

5.17. Dever jurídico do proprietário de atender a uma função social.... 233<br />

9


5.18. A função social da propriedade no Direito Civil.......................... 234<br />

5.18.1. As inovações do Código Civil de 2002......................................... 235<br />

5.18.2. Uso anti-social da propriedade...................................................... 240<br />

5.18.3. Propriedade e desapropriação........................................................ 241<br />

5.18.4. Função social da posse.................................................................. 241<br />

5.18.5. Desapropriação judicial................................................................. 245<br />

5.19. Conseqüências para aquele que não atende a função social.......... 252<br />

5.20. Efetivação do direito de propriedade............................................ 253<br />

5.21. Função social da propriedade e justiça social............................... 256<br />

5.22. Função social da propriedade e as limitações ao direito de<br />

propriedade.................................................................................... 256<br />

Capítulo VI<br />

6. FUNÇÃO <strong>SOCIAL</strong> <strong>DA</strong> PROPRIE<strong>DA</strong>DE URBANA E<br />

RURAL......................................................................................... 263<br />

6.1. Introdução...................................................................................... 263<br />

6.2. A função social da propriedade urbana......................................... 263<br />

6.3. Elementos de cognição da função social da propriedade urbana 265<br />

6.4. A função social da propriedade rural............................................ 270<br />

6.5. Elementos de cognição da função social da propriedade rural..... 272<br />

Capítulo VII<br />

7. FUNÇÃO AMBIENTAL <strong>DA</strong> PROPRIE<strong>DA</strong>DE....................... 276<br />

7.1. Introdução...................................................................................... 276<br />

7.2. O que legitima o uso da propriedade para atender a uma função<br />

ambiental?..................................................................................... 280<br />

7.3. A função ambiental da propriedade no Código Civil brasileiro.... 281<br />

7.4. A propriedade como um bem ambiental....................................... 282<br />

7.5. A propriedade e a flora.................................................................. 284<br />

7.6. A propriedade e a fauna................................................................. 285<br />

7.7 A propriedade e o patrimônio histórico e cultural......................... 287<br />

7.8. A propriedade e a poluição do ar e da águas................................. 288<br />

7.9. A propriedade e as áreas de proteção permanente........................ 289<br />

10


Capítulo VIII<br />

8. JURISPRUDÊNCIA <strong>DA</strong> FUNÇÃO <strong>SOCIAL</strong> <strong>DA</strong><br />

PROPRIE<strong>DA</strong>DE............................................................................. 293<br />

8.1. Introdução......................................................................................... 293<br />

8.2. O entendimento do Superior Tribunal de Justiça.............................. 294<br />

8.2.1 Função social da propriedade urbana e interesse coletivo................ 295<br />

8.2.2. Função social dos bens de produção................................................. 297<br />

8.3. O entendimento do Supremo Tribunal Federal................................. 298<br />

CONCLUSÕES ........................................................................................ 300<br />

BIBLIOGRAFIA....................................................................................... 305<br />

11


INTRODUÇÃO<br />

A escolha do tema “Função Social da Propriedade”, em primeiro<br />

lugar, está relacionada ao tema do mestrado da Faculdade Autônoma de<br />

Direito de São Paulo - FADISP, ou seja, a Função Social do Direito.<br />

Ao lado da Função Social do Direito, nos foram apresentadas duas<br />

sub-áreas da pesquisa e, conseqüentemente, pudemos escolher uma delas, a<br />

“Função Social dos Institutos de Direito Privado” e o “Acesso a Justiça”.<br />

A escolha da dissertação se deve ao fato do tema central do mestrado,<br />

ter propiciado, desde o início, uma reflexão para a seguinte indagação: “O<br />

que é a Função Social do Direito? e, O que é a Função Social da<br />

Propriedade?, algo que nos colocou em constante questionamento, para<br />

poder extrair, o quanto possível, as lições que foram objeto de nossa<br />

pesquisa ao longo do trabalho.<br />

Outro fator que possibilitou a escolha do tema é, exatamente, o fato<br />

de que a propriedade seja, talvez, o instituto jurídico mais antigo, de todos<br />

os tempos, residindo nela, ainda nos dias de hoje, constantes preocupações,<br />

quanto ao seu conceito, seus meandros e sua eficácia no plano dos direitos<br />

individuais e coletivos.<br />

Embora reconheça que, o estudo da propriedade, neste trabalho, não<br />

seja matéria fácil, tendo em vista que o instituto assumiu, ao longo da<br />

história, feições próprias, em cada época, vindo a representar, em todos<br />

elas, o sentido de poder daquele que mantém a propriedade, como fonte de<br />

riqueza, resolvemos aceitar o desafio de escrever algumas palavras,<br />

12


mormente, nossa preocupação com a ausência efetiva de instrumentos de<br />

políticas públicas, que torne efetivo o acesso à propriedade privada. Não se<br />

pretende, com essa dissertação, apresentar uma fórmula acabada para a<br />

questão, atinente à função social da propriedade, até porque, para esse<br />

desiderato, talvez todo o tempo do mundo não seja suficiente, para<br />

responder a todas as perguntas, que cercam esse tema.<br />

O objetivo central desse trabalho é fazer um estudo, ainda que<br />

superficial, do instituto da propriedade, levando em consideração o contexto<br />

histórico, a forma como ela se apresentou nas várias épocas, partindo do<br />

regime jurídico da propriedade em Roma, passando pela Idade Média, pela<br />

Idade Moderna, pela Idade Contemporânea até os nossos dias.<br />

Iremos procurar trazer alguns elementos históricos, sociais e<br />

econômicos, para se extrair como se deu a configuração da propriedade<br />

nesses vários períodos, e o que ela representou para a humanidade em cada<br />

época. Aliada a essas considerações, a questão central da função social da<br />

propriedade será realçada, com vistas a procurar demonstrar qual o perfil<br />

jurídico assumido pela propriedade, no âmbito do direito positivo brasileiro,<br />

e em que momento histórico a idéia de função social foi incorporada ao<br />

instituto da propriedade.<br />

Reconhecemos que essa tarefa não foi fácil e esperamos que o<br />

objetivo tenha sido atingido, centrado na questão primordial de se saber se a<br />

função social da propriedade tem, ou não, o condão de suprimir o direito<br />

individual da propriedade, ou se é possível haver uma convivência<br />

harmônica. Procuramos, assim, tratar da função social da propriedade,<br />

levando em consideração sua origem, seu âmbito, como se deu ontem e<br />

13


como se apresenta nos dias atuais, bem como, quais as perspectivas para<br />

tornar eficaz no âmbito do direito civil e constitucional. Para esse intento,<br />

trabalhamos o instituto, ainda, que de forma superficial no direito<br />

comparado.<br />

O trabalho procurou dentro da linha de pesquisa e da metodologia<br />

aplicada, tratar do tema da função social, também ligada à propriedade<br />

urbana, à propriedade rural e apresentar ligeiras considerações acerca da<br />

função social da propriedade ambiental, terminando por trazer, ainda, o<br />

entendimento da jurisprudência em alguns casos examinados.<br />

Nesse trabalho, além de fazer uma abordagem doutrinária acerca da<br />

propriedade e de sua função social, trabalhamos com o método intuitivo,<br />

para se poder refletir acerca da questão da função social. Procuramos,<br />

assim, demonstrar nossas convicções, ainda que parcas sobre aquilo que<br />

compreendemos sobre a idéia básica de “função social da propriedade”, e o<br />

que ela representa para a sociedade atual. Com isso pretendemos deixar<br />

nossa colaboração acadêmica, para o aprofundamento do estudo do<br />

instituto, realçando a assertiva, segundo a qual, a função social da<br />

propriedade é a mola propulsora da atividade econômica, que exige do<br />

proprietário a adoção de medidas, para extrair da terra as potencialidades,<br />

capazes de gerar riquezas, para si próprio, para sua família e para a<br />

coletividade.<br />

14


Capítulo I<br />

1. A PROPRIE<strong>DA</strong>DE NA HISTÓRIA<br />

1.1. Introdução<br />

Para que se possa conhecer uma instituição jurídica, é indispensável,<br />

ou altamente conveniente, tecer as considerações históricas, acerca de sua<br />

origem, sem o que não se faz possível compreender, inteiramente, como se<br />

deu a evolução do instituto ao longo dos tempos. Isto é assim porque todo o<br />

instituto de direito, tem a sua origem, provém de um local, de onde brotou.<br />

A propriedade tem sua origem histórica, seu berço, o marco inicial de<br />

sua estrutura. Com efeito, na história do mundo ocidental, as notícias da<br />

existência da propriedade privada, já com um perfil jurídico, se encontram<br />

em Roma, e será a partir delas que exporemos nesse trabalho os elementos<br />

mais importantes ao longo de sua evolução no plano do direito.<br />

A história das sociedades, desde as mais antigas até as mais<br />

modernas, conhece o direito de propriedade.<br />

Esta realidade permite, desde os tempos mais remotos da cultura<br />

humana aos dias atuais, a aquisição de riquezas, o que tem proporcionado<br />

ao homem, em todas as gerações, constituir seu patrimônio e desbravar<br />

novas terras, novos continentes, bem como governar novos povos e impor a<br />

estes sua força, seu domínio e o seu poder.<br />

15


Este domínio está delineado ao longo da história da humanidade e é<br />

pautado pela imposição de um poder jurídico, que a sociedade dominante<br />

exerce sobre a sociedade dominada, seja pela força física, ou ideológica.<br />

A concepção de propriedade foi construída ao longo da história das<br />

sociedades e, ainda nos dias de hoje, não há uma posição unívoca quanto ao<br />

seu conceito, graças à amplitude de seu instituto, assim como, em razão das<br />

diversas variações do direito de propriedade, num mesmo sistema. Mas, é<br />

verdade, também, que a propriedade desempenhou em cada sociedade e em<br />

cada época da história da humanidade um sentido condizente com a<br />

realidade vivida. 1<br />

De fato, veremos no curso deste capítulo que, ao longo do processo<br />

histórico, a noção de propriedade variou de civilização para civilização, de<br />

cultura para cultura, vindo a atingir no evoluir dos tempos conotações<br />

diversas daquelas encontradas em sua origem.<br />

1.2. A propriedade em Roma<br />

Inicialmente, cumpre observar que a doutrina civilista é unívoca no<br />

sentido de reconhecer que os romanos não definiram o que vinha a ser o<br />

direito de propriedade. Com efeito, essa tarefa não foi cumprida ainda nos<br />

dias atuais.<br />

1<br />

Logo adiante será exposto quais são os sentidos e realidades vividas em cada época e que por esta razão<br />

possibilitaram a propriedade ter uma feição própria.<br />

16


A propriedade no direito romano foi concebida como direito absoluto<br />

e perpétuo, tendo como atributos o direito de usar, gozar, dispor e<br />

reivindicar a coisa. Não havia em Roma a concepção jurídica de bem, mas<br />

somente a de coisa. Foi a evolução do direito que permitiu o surgimento da<br />

noção de bem ao lado da noção de coisa. 2<br />

O conceito de propriedade é assim extraído dos vários elementos que<br />

compõe esse direito, tais como usar, gozar, dispor e reivindicar, todavia, há<br />

muito de especulação em relação às origens do direito de propriedade no<br />

Império Romano. O que se discute muito, em doutrina, é a existência de<br />

períodos em que a propriedade tenha nascido como direito pertencente ao<br />

grupo familiar, para, muito tempo depois, passar a ser pertencente ao<br />

indivíduo. Não se sabe, ao certo, as verdadeiras razões históricas desse<br />

fenômeno. O que se sabe é que Roma, por ser o centro do poder do velho<br />

mundo ocidental, ostentou (e certamente sempre ostentará) a condição de<br />

berço do direito antigo.<br />

Dito isto, a propriedade, no direito romano, de início, foi concebida<br />

como um direito coletivo, razão por que as famílias estavam organizadas na<br />

figura dos pater familias. A propriedade, especialmente da terra, era a base<br />

de sustentação do núcleo social. Não havia, em princípio, preocupação em<br />

concentrar riqueza, portanto, o que se produzia na propriedade era<br />

indispensável à sobrevivência do grupo.<br />

2 No capítulo II deste trabalho veremos que a noção de coisa é mais ampla do que a noção de bem.<br />

17


De acordo com Miguel Maria de Serpa Lopes:<br />

“As formas originárias da propriedade, antes de poder<br />

ser objeto de uma afirmação concreta, pairam num<br />

domínio obscuro, nebuloso, no plano das conjecturas<br />

sociológicas. Podemos, porém, dividir essas especulações<br />

em duas correntes: a primeira, partidária de um<br />

comunismo primitivo, a segunda, ao contrário, defendida<br />

pelos economistas clássicos, recusa admitir esse<br />

comunismo primitivo, porque se lhes afigura daí decorrer<br />

um certo desprestigio para a concepção da propriedade<br />

individual, por eles consideradas como uma instituição de<br />

valor absoluto”. 3<br />

Segundo esse mesmo autor:<br />

“Na Roma primitiva, o regime de bens era dominado por<br />

esses dois fatores preponderantes: a concepção do Direito<br />

e a organização da família. Esta se fundava no culto ao lar<br />

e aos mortos, formando uma organização autocrata. Por<br />

isso mesmo exigia um sistema de bens assecuratórios de<br />

sua auto-suficiência”. 4<br />

Lecionando sobre o instituto da propriedade no direito romano, José<br />

Carlos Moreira Alves, pontificou:<br />

3<br />

SERPA LOPES, Miguel Maria de Curso de Direito Civil,Vol. VI, 2º edição, São Paulo, 1959, p. 232.<br />

4<br />

Ibidem, p. 233.<br />

18


“Ainda hoje, os juristas se defrontam com o problema da<br />

conceituação do direito de propriedade. Ele reside, com<br />

relação ao direito vigente em cada país, na dificuldade de<br />

se resumirem, numa definição, os múltiplos poderes do<br />

proprietário. Quanto ao direito romano, questão se torna<br />

ainda mais complexa em face das alterações por que<br />

passou a estrutura desse direito ao longo de uma evolução<br />

de mais de uma dezena de séculos. Para que se possa<br />

avaliar a intensidade dessas modificações, basta atentar<br />

para o fato de que, em épocas relativamente próximas, o<br />

conteúdo do direito de propriedade se reduz ou se alarga<br />

em face, não só do regime político, mas também das<br />

exigências econômicas e sociais”. 5<br />

Segundo os ensinamentos desse ilustre doutrinador:<br />

“No período pré-clássico, os romanos só conheciam uma<br />

espécie de propriedade: a propriedade quiritária (ex iure<br />

Quiritium)”. No direito clássico, encontramos, ao lado da<br />

propriedade quiritária, três situações análogas à<br />

propriedade, as quais os romanistas, em geral, denominam<br />

propriedade bonitária (também chamada pretoriana),<br />

propriedade provincial e propriedade peregrina”. 6<br />

Deve-se observar que estas três espécies de propriedades, que<br />

surgiram no período clássico entre os romanos, representaram um modelo<br />

no tratamento do cidadão romano e do bem da vida.<br />

5<br />

MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. Ed. Forense, 11ª edição, Rio de Janeiro 1999, p. 281.<br />

6<br />

Ibidem, p. 282.<br />

19


Ainda sobre o tema da propriedade no direito romano, ao tratar da<br />

propriedade quiritária, afirma Moreira Alves:<br />

“Seu titular era um cidadão romano, ou, então, um latino<br />

ou peregrino que tivesse o ‘ius commercii’. Seu objeto,<br />

coisa móvel ou imóvel; mas, em se tratando de imóveis,<br />

só eram suscetíveis de propriedade quiritária, os<br />

situados na Itália, ou nas províncias aonde se estendera<br />

o ‘ius Italicum’. É de notar-se, porém, que não podiam<br />

ser objeto de propriedade ‘ex iure Quiritium’, os móveis<br />

ou imóveis de propriedade do povo romano, e, mais<br />

tarde, os do imperador. A aquisição das coisas<br />

suscetíveis de propriedade quiritária se fazia mediante a<br />

‘mancipatio’ (para as ‘res mancipi’), a ‘traditio’ (para<br />

as ‘res nec mancipi’) e a ‘in iure cessio’ (para ambas). A<br />

proteção judicial da propriedade quiritária se obtinha,<br />

principalmente, com a ‘rei uindicatio’,(..).” 7<br />

De acordo com Moreira Alves:<br />

7 Ibidem, p. 282-383.<br />

“A propriedade bonitária ou pretoriana (os textos<br />

romanos ao se referirem a ela empregaram as expressões<br />

‘in bonis esse’ ou ‘in bonis habere’) surgiu quando o<br />

pretor passou a proteger a pessoa que, comprando uma<br />

‘res mancipi’, a receberia do vendedor, por meio da<br />

simples ‘traditio’.<br />

20


Ora, a propriedade quiritária da ‘res mancipi’ só se<br />

adquiria com a utilização de uma das formas solenes de<br />

aquisição da propriedade: a ‘mancipatio’ ou a ‘in jure<br />

cessio’. Assim, a ‘traditio’ não transferia, ao comprador o<br />

domínio ‘ex iure Quiritium’ sobre a ‘res mancipi’, e, em<br />

decorrência disso, o vendedor continuava a ter a<br />

propriedade quiritária sobre a coisa, podendo reivindicála<br />

do comprador.(...)” 8<br />

Para esse autor, a Propriedade provincial:<br />

“Era uma espécie de propriedade que existia apenas com<br />

relação a imóveis que estavam situados nas províncias, às<br />

quais não tinha sido estendido o ‘ius Italicum’ (caso<br />

contrário, como já salientamos, sobre esses imóveis<br />

haveria a propriedade quiritária). Nessas províncias, o<br />

proprietário do solo é o povo romano (se se trata de<br />

província senatorial) ou o príncipe (se se trata de<br />

província imperial); os particulares – fossem, ou não,<br />

cidadãos romanos – não podiam ter mais do que a posse<br />

(‘possessio’) sobre este solo, e assim mesmo mediante o<br />

pagamento do ‘stipendium’ (para o povo romano, se<br />

província senatorial) ou do ‘tributum’ (para o príncipe, se<br />

província imperial)”. 9 (sic)<br />

A propriedade peregrina é aquela segundo a qual só se atribuía a<br />

posse da terra. Nesse sentido, ensina Moreira Alves que:<br />

8 Ibidem, loc cit.<br />

9 Ibidem p. 284.<br />

21


10 Ibidem, loc. cit.<br />

11 Ibidem, p. 285.<br />

“Se os peregrinos comprassem imóveis ou móveis<br />

suscetíveis de propriedade quiritária, eles somente<br />

poderiam ser possuidores delas, mas essa situação de fato<br />

(uma verdadeira situação de fato) foi sendo protegida pelo<br />

pretor peregrino (em Roma) e pelos governadores (nas<br />

províncias), que concediam aos peregrinos ações reais<br />

análogas às que protegiam a propriedade quiritária.<br />

Muitas dessas ações continham cláusula em que o<br />

magistrado ordenava ao juiz que julgasse a questão como<br />

se o peregrino fosse cidadão romano (portanto, ações<br />

fictícias)”. 10<br />

Ainda Moreira Alves ensina que:<br />

“No período pós-clássico, essas diferentes espécies de<br />

propriedade vão desaparecendo até que, no tempo de<br />

Justiniano, só vamos encontrar – como no direito moderno<br />

– uma única, disciplinada por normas que, no período<br />

clássico, se aplicavam a uma ou outra das diversas<br />

espécies. Assim, a propriedade, no direito Justinianeu, era<br />

transferida pela ‘traditio’ (no direito clássico, isso ocorria<br />

com relação à propriedade pretoriana); estava sempre<br />

sujeita ao pagamento de impostos (no período clássico, só<br />

a propriedade provincial o estava); e sobre ela pesava<br />

uma série de limitações impostas por necessidade da<br />

administração pública (o que, no direito clássico, se dava<br />

com referência à propriedade provincial)”. 11<br />

22


Como podemos ver, o direito de propriedade em Roma já assumia<br />

um perfil jurídico, apresentando várias formas, sendo certo porém, que com<br />

a evolução do direito, ela foi adquirindo outros contornos e um novo perfil<br />

jurídico. É o que veremos mais adiante no transcorrer deste trabalho.<br />

Há outra questão que merece atenção, quando se fala em propriedade<br />

no direito romano. E diz respeito ao fato de que, em Roma, embora a<br />

propriedade fosse considerada como um direito absoluto, ela apresentava<br />

restrições ao seu uso e exercício.<br />

Nesse sentido, escrevem os professores Alexandre Correia e Gaetano<br />

Sciascia que:<br />

“As restrições atuam especialmente sobre o poder do<br />

proprietário de escravos, que o costume tende sempre a<br />

abrandar; são indiretamente corroboradas pelo censor<br />

que inscreve na última classe dos cidadãos (‘aerarii’) os<br />

que deixam inculto o terreno próprio ou não cuidam dos<br />

animais próprios. Tais sanções, evidentemente, não<br />

atingem a natureza do ‘dominium’, ilimitado e absoluto,<br />

em princípio; mas, por certo, constituem meios práticos de<br />

impedir o proprietário de exercer os seus poderes sobre a<br />

coisa, sem consideração com o interesse público e<br />

coletivo”. 12<br />

De acordo com esses professores:<br />

12<br />

CORREA, Alexandre; SCIASCIA, Gaetano, Manual de Direito Romano, Série “Cadernos Didáticos”,<br />

p.126.<br />

23


“As limitações da propriedade, tornadas obrigatórias pela<br />

autoridade jurisdicional do magistrado, podem<br />

considerar-se nas restritivas em geral do exercício de um<br />

direito (proibição dos atos emulatórios, chicanas) e nas<br />

reguladoras da auto-defesa privada. Em particular, no<br />

concernente à propriedade dos terrenos, várias limitações<br />

estabelecem a lei que determina as distâncias entre os<br />

terrenos e os edifícios, e regula as relações de vizinhança<br />

entre os donos de prédios confinantes”. 13<br />

A propriedade confere direito absoluto ao seu titular, mas exige uma<br />

contrapartida, consoante se depreende das lições de Thomas Marky, que<br />

pondera:<br />

“O poder jurídico do proprietário sobre a coisa é, em<br />

princípio, ilimitado, mas limitável. O poder completo pode<br />

ser limitado voluntariamente pelo proprietário ou pela lei.<br />

As limitações impostas pela lei visam proteger os<br />

interesses públicos ou justos interesses de particulares”. 14<br />

Assim, podemos verificar que, embora, em Roma, o direito de<br />

propriedade fosse considerado um direito absoluto, exigia-se o respeito às<br />

restrições e limitações impostas pelo proprietário ou pela autoridade<br />

jurisdicional, objetivando assim a harmonia no exercício do direito de<br />

propriedade, sem ofensas aos demais proprietários, entre eles, o próprio<br />

Estado.<br />

13<br />

Ibidem, loc. cit.<br />

14<br />

MARKY, Thomas. Curso Elementar de Direito Romano, Editora Saraiva, São Paulo, 8ª edição, 1995,<br />

p. 65-66.<br />

24


1.3. A propriedade na Idade Média<br />

A Idade Média, que teve início por volta do ano 475 d.C, foi o<br />

período histórico marcado pelo feudalismo, assim considerado o sistema<br />

político social, cuja concentração do poder estava nas mãos do senhor<br />

feudal, que era a autoridade política e administrativa da época.<br />

Em verdade, a Idade Média resultou da quebra do Império Romano<br />

do Ocidente, quando Odoacro, chefe bárbaro da Germânia antiga, invadiu<br />

Roma, já sucumbida pelas grandes dificuldades políticas e econômicas<br />

daquela época.<br />

Com a tomada de Roma e a quebra do império, o antigo domínio se<br />

esfacelou, fazendo brotar uma série de províncias, que mais tarde daria<br />

lugar aos feudos, e, por conseguinte, ao novo modelo social, político e<br />

econômico da época, denominado feudalismo.<br />

Na Idade Média, a propriedade era feudal, ou seja, a terra era,<br />

necessariamente, pertencente ao feudo, que era o centro de poder do senhor<br />

feudal, sendo que este administrava as terras e dela extraia os frutos da<br />

produção. 15<br />

Deve-se dizer que a propriedade na sociedade feudal era a célula da<br />

produção, de modo que o sistema de governo estava assentado numa<br />

aristocracia agrária, em que vigoravam fortemente os laços de dependência<br />

pessoal.<br />

15<br />

Na Idade Média não havia senhor sem terra e nem terra sem senhor. A marca determinante do feudo era<br />

exatamente a propriedade. Quem fosse senhor do feudo era senhor da propriedade.<br />

25


Com a invasão e ocupação dos bárbaros em Roma, houve a união de<br />

duas culturas diferentes, a cultura germânica e a cultura romana. Essa união<br />

provocou profundas transformações na estrutura de poder antes reinante no<br />

Império Romano. Novas realidades jurídicas surgiram em decorrência<br />

dessas transformações e se fizeram sentir de perto, especialmente, em<br />

relação à propriedade.<br />

Analisando a riqueza do homem na história, podemos verificar os<br />

traços característicos da propriedade feudal, com Leo Huberman, que<br />

ensina:<br />

“Primeiro, a terra arável era dividida em duas partes,<br />

uma pertencente ao senhor e cultivada apenas para ele,<br />

enquanto a outra era dividida entre muitos arrendatários;<br />

segundo, a terra era cultivada não em campos contínuos,<br />

tal como hoje, mas pelo sistema de faixas espalhadas.<br />

Havia uma terceira característica marcante – o fato de<br />

que os arrendatários trabalhavam não só as terras que<br />

arrendavam, mas também a propriedade do senhor”. 16<br />

Na realidade, o instituto da propriedade na Idade Média se apresentou<br />

de forma complexa e, até de certo modo, muito variada.<br />

16<br />

HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem, 21ª edição, Livros Técnicos e Científicos Editora<br />

Ltda, p. 5.<br />

26


Na Idade Média, o instituto da propriedade estava assentado no<br />

modelo de produção feudal, consagrado pela estratificação social da época,<br />

ou seja, uma sociedade cujo modelo de produção agrícola se voltava para<br />

pequenos núcleos. A autoridade da Idade Média era o senhor feudal. Era ele<br />

que detinha o poder e, por esta razão, podia, livremente, distribuir as terras,<br />

a quem quisesse extrair os frutos que ela produzia.<br />

Lembra, com sapiência, Clóvis Beviláqua, autor do projeto do<br />

Código Civil de 1916:<br />

“A terra pertencia ao senhor: a terra era o fundamento<br />

do poder, da autoridade. O senhor, concedendo terras,<br />

obtinha homens, que lhe deviam prestações, e<br />

conseqüentemente, eram seus vassalos. Por sua vez, o<br />

feudatário, com o desenvolvimento do regime, podia fazer<br />

concessões semelhantes, a vassalos seus, continuando,<br />

sempre, vinculando às obrigações, que impusera o<br />

suserano”. 17<br />

Com Arruda Alvim, é possível reconhecer naquele regime várias<br />

espécies de propriedades:<br />

17 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. Freitas Bastos, 2ª edição, Rio de Janeiro, 1946. p. 122.<br />

27


“a) A propriedade comunal, que basicamente se constituía<br />

em uma propriedade comum, designada, em alemão, pelo<br />

termo Mark, sendo proprietária a tribo, com o seu uso e<br />

gozo para os seus membros; b) A propriedade alodial, que<br />

se assemelhava à propriedade livre, assimilável à que hoje<br />

concebemos como configuradora do perfil do direito de<br />

propriedade contemporâneo, caracterizando-se pela<br />

possibilidade de alienação por parte daquele que era<br />

proprietário e que fazia a terra produzir; c) A propriedade<br />

beneficiária, que era concedida por reis ou nobres, para<br />

que fosse explorada pelo plebeu; àquele que explorava a<br />

terra concedia-se o domínio direto ou útil, mas não a<br />

possibilidade de disposição; d) A propriedade censual, que<br />

cabia àquele que explorasse a terra e a fizesse produzir,<br />

desde que pagasse um “cânon” a alguém (que, sob ótica<br />

moderna, seria o verdadeiro proprietário); d) A<br />

propriedade servil era deferida aos servos, só enquanto<br />

ligados à gleba. O que marcou, pois, a concepção da<br />

propriedade, na época medieval, e o que podemos<br />

verificar desta breve exposição, foi a existência constante<br />

de dualidade de sujeitos. Havia aquele que podia dispor<br />

da terra e a cedia a outrem (fosse este quem pagasse o<br />

cânon, fosse o servo, etc.), mas a disponibilidade real do<br />

bem cabia sempre àquele que detinha o poder público. O<br />

direito dos outros, do direito deste se originava e<br />

dependia. 18<br />

Lembra o professor Orlando Gomes:<br />

18<br />

O Livro do Direito das Coisas. Obra inédita. Veja-se também, em artigo do mesmo autor publicado no<br />

Livro coordenado por Yussef Said Cahali, denominado de “Breves Anotações para uma Teoria Geral<br />

dos Direitos Reais”, Editora Saraiva. 1987, São Paulo, p. 43.<br />

28


"A propriedade medieval caracteriza-se pela quebra desse<br />

conceito unitário. Sobre o mesmo bem, há concorrência de<br />

proprietários. A dissociação revela-se através do binômio<br />

domínio eminente + domínio útil. O titular do primeiro<br />

concede o direito de utilização econômica do bem e<br />

recebe, em troca, serviços ou rendas. Quem tem domínio<br />

útil perpetuamente, embora suporte encargos, possui, em<br />

verdade, uma propriedade paralela." 19<br />

Já no final da Idade Média, surgem as primeiras sociedades<br />

independentes, não se submetendo ao senhor feudal. Mais adiante, essas<br />

cidades darão lugar as Cidades-Estados modernas.<br />

Com o passar dos tempos, as necessidades de buscar novos<br />

mercados, expandir e trocar as mercadorias e cunhar uma nova moeda, que<br />

pudesse representar uma riqueza ainda maior, levaram a burguesia a<br />

patrocinar as grandes navegações e a descobrir outras fontes de riquezas.<br />

Nesse sentido, a expansão marítima, que enveredou pelos caminhos<br />

da descoberta e da exploração de outras terras, que ainda não conhecia,<br />

representou muito bem o desejo da burguesia.<br />

Assim sucedeu: com Portugal, quando da descoberta e exploração da<br />

Índia; com a descoberta e exploração do Brasil, por Pedro Alvarez Cabral,<br />

em 1500; e, com Felipe II da Espanha, que conquistou a denominada<br />

América Espanhola. 20<br />

19 Direitos Reais, Editora Forense, Rio de Janeiro, 12ª edição, 1997, p. 101-102.<br />

20 História Geral. Florival Cárceres. Editora Moderna, 4ª edição, São Paulo, 1999, p. 180-185.<br />

29


Nesse sentido, na busca pela conquista de novas terras, Portugal e<br />

Espanha foram os países que iniciaram a expansão marítima, sendo mais<br />

tarde seus seguidores, a França e a Holanda. 21<br />

1.4. A noção de propriedade para a Igreja Católica<br />

Não se tem conhecimento que o Cristianismo ou a Igreja Católica<br />

haja formulado uma teoria sobre o direito de propriedade. Entretanto,<br />

vamos verificar ao longo dos textos bíblicos que vários são os seus<br />

ensinamentos para a questão ligada aos bens.<br />

Também na Idade Média, a propriedade perdeu, ao menos na<br />

doutrina da Igreja Católica, o caráter de absoluta. Isso se deve à doutrina de<br />

São Tomas de Aquino, Doutor da Igreja, que escreveu uma obra conhecida<br />

como “Summa Theologica”. Nesta obra, esse representante do Cristianismo<br />

medieval propugnava que os bens devem na sua utilização atender o bem<br />

comum.<br />

Santo Tomás de Aquino aborda a propriedade sob o ponto de vista<br />

ético. Seu estudo parte da premissa de que tudo o que se opõe ao direito<br />

natural é ilícito. Afirma o Doutor Angelicus:<br />

21 Ibidem, p. 180-185.<br />

30


“Ora, pelo direito natural, tudo é comum, e a essa<br />

comunidade se opõe a propriedade de bens particulares.<br />

Logo, é ilícito a qualquer homem apropriar-se de um bem<br />

externo”. 22<br />

Nesse sentido, assegura:<br />

“(....) o homem não deve ter as coisas exteriores como<br />

próprias, mas como comuns, neste sentido que, de bom<br />

grado, cada um as partilhe com os necessitados”. 23<br />

Para esse teólogo, a propriedade de bens exteriores é<br />

admitida, desde que o homem possa geri-la e dela dispor, pois reconhece<br />

que a propriedade é mesmo necessária à vida humana, por três razões:<br />

“1ª Cada um é mais solícito na gestão do que lhe pertence<br />

como próprio, do que no cuidado do que é comum a todos<br />

ou a muitos. Pois, nesse caso, cada qual, fugindo do<br />

trabalho, deixa a outrem a tarefa comum, como a<br />

acontece quando há uma quantidade de criados na casa.<br />

– 2ª As coisas humanas são tratadas com mais ordem,<br />

quando o cuidado de cada coisa é confiado a uma pessoa<br />

determinada, ao passo que reina a confusão quando todos<br />

se ocupam indistintamente de tudo – 3ª A paz entre os<br />

homens é mais bem garantida, se cada um está contente<br />

com o que é seu; daí, vermos surgirem freqüentes litígios<br />

entre os que têm posses comuns e indivisas”. 24<br />

22<br />

AQUINO. Tomás de. Suma Teológica. São Paulo: Edições Loyola, Vol. VI, 2005, p. 156.<br />

23<br />

Ob. Cit. p. 158.<br />

24<br />

Ob. Cit. p .157-158.<br />

31


Na esteira das lições de Santo Tomás de Aquino, devemos<br />

considerar que a propriedade é um direito natural assegurado a todos. Com<br />

efeito, forte nas lições desse teólogo, a propriedade exerce uma função<br />

social condizente com a idéia de que todos devem possuir a coisa comum,<br />

dela não se apropriando para seus próprios interesses.<br />

Para Santo Tomás de Aquino, a propriedade não tem um dono, senão<br />

Deus, sendo que o homem apenas a administra. Segundo este filósofo e<br />

religioso, as riquezas, justamente por pertencerem a Deus, devem ser<br />

colocadas à disposição das sociedades.<br />

Com base nesta concepção, podemos dizer que estamos diante de<br />

uma visão embrionária da função social da propriedade. A Doutrina Social<br />

da Igreja se fará sentir, neste trabalho, quando, mais adiante, exporemos,<br />

pormenorizadamente, os documentos eclesiásticos mais importantes sobre<br />

este tema.<br />

A doutrina de Santo Tomás de Aquino constituirá, no século XIX, a<br />

alavanca fundamental para a edição da Encíclica Rerum Novarum, poderoso<br />

instrumento de combate às desigualdades sociais e ferramenta útil a<br />

engendrar uma nova concepção do direito, à qual se referem os<br />

doutrinadores como sendo de direito natural e social. Esta Encíclica foi<br />

editada pelo santo Pontífice Papa Leão XIII.<br />

Já no fim da Idade Média, no século XV, por volta do ano de 1453,<br />

os turcos otomanos tomam a Cidade de Constantinopla, atual Istambul, que<br />

constituía passagem obrigatória para o oriente, fazendo surgir, em<br />

32


decorrência disso, a atividade comercial expansionista, em especial, a<br />

marítima.<br />

1.5. A propriedade na Idade Moderna<br />

A Idade Moderna foi profundamente marcada por dois grandes<br />

movimentos culturais: o Renascimento e o Iluminismo.<br />

Trata-se do período compreendido entre 1453 e a Revolução<br />

Francesa em 1789. Os principais marcos dessa fase da história são: o<br />

fortalecimento dos Estados nacionais monárquicos, a expansão marítima e<br />

colonial, o fortalecimento e expansão do capitalismo – que se torna a forma<br />

de produção predominante –, o renascimento cultural e científico, a<br />

fermentação revolucionária do Iluminismo e a Independência norte-<br />

americana.<br />

A propriedade na Idade Moderna passa a adquirir um outro perfil. Ela<br />

deixa de ser a propriedade agrícola e passa a ser parte do desejo da<br />

burguesia, de conquistar novas terras para a exploração econômica.<br />

Esse marco é diverso daquele encontrado na Idade Média, já que,<br />

com a quebra do sistema feudal, o surgimento do expansionismo econômico<br />

e das grandes cruzadas fazem brotar a necessidade de buscar novos<br />

mercados. Nesse período, as descobertas de novos continentes e de novas<br />

terras irão representar, como de fato representaram, um assenhoreamento de<br />

propriedades, nunca antes visto, em toda a História da Humanidade.<br />

33


São traços marcantes dessa época, a descoberta das terras das índias<br />

por Portugal, a descoberta da América por Cristóvão Colombo (1492) e o<br />

descobrimento do Brasil por Pedro Álvares Cabral (1500).<br />

1.6. A propriedade na Idade Contemporânea<br />

A Idade Contemporânea compreende o período entre o fim do século<br />

XVII, com a derrocada do absolutismo e a eclosão da Revolução Francesa<br />

em 1789, e conseqüente ascensão da burguesia ao poder.<br />

Os principais acontecimentos, que marcaram o surgimento dessa<br />

nova era, foram: O período napoleônico (1799 a 1815), a restauração<br />

monárquica e as Revoluções Liberais (1800 a 1848), a Revolução Industrial<br />

e expansão do capitalismo (de 1790 em diante), a disseminação das<br />

nacionalidades e das doutrinas sociais (a partir de 1789), a Primeira Guerra<br />

Mundial (1914-1918), as revoluções socialistas, a expansão da democracia,<br />

o surgimento do facismo e do nazismo (1917-1938), a Segunda Guerra<br />

Mundial (1939-1945), a Guerra Fria (1948-1990) e a desagregação da<br />

União Soviética (1991). 25<br />

Para o que nos interessa especialmente em relação à propriedade,<br />

concentrar-nos-emos no período inicial da Idade Contemporânea, ou seja,<br />

aquele marcado pelo período napoleônico (1799 a 1815).<br />

25 Ibidem, p. 268-400.<br />

34


Nesse período, a noção de propriedade retoma os delineamentos<br />

jurídicos antes existentes em Roma, que, em razão do regime centralizado<br />

da Idade Média, havia perdido os seus contornos de rigidez, porquanto a<br />

coisa ficava nas mãos dos senhores feudais. Vale dizer, todo o<br />

individualismo da propriedade é retomado, na França, com o advento do<br />

Código de Napoleão.<br />

Com o novo Código privado francês, o instituto da propriedade passa<br />

por um enriquecimento, na medida em que a própria Revolução Francesa<br />

marcou a concepção de que a liberdade era medida pela propriedade de<br />

bens e riquezas. 26<br />

Explica Caio Mário da Silva Pereira que:<br />

“A Revolução Francesa pretendeu democratizar a<br />

propriedade, aboliu privilégios, cancelou direitos<br />

perpétuos. Desprezando a coisa móvel (‘vilis mobilium<br />

possessio’), concentrou sua atenção na propriedade<br />

imobiliária, e o código por ela gerado – Code Napoléon –<br />

que serviria de modelo a todo um movimento codificador<br />

no século XIX, tamanho prestigio deu ao instituto, que com<br />

razão recebeu o apelido de ’código da propriedade‘,<br />

fazendo ressaltar acima de tudo o prestígio do imóvel,<br />

fonte de riqueza e símbolo de estabilidade. Daí ter-se<br />

26<br />

Sustenta Jefferson Carús Guedes: “A Revolução Francesa, enquanto movimento político de reação às<br />

desigualdades herdadas do período feudal, pretendeu abolir os anacronismos que não se coadunavam<br />

com o desenvolvimento social de então. Ao introduzir proposições liberais, marcadas pelo<br />

individualismo, repudiava as violações aos direitos individuais, tão comuns anteriormente, In Função<br />

Social das “propriedades”, Aspectos Controvertidos do Novo Código Civil. Obra Coordenada por<br />

Arruda Alvim, Joaquim Pontes de Cerqueira César e Roberto Rosas. São Paulo. Editora Revista dos<br />

Tribunais, 2003,.p.345.<br />

35


originado em substituição à aristocracia de linhagem, uma<br />

concepção nova de aristocracia econômica, que penetrou<br />

no século XX”. 27<br />

Há que se dizer que esta estabilidade, sustentada pelo jurista, não é<br />

uma estabilidade planificada em todos os segmentos da sociedade.<br />

Certamente, o civilista está tratando de uma estabilidade da classe<br />

burguesa, pois foi ela quem se enriqueceu, juntamente com a coroa de seu<br />

país, com a expansão mercantilista.<br />

Deve-se dizer, ainda, que esta estabilidade, quer em relação a<br />

propriedade privada, quer em relação aos meios de produção por ela<br />

gerados, não propiciou no curso da história, por parte das camadas mais<br />

humildes, a estabilidade que a burguesia sempre teve.<br />

Essa realidade jurídica, especialmente no que se refere ao direito de<br />

propriedade, se fez presente com a Declaração de Direitos do Homem e do<br />

Cidadão, de 1789, prescrevendo no seu artigo 2º, que “A finalidade de toda<br />

associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis<br />

do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a<br />

resistência à opressão”.<br />

O artigo 17, dessa declaração consagrou que: “Sendo a propriedade<br />

um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser dela privado, senão<br />

quando a necessidade pública, legalmente constatada, o exigija<br />

evidentemente, e sob condição de uma indenização justa e prévia”.<br />

27 Instituições de Direito Civil, Editora Forense, 18ª edição, Rio de Janeiro, 2004, p. 83.<br />

36


A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1793 traz, em<br />

seu artigo 16, um conceito do que vem a ser a propriedade, como nunca<br />

antes havia sido disciplinado, aduzindo que “O direito de propriedade é<br />

aquele que pertence a todo cidadão de gozar e dispor como melhor lhe<br />

aprouver de seus bens, de suas rendas, do fruto de seu trabalho e de seu<br />

engenho”.<br />

Na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, o artigo<br />

19 consagrou que “Ninguém pode ser privado de parte de sua propriedade<br />

sem consentir nisso, a não ser quando uma necessidade pública legalmente<br />

constatada o exige e sob condição de uma indenização justa e prévia”.<br />

Como podemos depreender dessas duas declarações, o direito de<br />

propriedade, na França, foi havido como direito sagrado, absoluto e<br />

imprescritível. Decorre dessa trilogia que, sendo o direito de propriedade<br />

um direito sagrado, ninguém, senão Deus, poderia tirá-lo do homem, sem<br />

justificar.<br />

Sendo absoluto, esse direito seria oponível contra qualquer um que<br />

tentasse arrebatá-lo. E, sendo imprescritível, o proprietário não o perderia<br />

pelo não uso ou pelo abandono da coisa, nem tampouco pela posse de outro<br />

na terra.<br />

A única exceção ao direito de propriedade era feita em nome da<br />

necessidade ou do interesse público. Mesmo assim, a Declaração de 1789<br />

condicionava a tomada do imóvel do particular ao pagamento de uma<br />

indenização antecedente e justa.<br />

37


Neste mesmo sentido, a Constituição francesa de 1791, no título I, §<br />

4º estabeleceu a garantia do direito de propriedade, ao proclamar que “A<br />

Constituição garante a inviolabilidade da propriedade. ou justa e prévia<br />

indenização, daquela propriedade cuja necessidade pública, legalmente<br />

comprovada, exija o sacrifício”.<br />

Esta Constituição francesa, ao erigir a inviolabilidade do direito à<br />

propriedade, trouxe a segurança jurídica das declarações anteriores, como<br />

forma de assegurar o seu exercício, impondo veto, apenas para a hipótese da<br />

necessidade pública comprovada, o que tornava isso um sacrifício.<br />

Na realidade, o texto da redação do § 4º, do título I, não foi muito<br />

preciso, ao contrário, inverteu a ordem das palavras, confundido o interprete<br />

e, possivelmente, trazendo distorções acerca do instituto nela ventilado.<br />

Feitas essas considerações iniciais sobre o direito de propriedade na<br />

Idade Contemporânea, as demais referências, faremos quando tratarmos da<br />

função social da propriedade no direito comparado.<br />

1.7. A propriedade como um direito relativo<br />

Os diplomas jurídicos indicados imprimiram nas normas jurídicas,<br />

especialmente nas constitucionais, uma nova visão de direito de<br />

propriedade. Essa nova noção de direito de propriedade está<br />

consubstanciada na assertiva de que deve existir um direito de propriedade,<br />

38


assegurado pela norma de estrutura (Constituição Federal), impondo-se<br />

reconhecer que ela deva atender a uma função social. 28<br />

Urge, desde então, ponderar que a cláusula, denominada de “função<br />

social da propriedade”, não é capaz de retirar da propriedade o caráter de<br />

direito real absoluto, porque, como veremos, mais adiante, nos capítulos V<br />

VI e VII, a função social da propriedade é um dever jurídico que, impõe ao<br />

proprietário, a obrigação de dar uma destinação econômica à propriedade.<br />

Observa Arruda Alvim:<br />

“Historicamente, o caráter de direito absoluto era<br />

carregado de ideologia e ocupava um espaço mais<br />

dilargado, havendo uma sintonia entre o plano dogmático,<br />

do direito absoluto e a base ideológica na qual essa feição<br />

se apoiava. Em nosso sentir, nem pela circunstância de<br />

ter–se alterado o panorama valorativo que serve de pano<br />

de fundo ao direito civil passando–se do individualismo<br />

para uma visão social do direito em geral, do direito civil<br />

e do direito privado, desde que nos encontremos diante de<br />

um direito real, este não haverá de deixar de ser<br />

considerado um direito absoluto. Por outras palavras, nem<br />

pela circunstancia de se terem alterado os valores que<br />

presidiram o direito civil, para os que, atualmente nele se<br />

encontram, presentes, dever–se–á alterar essa categoria<br />

dentro da qual se encartam os direitos reais”. 29<br />

28<br />

A função social da propriedade e a forma como foi compreendida no plano do direito positivo, ontem e<br />

hoje, serão tratadas, no capitulo IV desse trabalho.<br />

29<br />

O Livro do Direito das Cosias, Obra inédita.<br />

39


Entendemos igualmente ao que afirmou o jurista, porquanto os<br />

valores sociais, que informam os institutos de direito privado, em especial a<br />

propriedade, não lhe retiram o caráter de direito absoluto, pois segundo<br />

Arruda Alvim:<br />

“A noção de direito absoluto é a que explica que a<br />

propriedade envolve o direito a exclusividade”. 30<br />

E ainda, na disciplina do mesmo entendimento de Arruda Alvim:<br />

“Há casos, em que, por decorrência da lei –<br />

ostensivamente animada pela função social da<br />

propriedade, e, atendendo à função social da posse,<br />

naquela função embutida desta naquela, e não se opondo<br />

frontalmente, para erodir o direito de propriedade, salvo<br />

nas hipóteses taxativas em que a lei o preveja e à luz<br />

dessas -, poderá um direito real, no caso, o direito de<br />

propriedade, perder esse atributo”. 31<br />

O viés social do direito de propriedade não retira o conteúdo da<br />

propriedade e nem seus atributos, na medida em que a função social é o<br />

vetor do exercício do direito de propriedade; todavia, como bem lembrado<br />

pelo citado autor, havendo disposição expressa na lei, a posse cederá lugar<br />

ao viés absoluto do direito real, socializando esse direito e conferindo o<br />

direito à propriedade àquele que mantiver a posse da terra.<br />

30 Ibidem.<br />

31 Ibidem.<br />

40


A compreensão da função social da propriedade está em reconhecer<br />

que o proprietário deve dar uma destinação econômica à coisa e não deixá-<br />

la ao relento para, muito tempo depois, decidir o que fazer com ela.<br />

Se isso ocorrer, o Estado pode impor veto ao estado de imobilidade<br />

do proprietário, desapropriando o imóvel, para fins sociais, mediante justa<br />

indenização, situação esta condizente com a ordem positiva vigente. 32<br />

Considerando que segundo o panorama atual, o direito de<br />

propriedade é concebido como um direito que deve atender a uma função<br />

social, apta a garantir as comodidades do indivíduo e a propiciar a geração<br />

de riquezas, não só para este, mas também para a coletividade, não<br />

podemos admitir a idéia de que a propriedade, em face da função social,<br />

que assumiu nova linguagem na Constituição de 1988 e no Código Civil de<br />

2002, possa ser concebida como um direito relativo. Nesse sentido, em que<br />

pese haver opiniões divergentes, entendo que o direito de propriedade não<br />

foi relativizado, nem tampouco despersonalizado, mantendo, ainda nos dias<br />

de hoje, os traços de direito absoluto.<br />

1.8. O papel da filosofia do direito, para enrijecer o individualismo da<br />

propriedade francesa.<br />

A filosofia do direito contribuiu muito para afirmar a propriedade<br />

como um direito absoluto, porquanto ela pregava que a propriedade era um<br />

32<br />

Adiante iremos tratar da função social da propriedade, quando então verificaremos se o princípio da<br />

função social retira ou não os atributos inerentes aos direitos de propriedade.<br />

41


direito natural do ser humano, que precedia à sua própria existência e que,<br />

por isso, deveria ser respeitado pelo próprio Estado.<br />

No Iluminismo, vários pensadores se contrapuseram ao sistema<br />

feudal. No mundo antigo (Grécia e Roma), e, posteriormente, na Idade<br />

Média vigorou uma ordem cósmica, onde se apresentavam dados de<br />

sacralidade. O homem deveria estar em constante contato com Deus. Tal<br />

concepção modificou-se com o advento da sociedade moderna, época em<br />

que o plano filosófico é outro, não mais se admitindo a ordem cósmica, até<br />

então vigente. 33<br />

O homem é concebido na Idade Moderna a partir do Estado<br />

Natureza. Há um outro referencial, que aproxima o homem de sua relação<br />

para com a natureza, e isso não quer dizer a natureza divina. 34<br />

A hipótese, em Locke 35 e Hobbes, pode ser constituída, a partir da<br />

noção de homem no Estado-Natureza, segundo a qual o homem está em<br />

solidão e, por não haver contato, há liberdade. Na Idade Moderna, a noção<br />

33<br />

“Essa idéia de sacralidade se deve a filosofia judaico-cristã que permeou o mundo ocidental, em<br />

especial, em Roma, na medida em que a noção de justiça está relacionada à noção de virtude e do amor<br />

caritas. Essa concepção foi, igualmente, adotada por Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Com o<br />

fim da Idade Média e o advento da filosofia de novos pensadores, como René Descartes, John Locke<br />

Thomas Hobbes, entre outros, a idéia de sacralidade é abandonada e novas formas são criadas, sendo<br />

uma das mais comuns, aquela que vê, no Estado, uma mão invisível, que tudo pode governar”. In Tércio<br />

Sampaio Ferraz Junior, Aula de Filosofia do Direito, ministrada na Faculdade Autônoma de Direito de<br />

São Paulo – FADISP.<br />

34<br />

“A ordem hipotética construída é racional (criação e transporte, do estado de natureza para o estado<br />

social). As sociedades antigas eram organizadas em torno de figuras concretas (reis, duques, etc.) e<br />

universais (comum a todos), enquanto que, na era moderna, a organização social perde o universal<br />

concreto e ganha um universal abstrato (Estado), que não pode ser visto (organização burocrática)”.<br />

Tércio Sampaio Ferraz Junior, mesma aula.<br />

35<br />

LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Editora.Abril Cultural, São Paulo, 1973, p. 51.<br />

35<br />

Ibidem, loc.cit<br />

42


de justiça viria a significar a liberdade de um e a propriedade de outro, o<br />

que faz com que a justiça seja entendida como um modo de organização da<br />

sociedade.<br />

O pensamento filosófico contribuiu de forma determinante, para<br />

conceber a propriedade como um direito natural. John Locke, em seu<br />

segundo tratado sobre o Governo Civil, sustentava, que a propriedade foi<br />

concedida por Deus ao homem e a todos os membros da comunidade,<br />

motivo pelo qual o ser humano deveria usar a razão, para utilizar os bens<br />

dados pela divindade, em proveito da vida e da própria conveniência. 36<br />

36 Ibidem, loc. cit.<br />

Esse filósofo pregava que:<br />

“Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam<br />

comuns a todos os homens, cada homem tem uma<br />

propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem<br />

qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho de seu<br />

corpo e a obra das suas mãos, pode-se dizer, são<br />

propriamente deles. Seja o que for que ele retire do estado<br />

que a natureza lhe forneceu e no qual o deixou, fica-lhe<br />

misturado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe algo que<br />

lhe pertence, e, por isso mesmo, tornando-o propriedade<br />

dele. Retirando-o do estado comum em que a natureza o<br />

colocou, anexou-lhe, por esse trabalho, algo, que o exclui<br />

do direito comum de outros homens. Desde que esse<br />

trabalho é propriedade exclusiva do trabalhador, nenhum<br />

outro homem pode ter direito ao que se juntou, pelo menos<br />

43


quando houver bastante e igualmente de boa qualidade em<br />

comum para terceiros”. 37 (sic)<br />

O que se deve dizer é que Locke concebia a propriedade, como um<br />

direito natural. Esse direito foi atribuído por Deus ao homem, para que ele o<br />

exerça e retire os proveitos necessários à subsistência própria e da<br />

comunidade. 38<br />

Lembra Norberto Bobbio que:<br />

“Para Locke, o direito de propriedade é um direito<br />

natural, porque não surge, como para Hobbes, da Lei do<br />

Estado, e, portanto, não deriva da constituição civil, e nem<br />

de um livre acordo entre indivíduos no estado de natureza,<br />

como para Puffendorf; surge de uma atividade pessoal do<br />

indivíduo e do trabalho”. 39<br />

Importa esclarecer a essa altura que o direito de propriedade, na<br />

filosofia de Locke, é um direito natural, indispensável à vida do homem,<br />

porquanto a terra não pertence a ninguém e sim a todos.<br />

37<br />

Ibidem, p. 51-52.<br />

38<br />

Ibidem, p.51.<br />

39<br />

BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Brasília: Universidade de<br />

Brasília, 1984, p.38.<br />

44


O pensador iluminista Jean Jacques Rousseau (1712-1778) fez uma<br />

crítica severa ao regime feudalista. Para ele, o homem nasce bom, mas a<br />

sociedade o corrompe. Esse filósofo assegura que:<br />

“Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que<br />

deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico,<br />

destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram<br />

para sempre a lei da propriedade e da desigualdade,<br />

fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e,<br />

para lucro de alguns ambiciosos, daí por diante<br />

sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão<br />

e a miséria”. 40 (sic)<br />

Esse estado de natureza é pervertido pelo homem, que o abandona e<br />

passa a habitar uma sociedade de leis e direitos sobre os bens, entre os quais<br />

está a propriedade.<br />

Nesse sentido, Jean Jacques Rousseau compreende:<br />

“Assim, os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo<br />

de suas forças ou de suas necessidades uma espécie de<br />

direito ao bem alheio, equivalente, segundo eles, ao de<br />

propriedade, seguiu-se à rompida igualdade a pior<br />

desordem; assim as usurpações dos ricos, as extorsões dos<br />

pobres, as paixões desenfreadas de todos, abafando a<br />

40<br />

ROUSSEAU, Jean Jacques Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.<br />

São Paulo, editora Abril, 1973, p.269-270 (Coleção Pensadores).<br />

45


piedade natural e a voz ainda fraca da justiça, tornaram<br />

os homens avaros, ambiciosos e maus”. 41<br />

Diante do exposto, é de se reconhecer que a filosofia contribuiu,<br />

marcantemente, para consagrar a propriedade, como um direito natural e<br />

inviolável do homem, representando, a nosso ver, as bases daquilo que foi<br />

igualmente consagrado pelo Código de Napoleão.<br />

De acordo com Guilherme José Purvin de Figueiredo:<br />

“A consagração do regime de propriedade privada,<br />

trazido pelo Código de Napoleão, ocorre no mesmo palco<br />

da Declaração dos Direitos do Homem. Não apenas os<br />

resquícios do feudalismo serão rejeitados, também o será<br />

a presença ostensiva do Estado nas relações jurídicas e<br />

sociais. A negação do absolutismo terá como<br />

desdobramento a apresentação de um novo ideário liberal.<br />

O liberalismo apregoará que o Estado deve limitar-se a<br />

ser garantidor das relações estabelecidas pelos<br />

particulares, promovendo a proteção da vida, da<br />

segurança individual das pessoas e da propriedade”. 42<br />

Adotando a concepção de propriedade ao lado da liberdade, a<br />

Declaração de Direitos da Virgínia do Norte dos Estados Unidos da<br />

América, objetivou por fim ao domínio inglês.<br />

41<br />

Ibidem.,p. 268.<br />

42<br />

FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A Propriedade no Direito Ambiental. Adcoas, Rio de<br />

Janeiro, 2004. p. 53.<br />

46


Com efeito, no seu artigo primeiro proclamava:“Todos os homens<br />

nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e<br />

naturais dos quais não podem, pôr nenhum contrato, privar nem despojar<br />

sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os<br />

meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e<br />

a segurança”.<br />

Com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, surge, no<br />

cenário mundial, a consagração de direitos inerentes ao homem e que, antes,<br />

não eram reconhecidos no plano político e jurídico, em especial, quando<br />

nos lembramos do regime absolutista que vigorou, especialmente, na<br />

Europa. 43<br />

Nesse sentido, a Revolução Francesa consolidou os direitos<br />

individuais, com os quais a burguesia tanto sonhava, como, por exemplo, o<br />

direito à liberdade e à propriedade, fazendo com que a humanidade<br />

reconhecesse que o corpo social deveria ter esses direitos preservados.<br />

A propriedade francesa individualista fez brotar profundas injustiças<br />

sociais, uma vez que não permitia que as classes menos favorecidas<br />

tivessem acesso as terras, fomentando, no âmbito da doutrina jus-filosófica,<br />

novos embates, em torno do, já conhecido e conturbado, tema da<br />

propriedade.<br />

43<br />

Esse conjunto de direitos do cidadão são os direitos sociais e político. Estes são afirmados como direitos<br />

individuais, não podendo a partir de então o Estado interferir ou impor veto. Nessa esteira, após a<br />

Europa sofrer os efeitos da revolução que modificou o mundo e as estruturas políticos sociais,<br />

influenciou as demais legislações codificadas do resto do mundo, vindo os diplomas civis a engendrar<br />

os anseios da grande revolução no trinômio liberdade, igualdade e fraternidade. Essa classe de direitos<br />

são reconhecidos como “direitos de primeira geração”.<br />

47


1.9. A doutrina socialista sobre a propriedade<br />

A doutrina socialista, desenvolvida por Karl Marx e Friedrich Engels,<br />

opunha-se, fortemente, à doutrina do liberalismo econômico.<br />

Para a compreensão da doutrina alemã acerca da propriedade, em<br />

especial, aquela elaborada por Karl Marx e Friedrich Engels a partir de uma<br />

análise histórica, podemos verificar a existência de três propriedades, assim<br />

compreendidas pelos filósofos:<br />

“1 - A primeira forma de propriedade é a propriedade<br />

tribal [Stammeigentumt], que corresponde à fase<br />

rudimentar da produção em que um povo se alimenta da<br />

caça e da pesca, da criação de gado ou,quando muito, da<br />

agricultura. a qual pressupõe uma grande quantidade de<br />

terras não cultivadas. A divisão do trabalho é, nesta fase,<br />

muito pouco desenvolvida, e limitada a constituir uma<br />

extensão da divisão do trabalho natural existente na<br />

família”. 44<br />

2 – A segunda forma de propriedade é a propriedade<br />

comunal e a propriedade estatal da antiguidade, que<br />

resulta principalmente da união de várias tribos, formando<br />

uma cidade, por meio de acordo ou conquista, e, onde<br />

continua a existir a escravatura. Ao lado da propriedade<br />

comunal desenvolve–se a propriedade privada móvel e,<br />

mais tarde, também, a imóvel, mas como uma anormal e<br />

subordinada à propriedade comunal” 45 .<br />

44<br />

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Editora Centauro, São Paulo, 2005. p. 20.<br />

45<br />

Ibidem, loc. cit.<br />

48


“Apenas em coletividade os cidadãos exercem o seu poder<br />

sobre os escravos que trabalham para eles, estando, por<br />

isso, ligados à forma de propriedade comunal. É a<br />

propriedade privada comum dos cidadãos, que os obriga a<br />

conservar esta forma natural de associação. Assim,decai<br />

toda a estrutura social, que nela se baseia, e com ela o<br />

poder do povo, à medida que se desenvolve,<br />

principalmente, a propriedade privada imobiliária”. 46<br />

“3- A terceira forma é a propriedade feudal, ou de ordens<br />

sociais [ständisch]. Se a Antiguidade partiu da cidade e do<br />

seu pequeno território, a Idade Média partiu do Campo. A<br />

população existente, pequena e dispersa por uma grande<br />

área, e que não cresceu muito com os conquistadores,<br />

condicionou esta mudança de ponto de partida. Ao<br />

contrario do que ocorreu com a Grécia e com Roma, o<br />

desenvolvimento feudal começa, por isso, num território<br />

muito mais extenso, preparado pelas conquistas romanas e<br />

pela expansão da agricultura originadas por elas” 47 .<br />

Há que se reconhecer, na doutrina desses filósofos, uma evolução<br />

natural da propriedade. Desde a existência de uma propriedade concentrada<br />

nos grupos, que satisfazia às necessidades mais elementares da tribo, ela<br />

passa a evoluir, até que, já um pouco mais estruturada, encontra, nestes<br />

mesmos grupos, uma forma de propriedade comunitária, onde várias tribos<br />

se unem e podem entre elas fazer uso da propriedade. Tal sistema também<br />

evoluiu, porquanto na Idade Média, segundo os autores:<br />

46 Ibidem, loc. cit.<br />

47 Ibidem., p.21.<br />

49


“A estrutura hierárquica da propriedade fundiária e a<br />

séquitos armados a ela ligados deram à nobreza o poder<br />

sobre os servos. Esta estrutura feudal era, do mesmo modo<br />

que a antiga propriedade comunal, uma associação face à<br />

classe produtora dominada; só que a forma de associação<br />

e a relação com os produtores diretos era diferente,<br />

porque existiam diferentes condições de produção. A esta<br />

estrutura feudal da propriedade fundiária correspondia,<br />

nas cidades, a propriedade corporativa, a organização<br />

feudal dos ofícios. A propriedade consistia principalmente<br />

no trabalho de cada individuo”. 48<br />

Justificam Karl Marx e Friedrich Engels que:<br />

“Com o desenvolvimento da propriedade privada<br />

começam a surgir as relações que encontramos na<br />

propriedade privada moderna, embora numa escala<br />

maior. Por um lado, a concentração da propriedade<br />

privada que começou muito cedo em Roma, como mostra a<br />

lei agrária de Licinius, e se processou rapidamente desde<br />

as guerras civis e, sobretudo, sob o Império; por outro<br />

lado, e em conexão com isto, a transformação dos<br />

pequenos camponeses plebeus num proletariado, o qual,<br />

porém, devido à sua posição intermediária entre os<br />

cidadãos possuidores e os escravos, não conseguiu um<br />

desenvolvimento autônomo” 49 .<br />

O traço característico da propriedade privada está em que ela assumiu<br />

feições, após uma evolução do modelo antigo de propriedade, ou seja, da<br />

48 Ibidem,p.22.<br />

49 Ibidem,p.21.<br />

50


propriedade comunal primitiva, ela se destaca, pelo exercício do poder, que<br />

tinham os cidadãos, sobre os escravos e trabalhadores.<br />

Na obra “O Capital”, Karl Marx explica que a história é determinada<br />

pela produção econômica, que se faz acompanhar de uma constante luta de<br />

classes, denominando, este fenômeno, de materialismo histórico. Na mesma<br />

obra, o pensador propõe um fim ao conflito existente entre o capital e o<br />

trabalho, para o que afirma ser indispensável a supressão do capital, por<br />

meio da redução do trabalho.<br />

Veremos, mais adiante, que a doutrina marxista será amplamente<br />

refutada pela doutrina da função social da Igreja Católica, que, sempre,<br />

defendeu o direito à propriedade privada, especialmente, por considerá-la<br />

um direito natural.<br />

1.10. A evolução do direito de propriedade<br />

No atual estágio da vida social e política, o instituto da propriedade<br />

alcançou uma dimensão extraordinária, na medida em que passou a ser um<br />

direito subjetivo, cujo perfil resta delineado, para o atendimento da função<br />

social, judicializada pela tutela do Estado Social de Direito, consagrado<br />

pelas Constituições do México e da Alemanha.<br />

51


A transformação foi tal que se fez sentir no plano econômico. Isto se<br />

deve ao fato de que a propriedade, que antes da Revolução Industrial era o<br />

meio de produção rural, ganhou novos foros e passou a engendrar o<br />

instrumento da industrialização.<br />

A propriedade que, antes da revolução, tinha uma destinação<br />

econômica, voltada para a subsistência do pequeno, médio e grande<br />

produtor agrícola, passou a financiar uma nova fonte de riquezas - a riqueza<br />

industrial.<br />

Com a industrialização, surge a máquina a vapor, de modo que a<br />

produção, antes realizada de forma mecanizada e sem estrutura organizada,<br />

ganha uma nova dimensão, isto é, a produção de massa.<br />

A grande diferença da propriedade privada para a propriedade<br />

industrial mecanizada é o fator da “larga escala” verificada na segunda.<br />

A produção agrícola financiou a industrialização inglesa e, mais<br />

adiante, a dos países europeus e latino-americanos.<br />

A evolução da propriedade assumiu mais de uma faceta, de acordo<br />

com a realidade política e social de cada nação.<br />

Nesse sentido, podemos verificar que a noção de propriedade privada<br />

atingiu, nos países cujo modelo de produção é o privado, um norte<br />

diferente, em relação àquele verificado nas sociedades socialistas.<br />

Nos modelos econômicos regidos pela economia privada, a disciplina<br />

da propriedade foi tratada diversamente da forma adotada pelos modelos<br />

econômicos socialistas. Naqueles, o regime jurídico da propriedade foi e é<br />

52


tratado, de maneira a distinguir a propriedade privada da púbica. No regime<br />

socialista, e, mais precisamente, no comunista, a propriedade está<br />

concentrada nas mãos do Estado e, por isso, tudo o que pode gerar riquezas<br />

a ele pertence. Poucas exceções foram feitas, como, por exemplo, a<br />

propriedade para a aquisição da moradia.<br />

Para a correta compreensão desses regimes é importante distinguir o<br />

socialismo do comunismo.<br />

quem:<br />

Inicialmente cumpre observar a lição de Florival Cárceres, para<br />

“As origens do conceito de comunismo podem ser<br />

encontradas no nobre francês Saint-Simon, que viveu entre<br />

o final do século XVIII e a primeira metade do século XIX.<br />

Saint-Simon respirou os ares dos dois grandes movimentos<br />

que estão nas origens do socialismo: a Revolução<br />

Francesa e os primórdios da Revolução Industrial. Sua<br />

preocupação fundamental, que influenciou mais tarde<br />

todos os demais pensadores socialistas, foi a análise da<br />

sociedade, em contínua transformação”. 50<br />

De acordo com Oscar José de Plácido e Silva, o socialismo provém:<br />

“De social (relativo ou pertinente à sociedade), é a<br />

designação que se atribui ao sistema social e político, em<br />

que se instituem tendências e teorias que tem por objetivo<br />

substituir a ordem econômica e social, fundada no<br />

individualismo, por outra em que o Estado adquira o<br />

50 História Geral. Florival Cárceres. Editora Moderna, 4ª edição, São Paulo, 1999, p. 276.<br />

53


poder de modificar as condições de vida civil, em razão do<br />

interesse da sociedade e das coletividades”. 51<br />

O mesmo dicionarista dissertando sobre o comunismo, assegura é:<br />

“Sistema político e social que pretende estabelecer o<br />

princípio de que todos os bens ou riquezas produzidas<br />

pertencem ao Estado, para serem usufruídos por todos os<br />

seus componentes, segundo as regras preestabelecidas.<br />

Há, pois, no regime comunista, a idéia da formação de<br />

uma só comunidade entre todos os cidadãos, onde não se<br />

permite qualquer espécie de acumulação, visto que, como<br />

base dominante, nele não se admite o sistema dito de<br />

capitalismo”. 52<br />

Como se pode perceber, há diferenças significativas entre o<br />

socialismo, o comunismo e o capitalismo. Nos dois primeiros, a<br />

propriedade está concentrada em poder do Estado, enquanto no regime<br />

capitalista, a propriedade é privada, sendo que o Estado, para atender as<br />

suas finalidades, também possui propriedade, a qual se denomina<br />

propriedade pública.<br />

51<br />

PLÁCIDO E SILVA, Oscar José, Dicionário Jurídico. Editora Forense, 24ª edição, Rio de Janeiro, 2004.<br />

p. 1.310.<br />

52<br />

Ob. Cit., p. 327.<br />

54


1.11. A propriedade nos dias atuais<br />

Nos dias atuais, especialmente com o advento do século XX, a noção<br />

de direito de propriedade passou por profundas transformações.<br />

Evidentemente, como já explicitado, essas transformações verificaram-se<br />

no plano fático, normativo e axiológico, sobretudo, em razão do modelo<br />

impregnado pelo Código de Napoleão que, de modo arrebatador, imprimiu<br />

à propriedade uma característica de intransponibilidade, não deixando<br />

nenhuma margem para que ela fosse, em algum momento, considerada um<br />

direito relativo.<br />

No plano normativo, a Constituição mexicana de 1917, trata do direito<br />

de propriedade disciplinando:<br />

“Art.27. A propriedade das terras e águas, compreendidas<br />

dentro dos limites do território nacional, pertence<br />

originalmente à Nação, a qual teve e tem o direito de<br />

transmitir o domínio delas aos particulares, constituindo<br />

assim a propriedade privada. As expropriações somente<br />

poderão fazer-se por causa de utilidade pública e<br />

mediante indenização. A Nação terá, a todo tempo, o<br />

direito de impor à propriedade privada as determinações<br />

ditadas pelo interesse público, assim como o de regular o<br />

aproveitamento de todos os recursos naturais suscetíveis<br />

de apropriação, com fim de realizar uma distribuição<br />

eqüitativa da riqueza pública, cuidar de sua conservação,<br />

alcançar o desenvolvimento equilibrado do país e o<br />

melhoramento das condições de vida da população rural e<br />

urbana. Com esse objetivo, serão ditadas as medidas<br />

necessárias para ordenar os assentamentos humanos e<br />

55


estabelecer adequadas previsões, usos, reservas e destinos<br />

de terras, águas e florestas, para efeito de executar obras<br />

públicas e de planejar e regular a fundação, conservação,<br />

melhoramento e crescimento dos centros de população;<br />

para preservar e restaurar o equilíbrio ecológico; para o<br />

fracionamento dos latifúndios; para dispor, nos termos da<br />

lei, sobre a organização e exploração coletiva dos ejidos e<br />

comunidades; para o desenvolvimento da pequena<br />

propriedade agrícola em exploração; para a criação de<br />

novos centros de povoamento agrícola com terras e água<br />

que lhes sejam indispensáveis; para o fomento da<br />

agricultura e para evitar a destruição dos recursos<br />

naturais e os danos que a propriedade possa sofrer em<br />

prejuízo da sociedade. Os núcleos de população que<br />

careçam de terras e água ou não as tenham em quantidade<br />

suficiente para as necessidades de sua população, terão<br />

direito de ser dotadas destas, tomando-as das<br />

propriedades próximas, respeitada sempre a pequena<br />

propriedade agrícola em exploração.” 53 .<br />

Como se pode observar pela disposição referida, no México, o direito<br />

de propriedade pertence, primeiramente, à nação, que, por via oblíqua,<br />

transmite o domínio aos particulares. Cabe à nação mexicana impor à<br />

propriedade as diretivas que atendam aos interesses públicos e ao bem<br />

comum dos cidadãos.<br />

A Constituição mexicana objetivou, também, criar instrumentos<br />

voltados à divisão da grande propriedade privada agrária, fazendo com que<br />

todos tenham acesso à pequena propriedade, para dela extrair, os alimentos<br />

necessários para o sustento do homem do campo.<br />

53<br />

MIRAN<strong>DA</strong>, Jorge. Constituições de Diversos Paises. 3ª edição, volume II. Imprensa Nacional -Casa da<br />

Moeda, E.P. Lisboa – 1987, p. 180.<br />

56


que:<br />

Na Alemanha, o artigo 153 da Constituição de Weimar disciplinava<br />

“A propriedade e o direito de sucessão hereditária são<br />

garantidos. A sua natureza e os seus limites são regulados<br />

por lei. A propriedade obriga. O seu uso deve ao mesmo<br />

tempo servir ao bem-estar geral”.<br />

A atual Constituição alemã, denominada de Lei Fundamental de<br />

Boon, assegura o direito à propriedade, estabelecendo no artigo 14º:<br />

“1- Serão garantidos a propriedade e o direito de<br />

sucessão. Seu conteúdo e limites serão definidos por lei.<br />

2- A propriedade pressupõe obrigações. O seu uso deverá<br />

servir também ao bem comum.<br />

3- Só se admitirá a desapropriação em vista do bem<br />

comum. Ela só poderá ser efetuada por uma lei ou em<br />

virtude de uma lei que estabeleça a natureza e a extensão<br />

da indenização. A indenização deverá ser calculada<br />

levando-se em conta, de forma equitativa, os interesses da<br />

comunidade e os das partes afetadas. Litígios<br />

concernentes ao montante da indenização serão dirimidos<br />

pelo Juízo ordinário”.<br />

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, um diploma de<br />

Direito Internacional, resultou das lutas, empreendidas pelas várias<br />

sociedades, na busca da democracia, combatendo o regime autoritário<br />

57


nazista e fascista. Aprovada a 10 de dezembro de 1948, ao tratar da<br />

propriedade estabeleceu em seu artigo XVII:<br />

“1 – Toda a pessoa tem direito à propriedade, individual e<br />

coletivamente.<br />

2 – Ninguém será arbitrariamente privado de sua<br />

propriedade”.<br />

Com fundamento nas disposições acima referidas, podemos dizer que a<br />

propriedade assumiu, no curso da história, o perfil normativo que cada<br />

Estado lhe atribuiu, levando-se em consideração o sistema político e<br />

econômico, vigente em cada sociedade e em cada época.<br />

O fato de a propriedade ser privada, ou socialista, afeta o modelo<br />

político e econômico de cada Estado, para o qual o sistema normativo a<br />

erigiu, como sendo apta a garantir a consecução de seus fins.<br />

Deve-se observar que o direito de propriedade sofreu a ação do direito<br />

constitucional, não mais se admitindo uma visão privatística do instituto,<br />

voltada para as idéias da Revolução Francesa.<br />

O marco histórico do constitucionalismo moderno (Constituição do<br />

México de 1917 e Constituição de Weimar de 1919) fez da propriedade<br />

privada não meramente um direito, mas um direito-dever, na medida em<br />

que o proprietário, ao exercer seu direito sobre a terra, deve buscar o<br />

atendimento da “função social”, cláusula condicionadora da socialização<br />

do direito, no mundo contemporâneo.<br />

58


Nesse sentido, há um direito de propriedade garantido<br />

constitucionalmente. Esse direito deve amoldar-se a um novo perfil, que a<br />

propriedade assumiu com o constitucionalismo moderno.<br />

No novo modelo de direito de propriedade, deve-se separar as<br />

limitações ao seu exercício da própria função social, como adiante<br />

procuraremos demonstrar.<br />

De acordo com Arruda Alvim:<br />

“Quando se trata do direito de propriedade, há que se<br />

reconhecer, no plano do ordenamento jurídico, a<br />

existência do direito à propriedade no plano normativo<br />

constitucional e um direito de propriedade no plano do<br />

Direito Civil. Todavia, é possível reconhecer, nas<br />

legislações especiais, um tratamento do direito à<br />

propriedade e de sua função social como cláusula aberta,<br />

que possibilita o reconhecimento, por parte do legislador,<br />

de um tratamento diferenciado ao instituto, como nunca<br />

antes foi visto”. 54<br />

Nesse particular, o direito de propriedade está entrelaçado a vários<br />

outros institutos jurídicos, garantindo um perfil, que o direito moderno<br />

adotou, com a relevância e a urgência necessárias, para reconhecer, no<br />

tecido social, a necessidade de se ter acesso à propriedade e dar a destinação<br />

útil e econômica que a lei exige.<br />

54<br />

ARRU<strong>DA</strong> ALVIM NETO, José Manoel. Aula de Mestrado. Posse e Propriedade, proferida na<br />

Faculdade Autônoma de Direito – FADISP, em 03-10 e 17-10-2005.<br />

59


Tendo em vista o complexo de mudanças que ressoaram no direito de<br />

propriedade, não se pode dizer, com certeza, que ela alcançou o seu ápice e<br />

tenha, em razão disso, se estratificado. Ao contrário, essa é uma dúvida,<br />

pois na medida em que as sociedades evoluírem, certamente, novas<br />

vertentes, atinentes à propriedade e os atributos que dela decorrem surgirão.<br />

Nesse sentido, assegura o professor Caio Mário da Silva Pereira:<br />

“Não existe um conceito inflexível do direito de<br />

propriedade. Muito erra o profissional que põe os olhos no<br />

direito positivo e supõe que os lineamentos legais do<br />

instituto constituem a cristalização dos princípios em<br />

termos permanentes, ou que o estágio atual da<br />

propriedade é a derradeira, definitiva fase de seu<br />

desenvolvimento. Ao revés, envolve sempre, modifica-se ao<br />

sabor das injunções econômicas, políticas, sociais e<br />

religiosas. Nem se pode falar, a rigor, que a estrutura<br />

jurídica da propriedade, tal como se reflete em nosso<br />

Código, é a determinação de sua realidade sociológica,<br />

pois que aos nossos olhos e sem que alguém possa impedilo,<br />

ela está passando por transformações tão substanciais<br />

quanto aquelas que caracterizaram a criação da<br />

propriedade individual, ou que inspiraram a sua<br />

concepção feudal”. 55<br />

É importante dizer que as transformações políticas, sociais,<br />

econômicas e, até mesmo, religiosas podem, no decorrer do tempo,<br />

transformar a concepção da propriedade, vindo a alterar sua estrutura, já que<br />

tudo dependerá das realidades, que podem, ou não, surgir no curso da<br />

história.<br />

55 Instituições de Direito Civil, Editora Forense, 18ª edição, Rio de Janeiro, 2004, p. 81.<br />

60


No plano do ordenamento jurídico, o sentido, que foi adotado pela<br />

norma jurídica, foi o de colocar a propriedade ao lado da ordem econômica,<br />

como se vê na nossa Constituição Federal, que, assim, estabelece no artigo<br />

170, inciso II:<br />

Portugal.<br />

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do<br />

trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim<br />

assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames<br />

da justiça social, observando os seguintes princípios:<br />

(...)<br />

II – “propriedade privada”.<br />

Vale dizer que isso também ocorreu com a Constituição da Itália e de<br />

O modelo de produção capitalista encontra, nos bens de produção, sua<br />

vertente mais ampla possível, de modo que a propriedade de bens móveis e<br />

imóveis é a razão da estrutura monetária, que permeia e orienta a estrutura<br />

do Estado.<br />

61


Capítulo II<br />

2. CONFIGURAÇÃO <strong>DA</strong> PROPRIE<strong>DA</strong>DE<br />

2.1. Introdução<br />

Analisada a propriedade, sucintamente, em seus contornos históricos,<br />

impõe-se, de agora em diante, ao tratar deste instituto, levar em<br />

consideração os aspectos mais elementares de sua configuração, ou seja, sua<br />

instituição, objeto, conteúdo, características e natureza jurídica.<br />

Este capítulo levará a efeito ainda, ligeiras considerações acerca da<br />

propriedade, no plano de sua localização na órbita do direito,<br />

especialmente, do Direito Civil.<br />

2.2. Conceito de propriedade<br />

Não é tarefa fácil, conceituar o direito de propriedade. Com efeito, há<br />

divergência, na doutrina dos mais renomados juristas nacionais, acerca<br />

deste instituto matriz dos direitos reais.<br />

62


Vários conceitos podem ser conferidos à propriedade, se partimos da<br />

concepção de que ela é um direito absoluto, dotado de atributos que lhes são<br />

peculiares, como é o caso do uso, gozo, disposição e da reinvidicação.<br />

José Cretella Junior demonstra a variedade de conceitos, trazendo as<br />

seguintes definições:<br />

“Propriedade é o direito ou faculdade que liga o homem a<br />

uma coisa, direito que possibilita a seu titular extrair da<br />

coisa toda utilidade que esta lhe possa<br />

proporcionar”.“Propriedade é o poder jurídico, geral e<br />

potencialmente absoluto, de uma pessoa sobre uma coisa<br />

corpórea”. 56<br />

A propriedade nasceu da necessidade da espécie humana de lutar pela<br />

própria sobrevivência. Foi a partir do instante em que o homem se<br />

conscientizou de que, para se manter vivo, deveria se apropriar das coisas e<br />

destas retirar os frutos, necessários para a subsistência própria e da família.<br />

propriedade.<br />

Sob este prisma, ainda que de modo superficial, está a gênese da<br />

De acordo com Carmem Lúcia Antunes Rocha:<br />

56<br />

CRETELLA JUNIOR, José. Curso de Direito Romano. Editora Forense, 4º edição, Rio de janeiro, 1967,<br />

p.146.<br />

63


“Nascida a propriedade, cumpria impor normas jurídicas,<br />

segundo as quais o seu exercício se tornasse fonte de<br />

direitos, não de conflitos. Havida a propriedade, sobreveio<br />

o direito de propriedade, assim entendido como a<br />

concepção e a definição daquela função e do domínio que<br />

se possa exercer sobre o seu objeto, em determinado<br />

Estado, por força do quanto posto e disposto no<br />

ordenamento jurídico”. 57 (sic)<br />

Na concepção desta autora, a propriedade nasceu em dado momento<br />

histórico e, somente depois, sobre ela incidiu a norma jurídica. É a norma<br />

jurídica que regula o direito de propriedade na busca de apaziguar os<br />

conflitos sociais, assegurando o direito à aquisição da res.<br />

De acordo com Pontes de Miranda:<br />

“Em sentido amplíssimo, propriedade é o domínio ou<br />

qualquer direito patrimonial. Tal conceito desdobra o<br />

direito das coisas. O crédito é propriedade. Em sentido<br />

amplo, propriedade é todo o direito irradiado em virtude<br />

de ter incidido regra de direito das coisas. (...) Costuma-se<br />

distinguir o domínio, que é o mais amplo direito sobre a<br />

coisa, e os direitos reais limitados. Isso não significa que o<br />

domínio não tenha limites; apenas significa que seus<br />

contornos não cabem dentro dos contornos de outro<br />

direito. O próprio domínio tem o seu conteúdo normal, que<br />

as leis determinam. Não há conteúdo a priori,<br />

57<br />

ANTUNES ROCHA, Carmem Lucia. O Princípio constitucional da Função social da Propriedade, in<br />

Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, editora Del Rey, nº 2 - jul/dez.200, Minas<br />

Gerais, p. 549.<br />

64


jusnaturalístico, de propriedade, senso lato, nem conceito<br />

a priori, jusnaturalistico, de domínio”. 58<br />

Nesse sentido, compreendemos a propriedade como um termo amplo,<br />

que abrange as coisas e bens e, ainda, os direitos imateriais, (ainda que aqui,<br />

com alguma variação), ao passo que domínio diz respeito a coisas<br />

(corpóreas, tangíveis e com consistência).<br />

E assim é a lição de Silvio Luis Ferreira da Rocha que assegura:<br />

“Propriedade e domínio são termos equivalentes no<br />

emprego comum e cotidiano. Tecnicamente, no entanto,<br />

propriedade e domínio têm campos semânticos não<br />

coincidentes. Propriedade seria o gênero do qual o<br />

domínio seria a espécie. A propriedade abarca toda a<br />

sorte de dominação ou senhorio individual sobre coisas<br />

corpóreas ou incorpóreas, enquanto o domínio<br />

compreende apenas a denominação ou o senhorio<br />

individual em relação aos bens corpóreos ou coisas”. 59<br />

Em todos os casos, propriedade e domínio são conceitos jurídicos<br />

indissociáveis no plano do direito das coisas, e, nesse particular, do direito<br />

de propriedade.<br />

58<br />

PONTES DE MIRAN<strong>DA</strong>, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Vol. XI, Editor Borsoi, 2ª<br />

edição, Rio de Janeiro, p. 9.<br />

59<br />

ROCHA, Silvio Luiz Ferreira. Função Social da Propriedade Pública. Editora Malheiros, São Paulo,<br />

2005. p. 13.<br />

65


A propriedade recebeu, na história, a configuração necessária para<br />

representar o modelo de produção de cada época. No entanto, ela sofreu<br />

mutações e, ainda hoje, é matéria controvertida na doutrina civilista.<br />

A propriedade sempre representou a marca do modelo político e<br />

econômico de um país. Ela foi havida, desde os tempos mais primitivos,<br />

como a condicionante do poder do Estado em face das camadas sociais,<br />

fosse ela composta por sacerdotes, plebeus, leigos ou escravos.<br />

De acordo com o professor Arruda Alvim:<br />

“Pode dizer-se, sem medo de errar, que a configuração<br />

do instituto da propriedade recebe, direta e<br />

indiretamente, influência dos regimes políticos, em cujos<br />

sistemas jurídicos é concebida pelos quais esse direito<br />

abrigado”. 60<br />

Esse jurista, com lapidar discernimento pontifica:<br />

60 O Livro do Direito das Coisas. Obra inédita.<br />

“Efetivamente, a estruturação do sistema econômico, se<br />

não é o principal, é, pelo menos, um dos elementos<br />

definidores dos regimes políticos, que, nesta medida e por<br />

causa de tal discrímen, ou se afastam, ou se aproximam<br />

uns dos outros. Dessa forma, é fatal que haja variações na<br />

concepção de cada regime político a respeito da figura<br />

jurídica da propriedade. Não há coincidência entre a<br />

66


concepção da propriedade como direito absoluto, com a<br />

significação de que é carregada esta expressão e a sua<br />

existência com esse perfil dentro do Estado Liberal, e a<br />

propriedade como devendo ser concebida nos quadros de<br />

sua função social dentro do Estado do Bem Estar Social,<br />

ainda que neste, também, possa ser categorizada como<br />

direito absoluto, ainda que mais delimitado do que no<br />

liberalismo. Mas, o termo não é inapropriado. O que se<br />

pode distinguir é que, no Estado Liberal, a expressão<br />

direito absoluto era carregada de ideologia, enfaticamente<br />

agregada à enunciação desse termo, cujo modelo-síntese<br />

foi a noção do direito de propriedade do direito francês<br />

(art. 554, do Código Civil francês) e, quase um século<br />

depois, do direito alemão (§ 903, do Código Civil<br />

alemão); no Estado do Bem Estar Social, essa expressão<br />

pode se explicar, apenas, no plano dogmático do<br />

direito.”. 61<br />

Seguindo o mesmo raciocínio de Arruda Alvim, podemos dizer que a<br />

carga ideológica, que permeou a propriedade desde os tempos mais antigos,<br />

se deve, em muito, à concepção de que ela transpassou as várias correntes<br />

de pensamento, nas várias etapas da história da humanidade.<br />

De direito natural e divino entre os hebreus e mesopotâmicos, para<br />

propriedade privada e absoluta entre os gregos e romanos.<br />

De privada e comunal na Idade Média e, ainda, de base da riqueza e<br />

da produção liberal na Idade Moderna, para a propriedade socializada na<br />

Idade Contemporânea, isto é, do século XX até os nossos dias.<br />

61 Ibidem.<br />

67


O direito de propriedade é o mais importante dos direitos reais. Na<br />

lição de Arnaldo Rizzardo:<br />

“Considera-se o mais amplo dos direitos reais, o chamado<br />

direito real por excelência, ou direito real fundamental”. 62<br />

Ainda de acordo com esse autor:<br />

“Em todos os campos da atividade humana e no curso da<br />

vida da pessoa, sempre acompanha a idéia do ‘meu’ e do<br />

‘teu’, desde os primórdios das manifestações da<br />

inteligência, o que leva a afirmar ser inerente à natureza<br />

do homem a tendência de ter, de adonar-se, de conquistar<br />

e de adquirir”. 63<br />

Esse mesmo civilista assegura:<br />

“É a propriedade um direito complexo, pois assegura ao<br />

titular a faculdade de disposição. Ou seja, à pessoa se<br />

autoriza dispor da forma que entender da coisa, como usála,<br />

abandoná-la, aliená-la e destruí-la. Reveste-se,<br />

outrossim, do caráter de direito absoluto, do que decorre<br />

da oponibilidade erga omnes, impondo a todos o dever de<br />

respeitá-la. Daí exercer o titular o poder de dominação da<br />

62<br />

RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas.Editora Revista Forense, Rio de Janeiro, 1ª edição, 2004, 2ª<br />

tiragem, p. 169.<br />

63<br />

Ibidem. loc. cit.<br />

68


coisa, mesmo que deva se submeter a certas limitações. É<br />

perpétuo o direito, durando ilimitadamente, e não se<br />

perdendo ou desaparecendo pela falta de uso. Considerase<br />

direito exclusivo, ficando os terceiros proibidos de<br />

exercer sobre a coisa qualquer dominação”. 64<br />

O conceito exposto por esse jurista, reflete bem a sua concepção da<br />

propriedade, como um direito absoluto. Todavia, ao que nos parece, há um<br />

equívoco, quando o autor expõe que, em razão do requisito da perpetuidade,<br />

o direito não se perderia. Parece que esta concepção, data vênia, não está<br />

muito correta, diante da nova realidade jurídica do direito de propriedade.<br />

A nova realidade jurídica do direito de propriedade impõe ao<br />

proprietário o dever jurídico de atender a uma função social, sob pena de o<br />

imóvel vir a sofrer desapropriação, quando o proprietário não promover o<br />

adequado aproveitamento do solo, segundo a exegese do artigo 182, § 4º,<br />

incisos I, II e III da Constituição Federal.<br />

Cármem Lúcia Antunes Rocha, traz com lucidez o conceito de<br />

propriedade, prescrevendo:<br />

“Do latim proprieta, propriedade significa algo inerente a<br />

uma pessoa ou objeto especificado, quer dizer, atributo<br />

que singulariza, identificando a pessoa ou bem, aquilo que<br />

configura a característica determinante e distintiva<br />

concernente a alguém ou a alguma coisa”. 65<br />

64<br />

Ibidem. Loc. cit.<br />

65<br />

ANTUNES ROCHA, Carmem Lucia. O Princípio constitucional da Função social da Propriedade, in<br />

Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, editora Del Rey, nº 2 - jul/dez.200, Minas<br />

Gerais p. 548.<br />

69


Além dos conceitos trazidos pelos ilustres juristas, devemos observar<br />

que, se o conceito de propriedade está ligado aos poderes que decorrem do<br />

instituto do direito de propriedade, então, a propriedade, havida como<br />

direito absoluto, está petrificada na concepção do uso, gozo, disposição e<br />

reivindicação.<br />

Essa é a matriz do direito de propriedade, consagrada desde Roma, e<br />

de certa forma, abandonada na Idade Média, para ser retomada com a<br />

Revolução Francesa, estando, nos dias de hoje, revestida com as mesmas<br />

feições de um direito individual, mesmo diante do fato de ter sido<br />

funcionalizada no século XX.<br />

É notório, pois, que, a despeito da funcionalização do direito de<br />

propriedade, este não perdeu os atributos que o consagraram como direito<br />

inalienável do indivíduo.<br />

Observando os brilhantes conceitos desses juristas, impõe-se<br />

observar que, na atualidade, há dois conceitos de propriedade. Um conceito<br />

constitucional e um conceito infraconstitucional.<br />

O conceito de propriedade, no plano constitucional e<br />

infraconstitucional, está relacionado ao surgimento da constituição alemã e<br />

mexicana, antes referidas.<br />

O conceito constitucional de propriedade está relacionado à<br />

concepção de que a propriedade é um direito humano fundamental e, é por<br />

este motivo que o Estado deve garanti-lo ao homem, bem como possibilitar<br />

a aquisição da propriedade, como um bem da vida indispensável à<br />

consagração da dignidade de sua pessoa humana.<br />

70


Essa nova vertente do direito de propriedade deve-se a uma<br />

linguagem constitucional, imprimida pelo legislador, que foi fruto do<br />

processo social.<br />

Na realidade, a Constituição brasileira de 1988 apresenta uma nova<br />

linguagem jurídica, que alcançou o instituto da propriedade. Deve-se notar<br />

que esta linguagem está em sintonia com a realidade social do mundo<br />

contemporâneo.<br />

Podemos, assim, dizer que a propriedade foi erigida à qualidade de<br />

direito humano fundamental, exigindo do proprietário uma destinação útil e<br />

econômica, na medida em que a função social, que ela deve exercer, é,<br />

exatamente, permitir ao dono usufruir da coisa, dela extraindo os frutos<br />

necessários, para garantir as comodidades.<br />

Essas comodidades são adquiridas com o acesso à moradia, assentada<br />

na propriedade, que satisfaz as necessidades cotidianas com a produção<br />

econômica da coisa, mediante o plantio de cereais, para garantir a<br />

sobrevivência do proprietário e de sua família. 66<br />

Por outro lado, o conceito infraconstitucional de propriedade está em<br />

reconhecer que, no plano do direito privado, o direito de propriedade é<br />

inferior àquele tratado na Constituição Federal.<br />

A norma jurídica privada, ao disciplinar e reger o instituto da<br />

propriedade deve estar em consonância com a norma constitucional, o que é<br />

o caso do atual Código Civil de 2002.<br />

66<br />

Mais adiante no curso dessa dissertação, iremos expor melhor a questão da função econômica da<br />

propriedade.<br />

71


No atual sistema de direito privado, em especial, no que tange ao<br />

direito de propriedade, há um sistema harmônico de proteção à propriedade,<br />

que faz com que regras de direitos civis sejam positivadas, no plano<br />

constitucional, criando um sistema rígido, seguro e garantidor da tutela dos<br />

mesmos.<br />

É importante frisar que o direito de propriedade se mantém como um<br />

direito absoluto, todavia, o que se deve ter em mira é a nova realidade de<br />

valores jurídicos, que revestem a propriedade, sobre os quais trataremos,<br />

com mais vagar, no capítulo IV.<br />

Despertou, entre os cientistas do direito, uma nova propriedade, que<br />

conferiram ao instituto valores novos, diante de uma nova linguagem, a<br />

linguagem social do direito, sem, contudo, abandonar os seus traços<br />

históricos, resultantes da sua evolução, desde o antigo conceito romano de<br />

propriedade absoluta, passando para a idéia de sacralidade do período<br />

medieval, até a sua prefiguração no plano do individualismo francês.<br />

2.3. A propriedade como um direito subjetivo<br />

A propriedade foi concebida, desde o direito romano, como um<br />

direito subjetivo. Dessa assertiva, decorre que ela é um direito do cidadão.<br />

72


2.4. Do objeto do direito de propriedade<br />

Podem ser objeto do direito de propriedade, coisas ou bens,<br />

corpóreos ou incorpóreos, suscetíveis de apreciação econômica e dotados de<br />

consistência. Logo, a patrimonialidade gravita em torno do objeto da<br />

propriedade, justamente, em razão desta concepção de que a coisa ou o bem<br />

deve ser suscetível de apreciação econômica. Havendo coisa corpórea da<br />

qual se pode dispor e aquinhoar um valor, a cifra representa um patrimônio.<br />

De acordo com Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda:<br />

O objeto dos direitos reais são coisas e a construção deles<br />

diferencia-se dos direitos pessoais, exatamente pela<br />

referência a determinada coisa como bem da vida. Essa<br />

referência satisfaz aos juristas para a definição do direito<br />

real como poder direto sobre a coisa, ao que se opôs outra<br />

parte da doutrina, principalmente francesa, mostrando que<br />

há sujeito passivo na relação jurídica de direito real e tal<br />

sujeito é a sociedade, todos, o grupo. A inclusão dos<br />

direitos do autor na propriedade veio ‘realizar’ o que<br />

antes se concebera como direito pessoal”. 67<br />

Há que se distinguir coisa de bem e verificar se este é igual aquela.<br />

67<br />

PONTES DE MIRAN<strong>DA</strong>, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Vol. XI, Editor Borsoi, 2ª<br />

edição, Rio de Janeiro, p. 74.<br />

73


Nesse sentido, há que se analisar o conceito de coisa e bem, para<br />

verificar se há diferenças.<br />

A concepção de coisa está relacionada ao conceito de bem, e,<br />

certamente, coisa está moldada numa estrutura mais completa, ou não, do<br />

que o bem, o que dependerá da análise concreta do objeto, sob o qual incide<br />

a investigação lingüística.<br />

O direito, como ciência jurídica que é, tem seu objeto. O objeto do<br />

direito é um conjunto de coisas e de bens; essas coisas e esses bens podem<br />

ser corpóreos ou incorpóreos, apreciáveis economicamente ou não.<br />

Para melhor compreender o conceito de bens é crucial a doutrina do<br />

professor Silvio Rodrigues, que pontifica:<br />

“Para a economia política, bens são aquelas coisas que,<br />

sendo úteis aos homens, provocam a sua cupidez e, por<br />

conseguinte, são objeto de apropriação privada.<br />

Entretanto, ainda dentro do conceito econômico, nem<br />

todas as coisas úteis são consideradas bens, pois, se<br />

existirem em grande abundância na natureza, ninguém se<br />

dará o trabalho de armazená-las. Assim, nada mais útil ao<br />

homem do que o ar atmosférico, mas, como ele abunda na<br />

natureza, não é um bem econômico”. 68<br />

Adverte esse civilista que:<br />

68 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Vol. I, 9ª Edição, Editora Saraiva, São Paulo, 1979, p. 97.<br />

74


“Os vocábulos ‘bem’ e ‘coisa’ são usados<br />

indiferentemente por muitos escritores e, por vezes, pela<br />

própria lei. Trata-se, todavia, de palavras de extensão<br />

diferente, uma sendo espécie da outra. Com efeito, ‘coisa’<br />

é o gênero do qual ‘bem’ é espécie. A diferença específica<br />

está no fato de está última incluir na sua compreensão a<br />

idéia de utilidade e raridade, ou seja, a de ter valor<br />

econômico”. 69<br />

Assegura o autor que:<br />

“Coisa é tudo que existe objetivamente, com exclusão do<br />

homem. Assim, o sol, a lua, os animais, os seres<br />

inanimados, etc”. 70<br />

Leciona o professor Silvio de Salvo Venosa que:<br />

“(...) todos os bens são coisas, mas nem todas as coisas<br />

são merecem ser denominadas de bens. O sol, o mar, a lua<br />

são coisas, mas não aos bens, porque não podem ser<br />

apropriados pelo homem. As pessoas amadas, os entes<br />

queridos ou nossas recordações serão sempre um bem. O<br />

amor é o bem maior do homem. Essa acepção do termo<br />

somente interessa indiretamente ao Direito”. 71<br />

69<br />

Ibidem, p. 98.<br />

70<br />

Ibidem. Loc. cit.<br />

71<br />

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil, Vol. I, Parte Geral, 5ª edição, Editora Atlas, São Paulo,<br />

2005.,p. 328.<br />

75


A coisa é um ser inanimado e insuscetível de racionalidade. Trata-se<br />

de um objeto, suscetível de apreciação econômica, portanto, de conteúdo<br />

valorativo.<br />

No mundo contemporâneo, a noção de coisa se alargou e, de acordo<br />

com o dado valorativo que a ela se agrega, passa a ter feições de bens, ou<br />

seja, além de representar um conteúdo material, econômico, pode, ainda,<br />

representar um conteúdo extrapatrimonial.<br />

Pode-se estabelecer a diferença de coisas e bens, se partirmos das<br />

lições de Silvio de Salvo Venosa que pontifica:<br />

“A palavra bem deriva de bonum, felicidade, bem-estar. A<br />

palavra coisa¸ tal como os estudos jurídicos a consagram,<br />

possui sentido mais extenso no campo do direito,<br />

compreendendo tanto os bens que podem ser apropriados,<br />

como aqueles objetos que não podem”. 72<br />

Assim, coisa é o gênero, do qual bem é espécie. Com efeito, toda<br />

coisa, ainda que se diga que é insignificante, tem cunho econômico e,<br />

portanto, patrimonial.<br />

Parece-me que diante das lições referidas, a propriedade é uma coisa,<br />

porquanto corpórea e economicamente apreciável, mas também pode ser<br />

um bem, na medida em que ela contém um feixe de atributos, inerentes ao<br />

seu titular.<br />

72 Ibidem, p. 328.<br />

76


2.5. Do conteúdo do direito de propriedade<br />

Não é tarefa simples, concluir qual seja o conteúdo do direito de<br />

propriedade.<br />

Certamente, o que se impõe dizer é que o conteúdo do direito de<br />

propriedade está relacionado a outras considerações igualmente<br />

importantes, que foram lançadas como pedras angulares do Estado<br />

Democrático de Direito.<br />

A propriedade, como antes foi referenciada, tem como objeto a coisa<br />

ou o bem, cuja vertente maior é aquela que permite o uso e gozo, para<br />

satisfazer às necessidades de seu titular.<br />

As transformações ocorridas no direito de propriedade, desde as<br />

limitações impostas ao seu exercício, até a imposição de uma função social,<br />

capaz de ordenar a destinação da coisa a uma realidade social e econômica,<br />

não lhe retiraram o sentido de direito absoluto e nem reduziram o direito do<br />

proprietário e seus conseqüentes atributos.<br />

assegura:<br />

Nesse sentido, tem percuciência o professor Arruda Alvim que<br />

“Penso também que apesar de profundas limitações que<br />

vieram se avolumando no mundo inteiro em relação ao<br />

direito de propriedade, há um núcleo essencial e<br />

irredutível desse direito, na linha do que é extensamente<br />

reconhecido na Alemanha, através da sua doutrina e<br />

77


Esse autor afirma:<br />

pronunciamentos de seu tribunal constitucional. Quer<br />

dizer, apesar da posição realmente radical em torno do<br />

sentido de direito de propriedade vir sofrendo profunda<br />

atenuação, há um conteúdo nesse direito que não é<br />

passível de delimitação. E parece que o núcleo essencial<br />

irredutível do direito de propriedade é o direito de usar e<br />

de poder dispor da coisa”. 73<br />

Na doutrina alemã se reconhece que o direito de<br />

propriedade tem dois núcleos: um núcleo é aquele que<br />

decorre da garantia constitucional do direito de<br />

propriedade. E o outro núcleo, que se sobrepõe a este, é o<br />

núcleo mais variável, cuja disciplina fica deferida à lei<br />

infraconstitucional. É aquilo que vemos no nosso Código<br />

Civil, principalmente em três dispositivos que são os arts.<br />

1.228, § § 4º e 5º, 1.238, parágrafo único. No art. 1.228 há<br />

a previsão, segundo alguns, de uma hipótese de<br />

desapropriação e, segundo outros, de uma expropriação,<br />

cujo preço deve ser pago pelos que estão na posse; e nos<br />

outros dois dispositivos verifica-se uma sensível<br />

diminuição dos prazos de usucapião ordinário e<br />

extraordinário, isto é, desde que a posse apresentada<br />

nessas duas hipóteses tenha uma significação social –<br />

significação social esta que levou o legislador a visualizar<br />

a hipótese de diminuição de prazo de usucapião para<br />

valorizar ainda mais essa situação possessória, desde que<br />

consumada a usucapião, em detrimento daquele<br />

proprietário que não curou da sua coisa”. 74<br />

73<br />

ARRU<strong>DA</strong> ALVIM NETTO, José Manoel de. Função Social da Propriedade. Principais Controvérsias no<br />

Novo Código Civil. Editora Saraiva, São Paulo, 2006.p. 21.<br />

74<br />

Ibidem, p. 21-22.<br />

78


Posta a questão da propriedade segundo uma evolução do instituto no<br />

tempo, vimos que ela passou por transformações.<br />

Todavia, essas transformações não podem ser capazes de tirar aquilo<br />

que mais identificou e identifica o instituto em todos os tempos, ou seja, o<br />

direito do proprietário de usar e dispor da coisa.<br />

Se esses dois requisitos ou atributos da propriedade, em razão de sua<br />

evolução normativa tivessem perdido o seu sentido, não haveria razão do<br />

instituto existir, pois a propriedade ficaria despida de seu conteúdo mais<br />

elementar, que é, exatamente, a possibilidade de alguém dela se asenhorar<br />

para usar e, em razão do uso, poder, um dia, dela, dispor.<br />

2.6. Propriedade, direito de propriedade e direito à propriedade<br />

Diante da complexidade que verificamos no direito de propriedade, a<br />

dúvida que pode surgir é saber se há distinção entre o direito à propriedade,<br />

e o direito à aquisição da propriedade.<br />

Esta questão parece ser simples, mas entendo que está a exigir uma<br />

reflexão mais profunda, na medida em que o direito tem passado por uma<br />

constante evolução. Embora a propriedade tenha mantido os contornos de<br />

rigidez consagrados pelo direito romano e pela Revolução Francesa, é certo,<br />

também, que no limiar do século XX, quando da entrada em vigor do<br />

79


Estado Social de Direito, vários institutos, entre os quais a propriedade,<br />

assumiram uma nova faceta, no plano da matriz do próprio instituto. 75<br />

A norma jurídica não fornece o conceito de propriedade, matéria esta<br />

que, no curso da história, vem sendo tratada, partindo-se dos atributos do<br />

direito de propriedade, para deles se extrair o conceito de propriedade.<br />

Entendemos que há de se reconhecer conceitos e ou situações<br />

distintas, ou seja, a proteção à propriedade e o direito a aquisição da<br />

propriedade.<br />

Propriedade, como o próprio nome sugere é a coisa, corpórea ou<br />

incorpórea, suscetível de apreciação econômica. A propriedade é a coisa<br />

que, indelevelmente, pertence a alguém, a um titular, no caso, aquele que se<br />

assenhorou com animus domini ou animus defintitivo. O animus é a<br />

qualidade que potencializa e justifica o fato da coisa pertencer a alguém.<br />

Essa qualidade é marcada na história da propriedade, desde os<br />

tempos mais antigos, como já demonstrado.<br />

Direito à propriedade é a faculdade atribuída a alguém de exercer<br />

certos direitos conferidos pela norma jurídica.<br />

O que se pode também questionar é se esse direito é realmente<br />

direito, ou faculdade. Pode ser um só ou os dois, se partimos de premissas<br />

diferentes.<br />

75<br />

Essa nova faceta, a que nos referimos, será adiante analisada, quando tratarmos, especificamente, da<br />

função social da propriedade.<br />

80


Será, o direito de propriedade, uma faculdade do titular, se partimos<br />

da premissa de que o proprietário, tendo o direito sobre a coisa, pode<br />

exercê-lo ou não, dispor, ou não, da coisa.<br />

Se analisado o direito de propriedade, apenas sobre a ótica de uma<br />

faculdade, esbarraremos no princípio da função social, que impõe ao<br />

proprietário a adoção de medidas socialmente relevantes, para que a coisa<br />

produza os frutos necessários, para seu titular e para a coletividade.<br />

Sob este ângulo, a propriedade como um direito, além de conter as<br />

faculdades necessárias ao exercício de seus atributos (usar, gozar, dispor e<br />

reivindicar), exige também um dever jurídico, capaz de atribuir um novo<br />

direcionamento ao direito titularizado pelo proprietário. Vale dizer, o direito<br />

à propriedade é o poder jurídico do titular da coisa de exercer os atributos<br />

dela decorrentes, garantindo-se o pleno exercício e condicionamento à sua<br />

função social.<br />

Quem confere o poder jurídico sobre a coisa, capaz de tornar alguém<br />

proprietário, é a própria norma jurídica, que dita um comando ou uma série<br />

de comandos capazes de tornar eficaz, o exercício dos direitos sobre a coisa.<br />

Compreendida a propriedade como um conjunto de atributos,<br />

concluímos que o direito que ela representa está, fundamentalmente,<br />

arraigado nesses mesmos atributos, ou seja, usar, gozar, dispor e<br />

reivindicar. Todavia, a realidade do mundo contemporâneo exige, do<br />

proprietário, um novo direcionamento no uso dos poderes que emanam do<br />

direito de propriedade. No nosso entendimento, o direito de propriedade<br />

81


assume a vertente do exercício de um direito contido no conjunto de<br />

poderes inerentes à propriedade.<br />

Esse conjunto de poderes está em sintonia com a realidade do Estado<br />

Social de Direito, que não mais permite o individualismo novecentista<br />

herdado da Revolução Francesa, assumindo uma vertente funcionalizada,<br />

calcada no emprego da propriedade em proveito próprio e do bem comum.<br />

O direito de propriedade é o direito sobre a coisa, que alguém<br />

adquire, a partir do momento em que passa a exercer atos de domínio, seja<br />

mediante o exercício da venda e compra, seja porque ao exercer atos de<br />

posse, esta foi judicializada pelos instrumentos conferidos pela lei, como<br />

por exemplo, a usucapião.<br />

No nosso entendimento, não há direito constitucional de aquisição da<br />

propriedade, como se poderia inferir do artigo 5º, inciso XXII da Carta<br />

Magna. Esta disposição estabelece: “é garantido o direito de propriedade”,<br />

atribuindo proteção jurídica, em nível constitucional, àquele que já tem o<br />

direito sobre a coisa. Por outro lado, a Constituição não garante o direito a<br />

aquisição da propriedade, mas sim confere proteção jurídica a quem já o<br />

tem e condiciona o seu exercício ao atendimento da cláusula da função<br />

social.<br />

Uma coisa é conferir direito de propriedade, por que isso todos tem,<br />

basta ter patrimônio para comprar e vender, outra é conferir direito à<br />

aquisição da propriedade. Isso porque, se o Estado confere direito à<br />

aquisição da propriedade, deve propiciar condições humanas para que o<br />

cidadão adquira a propriedade imobiliária.<br />

82


Nesse sentido, ainda que haja entendimento da doutrina autorizada,<br />

que possa se expressar de modo contrário, se o artigo 5º, inciso XXII da<br />

Constituição Federal confere direito de propriedade, ou seja, direito de<br />

alguém se tornar proprietário de alguma coisa, concluímos que se tornar<br />

proprietário de uma coisa é uma garantia constitucional, mas isso não quer<br />

dizer que há instrumentos legais, que possibilitem que essa garantir se torne<br />

eficaz.<br />

A garantia ao direito de propriedade se efetiva por meio de<br />

instrumentos de políticas públicas, que viabilizem a qualquer pessoa (física<br />

ou jurídica) se tornar proprietário da coisa.<br />

Se interpretarmos o artigo 5º, inciso XXII da Constituição Federal<br />

como direito à aquisição da propriedade, teremos o triste retrato da<br />

realidade nacional, de não haver instrumentos de aquisição da pequena<br />

propriedade familiar e rural.<br />

Se entendermos que a Constituição protege aquele que tem condições<br />

de adquirir a propriedade, nos parece, também, que estamos diante de uma<br />

situação tormentosa, porque, indiretamente, a Lei Maior afastou o cidadão,<br />

e todos aqueles que não têm os rendimentos necessários, da aquisição da<br />

propriedade privada.<br />

Se a Constituição confere direito à propriedade, então, parte-se da<br />

premissa de que esse direito protege aquele que já tem a coisa sob seu<br />

domínio, ou que mantém patrimônio suficiente para adquiri-la.<br />

83


Diferentemente, é não ter propriedade e nem recursos para adquiri-la.<br />

Quem não tem propriedade e nem reúne meios de adquirir não precisa de<br />

proteção, porque não há o que proteger.<br />

Essa questão, ao que me parece, não foi delineada na doutrina pátria<br />

e exige uma nova leitura dos comandos constitucionais, especialmente<br />

quanto à efetividade do direito de propriedade ou, como pretendemos, do<br />

direito à aquisição da propriedade.<br />

2.7. Regime jurídico da propriedade<br />

O regime jurídico da propriedade está relacionado ao regime político<br />

de um país, sendo que dependendo de tal regime, isto é, do modelo adotado,<br />

a propriedade assume os contornos jurídicos do sistema vigente, podendo<br />

ser privada ou socialista.<br />

Cármem Lúcia Antunes Rocha assegura que:<br />

“Direito de propriedade é o regime jurídico que incide<br />

sobre a propriedade, quer dizer, sobre a ligação havida<br />

entre o proprietário e o bem objeto submetido à sua<br />

vontade e disposição, nos termos juridicamente havidos<br />

como válidos.<br />

84


O que se denomina direito de propriedade, é, pois, um<br />

regime de direito, conjunto de deveres, direitos e<br />

responsabilidades decorrentes do uso (ou do não uso), do<br />

dispor ou do fruir de algo que se sujeita a uma destinação<br />

e que, afetando determinada finalidade havida como<br />

própria no sistema jurídico, há que se cumprir segundo os<br />

desígnios do proprietário e os ditames da norma<br />

jurídica”. 76<br />

Pontifica o professor Caio Mário da Silva Pereira:<br />

“O tempo atual tem-se marcado pelos desequilíbrios,<br />

incertezas e mutações. Alteram-se os regimes jurídicos e<br />

os regimes políticos, dançando da direita para a esquerda<br />

e da esquerda para a direita. A noção de contrato sofre<br />

sensível modificação, como reforçamento do primado da<br />

ordem pública sobre o princípio da autonomia da vontade.<br />

E como é natural, a propriedade recebe permanente<br />

impacto, que vai até a luta pela supressão do domínio<br />

individual, a que se contrapõe a resistência dos velhos<br />

conceitos. E conforme a influência do regime político<br />

sobre o modelamento da tipicidade dominial, o direito de<br />

nosso tempo conhece e disciplina a propriedade individual<br />

como padrão de direito subjetivo nos regimes capitalistas,<br />

e a ela se contrapondo e forcejando por lhe sobrepor a<br />

propriedade coletiva predominante especialmente no que<br />

concerne aos bens de produção, vigentes nos regimes<br />

socialistas e nas chamadas repúblicas populares”. 77 (sic)<br />

7676<br />

ANTUNES ROCHA, Carmem Lucia. O Princípio constitucional da Função social da Propriedade, in<br />

Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, editora Del Rey, nº 2 - jul/dez.200, Minas<br />

Gerais p. 549.<br />

77<br />

Instituições de Direito Civil, Editora Forense, 18ª edição, Rio de Janeiro, 2004, p. 83-84,<br />

85


O regime jurídico e político, que permeia as sociedades em várias<br />

épocas, é o fator responsável pelo avanço do instituto do direito de<br />

propriedade. Esse avanço reconhece, no regime jurídico, a adoção de um<br />

modelo para o instituto, consagrando a perspectiva política e ideológica<br />

imprimida em cada época.<br />

O mesmo autor expõe, em resumo, as várias correntes que explicam a<br />

configuração da propriedade nos dias atuais:<br />

A verdade é que a propriedade individual vigente em<br />

nossos dias, exprimindo-se embora em termos clássicos e<br />

usando-se a mesma terminologia, não conserva todavia<br />

conteúdo idêntico ao de suas origens históricas. É certo<br />

que se reconhece ao ‘dominus’ o poder sobre a coisa; é<br />

exato que o domínio enfeixa os mesmos atributos<br />

originários – ‘ius utendi, fruendi et abutendi’. Mas é<br />

inegável também que essas faculdades suportam evidentes<br />

restrições legais, tão freqüentes e severas, que se<br />

vislumbra a criação de novas noções. São restrições e<br />

limitações tendentes a coibir abusos e tendo em vista<br />

impedir que o exercício do direito de propriedade se<br />

transforme em instrumento de dominação. Tal tendência<br />

pra se diz ‘humanização’ da propriedade, ora se considera<br />

filiada a uma corrente mais ampla com o nome de<br />

‘paternalismo’ do direito moderno (Colin e Capitant), ora<br />

se entende informada a nova noção pelos princípios do<br />

‘relativismo’ do direito (Josserand). Outros acreditam que<br />

ai se instaura uma tendência à ‘socialização’ do direito ou<br />

socialização da propriedade, mas sem razão, porque a<br />

propriedade socializada tem características próprias e<br />

inconfundíveis com um regime em que o legislador<br />

imprime certas restrições à utilização das coisas em<br />

benefício do bem comum, sem, contudo atingir a essência<br />

do direito subjetivo, nem subverter a ordem social e a<br />

86


ordem econômica. Não obstante a luta das correntes<br />

contrárias – individualista e coletivista – sobrevive a<br />

propriedade, parecendo ter razão HEDEMANN quando<br />

assinala que é mais uma questão de limite, ou problema de<br />

determinar até que ponto a propriedade individual há de<br />

ser restringida em benefício da comunidade”. 78<br />

Qualquer que seja a teoria que se adote na atualidade a respeito da<br />

configuração da propriedade, parece oportuno lembrar que este instituto<br />

guarda os traços delineadores da propriedade privada, tal como concebida<br />

pelo direito romano e pelo Código de Napoleão. Mas, nem por isso se deve<br />

deixar de reconhecer que a configuração da propriedade, nos dias atuais,<br />

está, em verdade, em sintonia com os novos valores sociais, entre os quais,<br />

os valores voltados a uma solidariedade social, capaz de imprimir, no plano<br />

do direito positivo, uma nova linguagem ao direito de propriedade, como<br />

adiante se demonstrará.<br />

Assim, analisada a configuração da propriedade em seus contornos,<br />

entendemos, ressalvadas outras opiniões, entendemos que a propriedade, e o<br />

direito que dela decorre, está, na atualidade, consagrada pelas seguintes<br />

características: a) propriedade privada, como direito subjetivo; b)<br />

propriedade, função social; c) propriedade, fonte de riqueza (vetor da ordem<br />

econômica); d) propriedade, socialização do direito; e) propriedade,<br />

comando imperativo do Estado Social de Direito.<br />

78 Ibidem, p. 84-85.<br />

87


2.8. A propriedade e os novos valores sociais<br />

Por mais de dois mil anos de história da humanidade, falou-se em<br />

propriedade, como direito absoluto, posto que ela, sempre, guardou perfeita<br />

relação com o caráter próprio de seu termo e com o sentido de poder, que<br />

emana daquele que a possuía.<br />

A história dos últimos duzentos e dezoito anos, quando a Europa se<br />

viu, após a Revolução Francesa e Industrial, acometida de intensas lutas<br />

sociais, como, por exemplo, a luta dos trabalhadores, pelo reconhecimento<br />

de direitos sociais na Alemanha, na Itália e no México, e, por via oblíqua,<br />

do direito a propriedade privada, que despertou, nos juristas, uma releitura<br />

dos fenômenos sociais ligados à igualdade e à propriedade.<br />

É possível reconhecer a existência de novos valores sociais<br />

encartados nas constituições de vários países do mundo. Esses valores,<br />

como já se disse, advieram dos processos sociais. Sua importância está em<br />

reconhecer a existência, no plano do ordenamento jurídico, de uma<br />

solidariedade social, capaz de minimizar os reflexos perversos do sistema<br />

capitalista, que veio para ficar e não está com prazo de validade fixado.<br />

A propriedade, e os direitos que dela decorrem, sempre foi, na cultura<br />

do homem, o potencial necessário para a conquista do poder econômico.<br />

Como outrora foi demonstrado, sempre, o homem extraiu da terra o<br />

suficiente para sobreviver. O excedente foi usado para custear as épocas de<br />

88


entressafra e, mais adiante, possibilitar a troca e, conseqüentemente, gerar<br />

riquezas. Em regra, isso ocorreu em todo modelo de produção.<br />

Na Idade Média, a riqueza acumulada com a exploração da terra e a<br />

necessidade de empreender a cunhagem de moeda levaram o homem a<br />

desbravar os mares e a conquistar novos povos para, sobre eles, imprimir<br />

seu domínio, escravizando seus habitantes e explorando as propriedades. 79<br />

Esse fenômeno se arraigou e alcançou o ponto mais alto com a<br />

Revolução Francesa e a chegada da burguesia ao poder.<br />

A chegada da burguesia ao poder causou profundas desigualdades<br />

sociais, na medida em que o Estado não intervinha nas relações privadas. A<br />

ele não interessava reger as relações individuais, a fim de criar um<br />

contrapeso necessário a balancear tais relações, com vistas a uma igualdade<br />

nas relações jurídicas.<br />

Os novos valores sociais não surgem porque a burguesia é uma<br />

senhora boazinha que reconheceu a necessidade de acalentar seus servos.<br />

Eles são resultados do próprio inconformismo gerado pelas revoltas sociais,<br />

que surgiram, exatamente, em razão da opressão imprimida pela burguesia<br />

no meio rural, no meio urbano e nas fábricas.<br />

Era preciso que a burguesia desse uma resposta aos conflitos sociais,<br />

capaz de gerar mudanças no comportamento das pessoas, o que não foi<br />

fácil. A resposta não foi dada apenas pela burguesia, pois, na realidade,<br />

vários “ventos sopraram” e, sopraram de vários lados.<br />

79<br />

Foi o que ocorreu com Portugal no Brasil, com a Espanha na América Espanhola, com a Inglaterra na<br />

América do Norte, etc.<br />

89


No plano da filosofia, surge o idealismo de Karl Marx que não só fez<br />

uma releitura da evolução social e dos modelos de produção em várias<br />

épocas, mas, ainda, defendeu o fim da propriedade privada e pregou a sua<br />

submissão ao Estado.<br />

O pensamento de Karl Marx foi combatido pela Igreja Católica, que<br />

defendia a propriedade privada, como sendo o único direito natural do<br />

homem capaz de dar dignidade a pessoa humana. Com efeito, a Rerum<br />

Novarum, como adiante veremos, representou o marco inovador de uma<br />

nova ordem de pensamento, em torno das questões sociais, tais como a<br />

situação dos trabalhadores e a problemática da aquisição da propriedade<br />

privada. 80<br />

Os valores sociais se traduzem como marco representativo de uma<br />

época, em que não mais se permite o individualismo e a liberdade<br />

exacerbada. Esses novos valores sociais são os condicionadores da<br />

socialização do direito, que tem como elemento principal o bem comum.<br />

Assegura Guilherme José Purvin de Figueiredo:<br />

“A concepção de função social da propriedade está<br />

presente na filosofia positivista, que leva sempre o ponto de<br />

vista social em oposição à noção de direitos individuais. O<br />

80<br />

A propósito desse tema, leia-se a introdução à Carta Encíclica Rerum Novarum, por Igino Giordani,<br />

edições Paulinas, 14ª edição, 2004.,p. 5.<br />

90


conceito de função social da propriedade não guarda,<br />

porém qualquer afinidade com o pensamento socialista, seja<br />

na Obra de Comte, seja, na de Duguit. O cumprimento das<br />

funções sociais destina-se a pacificar relações sociais<br />

estabelecidas dentro de um sistema de rígida hierarquia e<br />

de perpetuação das desigualdades”. 81<br />

Léon Duguit defendia que a propriedade deixa de ser um direito<br />

meramente subjetivo para submeter-se a uma função social.<br />

2.9. Características dos direitos pessoais e reais<br />

Analisaremos a seguir as várias diferenças que se estabelecem entre o<br />

direito pessoal e o direito real.<br />

2.10. Diferença dos direitos pessoais para os direitos reais<br />

O direito das obrigações ou direitos pessoais possui características<br />

próprias, diferenciando-se dos direitos reais. O direito pessoal envolve duas<br />

pessoas, credor e devedor, que se relacionam em torno de um objeto, que é<br />

a prestação positiva ou negativa (dar, fazer ou não fazer), já o direito real<br />

diz respeito a uma coisa, a um objeto.<br />

78<br />

FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A Propriedade no Direito Ambiental. Adcoas, Rio de<br />

Janeiro, 2004, p. 71.<br />

91


O direito real é o conjunto de normas que regulam as relações<br />

jurídicas, que se estabelecem entre o titular e a coisa, bens materiais e<br />

imateriais, corpóreos e incorpóreos, que são suscetíveis de apreciação<br />

econômica.<br />

No ordenamento jurídico brasileiro, os direitos reais se apresentam<br />

numerus clausus, ou seja, seu rol é taxativo e encontra-se disciplinado pelo<br />

artigo 1225 do novo Código Civil e pela legislação extravagante.<br />

Outras diferenças existentes entre os direitos reais e pessoais são as<br />

que passamos a expor.<br />

No direito pessoal ou obrigacional, não há direito de seqüela, uma<br />

vez que a obrigação diz respeito apenas as pessoas do credor e do devedor,<br />

enquanto que, no direito real, o seu titular possui o direito de seqüela, isto é,<br />

pode reaver a coisa de quem a injustamente a possua ou detenha.<br />

Daí decorre que, enquanto o direito pessoal é oponível apenas entre<br />

as partes contratantes, não envolvendo terceiros, o direito real se reveste de<br />

oponibilidade erga omnes.<br />

Deste modo, o titular de um direito pessoal tem a sua disposição a<br />

ação de direito pessoal, ou seja, ação que visa buscar o ressarcimento de<br />

danos sofridos pelo credor contra o devedor, o que quer dizer que o sujeito<br />

de direito é só a pessoa lesada, não havendo uma coletividade subjetiva, e<br />

sim objetiva, em regra.<br />

92


A exceção, todavia, surgirá quando vários forem os credores e ou<br />

devedores na relação jurídica obrigacional, e ainda, nos casos em que<br />

houver uma coletividade indeterminada de pessoas como é o caso, por<br />

exemplo, dos direitos difusos e coletivos (art. 81, § único, Lei n o 8.078/90).<br />

Já o sujeito ativo no direito real é somente o seu titular, enquanto que<br />

o passivo é toda a coletividade, que deve zelar pelo direito do titular do<br />

direito real, não lhe prejudicando.<br />

Por fim, os direitos pessoais são infinitos, podendo, o credor e o<br />

devedor criar outras relações, além daquelas previstas em lei, ao contrário<br />

dos direitos reais, que são numerus clausus, ou seja, previamente<br />

estabelecidos e disciplinados em lei.<br />

Discorrendo sobre a taxatividade e a configuração dos direitos reais,<br />

o professor Arruda Alvim sustenta:<br />

“(....) essa configuração se encontra exaurientemente<br />

descrita na lei, e essa descrição é imutável, tendo sido<br />

tudo, portanto, estabelecido pelo legislador, diz-se que a<br />

definição é imutável porque não sofre, nunca, influência<br />

da realidade social, mas, ao contrário, o objetivo dos<br />

sistemas dos direitos reais é o de que a ele se submetam os<br />

negócios que se realizem; nunca o contrário. Tanto é<br />

assim que um instituto que, empiricamente, cai em desuso,<br />

v.g., como a enfiteuse, não vê sua estrutura e seu regime<br />

jurídico alterados, mas, apenas, deixa de ser utilizado;<br />

nada diferente disso”. 82<br />

82<br />

ARRU<strong>DA</strong> ALVIM NETTO, José Manoel de. Direitos Reais de Garantias Imobiliárias. In Coleção<br />

Estudos e Pareceres – II. Direito Privado, V. 1. Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2001, p. 185.<br />

93


Nestes termos é que podemos afirmar que os direitos reais são<br />

numerus clausus e se apresentam de forma taxativa na lei, não havendo<br />

como se admitir outro direito real fora da lei.<br />

2.11. Características do direito de propriedade<br />

Desde o início do presente trabalho, procuramos demonstrar as raízes<br />

do direito de propriedade, levando em consideração que esse direito sofreu<br />

profundas transformações ao longo da história. Com efeito, concebida como<br />

direito coletivo, a propriedade foi, com o tempo, se adequando à realidade<br />

social de cada cultura, guardando a personificação da realidade social e<br />

econômica pelas quais passaram as várias civilizações do mundo ocidental.<br />

Assim, desde o direito romano, a propriedade assumia as feições de um<br />

direito absoluto, porque seu titular gozava de certos poderes incidentes<br />

sobre a coisa e dela poderia livremente dispor. Nesse sentir, os poderes ou<br />

atributos primitivos do direito de propriedade eram o direito de usar, gozar<br />

e dispor da coisa, da forma como quisesse.<br />

Esses atributos eram verdadeiras prerrogativas do proprietário sobre a<br />

coisa, o que conduzia a assertiva de que, não havendo restrições quanto ao<br />

uso e disposição da propriedade, seu titular era uma espécie de general da<br />

coisa, exercendo sobre ela todo o comando suscetível de assenhoramento,<br />

controle e disposição.<br />

94


É bem verdade que esses atributos, que se personificaram no direito<br />

de propriedade desde o direito romano, ganharam outros contornos na Idade<br />

Média e na Idade Moderna, como, anteriormente, explicitado. Porém, é<br />

bem certo que esses atributos foram recuperados, com o advento do Código<br />

Civil francês e com a Carta Política de Napoleão Bonaparte, datada de<br />

1789, fazendo ressurgir os mesmos poderes que a propriedade tinha<br />

antigamente, só que, dessa vez, com mais intensidade. Diz-se com mais<br />

intensidade porque o instituto, para a época da edição do Código Civil<br />

francês, já guardava a experiência histórica de um direito absoluto.<br />

Esse panorama histórico, já traçado, é importante para compreender<br />

as características da propriedade no plano normativo e extrair os novos<br />

elementos que o instituto incorporou, no limiar do século XX.<br />

Seguindo o panorama do Código de Napoleão, o direito brasileiro,<br />

em especial, o direito de propriedade abraçou o ideário de liberdade e o<br />

individualismo, que nortearam o Código francês, imprimindo ao direito de<br />

propriedade, o caráter de direito absoluto.<br />

Nosso Código Civil de 1916 importou do Código francês as<br />

características e atributos que a lei consolidou, como sendo absolutos, ao<br />

preceituar no antigo artigo 524:<br />

“Art. 524. A lei assegura ao proprietário o direito de usar;<br />

gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de<br />

quem quer que injustamente os possua”.<br />

95


Esses direitos, inerentes ao proprietário, são conferidos, no exato<br />

instante em que adquire a coisa.<br />

O novo Código Civil, Lei 10406 de 10 de janeiro de 2002, manteve<br />

as mesmas características e atributos do direito de propriedade consagrados<br />

com o Código de Napoleão, ou seja, o usar, gozar, dispor e reivindicar,<br />

conforme se depreende do caput do artigo 1228:<br />

“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar<br />

e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem<br />

quer que injustamente a possua ou detenha”.<br />

Entretanto, há outros dispositivos no Código Civil em vigor a indicar<br />

que a lei recepcionou o fenômeno constitucional da função social da<br />

propriedade, que adiante analisaremos.<br />

2.12. Características dos direitos reais<br />

Os direitos reais possuem as seguintes características: a)<br />

legalidade/tipicidade (artigo 674, do Código Civil de 1.916 e artigo 1225 do<br />

Código Civil de 2.002); b) oponibilidade erga omnes; b) seqüela (decorre<br />

da aderência); c) preferência; c) numerus clausus; d) publicidade e e)<br />

perpetuidade.<br />

96


a) legalidade/tipicidade (artigo 674, do Código Civil de 1916 e artigo 1225<br />

do Código Civil de 2002).<br />

Para que haja direitos reais há que haver um rol previsto em lei, como<br />

se depreende do artigo 1225 do Código Civil. Com efeito, não há direito<br />

real fora do ordenamento jurídico. Fala-se, portanto, em princípio da<br />

tipicidade dos direitos reais.<br />

O artigo 1227 do Código Civil, por sua vez, assim dispõe,<br />

“Art. 1227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos,<br />

ou transmitidos por atos inter vivos, só se adquirem com o<br />

registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos<br />

títulos (artigo 1245 a 1247), salvo os casos expressos neste<br />

Código”.<br />

Assim, subjacente ao princípio da tipicidade está outro princípio, o<br />

princípio da publicidade dos direitos reais, ou seja, só há direito real quando<br />

este estiver inscrito na certidão de registro de imóveis, de onde decorre a<br />

titularidade da coisa. Esse artigo estabelece a forma como os bens imóveis<br />

são adquiridos.<br />

De acordo com os ensinamentos de Arruda Alvim:<br />

97


“Quando o texto se utiliza da expressão ‘constitutídos’<br />

(artigo 1.226), esta não significa, ainda, a<br />

constitutividade decorrente do registro, o que, de resto,<br />

decorre do próprio artigo 1.226. A constitutividade que<br />

deflui do registro está prevista na frase ‘só se adquirem<br />

os [direitos reais] com o registro no Cartório de<br />

Registro de Imóveis dos referidos títulos’,(...)”. 83<br />

O entendimento desse autor é de que os direitos reais somente<br />

resultam adquiridos com o registro que é constitutivo e é por sua causa que<br />

decorre a publicidade. 84<br />

2.13. Publicidade<br />

Vale acrescentar que a propriedade sobre os bens imóveis se adquire,<br />

após registro no Cartório de Registro de Imóveis, enquanto que a<br />

propriedade dos bens móveis, se transfere pela tradição, ou seja, com a<br />

transmissão física da coisa ao novo titular.<br />

A publicidade da propriedade é a marca do direito real, nela reside<br />

outro princípio ou característica, que é o efeito erga omnes, de modo que o<br />

proprietário pode se opor contra todos. Destarte, há que haver publicidade<br />

para tornar a coisa oponível a terceiros, o que não ocorre com os bens<br />

83 O Livro do Direito das Cosias. Obra Inédita.<br />

84 Ibidem.<br />

98


móveis, na medida em que estes exigem, apenas, a posse física da coisa<br />

para se operar a propriedade.<br />

2.14. Numerus clausus<br />

No âmbito dos direitos reais, em razão de sua estrutura e<br />

incorporação na ordem jurídica, importa reconhecer que há um rol taxativo<br />

de direitos reais, de nodo que não se pode conceber que outros direitos reais<br />

possam existir fora do ordenamento.<br />

Nesse particular, o Código Civil de 1916, inscrevia no artigo 674, os<br />

seguintes direitos reais: a propriedade; enfiteuse; as servidões; o usufruto; o<br />

uso; a habitação; as rendas expressamente constituídas sobre imóveis; o<br />

penhor; a anticrese; a hipoteca. Tal disposição foi alterada pelo Código<br />

Civil de 2002, artigo 1225 que prevê como direitos reais: I- a propriedade;<br />

II- a superfície; III- as servidões; IV- o usufruto; V – o uso; VI- a habitação;<br />

VII- o direito do promitente comprador; VIII- o penhor; IX- a hipoteca; - X-<br />

a anticrese.<br />

Decorre do artigo 1225 do Código Civil de 2002 que o rol dos<br />

direitos reais inseridos naquela disposição é taxativo, sendo certo que os<br />

direitos reais reconhecidos pelo ordenamento jurídico se exaurem no plano<br />

do Código Privado e da legislação extravagante.<br />

99


2.15. Oponibilidade erga omnes<br />

A oponibilidade erga omnes é a faculdade, de que dispõe o titular da<br />

coisa, de se opor contra quem quer que injustamente a detenha. Vale dizer,<br />

toda a coletividade pode sofrer os efeitos da oposição do titular do direito.<br />

Lembra com discernimento Arruda Alvim:<br />

“Todo o regime jurídico dos direitos reais é construído a<br />

partir dessa caracterização como direito absoluto, e, por<br />

isso mesmo, ao direito real agrega-se instrumental para<br />

efetivar-se essa validade e eficácia erga omnes. É<br />

necessário distinguirem-se as situações de direitos reais<br />

imobiliários dos mobiliários, considerando-se as<br />

peculiaridades da situação de uns e de outros”. 85<br />

Assim, aquele que tem o direito de propriedade tem, por conseguinte,<br />

o direito de usar, gozar, dispor e reivindicar, exigindo da coletividade, que<br />

se abstenha da prática de qualquer ato que impossibilite o titular de exercer<br />

esses direitos.<br />

85 Ibidem.<br />

100


2.16. Seqüela<br />

Ao contrário dos direitos pessoais ou obrigacionais, que se<br />

apresentam como uma infinidade de direitos, já que emanam da declaração<br />

de vontade unilateral ou bilateral das partes contratantes, da lei ou do ato<br />

ilícito, os direitos reais apresentam-se como direitos limitados a uma<br />

exposição taxativa, previamente estabelecida em lei, sendo que não podem<br />

ser criados pela vontade das partes.<br />

O direito de seqüela impõe à coletividade o dever jurídico de se<br />

abster da prática de qualquer ato que possa impedir o proprietário de<br />

usufruir dos direitos inerentes à coisa. Todavia, não se pode dizer o mesmo<br />

dos direitos obrigacionais, porque as obrigações, decorrentes da relação<br />

jurídica, dizem respeito às partes, via de regra, não atingindo terceiros, ou<br />

seja, aqueles que não participam da relação jurídica havida entre as partes.<br />

A seqüela é, por outro lado, o direito que tem o titular da coisa, de ir<br />

buscá-la de quem quer que, injustamente, a detenha, sendo que, se alguém<br />

houver ocupado a coisa móvel ou imóvel, poderá, o proprietário ou seu<br />

possuidor, usar das medidas legais, para o fim de resgatá-la. 86<br />

86<br />

É o caso, por exemplo, do proprietário que sai de sua casa e, ao chegar, horas ou dias após, encontra<br />

invasores dentro do imóvel. Essa situação pode ser repelida, por meio de ação de reintegração de posse,<br />

em que o proprietário requer liminarmente a saída dos invasores do prédio.<br />

101


2.17. Preferência<br />

A preferência é um das características mais importantes dos direitos<br />

reais, uma vez que, por meio dela, seu titular se encontra em situação mais<br />

vantajosa do que as demais pessoas ou credores, quando da realização de<br />

um negócio jurídico.<br />

No entanto, é importante frisar que a Lei de Recuperação de<br />

Empresas (Lei 11.101 de 9 de fevereiro de 2005) estabelece que há créditos<br />

que preferem, em certa escala, ao direito dos credores comuns, dentre os<br />

quais, nos termos do artigo 83, inciso II, os créditos com garantia real, até o<br />

limite do valor do bem gravado.<br />

Esse inciso II há de ser compreendido de acordo com o § 1º do artigo<br />

83 da Lei 11.101/05, que exige que o valor do bem, objeto de garantia real,<br />

deve ser aquele, efetivamente, arrecadado com a venda do mesmo. Esse<br />

direito que é um direito pessoal, mas com garantia real, porquanto é um<br />

crédito do sócio, prevalece em face do direito real.<br />

Há que ser lembrado também que o artigo 186 do Código Tributário<br />

Nacional prevê que o crédito tributário prefere a qualquer outro,<br />

independentemente de sua natureza, ao tempo da sua constituição.<br />

Assim, está claro que em regra o direito real tem preferência a<br />

qualquer outro direito, mas esta regra pode ser superada quando uma lei<br />

especial tratar diferentemente, como é caso dos direitos de créditos acima<br />

apontados.<br />

102


O direito de preferência está presente nos direitos reais de garantia<br />

como o penhor, a hipoteca e a anticrese.<br />

O penhor é o direito real de garantia em que a pessoa, capaz de<br />

alienar, entrega ao credor, no ato de contrair a dívida, coisa móvel alienável,<br />

a ser-lhe restituída ao saldar a obrigação. 87 Vale lembrar, no entanto, que<br />

isso é o que ocorre com o penhor comum, instituto de direito civil, que não<br />

se confunde com a penhora, porque esta é instituto de direito processual<br />

civil, por meio do qual, o devedor, demandado em regular processo de<br />

execução, tem seus bens expropriados por força de mandado judicial.<br />

A hipoteca é o direito real, constituído em favor do credor, sobre<br />

coisa imóvel do devedor, ou de terceiro, tendo por fim sujeitá-la,<br />

exclusivamente, ao pagamento da dívida, sem, todavia, tirá-la da posse do<br />

dono. 88<br />

A anticrese é uma modalidade de direito real de garantia, em que o<br />

devedor, entregando ao credor um imóvel, dá-lhe a perceber, em<br />

compensação da dívida, os frutos e rendimentos. 89<br />

Junior:<br />

Já a preferência consiste segundo a lição de Luiz Antônio Scavone<br />

87<br />

Dicionário Jurídico. Academia Brasileira de Letras Jurídicas. 2ª edição, Forense Universitária, 1989, p.<br />

412.<br />

88<br />

FRANÇA, Rubens Limongi de. Instituições de Direito Civil, 5ª edição, 1999. editora Saraiva, p. 522.<br />

89<br />

SIDOU. Othon. Dicionário Jurídico. Academia Brasileira de Letras Jurídicas, p. 42.<br />

103


2.18. Perpetuidade<br />

"No privilégio de se obter o pagamento de uma dívida com<br />

os frutos ou valor de um bem especialmente destinado à<br />

sua satisfação na constituição da obrigação". 90<br />

A perpetuidade é característica imprescindível no âmbito do direito<br />

de propriedade. É uma das garantias de que o proprietário não perderá a<br />

titularidade do bem, em caso de ausência de uso. Vale dizer que o<br />

proprietário só perde a titularidade da coisa em casos de abandono,<br />

devidamente comprovado, renúncia, usucapião e desapropriação.<br />

Na prática, ainda que por poucas vezes, vemos casos em que o<br />

proprietário de imóveis celebra contrato de comodato, conferindo ao<br />

comodatário, por certo prazo, o uso de um imóvel e este vem, no futuro, a<br />

demandar o comodante, em ação de usucapião, pleiteando a propriedade do<br />

imóvel. 91<br />

90<br />

SCAVONE JUNIOR. Luiz Antonio. Direito das Obrigações - Abordagem Didática, Editora Juarez de<br />

Oliveira, 3ª edição, 2.002, p. 20.<br />

91<br />

Neste caso, pode o comodante demonstrar judicialmente que há um contrato de comodato ajustado entre<br />

as partes, o que impossibilita o reconhecimento do pedido da parte demandante.<br />

104


2.19. Localização do direito de propriedade no Direito Civil<br />

O direito de propriedade está situado no Código Civil, no Livro III<br />

(Direito das Coisas), Título III. Dito isso, é importante traçar,<br />

historicamente, como se deu, no mundo moderno, em especial, a partir da<br />

Revolução Francesa, a personificação e a estratificação da propriedade, e,<br />

para compreender essa situação, é mister, trazer à baila à importância dos<br />

direitos das coisas ou direitos reais, nesse cenário.<br />

É importante frisar que os direitos reais também regulam a<br />

titularidade dos bens e das coisas pertencentes às pessoas. O direito das<br />

coisas está afeto aos direitos mobiliários e imobiliários.<br />

Leciona o Professor Arruda Alvim<br />

“Do ponto de vista da estrutura normativa, os direitos<br />

reais se conservaram como os mais homogêneos possíveis<br />

dos direitos civis, como por exemplo, na Alemanha, na<br />

Itália, na França, em Portugal e no Brasil. Há nisso, uma<br />

estratificação histórica dos direitos das coisas e, portanto,<br />

do direito de propriedade”. 92<br />

92<br />

ARRU<strong>DA</strong> ALVIM NETTO, José Manoel de.Teoria Geral dos Direitos Reais. Aula proferida na<br />

Faculdade Autônoma de Direito – <strong>Fadisp</strong> – 26-09-2005.<br />

105


No sentir desse jurista:<br />

“O Direito das Coisas sofreu profunda influência<br />

ideológica com a Revolução Francesa, onde a burguesia,<br />

habitante das cidades, promoveu a Revolução e, foi<br />

exatamente, com esta revolução que a classe burguesa<br />

enriqueceu e assumiu o poder”. 93<br />

Importa esclarecer que a burguesia, desde as cruzadas e com as<br />

grandes navegações marítimas, sonhava com a tomada do poder, tanto na<br />

França, como nos demais países da Europa e demais civilizações mundo<br />

afora. Com a Revolução Francesa, o sonho da burguesia, de chegar ao<br />

poder, se tornou realidade e a tão sonhada liberdade vêm à tona com o<br />

engendramento e o surgimento de um tecido social, capaz de impor sua<br />

vontade no plano do contrato e a partir dele, impor seu domínio e seu<br />

modelo de legislação civil, além das fronteiras do território francês.<br />

Com a Revolução, surge uma tríade ideológica que será a base<br />

filosófica, não só da revolução e do assentamento do poder, mas também do<br />

âmbito social, econômico e político.<br />

Nesse sentido, a liberdade, a igualdade e a solidariedade que<br />

formaram a tríade propulsora da grande revolução, constituíram os pilares<br />

do novo regime imposto por Napoleão Bonaparte, servindo, especialmente,<br />

à propriedade e ao contrato.<br />

93 ARRU<strong>DA</strong> ALVIM NETTO, José Manoel de. Teoria Geral dos Direitos Reais, mesma aula.<br />

106


leciona:<br />

Esta temática é tratada, com profundidade, por Arruda Alvim, que<br />

“Deve-se dizer que na base da Revolução Francesa se<br />

encontravam os seguintes emblemas: liberdade, igualdade<br />

e fraternidade. Penso que a fraternidade jamais foi<br />

operada no plano histórico, como também tenho sinceras<br />

dúvidas de que a solidariedade, de que se fala hoje possa<br />

vir a frutificar, ao menos na escala em que se espera.<br />

De qualquer forma, ficando com as noções de igualdade e<br />

liberdade, devemos dizer que é constante, na literatura dos<br />

séculos XIV, XV e XVI, a identificação do direito a<br />

liberdade, como tendo, necessariamente, subjacente a<br />

noção de propriedade”. 94<br />

Com isso, podemos dizer que tanto a liberdade, quanto a igualdade,<br />

foram bem aproveitadas pela burguesia, constituindo-se a base ideológica<br />

para se chegar ao poder, ao passo que a solidariedade sempre se manteve, e<br />

se mantém, ainda nos dias de hoje, como um ideário figurativo.<br />

A propriedade, para a burguesia, representava a liberdade, e na<br />

medida em que se tinha a propriedade, aparecia a noção de igualdade.<br />

Há que se lembrar que a solidariedade nunca foi, realmente,<br />

implementada pela burguesia francesa e as posteriores, quer lá ou cá,<br />

exatamente, porque nunca foi do feitio da burguesia fazer concessões às<br />

camadas mais humildes da sociedade em todas às épocas.<br />

94<br />

ARRU<strong>DA</strong> ALVIM NETTO, José Manoel de. Principais Controvérsias no Novo Código Civil. Função<br />

Social da Propriedade, Editora Saraiva, São Paulo, 2006. p. 18.<br />

107


Vale dizer que com a Revolução Francesa o direito de propriedade,<br />

principal direito real, ganha contornos de inviolabilidade, todavia, essa<br />

rigidez vai, com o passar do tempo, sendo funcionalizada. Tal<br />

funcionalização ocorreu com a passagem do Estado Liberal de Direito para<br />

o Estado Social de Direito, que adiante, no capítulo III, será objeto de breve<br />

análise.<br />

2.20. Teorias que explicam o direito de propriedade<br />

Em sua configuração histórica, a propriedade é fundamentada e<br />

justificada, com base em várias teorias. São elas: a) Teoria da ocupação; b)<br />

Teoria da lei; c) Teoria da especificação; d) Teoria da natureza humana.<br />

a) Teoria da ocupação – segundo esta teoria, a propriedade é<br />

justificada pela ocupação de coisas não apropriadas, por quem quer que<br />

seja, alarga o domínio do homem sobre a natureza em valor econômico e<br />

cultural, enriquecendo desse modo o patrimônio da nação. 95<br />

Esta teoria é criticada pelos civilistas, pois a mera ocupação não pode<br />

gerar direito de propriedade, na exata medida em que ela afirma apenas um<br />

fato que, no entanto, precisa de lei que estabeleça previamente a aquisição<br />

da propriedade. Sendo assim, entendo que a mera ocupação, desde que com<br />

95<br />

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Direito das Cosias, Vol. 3, São Paulo:<br />

Editora Saraiva, 37ª edição, 2003, p.77.<br />

108


o animus definitivo, ou seja, de assenhoramento conduz a aquisição da<br />

propriedade por meio da usucapião, bastando que, em cada caso, o ocupante<br />

preencha os requisitos que a lei exige para cada modalidade de usucapião.<br />

Dissertando sobre as críticas à teoria da ocupação, assegura o<br />

professor Washington de Barros Monteiro:<br />

“A propriedade só pode surgir sob o império de legislação<br />

que já pressuponha a propriedade individual, que a<br />

organize devidamente e inclua a ocupação entre os<br />

respectivos modos de adquiri-la. A ocupação, modo de<br />

adquirir a propriedade, não basta assim para justificar o<br />

direito de propriedade, porque os modos de adquirir um<br />

direito necessariamente pressupõe a preexistência desse<br />

direito, capaz de ser adquirido por um daqueles meios.<br />

Ademais basta olhar para as adjacências para que nos<br />

persuadamos de que muitas das atuais propriedades não<br />

se originam de ocupações primitivas, sendo fruto,<br />

inúmeras vezes, da violência, que assim interrompe a série<br />

de transmissões regulares”. 96<br />

Em regra, com base nessa teoria, poder-se-ia dizer que a ocupação<br />

não gera, por si só, o direito a propriedade, que precisa, sobremaneira, de<br />

disposição legal capaz de prever os modos, pelos quais a propriedade é<br />

adquirida. Foi sublinhado, anteriormente, que se o ocupante mantiver a<br />

posse da coisa com aninus de assenhoramento, começará a contar o prazo, a<br />

seu favor, para aquisição da propriedade.<br />

96 Ibidem.,p.77-78.<br />

109


) Teoria da Lei – de acordo com esta teoria, a propriedade existe<br />

porque a lei a criou e a estabeleceu previamente.<br />

Está no ordenamento jurídico positivado, o fundamento da existência<br />

da propriedade, que brota da força jurígena, capaz de assegurar, ao<br />

proprietário, os atributos que dela decorrem.<br />

c) Teoria da especificação – esta teoria foi elaborada pelos<br />

economistas e prega que a propriedade não é simples apropriação da coisa<br />

ou do objeto da natureza que, necessariamente, deve se submeter ao<br />

domínio do homem.<br />

Com efeito, sua transformação, por meio da forma dada à matéria<br />

bruta pelo trabalho humano, criador único de bens, constituindo-se título<br />

legítimo para a aquisição da propriedade. 97<br />

d) Teoria da natureza humana – de acordo com esta teoria, a<br />

propriedade é inerente à própria natureza humana, representando condição<br />

de existência e de liberdade de todo o homem”. 98<br />

Esta teoria se apresenta, na realidade, muito próxima da visão da<br />

Igreja Católica acerca da propriedade. Com efeito, a Rerum Novarum,<br />

documento eclesiástico do século XIX, traduziu para a realidade dos<br />

trabalhadores de sua época, a necessidade de se assegurar ao homem o<br />

direito a propriedade privada, a partir da concepção de que ela é um direito<br />

97 Ibidem,. p.78.<br />

98 Ibidem, p.79.<br />

110


divino, e, nesse sentido, o trabalhador, tendo acesso à propriedade, tira dela<br />

os frutos necessários ao sustento próprio e da família.<br />

Esta Encíclica explica a razão da existência da propriedade afirmando<br />

que a propriedade é conforme a natureza.<br />

Segundo este documento:<br />

“A terra, sem dúvida, fornece ao homem com abundância<br />

as coisas necessárias para a conservação da sua vida e<br />

ainda para o seu aperfeiçoamento, mas não poderia<br />

fornecê-las sem a cultura e sem os cuidados do homem”. 99<br />

Nesse sentido, me parece que das quatro teorias desenvolvidas a que<br />

está em sintonia com o instituto da propriedade e seu conseqüente<br />

fundamento é a teoria da natureza humana da propriedade.<br />

2.21. Natureza jurídica da propriedade<br />

A natureza jurídica da propriedade está relacionada ao seu<br />

fundamento e às teorias anteriormente expostas, ou seja, ela é justificada<br />

pela própria existência do homem na natureza.<br />

99<br />

PIO XIII, Papa. Carta Apostólica Encíclica Rerum Novarum. Edições Paulinas, 14ª edição, São Paulo,<br />

2004., p. 15.<br />

111


2.22. A propriedade privada e a propriedade pública<br />

Quando se fala em propriedade, devemos reconhecer a existência não<br />

apenas de uma propriedade, mas de várias propriedades, como adiante se<br />

verá.<br />

Para o que nos interessa no presente momento, ou seja, a<br />

configuração da propriedade no plano do ordenamento jurídico, é imperioso<br />

reconhecer, por hora, a existência, ao menos, de duas propriedades, a<br />

propriedade privada e a propriedade pública.<br />

De acordo com Pontes de Miranda:<br />

“A propriedade, conforme seja destinada à satisfação<br />

preferente de interesses dos particulares, ou seja à<br />

satisfação preferente de interesses públicos, diz-se privada<br />

ou pública”. 100 (sic).<br />

A propriedade privada é aquela que está voltada para o indivíduo que<br />

é o titular dos direitos nelas inerentes. Ao contrário, a propriedade pública<br />

está voltada para atender às finalidades sociais e, portanto, da coletividade.<br />

100<br />

PONTES DE MIRAN<strong>DA</strong>, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Vol. XI, Editor Borsoi, 2ª<br />

edição, Rio de Janeiro, p. 10..<br />

112


De acordo com Silvio Luís Ferreira da Rocha:<br />

“O conteúdo excludente da propriedade privada não se<br />

repete na propriedade pública. A propriedade pública<br />

apresenta conteúdo inclusivo, pois o fato de tratar-se de<br />

bem público (res pública) impede, como regra, o uso<br />

exclusivo, e o torna o bem compartilhado ou<br />

compartilhável.” 101<br />

Esse autor assegura que:<br />

“(....) os bens públicos, são, na sua maioria, destinados ao<br />

uso comum do povo e ao uso especial. Assim, apenas os<br />

bens dominicais podem, em tese, ser utilizados<br />

exclusivamente pelo ente público, muito embora o fato de<br />

serem públicos basta para impedir o uso egoístico”. 102<br />

E mais adiante, considera:<br />

“O segundo ponto da divergência encontra-se na livre<br />

disposição da propriedade privada em contraposição ao<br />

fato de a disposição da propriedade pública não ser livre,<br />

mas sempre vinculada a uma finalidade pública.<br />

101<br />

ROCHA, Silvio Luiz Ferreira. Função Social da Propriedade Pública. Editora Malheiros, São Paulo,<br />

2005. p. 69.<br />

102<br />

Ibidem. p. 69.<br />

113


A propriedade privada contempla a livre disponibilidade<br />

do bem pelo proprietário, que o pode alienar a título<br />

gratuito e oneroso, ou fazer recair sobre ele o ônus que<br />

preferir. O mesmo não ocorre com a propriedade pública.<br />

A disponibilidade do bem só é possível se alcançar<br />

interesse público predisposto na norma jurídica, como<br />

prevê o art. 17 da Lei n. 8.666 ao estatuir que a alienação<br />

de bens da Administração Pública, subordinada à<br />

existência de interesse público devidamente justificado,<br />

será precedida de avaliação (....)” . 103<br />

Feitas tais distinções, adiante se demonstrará que a Constituição<br />

Federal e a lei infraconstitucional (Código Civil) garantem o direito à<br />

propriedade privada. É mister consignar que tanto a propriedade pública<br />

quanto a propriedade privada devem atender a uma função social, dentro de<br />

um novo modelo ou linguagem jurídica do direito de propriedade.<br />

De outro lado, em relação à propriedade pública, importa reconhecer<br />

que esta se apresenta de modo muito mais amplo do que a propriedade<br />

privada, porquanto seu regime jurídico é de direito público e sua vertente<br />

está, como já se disse, em atender as finalidades sociais e, portanto, da<br />

coletividade. É a própria Constituição Federal quem reconhece a existência<br />

de propriedades públicas, em que os entes públicos mantém a titularidade, o<br />

domínio, uso, gozo e disposição. 104<br />

103<br />

Ibidem.,p.69.<br />

104<br />

Art. 20. São bens da União: - I - os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos;<br />

- II - as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares,<br />

das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei; - III - os lagos, rios e<br />

quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de<br />

limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os<br />

terrenos marginais e as praias fluviais; - IV as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros<br />

países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede<br />

114


No âmbito do direito privado, há, também, expressa previsão da<br />

propriedade pública. Com efeito, o Direito Civil trata os vários tipos de<br />

bens estatuídos entre os artigos 98 a 103, como sendo bens público. 105<br />

José Afonso da Silva leciona:<br />

“Qualquer bem pode ser de propriedade pública, mas há<br />

certas categorias que são por natureza destinadas à<br />

apropriação pública (vias de circulação, mar territorial,<br />

terrenos da marinha, terrenos marginais, praias, rios,<br />

de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as<br />

referidas no art. 26, II;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 46, de 2005) - V - os recursos<br />

naturais da plataforma continental e da zona econômica exclusiva;<br />

VI - o mar territorial; - VII - os terrenos de marinha e seus acrescidos; - VIII - os potenciais de energia<br />

hidráulica; - IX - os recursos minerais, inclusive os do subsolo; - X - as cavidades naturais subterrâneas<br />

e os sítios arqueológicos e pré-históricos; - XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. - § 1º -<br />

É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos<br />

da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de<br />

recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo<br />

território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação<br />

financeira por essa exploração. - § 2º - A faixa de até cento e cinqüenta quilômetros de largura, ao longo<br />

das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada fundamental para defesa do<br />

território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei.<br />

Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados: I - as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes,<br />

emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União; -<br />

II - as áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem no seu -domínio, excluídas aquelas sob<br />

domínio da União, Municípios ou terceiros; - III - as ilhas fluviais e lacustres não pertencentes à União;<br />

- IV - as terras devolutas não compreendidas entre as da União.<br />

105<br />

Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público<br />

interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.<br />

Art. 99. São bens públicos: I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças; II<br />

- os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da<br />

administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; III - os<br />

dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito<br />

pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. - Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário,<br />

consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha<br />

dado estrutura de direito privado. Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso<br />

especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar. Art.<br />

101. Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei. Art. 102. Os<br />

bens públicos não estão sujeitos a usucapião. Art. 103. O uso comum dos bens públicos pode ser<br />

gratuito ou retribuído, conforme for estabelecido legalmente pela entidade a cuja administração<br />

pertencerem.<br />

115


Bastos:<br />

lagos, águas de modo geral etc), porque são bens<br />

predispostos a atender o interesse público, não cabendo<br />

sua apropriação privada.” 106<br />

Quanto à amplitude do direito de propriedade, disserta Celso Ribeiro<br />

“(......) tornou-se necessário estender a mesma proteção,<br />

que, no início, só se conferia à relação do homem com as<br />

coisas, à titularidade da exploração de inventos e criações<br />

artísticas de obras literárias e até mesmo direitos em geral<br />

que hoje não o são à medida que haja uma devida<br />

indenização da sua expressão econômica”. 107<br />

A referência exposta pelo autor se trata de proteção análoga, mas não<br />

da mesma e idêntica proteção por ele referida.<br />

No sentir desse jurista:<br />

“A propriedade tornou-se, portanto, o anteparo<br />

constitucional entre o domínio privado e o público. Nesse<br />

ponto reside a essência da proteção constitucional: é<br />

impedir que o Estado, por medida genérica ou abstrata,<br />

evite a apropriação particular dos bens econômicos ou, já<br />

106<br />

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27ª edição, Editora Malheiros, São<br />

Paulo, 2006,.p. 275.<br />

107<br />

BASTOS. Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, Editora Saraiva, 14ª edição, São Paulo,<br />

1992, p. 191-192.<br />

116


tendo esta ocorrido, venha a sacrificá-la mediante um<br />

processo de confisco”. 108<br />

Deve-se compreender que é a própria Constituição que assegura e<br />

protege o direito de propriedade. Antes do advento do constitucionalismo<br />

moderno, a propriedade era protegida apenas no âmbito do direito privado,<br />

o que levou o legislador a buscar discipliná-la da forma mais ampla<br />

possível, estabelecendo nortes diferentes entre a propriedade pública e a<br />

propriedade privada.<br />

Há que se compreender que tanto a propriedade privada, quanto a<br />

propriedade pública, deve coexistir em relação à respectiva função social,<br />

na medida em que uma não invalida a outra, ao contrário, no atual estágio<br />

da evolução normativa, para que a propriedade privada ou pública<br />

sobreviva, é inerente o atendimento da função social.<br />

Ditas essas poucas palavras, e, para efeito de melhor compreender as<br />

distinções entre a propriedade privada e a propriedade pública, traçamos<br />

resumidamente, os pontos que ressaltamos como os mais importantes.<br />

Na propriedade privada, podemos verificar as seguintes distinções: a)<br />

o uso da coisa é exclusivo do proprietário, bastando que atenda às restrições<br />

previstas em lei e o comando normativo finalista da função social da<br />

propriedade; b) o proprietário pode, livremente, dispor da coisa sob a qual<br />

mantém o domínio, ocasião em que pode aliená-la, a qualquer título<br />

(gratuito ou oneroso).<br />

108 Ibidem., p.192.<br />

117


Na propriedade pública podemos verificar as seguintes notas<br />

distintivas: a) a propriedade pública não é exclusiva, porquanto ela encerra<br />

com conteúdo dinâmico na medida em que inclui toda a coletividade e não<br />

há como individualizá-la; b) impossibilidade de disposição da coisa ou bem<br />

público, ressaltando, no entanto, o interesse público previamente<br />

predisposto na lei especial, como por exemplo, na Lei 8666 que trata da<br />

alienação de bens da administração pública.<br />

Por fim, na propriedade privada, como na propriedade pública, há,<br />

indelevelmente, o dever jurídico de ambas cumprirem a função social.<br />

2.23. Regime jurídico da propriedade privada e da propriedade pública<br />

A doutrina do Direito Civil pátrio sempre cogitou da propriedade<br />

como um instituto jurídico voltado para o Direito Privado, não concebendo<br />

a propriedade como um direito público, ou regrado por normas de direito<br />

público, cuja categoria se diferencia da privada.<br />

É possível compreender essa realidade, na medida em que a<br />

propriedade sempre foi concebida como um direito absoluto e representou o<br />

individualismo das várias sociedades, em várias épocas, no mundo<br />

ocidental.<br />

O professor José Afonso da Silva critica a posição dos civilistas e dos<br />

publicistas, que sempre defenderam que o regime jurídico da propriedade<br />

está afeto ao Direito Civil, expondo:<br />

118


“Os juristas brasileiros, privatistas e publicistas,<br />

concebem o regime jurídico da propriedade privada, como<br />

subordinado ao direito civil, considerando como um<br />

direito real fundamental. Olvidam as regras de direito<br />

público, especialmente, de Direito Constitucional, que,<br />

igualmente, disciplinam a propriedade. Só invocam as<br />

normas constitucionais para lembrar que a Constituição<br />

garante o direito de propriedade, que, assim se torna, em<br />

princípio intocável, salvo exceções intrinsecamente<br />

estabelecidas; e quando mencionam o princípio, também<br />

constitucional, da função social, só o fazem para justificar<br />

aquelas exceções limitativas, confundindo-o, ainda, com o<br />

poder de polícia – tanto que é corrente no ‘conjunto de<br />

condições que se expõe ao direito de propriedade a fim de<br />

que seu exercício não prejudique o interesse social’, mero<br />

conjunto de condições limitativa desse direito”. 109<br />

O renomado publicista pátrio sustenta:<br />

“Essa, é, porém, uma perspectiva dominada pela<br />

atmosfera civilista, que não leva em conta as profundas<br />

transformações impostas às relações de propriedade,<br />

sujeita, hoje, à estreita disciplina de direito público, que<br />

tem sua sede fundamental nas normas constitucionais.<br />

Pois, em verdade, o regime jurídico da propriedade tem<br />

seu fundamento na constituição. Esta garante o direito de<br />

propriedade, desde que atenda à sua função social (art. 5º,<br />

XXII e XXIII). A própria Constituição dá conseqüência a<br />

isso quando autoriza a desapropriação, com pagamento<br />

109<br />

SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro, Editora Malheiros, 4ª edição, são Paulo, 2006,<br />

p. 73. Veja-se ainda do mesmo auto, in Curso de Direito Constitucional Positivo, Ob. Cit. p. 272.<br />

119


mediante título da dívida pública, de propriedade que não<br />

cumpra sua função social (art. 182, § 4º, e 184)”. 110<br />

E continua esse professor:<br />

“Significa isso que o direito civil não disciplina a<br />

propriedade, mas tão-somente regula as relações civis a<br />

elas pertinentes. Assim, só valem no âmbito das relações<br />

civis as disposições do Código Civil que estabelecem as<br />

faculdades de usar, gozar e dispor de bens (art. 1.228), a<br />

plenitude da propriedade (art. 1.231), o caráter exclusivo<br />

e ilimitado da propriedade (art. 1.231) etc”. 111<br />

Mais diante, pontifica:<br />

110 Ibidem, p.73-74.<br />

111 Ibidem, p. 74.<br />

112 Ibidem, p. 122 e ss.<br />

“A doutrina tornara-se de tal modo confusa a respeito do<br />

tema, que acabara por admitir que a propriedade privada<br />

se configura sob dois aspectos: (a) como direito civil<br />

subjetivo e (b) como direito público subjetivo. Essa<br />

dicotomia fica superada com a concepção de que o<br />

princípio da função social (CF, art. 5º, XXIII) é um<br />

elemento do regime jurídico da propriedade; é, pois,<br />

princípio ordenador da propriedade privada, incide no<br />

conteúdo do direito de propriedade, impõe-lhe novo<br />

conceito”. 112<br />

120


Essa compreensão de propriedade, trazida pelo constitucionalista, nos<br />

dá a exata dimensão do novo perfil da propriedade nos dias atuais. Uma<br />

propriedade condizente com a realidade do mundo contemporâneo que<br />

confere o direito à aquisição da propriedade, mas exige do proprietário o<br />

atendimento da função social, tornando vetor de uma política pública de<br />

aquisição da propriedade privada ou pública, rural ou urbana, etc.<br />

Para concluir, a natureza jurídica da propriedade é pública,<br />

independentemente da propriedade ser pública ou privada, urbana ou rural,<br />

ou de qualquer outra espécie. Devemos compreender a propriedade como<br />

um direito assegurado no plano dos direitos individuais e, também, no plano<br />

dos direito coletivos.<br />

121


Capítulo III<br />

3. FUNÇÃO <strong>SOCIAL</strong> <strong>DA</strong> PROPRIE<strong>DA</strong>DE<br />

3.1. Introdução<br />

A partir deste capítulo trataremos do cerne desta dissertação, ou seja,<br />

da função social da propriedade. Para isso, exporemos, brevemente, aquilo<br />

que compreendemos sobre a função social do direito, procurando trazer<br />

elementos de ordem legal e doutrinária, bem como, expor alguns fenômenos<br />

contidos na história social do mundo contemporâneo, para esta questão, que<br />

reputamos emblemática, e sobre a qual repousa uma interpretação moderna<br />

sobre a função social do direito.<br />

3.2. A Doutrina da Função Social do Direito<br />

Não é tranqüila a resposta para as seguintes indagações: O que é<br />

função social do direito? Onde se originou essa concepção? Quais os<br />

elementos axiológicos e normativos que redundaram no engendramento<br />

dessa teoria de direito? Quais as perspectivas para a sociedade<br />

contemporânea?<br />

122


A doutrina da função social do direito teve início no século XX,<br />

especialmente, com o advento da Constituição mexicana de 1917 e,<br />

posteriormente, em 1919, com a Constituição alemã em Weimar.<br />

A constituição mexicana de 1917 representou, certamente, o marco<br />

inicial de uma nova cultura política e social do direito, porquanto inovou,<br />

no âmbito legislativo, criando uma nova vertente, a vertente social.<br />

Essa vertente social resultou das lutas sindicais desencadeadas<br />

naquele país, em razão da opressão imposta à classe trabalhadora pelo<br />

empresariado.<br />

A Carta Magna mexicana conferiu uma série de direitos<br />

fundamentais aos trabalhadores, entre os quais se destacam os direitos<br />

individuais e os direitos políticos.<br />

Em relação ao direito de propriedade, direito, essencialmente<br />

individual, a Constituição mexicana disciplina no artigo 27 que:<br />

“Art.27. A propriedade das terras e águas, compreendidas<br />

dentro dos limites do território nacional, pertence<br />

originalmente à Nação, a qual teve e tem o direito de<br />

transmitir o domínio delas aos particulares, constituindo<br />

assim a propriedade privada.<br />

As expropriações somente poderão fazer-se por causa de<br />

utilidade pública e mediante indenização.<br />

123


A Nação terá, a todo tempo, o direito de impor à<br />

propriedade privada as determinações ditadas pelo<br />

interesse público, assim como o de regular o<br />

aproveitamento de todos os recursos naturais suscetíveis<br />

de apropriação, com fim de realizar uma distribuição<br />

eqüitativa da riqueza pública, cuidar de sua conservação,<br />

alcançar o desenvolvimento equilibrado do país e o<br />

melhoramento das condições de vida da população rural e<br />

urbana. Com esse objetivo, serão ditadas as medidas<br />

necessárias para ordenar os assentamentos humanos e<br />

estabelecer adequadas previsões, usos, reservas e destinos<br />

de terras, águas e florestas, para efeito de executar obras<br />

públicas e de planejar e regular a fundação, conservação,<br />

melhoramento e crescimento dos centros de população;<br />

para preservar e restaurar o equilíbrio ecológico; para o<br />

fracionamento dos latifúndios; para dispor, nos termos da<br />

lei, sobre a organização e exploração coletiva dos ejidos e<br />

comunidades; para o desenvolvimento da pequena<br />

propriedade agrícola em exploração; para a criação de<br />

novos centros de povoamento agrícola com terras e água<br />

que lhes sejam indispensáveis; para o fomento da<br />

agricultura e para evitar a destruição dos recursos<br />

naturais e os danos que a propriedade possa sofrer em<br />

prejuízo da sociedade. Os núcleos de população que<br />

careçam de terras e água ou não as tenham em quantidade<br />

suficiente para as necessidades de sua população, terão<br />

direito de ser dotadas destas, tomando-as das<br />

propriedades próximas, respeitada sempre a pequena<br />

propriedade agrícola em exploração.”<br />

Como poderemos verificar, a noção de função social do direito foi<br />

consagrada na Constituição mexicana, nos direitos sociais do trabalho e no<br />

direito de propriedade, ambos direitos humanos fundamentais.<br />

124


O direito é humano e fundamental, porque, sem ele, não há como<br />

viver. A vida se torna possível ser sustentada, se há um trabalho digno e<br />

uma propriedade que viabilizem a que o homem, dela, possa extrair os bens,<br />

para sobreviver e estabelecer sua residência e moradia.<br />

No plano do direito de propriedade, a Constituição mexicana<br />

estabeleceu duas formas de propriedades, a propriedade da União e a<br />

propriedade privada. A propriedade da União é a propriedade originária e se<br />

compõe das terras e das águas existentes dentro do território nacional. Essa<br />

propriedade privada uma vez transferida ao particular, fez nascer a<br />

propriedade derivada e privada.<br />

A propriedade privada mexicana, havida como direito absoluto,<br />

esbarra numa nova concepção, a concepção socializada da propriedade, por<br />

que o Estado passa a disciplinar esse direito, a partir do interesse público.<br />

Há, portanto, um viés irremediavelmente superior ao interesse particular.<br />

Para que isso fosse possível, era mister que os grandes latifúndios<br />

cedessem lugar às pequenas propriedades privadas, além de garantir a<br />

produção dos bens de primeira necessidade.<br />

O estabelecimento de direitos sociais do trabalhador, na Constituição<br />

mexicana, se deve ao fato de que a exploração do homem no campo era a<br />

pedra angular da opressão daquela sociedade, já que os modelos de<br />

produção dos bens de consumo eram essencialmente agrícolas.<br />

125


Pontifica Fábio Konder Comparato:<br />

“O que importa, na verdade, é o fato de que a<br />

Constituição mexicana em relação ao sistema capitalista,<br />

foi a primeira a estabelecer a desmercantilização do<br />

trabalho, ou seja, a proibição de equipará-lo a uma<br />

mercadoria qualquer, sujeita à lei da oferta e da procura<br />

no mercado. Ela firmou o princípio da igualdade<br />

substancial de posição jurídica entre trabalhadores e<br />

empresários na relação contratual de trabalho, criou a<br />

responsabilidade dos empregadores por acidentes do<br />

trabalho e lançou, de modo geral, as bases para a<br />

construção do moderno Estado Social de Direito, e,<br />

portanto da pessoa humana, cuja justificativa se<br />

procurava fazer, abusivamente, sob a invocação da<br />

liberdade de contratar”. 113<br />

Portanto, a Constituição mexicana traduziu, para sua época, uma<br />

verdadeira revolução no plano normativo, dada a realidade axiológica. O<br />

contexto fático foi o elemento nuclear das transformações sociais, exigindo<br />

do Estado uma estrutura normativa que amparasse os trabalhadores. Isso se<br />

deu como vimos, no plano dos direitos individuais, como o trabalho, a<br />

saúde e a propriedade.<br />

Se a Constituição mexicana representou a ruptura de um modelo de<br />

Estado liberal, existente naquele país, não podemos esquecer do papel<br />

desempenhado pela Constituição alemã de 1919.<br />

113<br />

COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, Editora Saraiva, 4ª<br />

edição, São Paulo, 2005, p. 177.<br />

126


Devemos esclarecer que a Constituição de Weimar de 1919, fruto das<br />

lutas sociais enfrentadas pela sociedade alemã e que tem na classe operária<br />

sua maior realidade, foi o primeiro documento, na Europa, que impôs veto à<br />

atividade liberal exacerbada pelo liberalismo econômico clássico.<br />

É com a Constituição alemã de 1919 que nasce, no cenário europeu,<br />

o Estado Social de Direito. Esse modelo de Estado social cria, no direito<br />

constitucional, valores antes negados pelo liberalismo econômico.<br />

Embora o modelo de Estado social tenha sido implantado pela<br />

Constituição mexicana de 1917 e pela Constituição alemã de 1919, elas<br />

sofreram o duro golpe dos movimentos nazi-fascistas, que eclodiram, anos<br />

mais tarde, na Alemanha e na Itália e que trouxeram, para as sociedades<br />

modernas, o atraso na implantação do novo modelo de Estado, para o<br />

mundo todo.<br />

Explica Fábio Konder Comparato:<br />

114 Ibidem, p. 189-190.<br />

“A estrutura da Constituição de Weimar é claramente<br />

dualista: a primeira parte tem por objeto a organização do<br />

Estado, enquanto a segunda parte apresenta a declaração<br />

dos direitos e deveres fundamentais, acrescentando às<br />

clássicas liberdades individuais os novos direitos de<br />

conteúdo social” 114 .<br />

127


Explica esse autor que:<br />

“Essa estrutura dualista não teria minimamente chocado<br />

os juristas de formação conservadora, caso a segunda<br />

parte da Constituição de Weimar se tivesse limitado à<br />

clássica declaração de direitos e garantias individuais.<br />

Esses, com efeito, são instrumentos de defesa contra o<br />

Estado, delimitações do campo bem demarcado da<br />

liberdade individual, que os Poderes Públicos não estavam<br />

autorizados a invadir”. 115<br />

A Constituição alemã é a marca linear da estrutura política e<br />

ideológica de um novo Estado. Um Estado que se preocupa com os direitos<br />

sociais do cidadão, como o direito à saúde, à educação, ao trabalho, à<br />

previdência social, entre tantos outros. Nesse novo modelo de Estado, o<br />

homem e a mulher são colocados em pé de igualdade, isto é, não há um<br />

regime de subordinação.<br />

O profundo sentido social ficou registrado na Constituição de<br />

Weimar, pela disposição do art. 153, segunda alínea, no sentido de que “a<br />

propriedade obriga”. 116<br />

Com estas duas constituições, há, no nosso entendimento, uma<br />

ruptura do modelo individualista, empregado pela Revolução Francesa,<br />

Código de Napoleão e pela edição da Declaração dos Direitos do Homem e<br />

do Cidadão de 1789.<br />

115<br />

Ibidem, p.189-190.<br />

116<br />

Art. 153. “A propriedade é garantida pela Constituição. Seu conteúdo e seus limites resultam das<br />

disposições legais. A propriedade obriga. Seu uso deve, ademais, servir ao bem comum”.<br />

128


Há, também, que se deixar claro que essas rupturas não foram tão<br />

rápidas, pois, na realidade, as duas constituições referidas foram o marco<br />

normativo de mudanças, mas, no contexto social, político e ideológico,<br />

essas rupturas só ocorreram, mesmo após a segunda grande Guerra<br />

Mundial, quando novos valores são admitidos pela sociedade, como<br />

indispensáveis à manutenção da vida do homem e das demais espécies no<br />

Planeta Terra.<br />

Posto isto, é importante compreender, ainda no plano constitucional,<br />

como se deu a mudança do Estado Liberal para o Estado Social, vigente<br />

antes das constituições do México e da Alemanha. Com efeito, essa<br />

reflexão deve ser feita no plano social e econômico, para que possamos<br />

compreender a dinâmica social daquela época.<br />

Nesse sentido, o capitalismo, regime econômico da acumulação de<br />

riquezas e de capital vigente à época, foi fruto, ao longo da história da<br />

humanidade, de processos sociais e políticos e encontra, no campo da<br />

doutrina filosófica, o repouso necessário para se desenvolver.<br />

Ao lado do capitalismo, surge, no cenário mundial, a doutrina do<br />

liberalismo econômico, que ganha força nos ideais de Adam Smith e tantos<br />

outros pensadores de sua época.<br />

129


De acordo com Cláudio Vicentino e Gianpaolo Dorico:<br />

“Surgidas com o Iluminismo e lançadas pelos fisiocratas<br />

franceses, as bases do liberalismo eram a propriedade<br />

privada, o individualismo econômico, a liberdade de<br />

comércio, de produção e de contrato de trabalho (salários<br />

e jornada sem controle do Estado ou pressão dos<br />

sindicatos. O pensamento liberal ganhou contornos<br />

definidos com Adam Smith (1723-1790). Em sua obra “A<br />

riqueza das nações” mostrava a divisão do trabalho como<br />

elemento essencial para o crescimento da produção e do<br />

mercado, e cuja aplicação eficaz depende da livre<br />

concorrência, que forçaria o empresário a ampliar a<br />

produção, buscando novas técnicas, aumentando a<br />

qualidade do produto e baixando ao máximo os custos de<br />

produção”. 117<br />

Deve-se dizer, ainda, que o liberalismo econômico pregava o<br />

decréscimo do preço do produto, o que favoreceria a lei natural da oferta e<br />

da procura, possibilitando um sucesso econômico.<br />

Nesse modelo econômico, a função do Estado era limitada, porquanto<br />

haveria, no cenário, a lei da oferta e da procura, que poderia reger as<br />

relações econômicas, sem a interferência do Estado. Ao Estado, cabia<br />

cuidar da propriedade, da ordem e da estrutura econômica, bem como<br />

cuidar, também, da organização social, que era feita por uma “mão<br />

invisível”, proporcionando o bem estar coletivo.<br />

117<br />

VICENTINO, Cláudio e DORICO, Gianpaolo. História para o ensino médio. Editora Spicione, 2004,<br />

1ª edição, São Paulo, p. 340-341.<br />

130


A doutrina liberalista permitiu o esmagamento da força de trabalho<br />

européia, especialmente na Inglaterra, berço da Revolução Industrial.<br />

A Revolução Industrial foi o resultado do investimento em novos<br />

modelos de produção. De fato, a burguesia, que detinha o capital, estava<br />

interessada não apenas na produção rural, mas em outras fontes de lucros,<br />

como aqueles que seriam gerados pela produção industrial. 118 Com a<br />

descoberta de novas tecnologias, foi possível, igualmente, haver o<br />

crescimento da dominação burguesa. Assim, a doutrina liberalista encontrou<br />

o conforto necessário para tornar prática, a regra de controle do mercado, no<br />

cenário europeu, e, mais adiante em outros continentes.<br />

Lembram Cláudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo que nessa época;<br />

“A Inglaterra adquirira uma nova configuração social<br />

com a industrialização e o êxodo rural, com predomínio<br />

dos latifúndios no campo e das fábricas nas cidades, onde<br />

vivia grande contigente de miseráveis. Não existindo<br />

qualquer legislação trabalhista ou inspeção estatal, as<br />

jornadas de trabalho nas fábricas, instaladas em locais<br />

insalubres, eram muitas vezes superiores a 14 (quatorze)<br />

horas” 119<br />

118<br />

Esta revolução propiciou o abandono da velha economia, que estava sustentada nas corporações de<br />

ofício e de manufaturas, pelo engendramento da máquina a vapor e das ferrovias veio a transformar o<br />

modelo de produção vigente. O modelo de produção, rudimentar para a época, não se altera, mas<br />

permite, ao seu lado, surgir à produção de escala, viabilizando a exploração de mão-de-obra do<br />

camponês, que não mais quer o campo, mas que, pela nova realidade, é sugado pela novidade industrial<br />

da cidade e a ela se incorpora.<br />

119<br />

VICENTINO, Cláudio e DORICO, Gianpaolo. História para o ensino médio. Editora Spicione, 2004, 1ª<br />

edição, São Paulo, p. 340-341.<br />

131


Esta era uma realidade do processo produtivo da Inglaterra, e que,<br />

aos poucos, se espalhou por outros países da Europa, fazendo brotar<br />

grandes misérias. A fome e as epidemias ganharam espaço nas camadas<br />

proletárias e o nível de vida do ser humano era muito baixo.<br />

Esta situação de miséria aos poucos foi ganhando a insatisfação das<br />

camadas sociais, o que foi suficiente para gerar revoltas trabalhistas e<br />

ganhar adeptos, no âmbito da filosofia política e econômica. Novas<br />

doutrinas, como o socialismo e a doutrina da função social da igreja,<br />

surgiram no cenário europeu, contrapondo-se à situação de escravidão, de<br />

que eram vítimas, os operários do campo e da indústria.<br />

As doutrinas socialistas surgem, exatamente, nesse momento, em que<br />

pesa sobre a classe trabalhadora e a maioria da população, o encargo de<br />

sustentar a burguesia e seu modelo escravocrata de acúmulo de riquezas.<br />

Foi nesse panorama que a ordem jurídica do Estado Social foi gestada.<br />

Para melhor compreender como se deu, no plano normativo, o<br />

surgimento do Estado Social de Direito, há que se reconhecer que o velho<br />

regime econômico liberal não poderia sobreviver com o mesmo ideário, ou,<br />

ao menos, com a mesma metodologia filosófica. Foi preciso que a doutrina<br />

liberal passasse, também, por uma reforma metodológico-científica, capaz<br />

de adaptar-se à realidade das grandes revoltas sociais, em especial, a revolta<br />

da classe trabalhadora.<br />

132


O que é certo, é que, na Europa, as revoltas sociais foram capazes de<br />

acender, no pensamento filosófico, uma nova idéia de direito, o direito<br />

social, na medida em que a opressão, gerada pelo modelo de produção<br />

capitalista liberal, não dava margem, para que as camadas mais humildes<br />

pudessem usufruir os bens de produção. Era preciso alterar a estrutura<br />

normativa do direito.<br />

Nisso tem razão Paulo Bonavides, quando assegura:<br />

“O Estado Social representa efetivamente uma<br />

transformação superestrutural por que passou o antigo<br />

Estado liberal. Seus matizes são riquíssimos e diversos.<br />

Mas, algo, no Ocidente, o distingue, desde as bases, do<br />

Estado proletário, que o socialismo marxista intenta: é<br />

que ele conserva sua adesão à ordem capitalista, princípio<br />

cardeal a que não renuncia”. 120<br />

De acordo com este publicista pátrio:<br />

“A Alemanha nazista, a Itália fascista, a Espanha<br />

franquista, o Portugal salazarista foram “Estados<br />

Sociais”. Da mesma forma,’Estados sociais’ A Inglaterra<br />

de Churchil e Attlee, os Estados Unidos, em parte, desde<br />

120<br />

BONAVIDES, Paulo. Do Estado Social ao Estado Liberal, 6ª edição, Editora Malheiros, São Paulo,<br />

1.996, p. 184.<br />

133


Roosevelt; a França, com a Quarta República,<br />

principalmente; e o Brasil, desde a Revolução de 1930”. 121<br />

Com base na lição desse jurista, podemos dizer que o Estado Social,<br />

no Ocidente, foi o resultado das profundas transformações sociais, que<br />

ocorreram a partir da Europa e ecoaram por todo o Ocidente. Portanto, há<br />

que se reconhecer que, independentemente, dos regimes totalitários, que<br />

eclodiram após a Primeira Guerra Mundial, o Estado social ganhou corpo e<br />

se amoldou à realidade nacional de cada país.<br />

Esse emérito professor ainda elucida:<br />

E conclui:<br />

121 Ibidem, loc. Cit..<br />

122 Ibidem. p. 185.<br />

“À medida, porém, que o Estado, tende a desprender-se<br />

do controle burguês de classe, e este se enfraquece, passa<br />

ele a ser, consoante as aspirações de Lorenz von Stein, o<br />

Estado de todas as classes, o Estado fator de conciliação,<br />

o Estado mitigador de conflitos sociais e pacificador<br />

necessário entre o trabalho e o capital”. 122<br />

134


“Nasce, aí, a noção contemporânea de Estado social”. 123<br />

Essa contextualidade prova que as sociedades européias não podiam<br />

continuar sob o manto do liberalismo exacerbado, que pregava o<br />

individualismo e a obtenção da propriedade e que, sem ela, não haveria<br />

liberdade e igualdade.<br />

No Estado Social de Direito consagrado pelas constituições do<br />

México e da Alemanha, brota um novo modelo de Estado, cuja vertente<br />

marcante não é o socialismo defendido por Marx, Engles e outros Utópicos,<br />

mas sim a socialização do direito.<br />

A propriedade, a saúde, a previdência social e a atuação do Estado no<br />

combate às endemias, sem cogitar da separação das camadas sociais, fazem<br />

reconhecer, no plano jurídico, os desafios vividos pela grande maioria das<br />

populações, que foram sufocadas pela burguesia, durante séculos.<br />

Essa socialização do direito alcança a propriedade privada e impõe,<br />

ao proprietário, a adoção de medidas, o que o condiciona a empreendê-la na<br />

ordem econômica, ao meio ambiente e ao consumidor, buscando a<br />

satisfação das comodidades essenciais, como a moradia, a habitação, a<br />

proteção à saúde, fauna, flora e ao equilíbrio ecológico, como se verá, mais<br />

adiante, no sétimo capítulo.<br />

123 Ibidem, loc. cit.<br />

135


3.3. A Doutrina da Função Social da Igreja<br />

No nosso entendimento, a Doutrina da Função Social da Igreja foi<br />

um dos principais elementos da teologia da Igreja Católica, que forneceu<br />

suporte à doutrina da função social do direito, já que é precedente a esta.<br />

A Doutrina Social da Igreja encontra eco nas Sagradas Escrituras.<br />

Sua inspiração é divina, na medida em a Igreja é a ordem religiosa<br />

cumpridora dos desígnios de Deus na terra. 124<br />

Diz-se Doutrina Social da Igreja, o conjunto de princípios<br />

doutrinários de ordem religiosa, social, econômica e política, tendentes a<br />

criar, disseminar e fazer brotar ações e planos, no âmbito dos direitos<br />

humanos, com vistas a preservar a pessoa humana, seus bens e sua vida,<br />

garantindo a plena harmonia do indivíduo, compatibilizando suas<br />

necessidades, frente à preservação da vida e do bem comum da<br />

sociedade. 125<br />

3.4. Objetivo da função social da igreja<br />

É objetivo central da Doutrina Social da Igreja tornar sociáveis os<br />

direitos e bens da vida, possibilitando que a sociedade, como um todo,<br />

desfrute das comodidades existentes.<br />

124<br />

Compêndio da Doutrina Social da Igreja. Edições Paulinas, 2005., p. 59.<br />

125<br />

Para a correta compreensão do que vem a ser a Doutrina Social da Igreja, deve-se consultar o<br />

Compêndio da Doutrina Social da Igreja. Editora Edições Paulinas, 2ª edição, São Paulo, 2005.<br />

136


Para que se realize a função social da igreja, é indispensável que o<br />

homem reconheça que os bens da vida têm um fim econômico e, que,<br />

necessariamente, esse fim deve estar à disposição do bem comum, pois, sem<br />

esse sentido, a função social ficará no mero exemplo da doutrina filosófica.<br />

E nesse sentido, a propriedade privada é eleita, pela Igreja Católica,<br />

como um bem da vida e um direito natural, conforme se verá adiante das<br />

encíclicas papais.<br />

3.5. Fontes da Doutrina Social da Igreja<br />

Várias são as fontes da Doutrina Social da Igreja. Essas fontes estão<br />

ligadas a contextos históricos diversos e, por isso, representam a realidade<br />

histórica de sua época, como, ainda, passaram a ganhar dimensões outras,<br />

de acordo com a tutela dos bens defendidos em cada época. Todavia, a<br />

própria Igreja admite que, a partir dos acontecimentos do século XIX, ela<br />

passou a se preocupar incisivamente, afirmando:<br />

“Os eventos de natureza econômica que se deram no século<br />

XIX tiveram conseqüências sociais, políticas e culturais<br />

lacerantes. Os acontecimentos ligados à revolução<br />

industrial subverteram a secular organização da sociedade,<br />

levantando graves problemas de justiça e pondo a primeira<br />

grande questão social, a questão operária, suscitada pelo<br />

conflito entre capital e trabalho”. 126<br />

126 Compêndio da Doutrina Social da Igreja. Edições Paulinas, 2005., p. 59.<br />

137


A inspiração eclesiástica para a Doutrina da Função Social da Igreja<br />

está na Bíblia Sagrada. Daí decorre que a inspiração é divina. 127<br />

Conforme analisaremos, a seguir, vários são os documentos<br />

doutrinários da Igreja Católica, escritos pelos Santos Pontífices, Teólogos e<br />

tantos outros estudiosos, de épocas diversas, que colaboraram para a<br />

afirmação de uma doutrina social completa, que serviu e serve de base para<br />

a criação de normas de ordem jurídica.<br />

3.6. Principiologia da Doutrina da Função Social da Igreja<br />

Como outrora foi dito, a Doutrina da Função Social da Igreja é um<br />

conjunto de princípios. Estes princípios são regras de conduta moral, social,<br />

política, econômica e culturais.<br />

Uma breve análise da Doutrina da Função Social da Igreja nos<br />

permite concluir que essa doutrina visa, entre outros aspectos:<br />

a) o reconhecimento de que a espécie humana possui uma dignidade<br />

que precisa ser tutelada. Essa tutela da dignidade da pessoa humana não<br />

permite a discriminação racial, social, econômica, política e cultural. 128<br />

127<br />

Ainda que possa haver quem discorde desta posição, fato é que, longe de qualquer suspeita, é difícil o<br />

homem, em si mesmo, engendrar tão brilhantes regras de direito.<br />

128<br />

Compêndio da Doutrina da Função Social da Igreja. Edições Paulinas, 2005, p. 101.<br />

138


) o reconhecimento de que os homens têm direitos naturais, que<br />

nascem com eles próprios - esses direitos são direitos de primeira geração,<br />

como os direitos a vida e a propriedade. Decorre dessa premissa que para<br />

que haja vida, é essencial que a espécie humana seja titular do domínio de<br />

bens e de serviços, que viabilize a aquisição de comodidades, aptas a<br />

garantir a subsistência de si próprio e de sua família. 129<br />

c) a supremacia do bem comum, em contraposição ao bem individual<br />

- a doutrina reconhece a essencialidade do bem comum. As riquezas<br />

existentes no plano material devem estar a mercê da comunidade. Não<br />

podem esses bens estar nas mãos de uma única ou de poucas pessoas. Há a<br />

necessidade primordial de socializar os bem e torná-los útil a todos. 130<br />

Mesmo assim, a doutrina eclesiástica reconhece o direito a<br />

propriedade privada como um bem fundamental da pessoa humana.<br />

d) a destinação universal dos bens - os bens mais do que um direito<br />

individual, como coletivo, passa a ser uma categoria de bens de natureza<br />

difusa, extrapolando os limites da esfera territorial de um país ou nação. A<br />

tutela desses bens está a cargo de organismos internacionais, como é o caso<br />

da Organização das Nações Unidas. 131<br />

e) a supremacia do trabalho, em contraposição ao capital - a doutrina<br />

social reconhece que o trabalho é um valor humano que transcende a idéia<br />

129 Ibidem, p.106.<br />

130 Ibidem, p. 103.<br />

131 Ibidem, p.104.<br />

139


de capital. O trabalho é o resultado da ação humana transformadora e o<br />

capital, o resultado dos processos que transforma. 132<br />

Nesse sentido, a doutrina defende que o capital deve ser empregado<br />

ao bem comum da coletividade, porquanto o trabalho está a serviço do<br />

homem e não o homem a serviço do trabalho.<br />

f) princípio da subsidiariedade - a doutrina social reconhece a<br />

existência de um princípio de solidariedade social, sem o qual não há como<br />

haver responsabilidade. 133<br />

g) princípio da solidariedade, a existência de um princípio de<br />

solidariedade. – por meio deste princípio, objetiva-se a socialidade da<br />

pessoa humana, a igualdade de todos em dignidade e direitos, ao caminho<br />

comum dos homens e dos povos, que se manifesta em qualquer nível. 134<br />

3.7. Origens históricas da Doutrina Social da Igreja<br />

As origens históricas da Doutrina Social da Igreja remontam ao<br />

século XIX, especialmente, após a Revolução Industrial, que trouxe<br />

profundas injustiças sociais para os trabalhadores da época. 135<br />

A Revolução Industrial foi o ponto culminante do desapertar da<br />

inspiração eclesiástica, haja vista que os trabalhadores, dessa época, eram<br />

132 Ibidem, p. 99.<br />

133 Ibidem., p. 111.<br />

134 Ibidem, p.116.<br />

135 Ibidem, p. 59.<br />

140


submetidos a uma jornada de trabalho muito cruel, levando-os a um ciclo de<br />

vida muito pequeno.<br />

Explica Igino Giordane que:<br />

“A Rerum Novarum foi para a ação social cristã, o que<br />

foi o manifesto dos Comunistas (1848) ou o Capital de<br />

Marx para a ação socialista. Opõe-se diretamente à ação<br />

socialista. Marx e Leão XIII partindo da verificação da<br />

gritante desigualdade econômica entre plutocracia e<br />

proletariado, quiseram ambos, realçar a classe dos<br />

operários oprimida pelo liberalismo econômico que<br />

consagrava opressão dos mais fortes sobre os mais fracos<br />

ou se desinteressava da luta social”. 136 (sic)<br />

Por sua vez, a Doutrina da Função Social da Igreja condenava, e<br />

ainda condena, o comunismo de Marx, porque entendia, e entende, que o<br />

comunismo pregado pelo marxismo abolia o direito natural do homem à<br />

propriedade privada.<br />

O primeiro grande documento da Igreja Católica que marca o<br />

surgimento da Doutrina Social da Igreja é a Rerum Novrarum, editada em<br />

1891, pelo santo Pontífice, o Papa Leão XIII. 137<br />

136<br />

GIOR<strong>DA</strong>NE, Igino. Carta Encíclica “Rerum Novarum”, prefácio, Edições Paulinas, 14ª edição, São<br />

Paulo, 2.004.,p.5.<br />

137<br />

Embora tenha sido historicamente a Rerum Novarum, o documento que inicia a Doutrina Social da<br />

Igreja, não é de se esquecer a importância inspiradora que remonta ao século XV, ou seja, estamos<br />

falando da doutrina de Santo Tomas de Aquino, Doutor da Igreja Católica, que escreveu um dos mais<br />

sublimes documentos eclesiásticos de todos os tempos, “a Suma Theológica”. Este documento foi o<br />

141


3.7.1. A Rerum Novarum e o Direito de Propriedade<br />

A questão social foi tratada pela Igreja Católica, como nunca antes<br />

havia sido. De fato, como outrora foi referido, este documento foi a resposta<br />

da Igreja Católica, ao clamor da classe operária, que vivia a opressão<br />

produzida pelo engendramento da Revolução Industrial, que teve, como<br />

berço, a Inglaterra. A Rerum Novarum, um documento precursor da<br />

Doutrina Social da Igreja Católica, condena a propriedade socialista, porque<br />

esta tiraria o pouco do direito que o homem têm. 138<br />

Para o Santo Pontífice Leão XIII:<br />

“O homem, como abrange pela sua inteligência uma<br />

infinidade de objetos, e às coisas presentes acrescenta e<br />

prende as coisas futuras; e como além disso, é senhor das<br />

suas ações; também sob a orientação da lei eterna sob o<br />

marco divisor de águas das posições da Igrejas, tanto no campo religioso, social e político de sua época,<br />

a influenciar os outros documentos que mais tarde surgiriam na Igreja.<br />

138<br />

“De fato, como é fácil compreender, a razão intrínseca do trabalho empreendido por quem exerce uma<br />

arte lucrativa, o fim imediato visado pelo trabalhador, é conquistar um bem que possuirá como próprio e<br />

como pertencendo-lhe; porque, se põe à disposição de outrem as suas forças e a sua indústria, não é,<br />

evidentemente, por outro motivo senão para conseguir com que possa prover a sua sustentação e as<br />

necessidades da vida, e espera do seu trabalho, não só o direito ao salário, mas ainda um direito estrito e<br />

rigoroso para usar dele como entender. Portanto, se, reduzindo as suas despesas, chegou a fazer algumas<br />

economias, e se, para assegurar a sua conservação, as emprega, por exemplo, num campo, torna-se<br />

evidente que esse campo não é outra coisa senão o salário transformado: o terreno assim adquirido será<br />

propriedade do artista com o mesmo título que a remuneração do seu trabalho. Mas, quem não vê que é<br />

precisamente nisso que consiste o direito da propriedade mobiliária e imobiliária? Assim, esta<br />

conversão da propriedade particular em propriedade colectiva, tão preconizada pelo socialismo, não<br />

teria outro efeito senão tornar a situação dos operários mais precária, retirando-lhes a livre disposição do<br />

seu salário e roubando-lhes, por isso mesmo, toda a esperança e toda a possibilidade de engrandecerem<br />

o seu património e melhorarem a sua situação., Ob.Cit. p. 11.12.<br />

142


E acrescenta:<br />

E finaliza:<br />

governo universal da Providência divina, ele é, de algum<br />

modo, para si a sua lei e a sua providência”. 139<br />

“(.......) Deus não assinou uma parte a nenhum homem<br />

em particular, mas quis deixar a limitação das<br />

propriedades à indústria humana e às instituições dos<br />

povos. Aliás, posto que dividida em propriedades<br />

particulares, a terra não deixa de servir à utilidade<br />

comum de todos, atendendo a que se pode afirmar, com<br />

toda a verdade, que o trabalho é o meio universal de<br />

prover as necessidades da vida, quer ele se exerça num<br />

tempo próprio, quer em alguma parte lucrativa cuja<br />

remuneração, sai apenas dos produtos múltiplos da<br />

terra, com os quais ela se comuta”. 140<br />

“(......) a propriedade particular é conforme a<br />

natureza”. 141<br />

139<br />

LEÃO XIII, Papa. Carta Encíclica Rerum Novarum, Edições Paulinas 14ª edição, São Paulo, 2005,<br />

p.13.<br />

140<br />

Compêndio da Doutrina da Função Social da Igreja. Edições Paulinas, 2005, p. 14-15.<br />

141<br />

Ob. Cit. p. 15.<br />

143


Há, na Doutrina da Função Social da Igreja, a firme convicção divina<br />

de que as coisas existem para os homens. A propriedade é do homem, mas,<br />

ao mesmo passo que aqueles que não têm a propriedade particular, podem<br />

gozar dos frutos daqueles que a têm. Com forte apoio na “Rerum Novarum”<br />

pode se dizer que ela destaca a propriedade como um direito natural. É a<br />

propriedade um direito nato do homem, devendo servir ao indivíduo.<br />

Nesse particular, assegura Leão XIII:<br />

“Assim, este direito de propriedade que nós, em nome da<br />

natureza, reivindicamos para o indivíduo, é preciso agora<br />

transferi-lo para o homem constituído chefe de família. Isto<br />

não basta: passando para a sociedade doméstica, este<br />

direito adquire aí tanto maior força quanto mais a extensão<br />

lá recebe a pessoa humana. A natureza não impõe somente<br />

ao pai de família o dever sagrado de alimentar e sustentar<br />

seus filhos; vai mais longe”. 142<br />

A “Rerum Novarum” foi, e é, o documento base e o alicerce<br />

inovador, para a sua época, que estabeleceu uma nova ordem social, porque<br />

oferecia as bases sócio-políticas de um Estado justo, bem como forneceu as<br />

142 Ibidem, p. 17.<br />

144


linhas de ação, para concretizar a dimensão social e política desse<br />

documento eclesiástico.<br />

3.7.2. Outros documentos eclesiásticos que fundamentam a existência<br />

da Doutrina Social da Igreja<br />

Além da “Rerum Novarum”, marcadamente o primeiro documento da<br />

Doutrina da Função Social da Igreja, o Catolicismo foi profundamente<br />

marcado pelo surgimento de novos documentos, que, ao longo dos anos<br />

subseqüentes, foi objeto de aprofundamento e consolidação dessa doutrina,<br />

vindo, no nosso entendimento, servir de inspiração à criação da função<br />

social do direito.<br />

As novas encíclicas, elaboradas pelos papa, passaram a avaliar os<br />

frutos produzidos pela Rerum Novarum, além de ditarem novos preceitos de<br />

ordem religiosa, social e econômica, que entendiam constituir diretivas para<br />

um Estado Social solidário e justo.<br />

3.7.3. Encíclica Quadragésimo Anno de Pio XI de 1931<br />

A “Quadragésimo Anno” foi a Encíclica papal de Pio XI que, 40<br />

(quarenta) anos após a edição da “Rerum Novarum”, edita um novo<br />

145


documento, fazendo uma leitura do passado e, tecendo novas considerações<br />

para a realidade vigente.<br />

A realidade vigente é a realidade pós Primeira Guerra Mundial e o<br />

advento do surto industrial, que provoca imensas injustiças sociais,<br />

oprimindo, cada vez mais, a classe trabalhadora daquela época.<br />

A “Quadragésimo Anno” mostra, cada vez mais presente, a defesa da<br />

propriedade privada e propugna que esta exerce uma função social.<br />

Na verdade, para a Igreja Católica, era necessário tomar a frente das<br />

grandes questões sociais daquela época, oferecendo, aos governos do<br />

mundo todo, parâmetros de aplicação das leis morais, que pudessem regular<br />

as relações humanas, procurando, assim, superar os conflitos, despertados<br />

pelo modelo de produção econômica escravagista da primeira metade do<br />

século XX.<br />

Esta encíclica preconiza que, em relação ao domínio, tanto os<br />

teólogos e Leão XIII jamais negaram, ou puseram em dúvida, a dupla<br />

espécie de domínio, que chamam de individual e social.<br />

Afirma, este documento eclesial, que tanto o papa, como os teóricos<br />

são unânimes em afirmar:<br />

“(.....) que a natureza ou o próprio Criador deram ao<br />

homem o direito do domínio particular, não só para que<br />

ele possa prover às necessidades próprias e da família,<br />

mas para que sirvam verdadeiramente ao seu fim os bens<br />

destinados pelo Criador a toda a família humana: ora,<br />

nada disso se pode obter se não se observa uma ordem<br />

146


certa e bem determinada. Deve, portanto, evitar-se<br />

cuidadosamente um duplo escolho, em que se pode cair.<br />

Pois, como negar ou cercear o direito de propriedade<br />

social e pública precipita no chamado “individualismo”<br />

ou dele muito aproxima, assim, também rejeitar ou<br />

atenuar o direito de propriedade privada ou individual<br />

leva rapidamente no “coletivismo” ou pelo menos à<br />

necessidade de admitir-lhe os princípios”. 143<br />

A Igreja Católica, a partir da “Rerum Novarum” até os dias atuais,<br />

sempre defendeu, e ainda defende, a propriedade privada, mas, como<br />

realçado acima, passou a enfrentar as críticas dos opositores, que viam<br />

nesse posicionamento da Igreja, uma reação contra o coletivismo, ou seja, a<br />

propriedade comunista. Na verdade, o que sempre a Igreja se opôs, no que<br />

tange ao comunismo, foi o fato de que, neste regime, jamais, o cidadão teria<br />

direito a propriedade particular.<br />

3.7.4. Encíclica Mater et Magistra de João XXIII de 1961<br />

A Carta Apostólica “Mater et Magistra” de João XXIII, a exemplo<br />

da “Quadragésimo Anno”, reavaliou os documentos anteriores. Todavia,<br />

inovou, no tocante, às relações sociais, especialmente, à comunidade Cristã.<br />

143<br />

POP XI, Papa. Carta Encíclica Quadragésimo Anno. Edições Paulinas, 5ª edição, São Paulo, 2.004, p.<br />

30.<br />

147


A “Mater et Magistra” trouxe como palavras-chave comunidade e<br />

solidariedade. 144<br />

A Doutrina da Função Social da Igreja assegura:<br />

“O direito de propriedade privada, mesmo sobre os bens<br />

produtivos, tem valor permanente, pela simples razão de<br />

ser de um direito natural fundado sobre a prioridade<br />

ontológica e final de cada ser humano”. 145<br />

Segundo o Santo Pontífice, a propriedade é, também, pública, mas<br />

ela deve ser usada, não para aumentar os bens do Estado e reduzir a<br />

propriedade privada, mas, antes de tudo, para servir ao bem comum. 146 Por<br />

outro lado, como veremos mais adiante, no campo legislativo, em nosso<br />

país, o princípio da função social irá permear o sistema da propriedade<br />

privada no que diz respeito ao Estatuto da Terra.<br />

A “Mater et Magistra” consagra, mais uma vez, o princípio da<br />

função social da propriedade, imprimindo uma assertiva, que não deixa<br />

dúvida quanto à sua existência e eficácia, no plano do direito canônico.<br />

144 “A Igreja é chamada, na verdade, na justiça e no amor, a colaborar com todos os homens para construir<br />

uma autêntica comunhão. Por tal via, o crescimento econômico não se limitará a satisfazer as<br />

necessidades dos homens,mas poderá promover também a sua dignidade”, in Compêndio Da doutrina<br />

Social da Igreja. Edições Paulinas, 2ª edição, 2.005., p. 64.<br />

145 JOÃO XXIII, Papa Encíclica Mater Et Magistra. Edições Paulinas, 12ª edição, São Paulo, 2.004, p. 35.<br />

146 Ibidem, p. 38.<br />

148


Aduz esta encíclica:<br />

“O direito de propriedade privada sobre os bens possui,<br />

intrinsecamente, uma função social. No plano da criação,<br />

os bens da terra são primordialmente destinados à<br />

subsistência digna de todos os seres humanos.” 147<br />

Nesse momento, em que o direito de propriedade apresenta, no<br />

mundo moderno, uma nova faceta, a faceta social, a Igreja afirma sem<br />

hesitar:<br />

“(.....) a função social da propriedade privada: esta deriva<br />

da natureza mesmo do direito de propriedade”. 148<br />

Há, portanto, neste documento eclesiástico, o reconhecimento de que<br />

a função social da propriedade é algo que está implícito na propriedade, de<br />

modo que ela deve representar um direito comum para todos e desempenha<br />

um papel primordial, para atingir o bem comum.<br />

147 Ibidem. Loc. cit..<br />

148 Ibidem, p.39.<br />

149


3.7.5. Encíclica Pacem in Terris de João XXIII de 1963<br />

A Encíclica “Pacem in Terris” de João XXIII constitui-se num<br />

poderoso documento papal, por meio do qual a Igreja chama a atenção para<br />

a questão das guerras nucleares, propugnando a paz e a dignidade humana.<br />

Em relação ao direito de propriedade, este é afirmado pela Igreja,<br />

reconhecendo, ainda, que:<br />

“Da natureza humana origina-se ainda o direito à<br />

propriedade, mesmo sobre os bens de produção”. 149<br />

Assim, a exemplo das encíclicas anteriores, “Rerum Novarum”,<br />

“Quadragésimo Anno”, “Mater et Magistra, a “Pacem in Terris” confirma<br />

a existência de uma propriedade privada, como um direito inerente à<br />

natureza da pessoa humana, e, ainda que ela recaia sobre os bens de<br />

produção, deve predispor a atender à função social, ou seja, ao bem comum.<br />

149 JOÃO XXIII, Papa. Encíclica Pacem in Terris. Edições Paulinas, 6ª edição, São Paulo, 2.004, p. 14.<br />

150


3.8. Função social e socialização do direito<br />

Pelo que foi exposto até o presente momento, no nosso sentir, a<br />

função social da propriedade é a extensão da função social do direito.<br />

Também entendemos que esta função social do direito está presente<br />

na nova ordem constitucional, vigente a partir das Constituições da<br />

Alemanha de 1919 e do México de 1917, e que, por sua vez, influenciou as<br />

demais Constituições da Europa e do mundo ocidental.<br />

Penso também que compreender o direito a partir de uma função<br />

social é reconhecer que esse direito deve existir para atender às finalidades<br />

da norma jurídica.<br />

Assim, a norma jurídica deve sempre buscar atender às necessidades<br />

do indivíduo e da coletividade, considerando a completa harmonia entre<br />

ambos.<br />

Feitas estas exposições, em que pesem entendimentos divergentes,<br />

entendo que a função social do direito é uma destinação, que deve ser dada<br />

à norma jurídica, que há de atender às necessidades da sociedade, e,<br />

portanto, a função é a razão do direito.<br />

151


3.9. Espécies de função social aplicadas ao direito<br />

A função social do direito está arraigada nos textos normativos das<br />

constituições do mundo contemporâneo, em especial, do mundo ocidental,<br />

como se verá adiante, no capítulo IV e V.<br />

A função social do direito é a marca do novo constitucionalismo, e,<br />

como já se disse, esse processo se deve à nova ordem social, política e<br />

ideológica, gestada após a Primeira Guerra Mundial, cujo marco inovador,<br />

foram as Constituições do México e da Alemanha, antes referidas.<br />

No campo contratual, a função social é uma vertente que deve<br />

permear as relações jurídicas negociais. Esse fenômeno igualmente ocorre<br />

na função social da empresa.<br />

152


Capítulo IV<br />

4. FUNÇÃO <strong>SOCIAL</strong> <strong>DA</strong> PROPRIE<strong>DA</strong>DE NO DIREITO<br />

COMPARADO<br />

4.1. Introdução<br />

A partir desse capítulo, trataremos da função social da propriedade no<br />

direito comparado, procurando trazer breves considerações das<br />

constituições alienígenas e de alguns doutrinadores estrangeiros.<br />

A função social da propriedade, como princípio jurídico inserido nas<br />

constituições dos Estados Nacionais, não se deu, em primeiro lugar, no<br />

Brasil. Ao contrário, como outrora foi dito, o berço inicial dessa nova<br />

concepção de propriedade foi a Constituição mexicana de 1917 e a<br />

Constituição alemã de 1919. É importante salientar que o novo direito de<br />

propriedade foi consagrado e difundido na Europa. Isso se deve, talvez, à<br />

realidade social e política dos países europeus, em especial, a Rússia, com<br />

as revoltas operárias, sucedendo, da mesma forma, com a Inglaterra, berço<br />

da Revolução Industrial e com a Alemanha, onde o embate das doutrinas<br />

socialistas foi o marco delineador de um novo conceito de Estado.<br />

153


No atual estágio da vida social e política, o instituto da propriedade<br />

alcançou uma dimensão extraordinária, na medida em que passou a ser um<br />

direito fundamental, judicializado pela tutela do Estado Social de Direito,<br />

consagrado pelas constituições acima referidas.<br />

Partindo dessas premissas, nesse capítulo, iremos trazer alguns<br />

elementos históricos de algumas constituições européias, onde a<br />

propriedade foi, aos poucos, sendo sedimentada como um direito individual,<br />

mas que sobrepujada por uma função social.<br />

4.2. No direito francês<br />

O Direito Constitucional, o Direito Civil, e ainda, a grande maioria<br />

dos juristas ocidentais reconhecem no mestre francês Léon Duguit, a<br />

concepção de que os direitos só se justificam, se houver uma vertente social<br />

para cumprir.<br />

No pensamento desse autor, a propriedade deixaria de ser um direito<br />

subjetivo e passaria a ser uma função social, e, nesse sentido, a propriedade<br />

passaria a ser uma instituição.<br />

A doutrina de Léon Duguit, ainda que tenha ressoado em todas as<br />

legislações do mundo ocidental, não pode no nosso sentir, ser admitida com<br />

plenitude, especialmente, no ponto em que desconsidera a propriedade<br />

como o direito subjetivo.<br />

154


A doutrina francesa desse autor é prestigiada no mundo ocidental,<br />

porque desenvolveu tese que nega os direitos subjetivos. Segundo Léon<br />

Duguit:<br />

“Cepedant la propriété est une institution juridique qui<br />

s’est formée pour répondre à un besoin économique,<br />

comme d’ailleurs toutes les institutions juridiques, et qui<br />

évolue nécessairement avec les besoins économiques eux<br />

mêmes. Or, dans nos sociétés modernes le besoin<br />

économique auquel était venue repondré la propriété<br />

institution juridique se transforme profondément; par<br />

conséquent la propriété comme institution juridique doit<br />

elle-même se transformer”. 150<br />

L’évolution se fait encore ici dans le sens socialiste. Elle<br />

est encore déterminée par une interdépendance des<br />

différents éléments sociaux de plus en plus étroite. Par là<br />

même, la propriété se socialise, si je puis ainsi dire. Cela<br />

ne signifique pas qu’elle devienne collective au sens des<br />

doctrines collectivistes; mais cela signifie deux choses:<br />

d’abord que la propriété individuelle cesse d’être un droit<br />

de l’individu pour (pag. 149) devenir une fonction sociale,<br />

et en second lieu que les cas d’affectation de richesse à<br />

des collectivités, qui doivent éter juridiquement proteges,<br />

deviennent de plus en plus nombreux”. 151<br />

150 (No vernáculo – tradução livre) : “A propriedade é uma instituição jurídica formada segundo as<br />

necessidades econômicas, como alias todas as instituições jurídicas que evoluem de acordo com as<br />

necessidades econômicas delas mesmas. Na nossa sociedade moderna, a necessidade econômica conforme<br />

a propriedade jurídica se transforma profundamente; por conseqüência, a propriedade como instituição<br />

jurídica deve ela mesma se transformar”. In. DUGUIT, Léon. Transformationss Générales Du Droit Prive.<br />

Paris. Librrairie Félix Alcan, Paris, 1920, p. 148.<br />

151 (No vernáculo – tradução livre) : “A evolução se faz ainda aqui no sentido socialista. Ela é ainda<br />

determinada por uma inter dependência de diferentes elementos sociais cada vez mais estreito. A<br />

propriedade se socialista, se eu posso assim dizer. Isto não significa que ela passa a ser coletiva o senso<br />

próprio, mas significa duas coisas: primeiro que a propriedade individual cessa de ser um direito do<br />

individuo para ser uma função social, segundo lugar que o caso de riquezas às coletividades, que devem<br />

ser juridicamente protegidas, são cada vez maiores”. Ob. Cit. p. 149.<br />

155


Na lição desse autor, todas as instituições jurídicas, qual<br />

for a sua natureza, se propriedade ou não, evoluem de acordo com a<br />

necessidade econômica que elas representam. Essa transformação não<br />

depende da natureza do regime político que está em voga, mas, sobretudo,<br />

porque deve ser uma função social e estarem aptas a atender a coletividade,<br />

que se torna uma necessidade cada vez mais presente.<br />

função social, questiona:<br />

Léon Dugit, após conceber a propriedade como uma<br />

“A quel besoin économique est venue répondre, d’une<br />

manière générale, l’institution juridique de la proprieté? Il<br />

est très simple et apparaît dans toute société: c’est le<br />

besoin d’affecter certaines richesses à des buts individuals<br />

ou collectives defines, et par suite le besoin de garantir et<br />

de protéger socialement cette affectation. Pour cela, que<br />

faut-il/ Deux choses: il faut d’abord, d’une manière<br />

générale, que tout acte fait confomément à l’un de ces<br />

buts soit sanctionné, et en second lieu il faut que tous les<br />

actes qui y sont contraires soient socialement réprimés”. 152<br />

Vê-se, pela exposição desse doutrinador francês, que a<br />

instituição jurídica da propriedade deve atender a certas categorias de<br />

metas, seja uma categoria no plano do indivíduo, seja ela no plano do<br />

coletivo. Para esse autor, a instituição da propriedade deve alcançar um fim<br />

152 (No vernáculo – tradução livre): "Qual necessidade economica corresponde, de uma maneira geral, a<br />

instituição juridicial da propriedade? Isto é simples e aparece em toda sociedade: é a necessidade de<br />

destinar certas riquezas a metas individuais ou coletivas definidas e de proteger e garantir socialmente esta<br />

aplicação. O que é necessario ? Duas coisas: primeiro, de uma maneira geral, que tudo deve ser feito para<br />

atingir o objetivo, tudo o que for contra este objetivo deve ser reprimido”, OB. Cit. p. 150-151.<br />

156


almejado pela própria razão de ser da instituição, e é nesse objetivo, que<br />

reside a razão de ser de qualquer instituição jurídica, proprietária ou não.<br />

O professor Carlos Alberto Dabus Maluf, após prestigiar a doutrina<br />

do mestre francês pontifica:<br />

“(.......) hoje, a ninguém é dado ignorar, a propriedade<br />

perdeu já as suas mais fortes características antigas, e<br />

que, ante o desenvolvimento das novas correntes do<br />

pensamento político e social, inspiradas nas idéias<br />

solidárias da época, via sendo paulatinamente substituída<br />

a sua concepção clássica por uma concepção dinâmica,<br />

mais humana e de maior e mais denso conteúdo<br />

social”. 153<br />

Entendemos, que essa concepção dinâmica, ao qual o autor se refere,<br />

é aquela concernente às várias mutações assumidas pela propriedade na<br />

evolução de sua própria instituição jurídica. Desde de um direito absoluto e<br />

puramente individualista, para uma propriedade arraigada fortemente pelo<br />

sentido de valor de solidariedade social que marcou o fim século XIX e que<br />

adentrou o século XX, frutos das lutas sociais, políticas e ideológicas do<br />

qual foi palco as nações européias.<br />

O texto constitucional, vigente no Brasil, confere duas propriedades,<br />

uma propriedade individual e uma propriedade função social.<br />

Depreende-se do texto constitucional, vigente no artigo 5º XXII, da<br />

Constituição Federal brasileira, que a propriedade é um direito subjetivo,<br />

153<br />

<strong>DA</strong>BUS MALUF. Carlos Alberto. Limitações ao Direito de Propriedade. São Paulo: Editora Revista<br />

dos Tribunais, 2ª edição, p.68.<br />

157


porque inserido como direito humano fundamental, estando, portanto,<br />

consagrada na ordem jurídica.<br />

Diante do que foi exposto, respeitadas as opiniões divergentes,<br />

entendo que o direito de propriedade no limiar do século XXI , ainda que<br />

com o advento do Estado Social de Direito, não retirou da propriedade, o<br />

caráter de direito absoluto e individualista. O que ocorreu foi uma<br />

transformação do plano da norma jurídica, que passou a exigir do<br />

proprietário a adoção de uma função social, capaz de operacionalizar a<br />

propriedade, isto é, dar-lhe uma destinação econômica, apta a produzir<br />

bens, riquezas e comodidades, em benefício do proprietário e da<br />

coletividade.<br />

No Direito Francês, a propriedade foi consagrada como um direito<br />

absoluto. O Código Civil francês representou os ideais da burguesia que,<br />

como já dissemos, sonhava com o poder. Nesse sentido, o artigo 544<br />

daquele Código estabelecia:<br />

“La propriété est le droit de jouer et disposer de choses de<br />

la manière la pus absolue, pourvu qu’on n’ en fasse pas un<br />

usage prohibe par les lois ou par les règlements”. 154<br />

154<br />

(No vernáculo – tradução livre) : “A propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas da maneira<br />

mais absoluta, desde que delas não se faça uso proibido pelas leis ou por regulamentos”<br />

158


De acordo com José Rodrigues Arimatéa:<br />

“ (....) o Código Civil francês, ao admitir a limitação de<br />

uso da propriedade por regulamento, possibilitou ao<br />

Poder Público vedar determinada forma de uso da<br />

propriedade que, discricionariamente, entenda ser nociva<br />

aos interesses defendidos naquele momento”. 155<br />

Pensamos que os interesses defendidos, à época da edição do Código<br />

Civil francês, não eram os interesses da coletividade e, sim, os interesses da<br />

burguesia. No nosso sentir, a intervenção, que era muito pouca, só se dava<br />

no interesse do próprio Estado, quando desejava desapropriar as terras, para<br />

atender ao interesse público.<br />

Devemos lembrar que o direito civil francês forneceu para os demais<br />

países da Europa e, mais adiante, para os países da América Latina e da<br />

América Espanhola, os princípios básicos da liberdade, da igualdade, como<br />

condicionantes à aquisição da propriedade privada, como sendo a pedra<br />

angular da preservação desse direito.<br />

O professor Arruda Alvim, tratando da questão da função social da<br />

propriedade fornece opinião abalizada na contextualidade do século XIX.<br />

Segundo ele:<br />

155<br />

ARIMATEA, José Rodrigues. O Direito de Propriedade. Limitações e Restrições Públicas. Editora<br />

Lemos e Cruz, São Paulo, p. 30.<br />

159


“Eu diria que o século XIX também teve uma função<br />

social. É claro, uma função social que se desgastou Ao<br />

longo do tempo e se mostrou insuficiente para resolver os<br />

problemas que vieram se avolumando desde a segunda<br />

metade do século XIX. Mas, de qualquer maneira, nós<br />

podemos dizer que a marca da função social do século<br />

XIX, em relação ao direito de propriedade, era de que a<br />

propriedade se mostrava como uma espécie de garantia da<br />

liberdade ou mesmo uma condição da própria liberdade. A<br />

propriedade colocou-se como condição da liberdade”. 156<br />

Entendo que, no século XIX, havia uma conotação de função social da<br />

propriedade, diversa da que hoje o sistema jurídico estabelece, ou seja, uma<br />

função social econômica e estribada nas exigências da solidariedade social,<br />

pois a meu ver, a socialidade social, que havia no século XIX, era uma<br />

socialidade de uma classe social apenas, ou seja, a classe burguesa.<br />

De qualquer modo, devemos reconhecer, também, que, na França, a<br />

função social do direito foi arraigada a partir da realidade histórica,<br />

consagrada pela Declaração dos Direitos Humanos.<br />

156<br />

ARRU<strong>DA</strong> ALVIM NETTO, José Manoel de.Função Social da Propriedade. Revista Autônoma de<br />

Direito Privado. Editora Juruá, Nº 01, p.13.<br />

160


4.3. No direito alemão<br />

A função social do direito, na Alemanha, ganhou notoriedade, a partir<br />

da Constituição Federal de 1919 e, é dessa época que emerge um novo<br />

contexto normativo, cuja vertente é, também, a idéia de Estado Social de<br />

Direito.<br />

A Constituição de Weimar, como historicamente ficou conhecida,<br />

firmou no plano normativo, o reconhecimento de vários direitos humanos<br />

fundamentais. É certo que essa inovação atende à realidade vivida na<br />

Europa e, nesse particular, a Alemanha foi o palco de profundas lutas<br />

ideológicas, políticas e sociais, antes já mencionadas.<br />

No direito alemão, a propriedade foi disciplinada como uma garantia<br />

ao direito hereditário, ao lado da sucessão, como se vê das disposições<br />

constitucionais referendadas pelo artigo 14 da Constituição alemã:<br />

1. Die Eigenschaft und das Recht der erblichen<br />

Reihenfolge werden garantiert. Seine Natur und seine<br />

Begrenzungen werden durch Gesetz reguliert. 157<br />

2. Die Eigenschaft zwingt. Sein Gebrauch muß zum<br />

allgemeinen Wohl gleichzeitig dienen. 158<br />

157<br />

((No vernáculo – tradução livre): 1.Serão garantidos a propriedade e o direito de sucessão. Seu conteúdo<br />

e limites serão definidos por lei.<br />

158<br />

2. propriedade pressupõe obrigações. O seu uso deverá servir também ao bem comum.<br />

161


3. Die Enteignung wird nur angesichts der Wohlfahrt vom<br />

Kollektiv erlaubt. Aber sie kann in der Tugend eines<br />

Gesetzes bearbeitet werden, das die Weise und das Maß<br />

der Entschädigung regelt. Die Entschädigung muß<br />

festgestellt werden und im Zweikampf im Turnier haben,<br />

das sie die Interessen der Gemeinschaft und der<br />

interessierten Parteien zählt. 159<br />

O direito privado alemão mantém consagrado o princípio da função<br />

social da propriedade, como historicamente ficou registrado na Constituição<br />

de Weimar, antes já referido. 160<br />

4.4. No direito italiano<br />

O direito constitucional italiano concebeu a propriedade<br />

condicionada a uma função social, o que demonstra, em nosso sentir, que<br />

sofreu uma influência da Doutrina Social da Igreja Católica, no fim do<br />

século XIX.<br />

Modernamente, a Constituição italiana de 27 de dezembro de 1947,<br />

imprimiu verdadeiro mandamento fundamental, adotando a função social da<br />

propriedade, disciplinando em seu artigo 42:<br />

159<br />

3. Só se admitirá a desapropriação em vista do bem comum. Ela só poderá ser efetuada por uma lei ou<br />

em virtude de uma lei que estabeleça a natureza e a extensão da indenização. A indenização deverá ser<br />

calculada levando-se em conta, de forma equitativa, os interesses da comunidade e os das partes<br />

afetadas. Litígios concernentes ao montante da indenização serão dirimidos pelo Juízo ordinário.<br />

160<br />

Estabelece o art. 903, do Código Civil alemão: BGB. Art. 903. [Befugnisse des Eigentümer] “Der<br />

Eigentümer einer Sache kann, soweit nicht das Gesetz oder Rechte Dritterentgegenstehen, mit der Sache<br />

nach Beliebem verfahren un andere von jeder Einwirkung aussehliebem. Der Eigentümer eines Tieres<br />

hat bei der Ausübung siener Beugnisse die besonderen Vorschriften zum Schutz der Tiere zu beachten.”<br />

162


“La proprietà è pubblica o privata. I beni economici<br />

appartengono allo Stato, ad enti o a privati.<br />

La proprietà privata è riconosciuta e garantita dalla<br />

legge, che ne determina i modi di acquisto, di godimento e<br />

i limiti allo scopo di assicurarne la funzione sociale e di<br />

renderla accessibile a tutti.<br />

La proprietà privata può essere, nei casi preveduti dalla<br />

legge, e salvo indennizzo, espropriata per motivi<br />

d'interesse generale.<br />

La legge stabilisce le norme ed i limiti della successione<br />

legittima e testamentaria e i diritti dello Stato sulle<br />

eredità”. 161<br />

O sistema constitucional italiano, que divide a propriedade em<br />

pública e privada, é diferente do sistema brasileiro, porque lá foi instituída a<br />

separação, no plano do ordenamento jurídico, em duas propriedades, uma<br />

propriedade pública e uma propriedade privada, ao passo que o nosso<br />

sistema não diferenciou uma categoria de outra.<br />

Embora o sistema positivo brasileiro não tenha adotado o sistema<br />

italiano, ele se encontra de forma esparsa, espalhado no próprio sistema<br />

jurídico, como é o caso, por exemplo, do Código Civil, que prevê, no artigo<br />

98 e seguintes, as várias classes de bens, tratados no primeiro capítulo.<br />

Oportuno lembrar que a propriedade foi constitucionalizada na Carta<br />

Maior italiana, no Capítulo III – Das Relações Econômicas, e não dos<br />

161<br />

(No vernáculo – tradução livre): A propriedade é pública ou privada. Os bens econômicos pertencem ao<br />

Estado, a instituições ou a particulares. A propriedade particular é reconhecida e garantida pela lei, que lhe<br />

determina os meios de aquisição e gozo, assim como os limites, com o objetivo de assegurar sua função<br />

social e torná-la acessível a todos. A propriedade particular poderá ser expropriada, nos casos previstos<br />

pela lei, e contra indenização, por razões de interesse geral. A lei fixa as regras e os limites da sucessão<br />

legal ou testamentária, assim como os direitos do estado sobre as heranças.<br />

163


direitos e garantias individuais, como se poderia esperar, em face da<br />

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.<br />

Para Pietro Perlingieri, a função social da propriedade:<br />

(...) deve ser entendida não como uma intervenção ‘em<br />

ódio’ à propriedade privada, mas torna-se ‘a própria<br />

razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a<br />

um determinado sujeito’, um critério de ação para o<br />

legislador, e um critério de individuação da normativa a<br />

ser aplicada para o intérprete chamado a avaliar as<br />

situações conexas à realização de atos e de atividades do<br />

titular”. 162<br />

De acordo com o pensamento desse jurista italiano:<br />

“Toda lei deve realizar também a função social da<br />

propriedade, salvo se for atuativa de institutos ablativos<br />

como a expropriação ou a nacionalização,para os quais o<br />

discurso seria diverso. Enquanto que a função social<br />

atribui ao legislador um controle de conformidade (em<br />

termos de idoneidade, coerência, razoabilidade), a<br />

ablação sancionatória é chamada em causa somente na<br />

hipótese patológica, como conseqüência da não atuação<br />

da função social”. 163<br />

162<br />

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao direito Civil Constitucional. 2ª edição,<br />

Editora Renovar, Tradução de Maria Cristina de Cicco, Rio de Janeiro, 2.002., p. 226.<br />

163<br />

Ibidem., p. 227.<br />

164


Para Stefano Rodotá, há uma distinção entre fim e função de uma<br />

determinação estrutura, pois afirma esse jurista:<br />

Segundo esse autor:<br />

“intendendos il primo come destinazione ad um compito<br />

astratasmente fissato ed immutabile, l’ altra come lo<br />

storico e concreto attegiarsi de fronte a situazioni sempre<br />

rinnocante e diverse”. 164<br />

“la funzione sociale, infatti, non opera soltanto come<br />

critério formale di legitimazione legislativi conformanti la<br />

situazione dei privati proprietari. Opera anche, nel senso<br />

già indicato, come strumento Che legitima l’ applicazione<br />

analógica di singole norme o di complessi normativi<br />

altrimenti ritenuti eccezionali. Ed. Opera, infine, come<br />

necessario critério de interpretazione o reinterpretazzione<br />

del materiale legislativo”…“il principio generali della<br />

funzione sociale si manifesta come immediatamente<br />

operante come strumento de controllo di attività<br />

proprietari” 165<br />

164<br />

RODOTÁ, Stefano. II terribile diritto, Societá Editrici II Mulino, 2ª edição acrescida, 1990, p. 221: no<br />

vernáculo: “entendendo-se o primeiro como distinção para um dever abstratamente fixo e imutável, a<br />

outra como uma histórica e concreta tomada de atitude diante de situações sempre renováveis e<br />

diversas”.<br />

165<br />

Ibidem. p. 330; no vernáculo: “a função social, de fato, não opera somente como critério formal de<br />

legitimação de intervenções legislativas, adaptando a situação dos proprietários privados. Opera,<br />

também, no sentido já indicado, como instrumento que legítima a aplicação analógica de normas<br />

individuais ou de complexos normativos de outra forma considerados excepcionais. E, opera, enfim,<br />

como critério necessário de interpretação, ou reinterpretação do material legislativo”....”o princípio<br />

geral da função social manifesta-se como imediatamente operante, como instrumento de controle da<br />

atividade dos proprietários”.<br />

165


Assim, o princípio da função social da propriedade não pode ser visto<br />

como o conjunto de limitações ao exercício do direito de propriedade, posto<br />

que, na realidade, a função social se traduz no conteúdo da norma jurídica.<br />

A doutrina italiana defende a tese de que a propriedade tem uma<br />

função social impulsiva, que decorre do poder-dever, que tem o proprietário<br />

do imóvel, de utilizar a coisa, para atender e satisfazer às necessidades do<br />

bem comum da coletividade.<br />

Discorrendo sobre o tema, Eros Roberto Grau pontifica:<br />

“Distingue-se, assim, o tratamento conferido à<br />

propriedade, pela Constituição Italiana, daqueles<br />

atribuídos à matéria pela generalidade de diversas<br />

Constituições que, em regra, muito menos<br />

expressivamente, definem, basicamente, que ninguém pode<br />

ser privado de sua propriedade ou vê-la limitada, senão<br />

em razão de utilidade pública ou social (v.g. Constituição<br />

da República Federal da Alemanha, art. 15; constituição<br />

belga, art. 11; Constituição mexicana, art. 27;<br />

constituição venezuelana, ats. 99 e 105)”. 166<br />

Essa tendência não foi acatada pelo direito constitucional italiano<br />

que, no entanto, evoluiu, partindo da premissa de que a propriedade,<br />

necessariamente, exerce uma função econômica. Tal função econômica está<br />

relacionada ao direcionamento dos meios de produção, em que a<br />

166<br />

GRAU, Eros Roberto. Função Social da Propriedade (Direito Econômico), in Enciclopédia Saraiva do<br />

Direito, v. 39.22, editora Sarai va, São Paulo, 1977, p.22.<br />

166


propriedade ocupa lugar de destaque. Vale, também, dizer que esse modelo<br />

de propriedade, como condicionante da ordem econômica, foi adotado, no<br />

Brasil, no artigo 170 da Constituição Federal.<br />

4.5. No direito espanhol<br />

A Constituição espanhola reconhece o direito à propriedade privada,<br />

no artigo 33, disciplinando:<br />

“Artículo 33 - 1. Se reconoce el derecho a la propiedad<br />

privada y a la herencia. 2. La función social de estos<br />

derechos delimitará su contenido, de acuerdo con las<br />

leyes. 3. Nadie podrá ser privado de sus bienes y derechos<br />

sino por causa justificada de utilidad pública o interés<br />

social, mediante la correspondiente indemnización y de<br />

conformidad con lo dispuesto por las leyes.” 167<br />

Destaca José Luis de Los Mozos, acerca das transformações da<br />

propriedade privada na Espanha:<br />

“Como consequencia de las técnicas de la planificación y<br />

de la ordenación del territorio, lo que se ha producido<br />

167 Art. 33.1- São reconhecidos o direito à propriedade privada e o direito à herança.2-A função social desses direitos<br />

delimitará o seu conteúdo nos termos da lei.3- Ninguém poderá ser privado dos seus bens e direitos a não ser por<br />

causa justificada de utilidade pública ou interesse social, mediante a correspondente indenização e em<br />

conformidade com o disposto nas leis.<br />

167


verdaderamente, más que una transformación de la<br />

propriedad que genera nuevas limitaciones del derecho,<br />

ha tenido lugar una nueva delimitación de los objetos<br />

sobre los que recae el mismo, mediante la incorporación<br />

en muchos casos a la actuación de aquílles del concepto<br />

de ‘finca funcional”. 168<br />

A propriedade, na Espanha, também é reconhecida como um direito,<br />

que atende a uma função social, ou seja, propriedade funcionalizada.<br />

4.6. No direito português<br />

Estabelece a Constituição portuguesa no artigo 62º que:<br />

1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à<br />

sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da<br />

Constituição.<br />

2. A requisição e a expropriação por utilidade pública só<br />

podem ser efetuadas com base na lei e, fora dos casos<br />

previstos na Constituição, mediante pagamento de justa<br />

indenização.<br />

168<br />

El Derecho de propiedad: crisis y retorno a la tradición jurídica. Madri: Derechos Reunidas, 1993, p.<br />

95. (No vernáculo – tradução livre): “como conseqüência das técnicas de planejamento e de<br />

ordenamento do território, o que se produziu verdadeiramente, mais que uma transformação da<br />

propriedade que gera novas limitações do direito, foi uma nova delimitação dos objetos sobre os quais o<br />

mesmo recai, mediante a incorporação, em muitos casos, da atuação daqueles do conceito de<br />

‘propriedade funcional’”.<br />

168


Comentando a disposição constitucional da propriedade privada em<br />

Portugal, assegura Ana Prata:<br />

“A sua colocação entre os direitos econômicos tem, só por<br />

si, o sentido de a afirmar como um direito concebido pela<br />

ordem jurídica para a realização de fins econômicos e<br />

sociais - em que se integram, mas que se não reduzem aos<br />

fins individuais do seu titular”. 169<br />

Está claro que, para a doutrinadora portuguesa, estando, a<br />

propriedade, disciplinada dentro do capítulo da ordem econômica, ela<br />

desempenha uma atividade peculiar do Estado de atingir os fins sociais.<br />

Lecionando sobre função social da propriedade, sustenta essa autora:<br />

“Ou se concebe a função social como uma espécie de<br />

cláusula geral do direito privado, destinada a funcionar<br />

como instrumento de aferição e adequação judicial dos<br />

comportamentos proprietários, ou se entende que a lei a<br />

utiliza directamente para realizar a justiça social, isto é,<br />

que ela se resolve, primariamente, em obrigações postas<br />

a cargo dos proprietários, ou, finalmente, assume uma<br />

posição eclética, entendendo que é, primariamente, a lei<br />

que cabe dar conteúdo à noção de função social – que não<br />

deixa nunca de ter um certo grau de indeterminação –<br />

mas que, do mesmo passo, é possível, a partir das<br />

disposições legais, ter uma noção de função social que<br />

169 PRATA, Ana. A tutela Constitucional da Autonomia Privada. Editora almedina, Coimbra, p. 177.<br />

169


170 Ibidem, p.174.<br />

171 Ibidem, p. 175.<br />

serve como instrumento judicial de apreciação das<br />

condutas dos proprietários em concreto”. 170<br />

De acordo com essa autora:<br />

“O que se pretende acentuar é que a função social não<br />

constitui uma cláusula geral sem conteúdo normativo e<br />

preciso, cabendo aos tribunais a decisão sobre a<br />

oportunidade, o sentido e a extensão da sua concreta<br />

actuação. Antes se trata de um conceito cujo conteúdo é<br />

fornecido pela lei, e é com atenção a ele em sua aplicação,<br />

que os tribunais intervêm; e essa intervenção, se<br />

subordinada à lei, não deixa de ser importante,<br />

importância que decorrerá da correcta interpretação não<br />

restritiva das normas consagradoras da função<br />

social”. 171 (sic)<br />

E mais adiante, com discernimento assegura:<br />

“Em síntese, pode caracterizar-se a função social da<br />

propriedade na Constituição portuguesa segundo duas<br />

idéias básicas: de uma forma genérica, a proteção da<br />

propriedade – de bens de produção – resolve-se,<br />

tendencialmente, na proteção da utilidade produtiva de<br />

bens, isto é, a função social analisa-se em obrigações de<br />

utilizar o bem de acordo com a sua função produtiva, de<br />

forma a contribuir para o incremento da produção<br />

nacional, e sem lesão dos interesses dos consumidores e<br />

170


utentes dos bens e serviços produzidos; de uma forma mais<br />

específica, a propriedade constitui um instrumento de<br />

instauração de novas relações de produção e de novas<br />

relações sociais”. 172<br />

Para essa autora, a função social da propriedade decorre da lei e há de<br />

ser aplicada pelos tribunais em obediência a esse comando normativo.<br />

4.7. No direito mexicano<br />

A função social da propriedade, no direito mexicano, foi o resultado<br />

das lutas sociais, que ocorreram naquele país, no final do século XIX e se<br />

estenderam, até o início do século XX.<br />

No plano social, as revoltas trabalhistas foram o marco determinante,<br />

para que o processo político delineasse uma nova linguagem, no plano<br />

normativo.<br />

A Constituição mexicana proclama:<br />

172 Ibidem, p. 184-185.<br />

“Artículo 27. La propiedad de las tierras y aguas<br />

comprendidas dentro de los límites del territorio nacional,<br />

corresponden originariamente a la Nación, la cual ha<br />

171


tenido y tiene el derecho de trasmitir el dominio de ellas a<br />

los particulares, constituyendo la propiedad privada.Las<br />

expropiaciones sólo podrán hacerse por causa de utilidad<br />

pública y mediante indemnización.La Nación tendrá en<br />

todo tiempo el derecho de imponer a la propiedad privada<br />

las modalidades que dicte el interés público, así como el<br />

de regular, en beneficio social, el aprovechamiento de los<br />

elementos naturales susceptibles de apropiación, con<br />

objeto de hacer una distribución equitativa de la riqueza<br />

pública, cuidar de su conservación, lograr el desarrollo<br />

equilibrado del país y el mejoramiento de las condiciones<br />

de vida de la población rural y urbana. En consecuencia,<br />

se dictarán las medidas necesarias para ordenar los<br />

asentamientos humanos y establecer adecuadas<br />

provisiones, usos, reservas y destinos de tierras, aguas y<br />

bosques, a efecto de ejecutar obras públicas y de planear y<br />

regular la fundación, conservación, mejoramiento y<br />

crecimiento de los centros de población; para preservar y<br />

restaurar el equilibrio ecológico; para el fraccionamiento<br />

de los latifundios; para disponer, en los términos de la ley<br />

reglamentaria, la organización y explotación colectiva de<br />

los ejidos y comunidades; para el desarrollo de la pequeña<br />

propiedad rural; para el fomento de la agricultura, de la<br />

ganadería, de la silvicultura y de las demás actividades<br />

económicas en el medio rural, y para evitar la destrucción<br />

de los elementos naturales y los daños que la propiedad<br />

pueda sufrir en perjuicio de la sociedad.”. 173<br />

É importante relembrar o que já foi dito sobre propriedade no<br />

México, onde se percebe, claramente, que não há uma propriedade pública e<br />

uma propriedade privada, como no caso do Brasil, ainda que prevista,<br />

separadamente, na Constituição Federal e no Código Civil de 2002. Na<br />

173<br />

A tradução do artigo 27 da Constituição mexicana se encontra traduzido no item 1.12. do primeiro<br />

capítulo dessa dissertação.<br />

172


Constituição mexicana a propriedade pertence à nação e esta a distribui a<br />

quem dela possa utilizar.<br />

173


Capítulo V<br />

5. FUNÇÃO <strong>SOCIAL</strong> <strong>DA</strong> PROPRIE<strong>DA</strong>DE NO DIREITO POSITIVO<br />

BRASILEIRO<br />

5.1. Introdução<br />

A exposição, feita até o presente momento, permite compreender o<br />

perfil jurídico da propriedade, no plano histórico, em várias épocas e em<br />

alguns países, em especial, com relação à função social, que a propriedade<br />

assumiu no século XX.<br />

Para que possamos compreender como se deu, no plano normativo<br />

pátrio, a função social da propriedade, é indispensável fazer um breve<br />

levantamento histórico das várias constituições, para, delas, extrair em que<br />

momento, a função social da propriedade foi adotada, como princípio<br />

jurídico.<br />

É preciso, também, delinear, no plano do ordenamento positivo<br />

brasileiro, se a função social da propriedade tem o condão de tornar o<br />

direito de propriedade um direito relativo, ou se é possível afirmar que<br />

persiste o caráter absoluto da propriedade, ao lado da função social.<br />

174


5.2. A Constituição Federal de 1824<br />

A primeira Constituição brasileira, mesmo que nascida sob a égide da<br />

Coroa Portuguesa, foi promulgada no Segundo Reinado, estabelecendo, no<br />

artigo 179, inciso XXII, a propriedade, como direito absoluto,<br />

disciplinando:<br />

“É garantido o direito de propriedade em toda a sua<br />

plenitude. Se o bem público legalmente verificado exigir o<br />

uso, e emprego da propriedade do cidadão, será ele<br />

previamente indenizado do valor dela. A lei marcará os<br />

casos em que terá lugar esta única exceção, e dará as<br />

regras para se determinar a indenização”.<br />

Decorre, dessa Constituição, que o direito de propriedade seguiu o<br />

modelo consagrado pelo Código de Napoleão, tendo em vista que o modelo<br />

individualista da propriedade, do ponto de vista filosófico, se estendeu para<br />

todo o Ocidente.<br />

Na Constituição Federal de 1824, a propriedade era privada e<br />

absoluta, mas, nas hipóteses de interesse público, podia o Estado chamar<br />

para si a propriedade do particular, mediante indenização.<br />

175


5.3. A Constituição Federal de 1891<br />

A Constituição Federal de 1891, Primeira Carta Política do Regime<br />

Republicano brasileiro, consagrou a idéia de propriedade, fundada nos<br />

princípios que nortearam a Revolução Francesa, como o da igualdade, da<br />

liberdade e o da fraternidade.<br />

A propriedade, no primeiro documento constitucional brasileiro, era<br />

essencialmente, individual, de modo que a questão social ligada à<br />

propriedade, nesse momento histórico, ainda não se fazia presente. O que<br />

justifica essa ponderação é o fato de, ainda, não haver a doutrina publicista<br />

da função social do direito, empreendida pelas constituições do México e da<br />

Alemanha, que ecoaram somente no século XX e, também, porque a<br />

doutrina de Léon Duguit só viria a lume anos mais tarde.<br />

Nesse período, foi possível verificar que, no plano do direito de<br />

propriedade, houve o surgimento da Rerum Novarum, mas que não se<br />

projetou para o Brasil, dada, certamente, a falta de influência da então<br />

jovem República.<br />

Na Constituição de 1891, a propriedade era tida como um direito<br />

individual e era a condição essencial, para a inviolabilidade dos direitos<br />

civis e políticos do cidadão.<br />

176


5.4. A Constituição Federal de 1934<br />

A partir da Constituição Federal de 1934, o direito de propriedade<br />

sofreu suas primeiras mutações no cenário nacional, o que se deve à nova<br />

realidade jurídica, que o mundo contemporâneo conheceu, com a edição da<br />

Constituição mexicana de 1917 e a Constituição alemã de 1919, em que se<br />

adota o Estado Social de Direito.<br />

A dimensão social reconhece o direito à propriedade individual, mas<br />

impõe que esse direito atenda ao interesse coletivo.<br />

Lembra com discernimento o professor Celso Ribeiro Bastos:<br />

“ (....) que a matiz dominante dessa Constituição foi o<br />

caráter democrático com um certo colorido social.<br />

Procurou-se conciliar a democracia liberal com o<br />

socialismo, no domínio econômico-social; o federalismo<br />

como o unitarismo; o presidencialismo com o<br />

parlamentarismo, na esfera governamental”. 174<br />

174<br />

BASTOS. Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, Editora Saraiva, 14ª edição, São Paulo,<br />

1992, p. 115..<br />

177


E continua esse publicista:<br />

“Finalmente, há o lado social da Constituição, que<br />

resultou da necessidade de atender à massa urbana<br />

proletária existente, sobretudo nas ferrovias e de nos<br />

portos. Estas atividades eram nevrálgicas para a<br />

economia de exportação do país, o que levou Getúlio a<br />

enquadrá-las, inclusive pela via de sindicalização oficial<br />

(...).”. 175<br />

Como se vê, a função social do direito e da propriedade são adotadas<br />

na Constituição de 1934, atribuindo um novo valor à norma jurídica, ou<br />

seja, o valor do bem comum.<br />

5.5. A Constituição Federal de 1937<br />

O texto constitucional acerca da propriedade privada se manteve<br />

inalterado com a Constituição Outorgada de 1937.<br />

que:<br />

175 Ibidem, p. 117.<br />

Estabelecia o artigo 122 e nº 14 da Constituição Federal de 1937,<br />

178


“Art. 122 – A Constituição assegura aos brasileiros e<br />

estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à<br />

segurança individual e à propriedade, nos termos<br />

seguintes<br />

(...)<br />

14) o direito de propriedade, salvo a desapropriação por<br />

necessidade ou utilidade pública, mediante indenização<br />

prévia. O seu conteúdo e os seus limites serão os definidos<br />

nas leis que lhe regularem o exercício;<br />

(...).”<br />

Podemos verificar que a citada disposição assegurava o direito à<br />

propriedade privada, fazendo restrição, apenas, para a hipótese de<br />

desapropriação, mediante prévia indenização. Não tratou, como a<br />

Constituição de 1934, da questão social e do bem comum.<br />

5.6. A Constituição Federal de 1946<br />

A Constituição Federal de 18 de setembro de 1946 foi inspirada na<br />

Constituição Federal de 1934, sendo ela reconhecida, como uma das<br />

melhores constituições da República brasileira.<br />

Nesse sentido, o professor Celso Ribeiro Bastos leciona:<br />

179


“(...). Tecnicamente é muito correta e do ponto de vista<br />

ideológico traçava nitidamente uma linha de pensamento<br />

libertário no campo político sem descurar da abertura<br />

para o campo social que foi recuperada da Constituição<br />

de 1934. Com isto, o Brasil procurava definir o seu futuro<br />

em termos condizentes com os regimes democráticos<br />

vigentes no Ocidente, da mesma forma que dava<br />

continuidade à linha de evolução democrática iniciada<br />

durante a Primeira República. Era, portanto, um<br />

reencontro do País com suas origens pretéritas,<br />

salientando-se o obscuro período do Estado Novo. 176 (sic)<br />

A função social da propriedade foi adotada, na Constituição Federal<br />

de 1946, no Capítulo da “Ordem Econômica e Social”.<br />

O artigo 45 desta Constituição prescrevia:<br />

“A ordem econômica deve ser organizada conforme os<br />

princípios da justiça social, conciliando a liberdade de<br />

iniciativa com a valorização do trabalho humano”.<br />

Já o artigo 146, § 16, previa o direito de propriedade, como direito<br />

individual, preceituando:<br />

176 Ibidem, p. 126.<br />

Ӄ garantido o direito de propriedade, salvo o caso de<br />

desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por<br />

180


interesse social, mediante prévia e justa indenização em<br />

dinheiro”.<br />

O que se pode dizer, a respeito dessa disposição constitucional, é que<br />

a propriedade é garantida no plano dos direitos subjetivos, entretanto, tal<br />

direito subjetivo sede lugar ao interesse social, que é, sem dúvida alguma, a<br />

pedra de toque do Estado Social de Direito, já adotado pela Constituição de<br />

1934 e resgatado na Constituição de 1946. Assim, a exceção ao direito de<br />

propriedade é o interesse social, que se contrapõe à vontade do indivíduo e<br />

eleva a propriedade à condição de bem social relevante.<br />

Essa contraposição não é absoluta, porque impõe ao Estado o dever<br />

de indenização ao particular. Essa indenização há de ser justa e deve<br />

corresponder ao preço de mercado, quando incidir o ato expropriatório.<br />

A mesma Constituição estabeleceu no artigo 147 que:<br />

“O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar<br />

social. A lei poderá, com observância do disposto no art.<br />

141, § 6º, promover justa distribuição da propriedade<br />

para todos”.<br />

O permissivo constitucional acima adotou e assegurou a função<br />

social da propriedade, certamente, em razão da evolução histórica do direito<br />

e da necessidade econômica, empreendida pelo uso da propriedade.<br />

181


Em seus comentários à Constituição Federal de 1946, Pontes de<br />

Miranda assegura:<br />

“O direito brasileiro sempre teve limitações ao uso da<br />

propriedade. O Código Civil mais as explicitou. Porém,<br />

uma coisa é o limite ao uso, elaborado milenarmente, ou<br />

sob a inspiração de regras entre vizinhos, e outra o limite<br />

que não precisa do elemento conceptual da vizinhança, ou,<br />

sequer, da proximidade, ou sob a inspiração de regras<br />

entre vizinhos. Bem estar social é conceito bem mais vasto<br />

que vizinhança, ou proximidade. Cumpre, porém, advertirse<br />

em que esse conceito não dá arbítrio ao legislador. Não<br />

é ele que, a seu talante, enuncia julgamentos de valor,<br />

para que, invocando o bem-estar social, limite o uso da<br />

propriedade. O art. 147, 1ª parte, não disse que a lei<br />

poderia restringir o uso do direito de propriedade, o que<br />

se havia de entender se estivesse escrito no art. 147, 1ª<br />

parte.“O uso da propriedade é garantido dentro da lei”.<br />

Fixado o conteúdo do direito de propriedade, sabe-se até<br />

onde vai a sua usabilidade. O que o art. 147, 1ª parte,<br />

estabelece é que o uso da propriedade há de ser<br />

compossível com o bem-estar social; se é contra o bemestar,<br />

tem de ser desaprovado. O art. 147, 1ª parte, não é,<br />

portanto, somente pragmático. Quem quer que sofra<br />

prejuízo por exercer alguém o usus, ferindo ou ameaçando<br />

o bem-estar social, pode invocar o art. 147, 1ª parte,<br />

inclusive para a s ações cominatórias”. 177 (sic)<br />

De acordo com as lições desse renomado doutrinador, o bem estar<br />

social, proporcionado pelo uso da propriedade, nada tem haver com a<br />

fixação das limitações ao uso da propriedade, que considera instituição<br />

177<br />

PONTES DE MIRAN<strong>DA</strong>, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição Federal de 1.946, Vol.<br />

IV., p. 500-501.<br />

182


milenar. Há, segundo o autor, uma desautorização da lei, para aquele que<br />

usa a propriedade, sem atender ao bem estar da coletividade, existindo na<br />

hipótese de descumprimento, tutela jurisdicional do Estado, para proteger o<br />

direito ao correto uso da coisa. 178<br />

As limitações ao direito de propriedade são restrições impostas pelo<br />

Poder Público, a fim de que o proprietário faça a devida adequação do uso<br />

da coisa, evitando prejuízos aos direitos de outros proprietários, bem como<br />

atendendo às normas administrativas.<br />

5.7. A Constituição Federal de 1967<br />

Esta Constituição, a exemplo das Constituições de 1934 e a de 1946,<br />

manteve os mesmos contornos do direito de propriedade, como individual e<br />

social.<br />

A realidade constitucional, em 1967, permite afirmar que o interesse<br />

individual, havido como elemento indispensável a assegurar o direito de<br />

propriedade do indivíduo, ganhou uma dimensão social, já tratada na<br />

Constituição de 1934 e na Constituição de 1946, só que, agora, com mais<br />

força ainda.<br />

Essa dimensão social, no plano do direito de propriedade, irá ampliar<br />

o sentido social do instituto.<br />

178 Ibidem, p. 501.<br />

183


A propriedade, nesta Constituição, foi inserida no Capítulo da Ordem<br />

Econômica e Social, artigo 160, inciso III. Portanto, a nova ordem<br />

constitucional de 1967, acolheu, de uma vez por todas, as modernas<br />

concepções do Estado Social de Direito, confirmando as constituições<br />

precedentes e, servindo de suporte à Constituição de 1988. Há coerência no<br />

que foi dissertado, quando referimos que, somente após a Segunda Guerra<br />

Mundial, o Estado Social de Direito ganha contornos definitivos.<br />

É imperioso asseverar que esse modelo de propriedade social não<br />

desnaturou, em nenhum momento, a propriedade privada, que continua a<br />

ser garantida ao particular. Entretanto, essa garantia foi condicionada à<br />

realidade econômica e social da época, fazendo prevalecer o interesse e a<br />

necessidade pública sobre a particular.<br />

O Estatuto da Terra (Lei n o 4.504, de 30 de novembro de 1964)<br />

absorveu a ideologia social e influenciou, decisivamente, a Carta Federal de<br />

1967, propugnando que a propriedade rural havia de desempenhar uma<br />

função social, na medida em que, no exercício do domínio, o proprietário<br />

deveria atender alguns elementos, tais como:<br />

a) favorecer o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que<br />

nela labutam, bem como de suas famílias;<br />

b) manter níveis satisfatórios da produtividade;<br />

c) assegurar a conservação dos recursos naturais;<br />

d) observar as disposições que regulam as justas relações de<br />

trabalho entre os que a possuem e a cultivam.<br />

184


Comentando esta disposição constitucional, o publicista pátrio Eros<br />

Roberto Grau acentua:<br />

“Observe-se, ademais, que, na ordem constitucional, o<br />

princípio da função social não é contraposto ao direito de<br />

propriedade. Pelo contrário, ali se promove a integração<br />

entre ambos; deve, um ao outro, compatibilizar-se;<br />

dependendo da intensidade dessa compatibilização<br />

surgirá, com relação a esta ou aquela forma de<br />

propriedade, o conceito de propriedade-função social”. 179<br />

Nesta Constituição, a propriedade aparece, claramente, como um<br />

princípio jurídico de direito fundamental, apto a se tornar a mola propulsora<br />

do desenvolvimento social e econômico.<br />

Nesse contexto, não há qualquer possibilidade de se admitir a idéia<br />

de que o direito de propriedade possa ser confundido com as limitações ao<br />

seu exercício, já que estes dizem respeito às vedações impostas pela norma<br />

jurídica, quanto ao respeito recíproco de um proprietário, em relação aos<br />

outros e, também, à coletividade.<br />

Ao analisar o princípio da função social da propriedade, contido na<br />

Constituição Federal de 1967, assegura, nos textos a seguir, o professor José<br />

Afonso da Silva:<br />

179<br />

GRAU, Erros Roberto. Função Social da Propriedade (Direito Econômico): Enciclopédia Saraiva do<br />

Direito, Editora Saraiva, São Paulo, 1.977, p. 25.<br />

185


“A Constituição Federal (art.160,III) não estava<br />

simplesmente preordenando fundamentos às limitações,<br />

obrigações e ônus da propriedade privada”. 180<br />

“O princípio da função social da propriedade não<br />

autoriza a suprimir, por via legislativa, a instituição da<br />

propriedade privada. Contudo, parece-nos que pode<br />

fundamentar a socialização de um tipo de propriedade,<br />

onde precisamente isso se torne necessário à realização do<br />

princípio, que se põe acima do interesse individual. Por<br />

outro lado, em concreto, também não autoriza a esvaziar a<br />

propriedade de seu conteúdo essencial mínimo, sem<br />

indenização, porque este está assegurado pela norma de<br />

garantia do direito de propriedade”. 181<br />

O que se pode verificar, é que o princípio da função social da<br />

propriedade não pode suprimir o direito de propriedade, no entanto, deve<br />

servir de vetor, para que o proprietário dê ao imóvel a destinação útil, a fim<br />

de que ela produza riquezas e para que atenda e beneficie a coletividade,<br />

posição essa que é contrária ao individualismo, que sempre permeou o<br />

direito de propriedade.<br />

5.8. A Constituição Federal de 1988<br />

Depois de quase trinta anos de regime autoritário, a Constituição<br />

Democrática do Estado de Direito promulgada em 5 de outubro de 1988,<br />

absorveu o direito de propriedade e o condicionou a uma função social.<br />

180<br />

SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1981,<br />

p. 95.<br />

181<br />

Ibidem, p.96.<br />

186


O dispositivo constitucional da Carta Federal estabelece no Capítulo<br />

dos Direitos e Garantias Fundamentais, artigo 5º, incisos XXII e XXIII que:<br />

“Art. 5 o . (...)<br />

XXII – é garantido o direito de propriedade;<br />

XXIII – a propriedade atenderá sua função sócial;<br />

(...)”<br />

Com estas duas disposições legais, o direito de propriedade é<br />

assegurado, mas deve atender a uma função social, diante da realidade<br />

econômica e das grandes questões sociais enfrentadas pela sociedade, no<br />

século XX.<br />

Por outro lado, a norma de estrutura não diz o que vem a ser a função<br />

social da propriedade. No entanto, estabelece, no Capítulo II, da Política<br />

Urbana, artigo 182, as diretrizes fundamentais, para que a função social seja<br />

atendida, as quais serão analisadas no momento oportuno.<br />

Desta forma, verificados os contornos históricos, no ordenamento<br />

jurídico brasileiro, acerca do direito de propriedade, é coerente afirmar que<br />

o novo regime jurídico da propriedade é adotado, com a edição do Código<br />

Civil de 2002, e que, mais adiante, se fará sentir.<br />

O direito de propriedade, capitulado na Constituição Federal de 1988,<br />

é uma garantia e um direito humano e fundamental.<br />

187


Para que esse direito fundamental se efetive, no plano do bem estar<br />

do cidadão, a Lei Maior assegura ao homem o direito à moradia e à<br />

habitação, como predicados da existência da propriedade.<br />

É oportuno frisar que a própria Constituição não havia, em 1988,<br />

consagrado o direito à moradia como um direito social. Denota-se que<br />

houve uma omissão do legislador constituinte de 1986.<br />

Esta omissão foi sanada, por meio da Emenda Constitucional, nº 26,<br />

de 14 de fevereiro de 2000, através da qual o artigo 6º, do Capítulo II –<br />

Direitos Sociais recebeu a seguinte redação:<br />

Artigo 6º - “São direitos sociais a educação, a saúde, o<br />

trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência<br />

privada, a proteção a maternidade e à infância, a<br />

assistência aos desamparados, na forma desta<br />

Constituição”.<br />

Nesse sentido, a moradia é um direito social e, para que se efetive, é<br />

indispensável que a propriedade exerça sua função social, condizente com a<br />

realidade de quem não tem a terra e a moradia, mas que dela precisa.<br />

Em resumo, no plano do direito constitucional, há um conjunto<br />

normativo constitucional da propriedade (art. 5º, XXII e XXIII; art. 170, II,<br />

III; art. 182 §§ 2º, 3º e 4º e art. 183 §§ 1º, 2º e 3º) e um plexo civil ordinário<br />

(art. 1.228, §§ 1º, 2º, 3º 4º e 5º ), etc.<br />

188


Deve ser dito que a propriedade privada constitucional é a norma<br />

base do direito de propriedade e, dela erradia a garantia à sua aquisição a<br />

todo o cidadão, à pessoa jurídica e aos entes políticos. A ela se submete o<br />

Código Civil, como norma de menor alcance, e, ainda que o Código Civil<br />

seja uma norma de menor alcance, é possível dizer que há uma sintonia<br />

perfeita do Código Privado, em relação à Carta Federal, podendo-se<br />

reconhecer um direito à propriedade privada constitucional e um direito a<br />

propriedade no plano infraconstitucional. Todavia, fica claro que o sistema<br />

de proteção deve ser entendido, como se fosse um único, a fim de se ter<br />

uma harmonia da previsão constitucional, para aquela tratada na órbita civil,<br />

evitando que haja entendimentos dispares entre os intérpretes.<br />

Lembra Gustavo Tepedino:<br />

“Nunca porém, em toda história constitucional brasileira,<br />

a função social recebeu tratamento tão amplo e tão<br />

concretizante como o que se vê na atual Constituição. Não<br />

foi ela apenas referida como direito e garantia individual<br />

e como princípio da ordem econômica, mas ganhou, ao<br />

lado de seu adequado posicionamento no sistema<br />

constitucional, indicação de um conteúdo mínimo,<br />

expresso no que tange à propriedade imobiliária”. 182<br />

De acordo com esse autor:<br />

182<br />

TEPEDINO, Gustavo. A Garantia da Propriedade no Direito Brasileiro, Revista da Faculdade de Direito<br />

de Campos. Ano VI, nº 06 – junho de 2005p. 103.<br />

189


“A invação do constituinte de 1988 não foi um mero<br />

acolhimento das testemunhas mundiais. Embora a melhor<br />

doutrina já reconhecesse, por toda parte, a função social<br />

da propriedade, não eram poucos os ataques que a noção<br />

sofria, oriundos das camadas sociais mais conservadoras,<br />

receosas de perderem os poderes absolutos que detinham<br />

sobre eles, em geral, consideravam a função social como<br />

uma fórmula abstrata de legitimação da propriedade<br />

capitalista, incapaz de alterar seu aspecto estrutural. O<br />

pioneirismo do constituinte brasileiro, fixando critérios<br />

objetivos mínimos de realização da função social, evitou<br />

este risco, assegurando a efetividade da fórmula como um<br />

meio de controle do exercício da situação subjetiva de<br />

propriedade, em um modelo que, embora bem sucedido,<br />

deixou de ser observado na legislação infraconstitucional<br />

mais recente”. 183<br />

Assim, é reconhecido que a função social da propriedade foi tratada<br />

com grande enfoque, na Constituição de 1988 e, ainda que haja quem muito<br />

escreva sobre o assunto, nos parece que a questão da eficácia da função<br />

social da propriedade não está muito delineada na jurisprudência nacional,<br />

conforme veremos no oitavo capítulo deste trabalho.<br />

5.9. A função social da propriedade como princípio jurídico<br />

A cláusula denominada de função social representa, na realidade, um<br />

verdadeiro princípio jurídico, norteador da destinação social, política e<br />

econômica da propriedade privada e pública. Nesse sentido, logramos<br />

183 Ibidem, p. 104-105.<br />

190


asseverar que a função social da propriedade não está, apenas, afeta à<br />

propriedade privada, porque ela interfere, de modo muito especial, na<br />

propriedade pública.<br />

Decorre, dessa interpretação, que a propriedade, como direito do<br />

homem, está subjacente à noção de universalidade dos bens, importando<br />

reconhecer que o direito não iria exigir, do titular da propriedade privada, o<br />

agir diferente e a abstenção da prática de condutas ruinosas, em relação ao<br />

outro proprietário, sem o exigir, igualmente, da propriedade pública.<br />

O que diferencia a propriedade privada da pública é a destinação de<br />

ambas e a legitimidade, aliada ao uso, gozo e disposição, antes já tratado,<br />

no capítulo segundo.<br />

Na propriedade privada, o proprietário tem, a seu favor, um feixe de<br />

poderes, que devem ser exercidos, em consonância com o ordenamento<br />

jurídico, atendendo às imposições das normas civis, administrativas e à<br />

ordenação da política urbana e rural, que, de modo linear, veremos no<br />

capítulo sexto.<br />

Se a norma jurídica impõe, ao titular da coisa, uma série de<br />

exigências, para o exercício do direito é, simplesmente, pelo fato de que não<br />

desejou, o legislador, que o exercício, desse direito, fosse feito contra o<br />

sistema jurídico, assim considerado, o conjunto de normas, que compõe os<br />

vários sistemas jurídicos. Neste passo, entendemos que a função social da<br />

propriedade representa um poder dever do proprietário de destinar,<br />

economicamente, a propriedade, em proveito próprio e da sociedade.<br />

Disserta Eros Roberto Grau:<br />

191


“O que mais relevante enfatizar, entretanto, é o fato de<br />

que o princípio da função social da propriedade impõe ao<br />

proprietário – ou a quem detém o poder de controle, na<br />

empresa, - o dever de exercê-lo em benefício de outrem e<br />

não, apenas, de não o exercer em prejuízo de outrem. Isso<br />

significa que a função social da propriedade atua como<br />

fonte de imposição de comportamentos positivos –<br />

prestação de fazer, portanto, e não, meramente, de não<br />

fazer – ao detentor do poder que deflui da propriedade.<br />

Vinculação inteiramente distinta, pois, daquela que lhe é<br />

imposta de concreção do poder de polícia”. 184<br />

Pela exposição deste publicista, vê-se, claramente, que a função<br />

social da propriedade é distinta das limitações administrativas ao direito de<br />

propriedade.<br />

Para que possam ter eficácia, os sistemas jurídicos devem obedecer a<br />

uma regra de estrutura e formar um plexo normativo impositivo. É desse<br />

plexo de normas, que brota a planificação máxima desse sistema.<br />

Na estrutura das normas jurídicas, a Constituição Federal de um país<br />

é o arcabouço legal, que impõe a plena obediência à sua gênese, fazendo<br />

brotar os comandos legais, que irradiam e dão suporte às demais normas de<br />

estrutura.<br />

Nesse patamar, se impõe que o direito de propriedade deve, sempre,<br />

ser tratado como um direito, cuja fonte de estrutura normativa de maior<br />

184<br />

GRAU, Eros Roberto. A Ordem econômica na Constituição Federal de 1.988, São Paulo, Editora<br />

Malheiros, 10ª edição, 2005, p.245.<br />

192


alcance deve ser buscada, antes de ser garantido, no plano das normas<br />

jurídicas civis de menor alcance.<br />

Esta estrutura normativa superior é a Constituição Federal. A<br />

Constituição, portanto, é a base principiológica, de onde brotam as raízes de<br />

qualquer instituto jurídico.<br />

No mundo moderno, em especial, no mundo ocidental, é cada vez<br />

mais comum, a norma constitucional ser a base e o núcleo de onde brotam<br />

os comandos normativos.<br />

Sem esses comandos planificados, na norma de estrutura, fica difícil<br />

tornar eficaz o exercício dos direitos, se considerarmos que a ação humana<br />

é a mola propulsora de todas as reações que podem representar uma ou<br />

outra idéia do direito.<br />

Dito isso, concebemos o direito de propriedade como um princípio<br />

jurídico inafastável do texto maior, a cuja vertente, a norma infra-<br />

constitucional deve se submeter.<br />

5.10. A função social da propriedade como direito humano<br />

fundamental<br />

Já se pode perceber que tudo o que foi estudado, até o presente<br />

momento, não terá tanto valor, se as questões não forem vistas sob o prisma<br />

do direito constitucional.<br />

193


Os institutos jurídicos, assim considerados os vários elementos<br />

materiais que fazem parte dos direitos civis do homem e do cidadão,<br />

inclusive a propriedade, são tratados, no âmbito do direito constitucional,<br />

daí se falar num direito constitucional da propriedade.<br />

Na atual fase do direito positivo, não há dúvida de que qualquer<br />

direito e garantia fundamental do indivíduo tem sua base de sustentação na<br />

Constituição Federal.<br />

Ao falar em direitos humanos e fundamentais, o estudioso das<br />

ciências jurídicas tem uma missão árdua, consiste em localizar, no contexto<br />

histórico, os vários elementos axiológicos e normativos, que colaboraram<br />

para a manifestação e o reconhecimento dos direitos fundamentais.<br />

De acordo com o Enrique Ricardo Lewandowski:<br />

“Não se pode olvidar que os direitos humanos, tal como nós<br />

o compreendemos atualmente, têm sua origem comum: são<br />

produtos da civilização ocidental, cuja nota distintiva é o<br />

humanismo, que consiste, segundo Reale, em tomar-se o<br />

homem como valor-fonte de todos os valores. Isso não<br />

ocorre necessariamente em outras culturas, onde distintos<br />

são os paradigmas dominantes”. O humanismo ocidental<br />

funda-se basicamente na idéias de sacralidade essencial<br />

das pessoas na crença de que existem determinadas regras<br />

transcendentais às quais súditos e governantes estariam<br />

indistintamente submetidos. Esses valores manifestam-se de<br />

maneira constante, ainda que de forma difusa e<br />

inarticulada, ao longo de toda a evolução do pensamento<br />

ocidental, encontrando expressão nos escritos sagrados<br />

194


judaico-cristãos, nos clássicos greco-romanos, na<br />

jurisprudência latina e na teologia medieval”. 185<br />

Essa idéia de sacralidade advém da cultura jurídica cristã, que<br />

reconhece o homem à imagem e semelhança de Deus, ser supremo, que dita<br />

as regras, as quais a espécie humana deve se submeter.<br />

O centro dessa sacralidade era, e ainda é, até hoje, o cultivo do amor,<br />

como predicado da harmonia e da fraternidade entre os homens.<br />

No plano filosófico-histórico, vamos encontrar as idéias jus<br />

filosóficas do humanismo, no estoicismo greco-romano, que apregoava<br />

sobre a existência de uma lei natural e sobre o conceito de identidade<br />

essencial dos homens, ultrapassando a doutrina Cristã. Esta lei era uma lei<br />

divina e, segundo Zenan, a lei natural, por ser divina, poderia regular o justo<br />

e o injusto. Na idade Média, a ordem natural das coisas era ceder lugar à<br />

concepção de que o homem era não só um ser social, pertencente à<br />

sociedade terrena, mas, também, era membro de um novo mundo. A<br />

filosofia de Santo Tomás de Aquino deve promover o bem comum,<br />

podendo se contrapor à tirania dos soberanos. 186<br />

Com o fim da Idade Média, surge o mercantilismo, ventilado pela<br />

necessidade burguesa de aumentar as regiões exploradas e aumentar o poder<br />

da moeda. Surgem, com esta realidade, os vários impérios europeus, que<br />

185<br />

LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. A Formação da Doutrina dos Direitos Fundamentais, Lições de<br />

Direito Constitucional em Homenagem ao Jurista Celso Bastos, Editora Saraiva, edição 2.005, São<br />

Paulo, p. 169.<br />

186<br />

Ibidem, p. 170.<br />

195


ganham força suprema no absolutismo, doutrina que pregava que o rei era<br />

um ser absoluto, que podia declarar a guerra e celebrar a paz. 187<br />

Contudo, o absolutismo só foi, realmente, absoluto, até o momento<br />

em que a burguesia, sufocada pela política dominante da estrutura do ser<br />

supremo, passa a enfrentar o regime posto, objetivando o destaque político<br />

e a conquista de uma posição no cenário político.<br />

No plano filosófico, surge o Iluminismo, que toma, como ponto de<br />

partida, o homem natural, isto é, antes do ingresso na vida social. 188<br />

Tratando com percuciência dessa questão disserta o professor<br />

Enrique Ricardo Lewandowski:<br />

“Com esse fundamento, o Iluminismo tomou como ponto<br />

de partida para suas especulações o homem natural, ou<br />

seja, o homem antes de seu ingresso na vida social, dando<br />

origem ao Jusnaturalismo e ao Contratualismo, correntes<br />

de pensamentos interligadas, que tiveram como arautos<br />

Grocius, Puffendorf, Hobbes, Locke, Montesquieu,<br />

Rousseau e outros. Os jusnaturalistas e os contratualistas<br />

advogavam, respectivamente, a tese segundo a qual<br />

existiriam direitos naturais, eternos e absolutos,<br />

demonstráveis pela razão, válidos para todos os homens<br />

em todos os tempos e lugares, e a de que a principal,<br />

senão a única, missão do Estado, criado por um pacto<br />

187<br />

VICENTINO, Cláudio e DORICO, Gianpaolo. História para o ensino médio. Editora Spicione, 2004,<br />

1ª edição, São Paulo, p. 340-341..<br />

188<br />

Esse dado já foi tratado quando falamos da filosofia do direito e de John Locke.<br />

196


entre as pessoas, constituiria em assegurar a sua plena<br />

fruição”. 189<br />

A concepção jusnaturalista e contratualista reconhecia que os homens<br />

nasciam com direitos, que lhes são próprios e que não são impostos pelo<br />

Estado. Estes direitos são: direitos a vida, a igualdade, a segurança, a<br />

propriedade, direitos políticos, entre outros. São os chamados direitos de<br />

primeira geração, integrantes das declarações do mundo todo.<br />

No processo de transformação, podemos anotar que as sociedades<br />

sofrem mudanças. No plano tecnológico, surge a Revolução Industrial, que<br />

testemunha um novo modelo de produção, a alteração e substituição dos<br />

teares pelas máquinas a vapor. A necessidade de aumentar a produção e a<br />

busca de novos mercados faz surgir as revoltas dos trabalhadores antes já<br />

referidas. Essas revoltas fazem com que o Estado abandone a posição de<br />

mero espectador e passe a editar leis, que salvaguardem a saúde, o trabalho,<br />

os direitos sociais e culturais. São os chamados direitos de segunda<br />

geração, que, embora reconhecidos pelo Estado, não impediram, no plano<br />

social, originando novas revoltas que, mais tarde, ocasionaram a Primeira e<br />

a Segunda Guerra Mundial.<br />

No plano normativo, a Europa se depara com o advento da<br />

Constituição de Weimar de 1919 que faz surgir um novo modelo de Estado,<br />

o Estado Social de Direito, fato também corrente no México em 1917.<br />

189<br />

LEWANDOWSKI Enrique Ricardo. A Formação da Doutrina dos Direitos Fundamentais, Lições de<br />

Direito Constitucional em Homenagem ao Jurista Celso Bastos, Editora Saraiva, edição 2.005, São<br />

Paulo, p. 172-173.<br />

197


Após a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, o mundo suportou os<br />

vários resultados negativos provenientes da devastação provocada pelas<br />

lutas armadas. A Segunda Guerra Mundial trouxe prejuízos astronômicos<br />

para a humanidade, e, a partir de então, o embate passou a ser através da<br />

luta ideológica e não mais da luta armada.<br />

Ao enfoque da luta ideológica se atribuiu o nome de guerra-fria,<br />

porquanto a ideologia capitalista, de um lado, e o comunismo, de outro,<br />

representavam as forças políticas e ideológicas, que nortearam a segunda<br />

metade do século XX. Não é demais lembrar que, nessa segunda metade do<br />

século XX, ocorreu um fantástico crescimento industrial, que se expandiu<br />

pelo mundo ocidental, vindo a atingir os países denominados de terceiro<br />

mundo.<br />

O avanço tecnológico, muitas vezes desordenado, propiciou a<br />

ocorrência de grandes desastres ao meio ambiente, tornando a vida no<br />

Planeta Terra cada vez mais difícil.<br />

Esse panorama faz surgir à intervenção do Estado na proteção dos<br />

direitos ameaçados. Esses direitos são reconhecidos como direitos de<br />

terceira geração, constituindo-se em direitos fraternais da paz, da auto-<br />

determinação dos povos, do direito ao desenvolvimento, ao meio ambiente<br />

ecologicamente equilibrado, como bem de uso comum do povo e essencial<br />

a qualidade de vida. É de suma importância esclarecer que, no bojo do<br />

surgimento dos direitos de terceira geração, o direto ao meio ambiente é,<br />

certamente, o que mais rapidamente trouxe implicações, no plano da<br />

sobrevivência do próprio Planeta, porquanto, toda atividade de produção,<br />

198


seja qual for sua natureza, está regida pelas normas de proteção ao meio<br />

ambiente.<br />

Vale destacar, ainda, que no final do século XX, o modelo de<br />

produção e a capacidade de geração de riquezas estavam acima de qualquer<br />

outro condicionante.<br />

O aparecimento dos direitos difusos, a partir da consciência da<br />

finitude dos recursos ambientais, inverte a ordem de prioridades, passando,<br />

o meio ambiente, a ser condicionador do próprio desenvolvimento.<br />

No Brasil, a Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, em seu<br />

artigo 170, que cuida do desenvolvimento econômico, proclama o meio<br />

ambiente e a propriedade, como princípios que orientam o<br />

desenvolvimento.<br />

É nesse contexto de direitos humanos fundamentais, que a<br />

propriedade foi se amoldando, ao longo da história, como uma garantia<br />

indissociável do indivíduo.<br />

De acordo com o professor Celso Ribeiro Bastos:<br />

“O texto constitucional, ao dar independência à proteção<br />

da propriedade, tornando-a objeto de um inciso próprio e<br />

exclusivo, deixa claro que a propriedade é assegurada por<br />

si mesma, erigindo-se em uma das opções fundamentais do<br />

texto Constitucional, que assim repele modalidades outras<br />

de resolução da questão dominial como, por exemplo, a<br />

199


coletivização estatal. Como direito fundamental ela não<br />

poderia deixar de compatibilizar-se com a sua destinação<br />

social.(…)”. 190<br />

Todas as gerações de direitos, anteriormente expostas, tiveram o<br />

condão de assegurar, com maior razão, o direito de propriedade, guardada<br />

em cada época, a realidade histórica.<br />

Após tecer as considerações, acima, indispensáveis para a<br />

compreensão dos elementos históricos dos direitos fundamentais,<br />

concluímos que o direito de propriedade é um direito humano e<br />

fundamental. Esse direito é inerente a todo o cidadão, haja vista que o<br />

objetivo da propriedade é garantir o acesso aos bens de produção que dela<br />

decorrem, bem como garantir a residência e a moradia ao indivíduo e à sua<br />

família.<br />

Inicialmente, no plano do direito brasileiro, a propriedade era apenas<br />

uma garantia civil, mormente se tratando de um direito, que o homem<br />

adquiriu, com o passar dos tempos.<br />

A codificação desse direito se deu no plano das normas de direito<br />

privado, portanto, civilista, concepção esta, que guarda sintonia com o<br />

Código de Napoleão, de onde brotaram, em grande parte, as regras de<br />

direito privado. A propósito, beberam da mesma fonte, as demais<br />

legislações ocidentais, a partir do século XIX.<br />

190<br />

BASTOS. Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, Editora Saraiva, 14ª edição, São Paulo,<br />

1992, p. 209.<br />

200


O direito evoluiu, e evolui, na medida em que a sociedade evoluiu.<br />

Dessa evolução brotaram novas necessidades, que exigiram, do corpo<br />

social, a tomada de decisões e medidas que viessem a atender os novos<br />

anseios, erigidos a categoria de bens da vida.<br />

É inegável que, com a Constituição Federal de 1988 e com o advento<br />

do novo Código de Civil de 2002, a propriedade passa a adotar um novo<br />

regime jurídico, um novo perfil, o perfil constitucional do Estado Social<br />

Democrático de Direito.<br />

É importante lembrar, as lições do professor Willis Santiago Guerra<br />

Filho, que propõe que os direitos fundamentais sejam estudados em suas<br />

várias dimensões, pois há:<br />

“ (....) uma necessidade teórica – de situarmos os direitos<br />

fundamentais em várias dimensões, quando, então,<br />

assumem conotações e uma diversidade tal, que torna<br />

recomendável distinguí-las, nomeando-se as<br />

diferenças”. 191<br />

E, nesse sentido, disserta que é preciso distinguir, no âmbito do direito<br />

interno, os direitos fundamentais dos “direitos de personalidade”,<br />

sustentando:<br />

191<br />

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais: São Paulo,<br />

Editora RCS, 4ª edição, p. 42-43.<br />

201


“(...) por serem esses direitos manifestados em uma<br />

dimensão privatística, onde também se manifestam os<br />

direitos fundamentais, mas de forma indireta, reflexa, de<br />

acordo com a doutrina alemã da eficácia perante terceiros<br />

desses direitos”. 192<br />

De acordo com os seus ensinamentos:<br />

“(...) já numa visão publicista: “não há que se confundir<br />

direitos fundamentais com “direitos subjetivos públicos”,<br />

pois se os primeiros são direitos que os sujeitos gozam<br />

perante o Estado, sendo, portanto, nesse sentido, direitos<br />

subjetivos públicos, não há ai uma relação biunívoca, já<br />

que nem todo o direito subjetivo público é direito com<br />

estatura de constitucional de um direito fundamental”. 193<br />

E mais adiante assegura:<br />

192 Ibidem, p.44.<br />

193 Ibidem, p.44-45.<br />

“(....) os direitos fundamentais não tem apenas uma<br />

dimensão subjetiva, mas também, uma outra, objetiva,<br />

donde se falar em seu “duplo caráter”, preconizando-se a<br />

figura do status com mais adequada do que a do direito<br />

subjetivo para categorizá-los. A dimensão objetiva é aquela<br />

onde os direitos fundamentais se mostram com princípios<br />

conformadores do modo como o Estado que os consagra<br />

deve organizar-se e atuar. Enquanto situação jurídica<br />

subjetiva o status seria a mais adequada dessas figuras<br />

202


porque é aquela donde “brotam” as demais,<br />

condicionando-as”. 194<br />

Posta a questão da propriedade, sob o ângulo dos direitos humanos<br />

fundamentais, nela se inserem como elementos indispensáveis, a que o<br />

proprietário: a) tenha direito à coisa; b) possa dela extrair os bens<br />

necessários a satisfação de suas necessidades; c) dela possa dispor, quando<br />

entender suficiente e oportuno o momento; d) aplique os recursos<br />

provenientes do uso às comodidades para si próprio e para a família; e)<br />

empreenda as vantagens, obtidas com o uso da propriedade ao bem comum<br />

da coletividade.<br />

5.11. A função social da propriedade<br />

Discute-se muito em direito, se a propriedade tem uma função social.<br />

Particularmente, defendemos que a propriedade exerce uma função social.<br />

As reflexões, a que se propõe este trabalho, não têm o condão de<br />

esvaziar o assunto, máxime, da problemática levada a efeito pelo<br />

engendramento das grandes questões sociais, que, em todos os tempos, têm<br />

feito o homem prisioneiro da terra.<br />

194 Ibidem, 45.<br />

203


Um pouco dessa problemática já foi exposta, quando traçamos alguns<br />

elementos históricos, acerca da propriedade e do direito a ela<br />

correspondente.<br />

O homem, desde o momento que passou a lutar pela posse da terra,<br />

encontrou, sobre si, o peso de dominar esta posse, para que ela produzisse o<br />

bastante, para satisfazer suas necessidades.<br />

Esta realidade permitiu, ao homem, lutar, incessantemente, para<br />

dominar a propriedade e fazer dela sua irrestrita companheira de vida.<br />

O direito de propriedade, desde o início, foi concebido como direito<br />

absoluto, porquanto o proprietário da coisa sempre teve todos os atributos, a<br />

ela inerente, como o usar, gozar, dispor e reivindicar. Esses atributos, ou<br />

pressupostos, fizeram com que seu titular agisse a seu bel prazer, a fim de<br />

garantir o domínio da coisa, não permitindo que terceiro dela se<br />

assenhorasse.<br />

O direito positivo brasileiro reconhece e protege a propriedade, se<br />

esta cumprir sua função social. Tal função social leva em consideração o<br />

proveito para o proprietário direto e indireto da coisa. Nesse sentido, é que<br />

a propriedade só pode existir no ordenamento jurídico, enquanto direito, se<br />

atendida a cláusula geral constitucional da função social. Trata-se de<br />

mandamento de cunho finalístico, porquanto a garantia ao direito de<br />

propriedade não será possível, se o proprietário não reunir esforços, no<br />

sentido de que esta propriedade atenda à sua função social. Entendemos,<br />

portanto, que o diploma maior, ao estabelecer a necessidade de atendimento<br />

da função social, elege a propriedade, como mola propulsora do<br />

204


apaziguamento dos conflitos decorrentes da posse da terra. É uma condição<br />

sine qua non, na medida em que, sem ela, não há lugar para se reconhecer o<br />

direito de propriedade.<br />

A questão de a propriedade ser, ou não, uma função social foi muito<br />

bem exposta por Celso Antonio Bandeira de Melo, que trabalha essa<br />

problemática sobre quatro aspectos:<br />

“1) a propriedade é uma função social ou direito que<br />

deve cumprir uma função social? 2) o direito de<br />

propriedade pode ser distinguido no nosso sistema<br />

jurídico como direito autônomo o direito de propriedade<br />

e o direito de usar dela? 3) dever-se-á entender por<br />

“função social”, substanciável – à moda do que referia a<br />

Constituição de 1946 - com propósito de favorecer a<br />

ampliação do acesso de todos à propriedade, gerando<br />

iguais oportunidades aos indivíduos ou concorrendo<br />

para enseja-las? 4) cabem apenas limitações à<br />

propriedade, isto é vedações ao uso insatisfatório dela à<br />

luz da função social, ou podem ser impostas injunções<br />

para exigir que engaje nesta linha de interesse? 195<br />

Essas questões nos parecem de fundamental importância<br />

para a compreensão da questão ligada a função social<br />

da propriedade, seu alcance no plano do ordenamento,<br />

suas limitações, entre outros.<br />

A primeira indagação relativa assertiva de que a<br />

propriedade é uma função social ou se deve atender a uma<br />

função social, o autor assegura que da forma como está<br />

configurada no direito positivo, a propriedade é um direito<br />

que deve cumprir uma função social, e não simplesmente<br />

uma função social. Segundo o autor, “ (.....) o que se<br />

195<br />

BANDEIRA DE MELO, Celso Antonio. Novos Aspectos da Função Social da Propriedade no Direito<br />

Público. Revista de Direito Público, nº 84 Out/Dez 1.987 – ano XX , Editora Revista dos Tribunais,<br />

São Paulo, 1987, p. 43.<br />

205


protege é a propriedade que atende a função social,<br />

aquelas que não atendessem, deveriam ser perdidas, sem<br />

qualquer indenização, toda vez que se demonstrasse os<br />

seus desajustes à função social que deveriam<br />

preencher”. 196<br />

Embora respeite profundamente a doutrina do abalizado<br />

administrativista, ousamos discordar um pouco. Com efeito, não é o que<br />

ficou assegurado na Constituição Federal de 1946, que impõe o dever do<br />

proprietário de atender a função social, bem como lhe assegura a justa<br />

indenização, para as hipóteses de decreto expropriatório, por parte do<br />

Estado.<br />

A rigor não há perda da propriedade sem nenhuma indenização,<br />

porquanto seria considerar um confisco ao direito inalienável do cidadão.<br />

Esse, ao que nos parece não foi o sentido da Constituição Federal de 1967,<br />

nem das anteriores e, nem da posterior, datada de 1988.<br />

Nesse sentido, concordamos com o autor que a propriedade, mesmo<br />

aquela prevista na Constituição de 1967, bem como a de 1988, é um direito<br />

que deve atender a uma função social, na medida em que a propriedade, por<br />

si só, tem uma função. Ela só atende a uma função social, quando alguém<br />

toma a posse e se assenhoreia, com o animus de torná-la produtiva.<br />

Respondendo à segunda indagação o autor afirma que a propriedade,<br />

a exemplo do direito italiano e do direito espanhol, bem como o direito de<br />

196 Ibidem, loc. cit.<br />

206


usar dela, não são direitos distintos e autônomos. 197 Explica, esse autor, que<br />

no nosso ordenamento jurídico tal não ocorre, porquanto, a propriedade tem<br />

um conteúdo mínimo, ou seja, o direito de usar, gozar e dispor da coisa. 198<br />

Segundo ele, o direito de usar do bem e de nele edificar, assim como<br />

o direito de dispor, são expressões do direito de propriedade, logo são<br />

inseparáveis, pois é o plexo desses poderes de uso, gozo e disposição que,<br />

em sua unidade, recebe o nome de direito de propriedade. Elididos esses<br />

poderes, nada mais restaria. Daí a impossibilidade de considerar direitos<br />

autônomos, distinguíveis, o direito de propriedade e o direito de construir,<br />

de usar, gozar ou de dispor do bem. 199<br />

Nesse ponto tem razão o autor, porquanto, antes de atender a função<br />

social da propriedade, o proprietário tem os poderes inerentes a ela. Com<br />

efeito, o proprietário não precisa, necessariamente, atender a cláusula da<br />

função social da propriedade, desde que se desfaça da coisa.<br />

O desfazer-se da coisa é permitido ao proprietário, o que não se<br />

permite é o uso ilimitado dos atributos da propriedade, sem o atendimento<br />

da função social, como comando normativo de harmonização da vida em<br />

sociedade.<br />

No que tange à terceira indagação, o autor assegura que, existindo o<br />

direito de propriedade, o proprietário deve ajustar-se à sua função social, e,<br />

segundo o mesmo autor, há um outro conteúdo, contido na função social da<br />

197 Ibidem, loc. cit.<br />

198 Ibidem, loc. cit.<br />

199 Ibidem, p.42.<br />

207


propriedade, que é a busca pela Justiça Social, procurando equilibrar as<br />

relações sociais numa sociedade desequilibrada. 200<br />

Em relação à resposta à terceira indagação do autor, entendo,<br />

perfeitamente compreensível, que a função social da propriedade pode, e<br />

deve, compreender o sentido de Justiça social, pois o objetivo do Estado<br />

Social de Direito é harmonizar os direitos e as garantias, com vistas ao<br />

atendimento do bem comum e não unicamente às necessidades individuais<br />

do particular.<br />

A respeito da quarta questão, o autor sustenta que podem sim ser<br />

impostas obrigações de fazer ao proprietário. Todavia, adverte que essas<br />

imposições hão de ser muito cautelosas, para não se transmudar em<br />

instrumentos de perseguições políticas, ou ainda, em veículo de<br />

favorecimento de interesses de grupos. Adverte o autor, que as injunções,<br />

lançadas ao direito de propriedade, podem levar a novos desajustes sociais,<br />

na medida em que há seguimentos da sociedade, que têm a propriedade,<br />

mas não dispõe de meios para torná-la mais produtiva.Em relação ao quarto<br />

questionamento lançado por esse jurista, concordamos, todavia, deve ser<br />

dito que, no estágio atual, vinte anos após o autor dissertar sobre o tema da<br />

função social da propriedade, pouca coisa ou quase nada mudou, em<br />

relação aquisição da propriedade pela grande massa da população, que se<br />

encontra desprovida de recursos financeiros, para adquirir a tão sonhada<br />

propriedade.<br />

Nesse sentido, mesmo após o advento do instituto do IPTU<br />

progressivo, tendente a compatibilizar o uso da propriedade e a extração<br />

200 Ibidem, p. 44.<br />

208


dos frutos necessários, permitindo o acesso à propriedade da terra, quando o<br />

proprietário não destinar a coisa para a finalidade do bem comum.<br />

É sob esse prima que entendo que as injunções ou deveres, que o<br />

Estado deve impor, sejam no sentido de que a propriedade cumpra,<br />

efetivamente, a função social, possibilitando, a todos, a aquisição da<br />

propriedade e das riquezas que dela decorre.<br />

Dúvida que pode surgir é se há incompatibilidade entre o exercício<br />

do direito de propriedade e o cumprimento da função social.<br />

Respondendo a esta questão, expõe Clóvis Beznos:<br />

“Á luz de nosso ordenamento jurídico, não há<br />

incompatibilidade entre o direito de propriedade e a<br />

função social da propriedade, desde que compreendido o<br />

direito subjetivo em um momento estático, que legitima o<br />

proprietário a manter o que lhe pertence, imune a<br />

pretensões alheias, e a função em um momento dinâmico,<br />

que impõe ao proprietário o dever de destinação do objeto<br />

de seu direito aos fins sociais determinados pelo<br />

ordenamento jurídico”. 201<br />

Não há qualquer incompatibilidade quanto ao direito subjetivo a<br />

propriedade e a função social, que o proprietário deve cumprir, porquanto o<br />

direito a propriedade é um direito subjetivo, garantido em nível<br />

constitucional.<br />

201<br />

BEZNOS, Clóvis. Aspectos Jurídicos da Indenização na Desapropriação. Editora Fórum. Belo<br />

Horizonte. 2006. p . 109. A opinião do mesmo autor, pode também ser encontrada em Desapropriação<br />

em Nome da Política Urbana, in Estatuto da Cidade, 2006..p. 122.<br />

209


5.12. Conceito de função social<br />

A norma de estrutura não disciplina conceitos, o que está correto,<br />

haja vista que seu objeto é tratar, principiologicamente, os ditames regentes<br />

das questões ligadas ao Estado e aos administrados.<br />

propriedade.<br />

Não é matéria fácil conceituar ou definir a função social da<br />

Entendemos que a idéia de conceituação da função social se traduz<br />

num método menos rigoroso, na medida em que não define e não estanca o<br />

seu alcance, mas fornece elementos de cognição, que permitem apreciar<br />

elementos objetivos e subjetivos, sem, contudo, pôr um fim a discussão.<br />

Não há como abandonar as regras principiológicas trazidas pelo texto<br />

constitucional e pelas legislações extravagantes. A Carta federal estabelece<br />

no art. 5º, inciso XXII, que: “É garantido o direito de propriedade”. No<br />

inciso XXIII preceitua: “A propriedade atenderá à sua função social”.<br />

Este último mandamento repousa, como já dissemos, numa regra<br />

finalística, porquanto é o desejo do legislador constituinte. Não podemos<br />

analisá-la isoladamente, já que o sistema constitucional foi concebido de<br />

maneira harmônica e, portanto, associado em seu contexto principiológico.<br />

Esse contexto deve estar ligado à atividade econômica, já que esta<br />

não está dissociada de uma questão muito maior, que é a dignidade da<br />

pessoa humana, porquanto é uma regra básica do direito constituticional<br />

econômico, a garantia do acesso ao trabalho, como elementar para<br />

existência da espécie humana (artigo 170 da Constituição Federal).<br />

210


Repousa, nessa esfera, a regra principiológica de que a atividade<br />

econômica deve, necessariamente, proporcionar uma justiça social, que é<br />

condição necessária da dignidade da pessoa humana.<br />

Vejo que o legislador condicionou o exercício da atividade<br />

econômica à sua finalidade, que é exatamente proporcionar uma vida digna,<br />

recitando um conjunto de princípios da ordem econômica. É importante<br />

dizer que nesses princípios encontram-se a propriedade e sua função social.<br />

Para Celso Ribeiro Bastos:<br />

“A chamada função social da propriedade nada mais é do<br />

que o conjunto de normas da Constituição que visa, por<br />

vezes até com medidas de grande gravidade jurídica, a<br />

recolocar a propriedade na sua trilha normal”. 202<br />

Embora muito bem comentadas as disposições relativas à função<br />

social por esse publicista pátrio, a função social da propriedade não está<br />

apenas disciplinada pelo conjunto de normas, mas, por um sistema jurídico<br />

complexo, que reconhece a propriedade privada e seu atendimento à função<br />

social, dentro de uma ordem econômica, ambiental e urbanística, tendentes<br />

a alcançar a harmonia do convívio social da coletividade e não apenas do<br />

particular.<br />

202<br />

BASTOS. Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, Editora Saraiva, 14ª edição, São Paulo,<br />

1992, p. 210.<br />

211


Devemos, ainda, transcrever a opinião abalizada do professor Celso<br />

Antonio Bandeira de Melo, que com autoridade acentua:<br />

“Numa primeira acepção, considerar-se-á que a ‘função<br />

social da propriedade’ consiste em que esta deve cumprir<br />

um destino economicamente útil, produtivo, de maneira a<br />

satisfazer as necessidades sociais preenchíveis pela<br />

espécie tipológica do bem (ou pelo menos não poderá ser<br />

utilizada de modo a contraditar estes interesses),<br />

cumprindo, destarte, às completas, de molde a canalizar<br />

as potencialidades residentes no bem em proveito da<br />

coletividade (ou, pelo menos, não poderá ser utilizada de<br />

modo a adversá-las. Em tal concepção do que seria função<br />

social da propriedade, exalta-se a exigência de que o bem<br />

seja posto em aptidão para produzir sua utilidade<br />

específica, ou, quando menos, que seu uso não se faça em<br />

desacordo com a utilidade social”. 203<br />

O que se verifica pelas exposições realçadas, é que os autores<br />

nacionais colocam a propriedade privada, como sendo um direito público,<br />

afeto à ordem econômica do Estado e, bem por isso, a proteção, que a ela se<br />

atribui, é de um direito público, ainda que seja regulada, também, no campo<br />

do direito privado. Isto posto, é imperiosa a análise dos demais dispositivos<br />

constitucionais, que fornecem elementos seguros, para que deles se<br />

extraiam os elementos indispensáveis ao conceito de função social da<br />

propriedade.<br />

203<br />

BANDEIRA DE MELO, Celso Antonio. Novos Aspectos da Função Social da Propriedade no Direito<br />

Público. Revista de Direito Público, nº 84 Out/Dez 1.987 – ano XX , Editora Revista dos Tribunais,<br />

São Paulo, 1987, p. 43.<br />

212


Esses dispositivos estão no Capítulo II da Carta Política, onde estão<br />

assentadas as diretivas da Política Urbana.<br />

O artigo 182, I, II, da Constituição Federal, ao disciplinar a Política<br />

Urbana, exige, necessariamente, para sua ordenação, o desenvolvimento das<br />

funções sociais da Cidade. Para que haja a ordenação das cidades, é<br />

indispensável, a aprovação do plano diretor, que, por seu turno, fixará as<br />

exigências fundamentais dessa ordenação.<br />

Deflui-se, de todo esse contexto, que o conceito de função social da<br />

propriedade deve compreender realidades palpáveis, sólidas, fáticas e<br />

passíveis de ser implementadas, no plano da política urbana e rural.<br />

As várias constituições dos países ocidentais, ao estabelecerem a<br />

função social da propriedade, imprimiram, nos textos legislativos, um novo<br />

conceito no universo jurídico mundial. É importante salientar que, ao<br />

mesmo tempo, que isso ocorreu, houve preocupação não só no contexto da<br />

estrutura lingüística do termo função, mas, também, no plano do raciocínio,<br />

e da filosofia jurídica, o que ensejou o surgimento de várias perguntas, tais<br />

como: O que é a função social da propriedade? A que ela está ligada e quais<br />

as implicações frente ao ordenamento jurídico?<br />

As constituições, ao adotarem a idéia de função social, imprimiram<br />

um conceito vago à palavra, podendo dela se extrair vários significados,<br />

tendo em vista que, no plano da estrutura da linguagem e da expressão<br />

função, vários podem ser os enfoques sobre o mesmo termo.<br />

No plano normativo, tivemos a oportunidade de trazer a baila, que a<br />

Constituição de Weimar foi o instrumento legal que instaurou, na Europa, o<br />

213


Estado Social de Direito, implementando uma nova realidade no campo do<br />

direito constitucional e no que tange à propriedade e, servindo de fonte<br />

inspiradora, para a inovação que ressoou, nos demais países ocidentais.<br />

Embora a citada Constituição não tenha feito alusão ao princípio da<br />

função social de forma clara, ele é resultado da interpretação exegética,<br />

feita pelos estudiosos do direito, levando em consideração a realidade<br />

histórica, em que o princípio teve sua origem.<br />

Importa para a compreensão do termo função, que se faça uma<br />

digressão, no plano da lingüística e do vocábulo, para se extrair o seu<br />

conceito, seu norte e seus elementos.<br />

No plano do direito, a expressão função ganha vários significados e<br />

pode representar vários sentidos ao mesmo tempo.<br />

No âmbito do direito administrativo, função tem um conceito preciso<br />

e segundo Celso Antonio Bandeira de Mello:<br />

“(...) existe função quando alguém está investido no dever<br />

de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de<br />

outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes<br />

requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são<br />

instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades.<br />

Sem eles, o sujeito investido na função não teria como<br />

desincumbir-se do dever posto a seu cargo”. 204<br />

204<br />

BANDEIRA DE MELO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 5ª ed. São Paulo: Malheiros,<br />

1996, p. 21.<br />

214


No Direito Administrativo, o termo função designa a qualidade<br />

daquele que ocupa ou exerce uma atividade pública. Assim, função é a<br />

causa e o efeito do desempenho de certa atividade de alguém, em face de<br />

uma coisa.<br />

A função é, pois, o exercício da atividade, o ônus ou o bônus imposto<br />

pela lei ou pelas regras de experiência comum de alguém, em face de<br />

outrem, ou deste, em face de uma coisa.<br />

A função implica, necessariamente, que, quem a tem, deve exercê-la,<br />

para atingir uma finalidade, previamente estabelecida pelo ordenamento<br />

jurídico.<br />

A função, no que tange ao direito de propriedade, consistente em<br />

predispô-la para atingir o bem comum, ou seja, a função social é a<br />

qualidade, indeclinável, da propriedade de servir ao titular da coisa, ao qual<br />

caberá o uso, gozo e fruição, respeitando-se o direito da coletividade de ter<br />

o mesmo direito de usar, gozar e dispor da coisa, se o titular não der a<br />

necessária utilidade ao bem, do qual é o seu primeiro destinatário.<br />

Assim, a função social da propriedade não tem apenas o proprietário<br />

como destinatário, pois esta destinação pode ser em relação à coletividade,<br />

ao órgão julgador ou ao legislativo, que a criou e determina o seu<br />

cumprimento.<br />

Quem é proprietário deve exercer esse direito, mas deve fazê-lo<br />

dentro dos comandos impostos pela norma jurídica, sabendo que, se não<br />

atender a finalidade útil e econômica da propriedade, poderá perder esse<br />

215


direito, em detrimento de quem possa exercê-lo com atendimento à sua<br />

correspondente função.<br />

Entendemos que função é o fim precípuo, a que determinado bem<br />

jurídico deve atender, no âmbito de sua estrutura interna, e irradiar, para<br />

fora da própria estrutura, suas conseqüências práticas, para o qual foi<br />

projetado. A função é o fim destinado pelo instituto a atuar no âmbito<br />

externo e a atingir resultados condizentes com a concepção dogmática do<br />

instituto.<br />

No nosso entender, o legislador, ao criar a idéia matriz de função<br />

social, objetivou alcançar a coletividade como um todo, sem, contudo,<br />

abandonar, no plano da estrutura da norma o indivíduo, que foi inserido na<br />

contextualidade do grupo, o que representa, para realidade humana, o<br />

abandono da concepção de ser isolado e afastado do grupo.<br />

É cada vez mais presente, na estrutura da norma jurídica, a<br />

compreensão da coisa ou do bem objeto de proteção do direito. Quer seja<br />

um direito assegurado, no plano do ordenamento, ao indivíduo, ou à<br />

coletividade, deve assegurar o quanto possível, a planificação social do bem<br />

comum e da paz, como elementos indissociáveis da natureza da própria<br />

existência humana, afastando o eu e, abraçando o coletivo.<br />

Portanto, no nosso sentir, função social da propriedade é a cláusula<br />

vetora da destinação econômica da propriedade, tendente a possibilitar a<br />

extração das riquezas para o indivíduo e para a coletividade, com vistas a<br />

fornecer comodidades e utilidades a todos os seres vivos.<br />

O mestre português José de Oliveira Ascenção explica:<br />

216


“Dentro da função social distinguem-se as intervenções<br />

estatais limitadoras e as impulsionadoras. Quando o Poder<br />

Público de determinado Município institui o Imposto sobre<br />

a Propriedade Territorial Urbana progressivo sobre o<br />

imóvel urbano, mantido ocioso para fins de especulação<br />

imobiliária, está fazendo uma intervenção impulsionadora<br />

ao bom exercício do direito de propriedade. É da mesma<br />

natureza a intervenção do Estado na propriedade imóvel<br />

rural, quando estipula um mínimo de produtividade por<br />

hectare, para os imóveis localizados em determinada região<br />

do país, sob pena de serem considerados improdutivos e<br />

suscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária.<br />

Hedermann, com propriedade, já dizia que é “um alto<br />

postulado ético não deixar a propriedade improdutiva, ao<br />

menos quando pode ser útil a todos”. 205<br />

Podemos verificar entendimento similar em Fábio Konder<br />

Comparato, que pontifica:<br />

“Quando se fala em função social da propriedade não se<br />

indicam as restrições ao uso e gozo dos bens próprios.<br />

Essas últimas são limites negativos aos direitos do<br />

proprietário. Mas a noção de função, no sentido em que é<br />

empregado o termo nesta matéria, significa um poder,<br />

mais especificamente, o poder de dar ao objeto da<br />

propriedade destino determinado, de vinculá-lo a certo<br />

objetivo. O adjetivo social mostra que esse objetivo<br />

corresponde ao interesse coletivo e não ao interesse<br />

próprio do ‘dominus’; o que não significa que não possa<br />

haver harmonização entre um e outro. Mas, de qualquer<br />

205 ASCENÇÃO, José de Oliveira. Direito Civil: reais. 5ª edição Coimbra, 1993, p. 192.<br />

217


modo, se se está diante de um interesse coletivo, esta<br />

função social da propriedade corresponde a um podedever<br />

do proprietário, sancionável pela ordem<br />

jurídica”. 206<br />

Deve-se observar que as intervenções operadas pelo poder público no<br />

direito de propriedade, não implicam em restringir o exercício desse direito,<br />

mas exigem do proprietário a adoção de medidas viabilizadoras do<br />

atendimento da paz social, por meio do cumprimento do princípio da função<br />

social.<br />

A função social da propriedade é o dever jurídico imposto ao<br />

proprietário de, ao exercer o direito correspondente à coisa, dar a devida<br />

utilidade econômica a seu favor, sob pena de ver esse direito ser atribuído a<br />

outrem, para que este produza e extrair as benesses úteis, a si próprio, à<br />

família e a coletividade.<br />

A destinação econômica da propriedade pode ser vista de vários<br />

ângulos, e por várias vertentes. No plano urbanístico, a propriedade exerce<br />

uma função econômica, na medida em que o titular da coisa usa a<br />

propriedade, para construir sua morada e a de sua família. Nessa mesma<br />

ceara urbanística, se a propriedade for passível de gerar utilidade por meio<br />

do empreendimento de atividade econômica, gerará riquezas para o<br />

proprietário, para o Município, para o Estado e para a União.<br />

206 COMPARATO, Fábio Konder. A Função Social a Propriedade dos Bens de Produção. Revista de<br />

Direito Mercantil, nº 63 – Ano XXXV – jul/set de 1.986, p. 75.<br />

218


Decorre dessa premissa, que atender à função econômica da<br />

propriedade é possibilitar a extração de riquezas, para garantir o bem estar<br />

do proprietário e proporcionar, aos entes públicos, o gozo dos bens de<br />

produção que são extraídos pela correta destinação da res. Nesse sentir,<br />

importa subscrever que a propriedade, que não produz bens e riquezas para<br />

o proprietário e para terceiros, não atende sua função social.<br />

Percebemos que a função social da propriedade é a destinação útil da<br />

coisa, para si e para outrem, mediante prévia adoção de um modelo de<br />

gerenciamento da produção e extração das potencialidades, que o bem<br />

imóvel pode e deve produzir para quem é dono, para coletividade e,<br />

também, para quem faz uso de seus frutos.<br />

No plano rural, a função social da propriedade é ainda muito mais<br />

importante, pois além de representar aquilo que já foi exposto em relação à<br />

propriedade urbana, ela tem um viés dotado de especialidade. Essa<br />

especialidade é a função pro labore da propriedade rural, em favor de quem<br />

adquire a propriedade ou a posse, para o sustento próprio e da família.<br />

Aqui, está presente a função social da propriedade, que atende<br />

também, a uma política pública, que não é, na grande maioria das vezes,<br />

imposta pelo Estado, mas quem a faz é o pequeno e o médio agricultor, que<br />

se assenhoreasse da propriedade, produz riqueza para a família e para os<br />

entes federados. Essa produção evita o êxodo do homem do campo para as<br />

cidades, desempenhando dupla vertente da função, a saber, a função social<br />

rural-local da propriedade e a função social à distância da propriedade, pois<br />

na medida em que o homem do campo não abandona a terra para ir de<br />

encontro às cidades, possibilita o atendimento da função social do campo e<br />

219


evita que a propriedade das cidades seja colocada em xeque e não atenda a<br />

função social, porque os espaços urbanos não oferecem comodidades para<br />

todos.<br />

5.13. Da razão da função social<br />

A função social da propriedade consiste em que a propriedade deve,<br />

além de atender ao próprio indivíduo, também deve atender à coletividade.<br />

Mas é preciso lembrar que não há função social onde só reina o<br />

individualismo, onde vigora o egoísmo e o assenhoreamento da coisa, sem a<br />

destinação útil e econômica em favor da coletividade.<br />

A propriedade atinge sua função social, quando produz riqueza, não<br />

só para o proprietário, mas também para a coletividade. Essa riqueza não é<br />

só patrimonial, mas também riqueza, no que diz respeito aos valores<br />

impostos pela sociedade e instituídos pelo Estado, para viabilizar a<br />

convivência harmônica de todos os setores.<br />

Com o advento da Revolução Francesa, passou a imperar o<br />

individualismo, como princípio base das relações sociais, corporificador dos<br />

valores absolutos da propriedade romana, pois este era o princípio chave de<br />

toda atividade econômica, porquanto era o bastante, para atender às<br />

necessidades da sociedade da época.<br />

Os valores sociais que imperavam, eram os da liberdade, da<br />

igualdade e da solidariedade. A liberdade era tida como o elemento<br />

220


norteador da atividade econômica e, mais precisamente, da propriedade. A<br />

igualdade era a igualdade perante a lei, igualdade formal, onde o Estado não<br />

disciplinava os conflitos sociais, impondo regras dirigidas à autonomia da<br />

vontade. A solidariedade, como valor e princípio imprimido pela Revolução<br />

Francesa, na realidade, nunca foi implementada, nem naquela época, nem<br />

no século XX e nem os nossos dias.<br />

A função social da propriedade, no plano jurídico, importa em<br />

reconhecer que a coletividade é, também, destinatária da função social.<br />

Implica em reconhecer a realidade da solidariedade social, imprimida pelo<br />

constitucionalismo contemporâneo, antes já referido. A função social não é<br />

só para o proprietário, é, antes, para a coletividade que é quem sofrerá as<br />

conseqüências do exercício irregular do direito de propriedade.<br />

Assim, a propriedade função social é aquela que se coloca à<br />

disposição de uma finalidade social, que é, em outras palavras, o bem<br />

comum, tendo como razão precípua atingir as exigências modernas, de ser<br />

fonte de recursos e riquezas para quem a possui e para quem dela precisa,<br />

para garantir o status dignitatis.<br />

O professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior, lecionando sobre os fins<br />

sociais, esclarece que:<br />

“(.....). as expressões ‘fins sociais’ e ‘bem comum’ são<br />

entendidas como sínteses éticas da vida em comunidade.<br />

Sua menção pressupõe uma unidade de objetivos do<br />

comportamento social do homem. Os ‘fins sociais’ são<br />

ditos do direito, em todas as manifestações normativas fazse<br />

mister encontrar o seu fim, e este não poderá ser anti-<br />

221


social. Quanto ao bem comum, não se trata de um fim do<br />

direito mas da própria vida social”. 207<br />

Nesse particular, a função social é o dever jurídico, imposto ao titular<br />

do bem móvel e imóvel, de atender às exigências legais e morais, de modo a<br />

compatibilizar o uso, gozo e fruição da coisa, respeitando os direitos da<br />

coletividade e, operando a vontade de socializar os frutos, que podem ser<br />

produzidos com a correta utilização da propriedade.<br />

Devemos ter ainda, presente, que a propriedade e o direito que a<br />

assegura não se esgotam, portanto, no princípio da função social, que a lei<br />

lhe impôs, como vetor da política econômica, social, urbana e rural,<br />

ambiental, entre outras.<br />

Com efeito, a função social deve ter como razão, também<br />

determinante, a solidariedade social, capaz de absolver valores, também<br />

humanistas, do proprietário, em face daquele da ordem social vigente, que<br />

busca, incansavelmente, a paz desta mesma sociedade.<br />

O poder público, ao exigir do proprietário que atenda a função social,<br />

não pode desnaturar o direito, que é próprio de quem tem o domínio sobre a<br />

coisa.<br />

Daí decorre que o poder público, ao impor veto, sobre determinadas<br />

ações do proprietário, não pode ir contra o próprio direito de propriedade,<br />

ou seja, estando inabaláveis, pelo ordenamento jurídico vigente, os atributos<br />

207<br />

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Ediotra Atlas, 1991,<br />

p. 265.<br />

222


do direito de propriedade, fica vedado, à autoridade administrativa, cassar<br />

esses direitos, impondo sanções contrárias ao ordenamento jurídico.<br />

Lembra, com percuciência, José de Oliveira Ascensão, ao tratar do<br />

princípio da função social da propriedade, sustentando que:<br />

“(....) não deve ser mal entendido, chegando-se por<br />

exemplo à conclusão de que a propriedade se esgota<br />

toda nesta função social, como pretendia Duguit. A<br />

garantia da autonomia pessoal é, logicamente, o objeto<br />

primário da atribuição dos bens em termos reais. E essa<br />

falharia se a conduta do sujeito fosse minuciosamente<br />

determinada pelos órgãos públicos, sob a alegação de<br />

garantia da função social. O que se pretende antes de<br />

mais nada é a colaboração com a liberdade dos<br />

indivíduos. As intervenções em nome da função social<br />

devem ser prudentes, prevendo os casos em que os<br />

titulares se desviaram flagrantemente das necessidades<br />

gerais, ou em que se apresentem de modo premente”. 208<br />

No exercício do direito de propriedade, o poder público tem a<br />

autoridade legal de impor sanções, mas isso implica dizer que essas<br />

sanções, ou preferimos melhor dizer, estes vetores não podem limitar o<br />

exercício, pois limitações são conotações diversas de deveres jurídicos para<br />

o atendimento da função social da propriedade.<br />

208 Ibidem, p. 197.<br />

223


5.14. A função social individual da propriedade e a função social<br />

coletiva da propriedade<br />

Uma análise mais atenta, das disposições contidas no artigo 5º,<br />

incisos XXII e XXII da Constituição Federal de 1988, nos faz pensar na<br />

idéia da existência de duas funções sociais da propriedade, uma função<br />

social individual e uma função social coletiva.<br />

A primeira, a função social individual é aquela que parte,<br />

diretamente, do indivíduo, proprietário do imóvel, primeiro, porque a lei<br />

maior lhe assegura o direito a propriedade privada e, em seguida, porque lhe<br />

atribui um dever jurídico de atender a uma função social. Quando o<br />

indivíduo se predispõe a usar a própria coisa em benefício próprio e de sua<br />

família, em primeiro lugar, atende a função social da propriedade em<br />

proveito próprio e do núcleo familiar, em segundo, atende à função social,<br />

individual, estará, também, atendendo à função social, que se destina,<br />

diretamente, à sociedade, porquanto, como já colocado, a função social da<br />

propriedade impõe ao proprietário o dever de atender e de destinar a<br />

propriedade as comodidades e utilidades econômicas, que ela pode<br />

proporcionar.<br />

Seguindo essa visão, está claro que o ideal da norma maior é<br />

possibilitar que o proprietário destine a coisa, de forma mais social possível,<br />

buscando harmonizar seus interesses puramente individuais com os valores<br />

sociais imprimidos na Constituição Federal. A idéia de socialização da<br />

propriedade não é a do regime socialista, mas a dos valores de solidariedade<br />

224


social, que devem permear as relações humanas, capazes de conduzir o<br />

proprietário a uma realidade de utilidade econômica da propriedade,<br />

extraindo os proveitos que a coisa pode oferecer, para si e para a<br />

comunidade.<br />

assegura:<br />

É oportuna a lição do professor Celso Antonio Bandeira de Melo que<br />

“Numa primeira acepção, considerar-se-á que a ‘função<br />

social da propriedade’ consiste em que esta deve cumprir<br />

um destino economicamente útil, produtivo, de maneira a<br />

satisfazer as necessidades sociais preenchíveis pela<br />

espécie tipológica do bem (ou pelo menos não poderá ser<br />

utilizada de modo a contrariar estes interesses),<br />

cumprindo destarte, às completas, sua vocação natural, de<br />

molde a canalizar as potencialidades residentes no bem<br />

em proveito da coletividade (ou, pelo menos, não poderá<br />

ser utilizada de modo a adversá-las)”. 209<br />

A função social coletiva da propriedade compreende as utilidades que<br />

a coisa usada, condizentemente, pelo indivíduo, considerado em si mesmo,<br />

e pelo grupo, reunindo práticas sociais saudáveis e socializáveis, capazes de<br />

frutificar e permitir que todos saiam beneficiados pelo correto uso e<br />

destinação da propriedade.<br />

Assegura Jefferson Carús Guedes que:<br />

209<br />

BANDEIRA DE MELO, Celso Antonio. Novos aspectos da Função Social da Propriedade no Direito<br />

Público. Revista de Direito Público. nº 84. p. 43.<br />

225


“Genericamente a idéia de função social está interligada à<br />

harmonização de interesses do indivíduo com os interesses<br />

da coletividade. No terreno dos direitos reais e da<br />

propriedade não há dissonância, busca-se entrelaçamento<br />

dos mesmos interesses, preservando-se intactos os dogmas<br />

de ‘direito absoluto’, enquanto preserve o bem<br />

(propriedade) sua capacidade de multiplicação de riqueza<br />

e conseqüente utilidade coletiva”. 210<br />

Se atendidos os comandos constitucionais da função social da<br />

propriedade, seja no plano do meio urbano, ou rural, veremos que estará<br />

sendo atendida a finalidade da norma jurídica, sem, contudo, ferir, ou tirar,<br />

o caráter absoluto, que permeia o direito de propriedade.<br />

5.15. A função econômica da propriedade<br />

Desde os primeiros instantes da vida do homem na terra, a<br />

propriedade sempre exerceu uma função econômica. Dela, todos os reinos<br />

do mundo, nas várias épocas pelas quais a história da humanidade passou,<br />

extraíram as utilidades necessárias à sobrevivência de seus povos. Com os<br />

frutos extraídos da propriedade, com a economia de subsistência, a espécie<br />

humana pode crescer, desenvolver e impor cada um, seus domínios sobre os<br />

outros, fazendo imprimir à autoridade e o poder econômico de uma nação<br />

em face da outra.<br />

210<br />

GUEDES, Jefferson Carús. Aspectos Controvertidos do novo Código Civil. Editora Revista dos<br />

Tribunais, São Paulo, 2003. p. 353.<br />

226


Desde as primeiras culturas de subsistência como a caça e a pesca,<br />

passando pela monocultura de cereais, como a do povo hebreu, da<br />

civilização mesopotâmica, da egípcia, entre outros, o homem pôde, com a<br />

terra, extrair as riquezas suficientes para se manter e, com ela, conquistar<br />

novas fronteiras. Na Idade Média, os bens de produção estavam voltados<br />

para uma economia centralizada no feudo, que se resumia na extração das<br />

riquezas de cada feudo e comercio dos produtos entre si, sendo que o<br />

excedente era estocado, para garantir o sustento no período de entressafra.<br />

Este sistema foi totalmente alterado com o surgimento das grandes<br />

navegações e a conseqüente expansão mercantilista, cujo norte final era a<br />

descoberta de novos mercados produtores.<br />

Esse regime também sofre mutações, com a Revolução Industrial,<br />

porquanto resultante do acúmulo de riquezas da sociedade burguesa, que<br />

promoveu o fim da produção dos teares, engendrando uma nova etapa da<br />

produção de bens e serviços. A economia deixou de exercer um papel<br />

centralizado no campo para abraçar as cidades, criando os grandes pólos<br />

industriais, responsáveis pelo avanço do sistema de acúmulo de capital.<br />

Na Idade Contemporânea, a Revolução Industrial, que estava<br />

centrada na Europa, expande-se, inicialmente, para os demais países<br />

europeus, e daí por diante, alcançando a América Latina e outros países,<br />

fazendo com que o mundo inteiro conhecesse o novo modelo de<br />

imperialismo, que surgia com a produção de bens e serviços em larga<br />

escala.<br />

Nesse panorama, a função econômica da propriedade está em atribuir<br />

à propriedade, qualquer que seja sua natureza, pública, privada, móvel ou<br />

227


imóvel, rural ou urbana, intelectual, industrial ou de produção, uma<br />

finalidade com tendência a essa nova ordem social. Essa ordem social é a<br />

ordem factual que a sociedade humana alcançou com o evoluir do tempo.<br />

Impõe-se observar que a ordem social, ou seja, o plano estrutural da<br />

sociedade e de seus institutos é quem permite haver, ou não, a necessidade<br />

de estruturar o regime jurídico de certos institutos, havidos, como o direito<br />

de propriedade, como absolutos e imutáveis.<br />

5.16. A propriedade na ordem econômica<br />

Não há função social da propriedade, sem o atendimento ao princípio<br />

da ordem econômica (artigo 170 da Constituição Federal). Nesse sentido, a<br />

função social da propriedade aparece como mola propulsora da atividade<br />

econômica.<br />

A rigor, para que haja ordenação econômica fundada na valorização<br />

do trabalho humano, o mandamento estabelecido no artigo 170 da Carta<br />

Federal exige o atendimento ao princípio da função social da propriedade,<br />

como fator condicionante de uma vida digna.<br />

Dessa concepção, podemos dizer que não há dignidade humana, sem<br />

a existência do direito de propriedade e sem o atendimento à sua função<br />

social.<br />

228


A Constituição Federal, ao estabelecer que a propriedade exerce uma<br />

função social, pretendeu, na verdade, afirmar que o proprietário tem o<br />

direito à propriedade. Todavia, esse direito deve ser exercido, obedecendo a<br />

uma série de parâmetros, que vão de encontro à ordem econômica, à<br />

dignidade humana, à livre iniciativa. Não mais se permite que o<br />

proprietário, ao seu talante, empregue a propriedade do jeito que quiser.<br />

A ordem econômica adquiriu dimensão jurídica, a partir do momento<br />

em que as constituições passaram a discipliná-la, de maneira sistemática.. 211<br />

A influência da Constituição Alemã de Weimar ingressou no domínio<br />

da matéria constitucional brasileira, a partir da Carta de 1934.<br />

A Carta de 1937 aboliu a divisão em Títulos, simplificando a<br />

designação para Ordem Econômica, mantendo a matéria comum à Ordem<br />

Econômica e Social das Constituições de 1934, 1946 e 1967.<br />

A Constituição de 1988, concedendo autonomia à Ordem Social, a<br />

desvinculou da Ordem Econômica, integrando-se à esta a matéria do<br />

sistema financeiro nacional, sob o título, Ordem Econômica e Financeira.<br />

Muito embora nossa Constituição tenha sofrido a influência da<br />

Constituição alemã-socialista, do texto extrai-se que o Brasil filia-se à<br />

forma econômica capitalista de produção, também denominada economia<br />

211 A Constituição brasileira, possui um capítulo especial dedicado à ordem econômica, reunindo<br />

princípios, normas e institutos jurídicos, que alicerçam a ordem jurídica econômica. Nesse sentido, a<br />

ordem econômica vem inserida no Título VII, “Da ordem econômica e financeira”, da nossa<br />

Constituição. Vale dizer, o “caput” do artigo 170 estabelece: “A ordem econômica, fundada na<br />

valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna,<br />

conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios....”<br />

Daí se depreende quatro fundamentos: valorização do trabalho humano, livre iniciativa, existência digna e<br />

justiça social. Com efeito, a Constituição Federal relaciona no art. 170, os princípios constitucionais da<br />

ordem econômica, são eles:soberania nacional; propriedade privada; função social da propriedade, etc.<br />

229


de mercado, porque se apóia na apropriação privada dos meios de produção<br />

e na iniciativa privada.<br />

A Constituição faz referência expressa a este modelo econômico no<br />

artigo 219, dispondo que:<br />

“Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio<br />

nacional e será incentivado de modo a viabilizar o<br />

desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar<br />

da população e a autonomia tecnológica do País, nos<br />

termos da lei federal”.<br />

O Estado pode intervir na economia, para exploração direta da<br />

atividade econômica, quando necessária aos imperativos da segurança<br />

nacional, ou em caso de relevante interesse coletivo, conforme estabelece o<br />

artigo 173, caput, da Carta Magna.<br />

Analisando os contornos históricos da atividade econômica, assegura<br />

Fabio Konder Komparato:<br />

“Uma consideração ainda que superficial da história<br />

econômica e da evolução do pensamento ocidental sobre a<br />

vida econômica revela, sem esforço, que a relação de<br />

propriedade privada sempre foi justificada como modo de<br />

230


proteger o indivíduo e a família contra as necessidades<br />

materiais, ou seja, como forma de promover a sua<br />

subsistência. Acontece que na civilização contemporânea,<br />

a propriedade privada deixou de ser o único, senão o<br />

melhor meio de garantia da subsistência individual ou<br />

familiar. Em seu lugar aparecem, sempre mais, a garantia<br />

de emprego e salário justo e as prestações sociais devidas<br />

ou garantidas pelo Estado, como a previdência contra os<br />

riscos sociais, a educação e a formação profissional, a<br />

habitação, o transporte e o lazer”. 212<br />

Assim, reconhece-se, na história da atividade econômica, a<br />

necessidade de submeter a extração dos bens matérias à subsistência do<br />

indivíduo e do grupo do qual integra. Nesse contexto, a propriedade, talvez,<br />

tenha sido o primeiro elemento, que possibilitou ao homem sanar suas<br />

necessidades e, ainda, a acumular o excedente, para empreender novas<br />

atividades no mercado, por exemplo, as trocas.<br />

A função econômica da propriedade e, especialmente, para a<br />

propriedade privada, está em reconhecer que ela tem um papel a<br />

desempenhar, no cenário mundial, no que tange a produção de bens,<br />

serviços e de atender à necessidade humana, de residir, no âmbito territorial,<br />

onde se encontra sua propriedade.<br />

Não podemos esquecer, também, que a propriedade, como elemento<br />

imprescindível ao acúmulo de riquezas, sempre esteve presente, em todo o<br />

sistema capitalista, porquanto ela é a marca determinante do processo<br />

produtivo.<br />

212<br />

COMPARATO, Fábio Konder, Função Social da Propriedade dos Bens de Produção. Revista de<br />

direito Mercantil, nº 63 – Ano XXXV – jul/set de 1.996, p. 73.<br />

231


Em suas lições de direito constitucional econômico sustenta André<br />

Ramos Tavares:<br />

“A propriedade privada é considerada como um elemento<br />

essencial ao desenvolvimento do modelo capitalista de<br />

produção e, ademais, o direito à propriedade é inafastável<br />

da concepção de democracia atualmente existente. Foi por<br />

esse motivo que se preservou o direito de propriedades,<br />

alterando-lhe o conteúdo, com a consagração de direitos<br />

sociais, e, ainda, com a declaração expressa de que<br />

também a propriedade é alcançada pela concepção social<br />

do direito, o que se dá pela determinação de que a<br />

propriedade cumprirá sua função social e se harmonizará<br />

com a busca da dignidade para todo o cidadão”. 213<br />

Sendo a propriedade, elemento essencial do modelo de produção<br />

capitalista e, sendo esse o modelo vigente, no mundo ocidental, não há<br />

como não compatibilizar o uso da propriedade, com o atendimento de sua<br />

função social.<br />

Isto porque, o mundo contemporâneo não mais permite usar da<br />

propriedade ao seu bel prazer, apenas, atendendo às limitações<br />

administrativas, impostas pelo Poder Público. A função social da<br />

propriedade, como já demonstrado, é algo diferente das limitações.<br />

Sendo, a função social da propriedade, indispensável à produção de<br />

bens e riquezas ao cidadão, só resta a este compatibilizar o uso da coisa,<br />

atendendo aos comandos constitucionais e das leis ordinárias.<br />

213<br />

TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. Editora Método, 2ª edição São Paulo,<br />

2006, p. 156.<br />

232


5.17. Dever jurídico do proprietário de atender a uma função social<br />

Diante de tudo o que foi exposto, podemos concluir que há um dever<br />

jurídico do proprietário, em atender a cláusula da função social da<br />

propriedade. 214<br />

O dever jurídico, em atender a uma função social da propriedade,<br />

impõe, ao proprietário, uma solidariedade social, capaz de, a ele, impor a<br />

obrigação de atender ao comando do direito positivo, sem o qual, se torna<br />

inviável, o exercício do direito de propriedade, inerente a cada indivíduo, e,<br />

ainda, fazer com que a coletividade se beneficie dos produtos da função<br />

social da propriedade, como, por exemplo, a paz social. A realidade<br />

normativa atual exige do proprietário, que as práticas, por ele empreendidas<br />

no imóvel, estejam em consonância com as regras de uso e ocupação do<br />

solo, não apenas como meras limitações ao uso do direito de propriedade,<br />

mas ao dever permanente de se submeter às regras positivadas, de cumprir a<br />

lei, dando uma destinação útil e econômica ao imóvel.<br />

214<br />

Esse dever jurídico decorre como já exposto, da realidade constitucional brasileira, cuja fonte<br />

inspiradora foi o Estado Social de Direito, inaugurado com a Constituição alemã de Weimar de 1919 e a<br />

mexicana de 1917.<br />

233


5.18. A função social da propriedade no Direito Civil<br />

O Direito Civil sempre traduziu, para o proprietário, os elementos<br />

indispensáveis, para exercer, os atributos decorrentes da propriedade, tais<br />

como o usar, gozar, dispor e reivindicar, cabendo observar que o Código<br />

privado de 1916, jamais traduziu o conceito de direito de propriedade,<br />

sendo esta tarefa atribuída aos doutrinadores.<br />

Fruto do modelo do Código Civil francês, cuja pedra de toque foi o<br />

individualismo, o Codex brasileiro, a exemplo daquele, jamais tratou da<br />

questão da função social da propriedade, porquanto esta temática acabara de<br />

florescer no cenário da doutrina do publicista francês Léon Duguit. 215<br />

O que se deve dizer de tudo isso, é que o Código Civil brasileiro<br />

demorou demais para sofrer as alterações necessárias, para adequar-se à<br />

realidade do direito positivo, estampado na Constituição Federal. Quando<br />

uma norma entra no cenário jurídico, sem respeitar o arcabouço maior, tem-<br />

se ofensa ao sistema de direito positivo, cabendo aos órgãos competentes<br />

fazerem o devido controle.<br />

Nesse passo é que, ao nascer o Código Civil de 2002, o legislador<br />

levou em consideração a ordem positiva instaurada com a Constituição<br />

Federal de 1988, imprimindo, no novo Código Civil de 2002, os novos<br />

princípios do Estado Social de Direito.<br />

215<br />

Na realidade, no plano normativo, a questão da função social da propriedade só ganhou força jurígena<br />

com a Constituição de Weimar de 1919 e a mexicana de 1917 de modo que, como já anotamos, somente<br />

a partir de então é que os demais países da Europa e da América Latina passaram a adotar em suas<br />

constituições, o modelo de Estado Social.<br />

234


Nesse sentir, a propriedade privada, cunhada com o Código de<br />

Napoleão e que serviu de suporte ao Código nacional, a despeito do advento<br />

da função social da propriedade, não perdeu no nosso entendimento, o<br />

caráter de direito absoluto.<br />

É oportuno ressaltar que tanto a Constituição Federal, quanto o<br />

Código Civil, asseguram o direito à propriedade privada, mormente, a<br />

consagrá-la como direito fundamental.<br />

Na realidade, o que ocorreu foi a funcionalização do instituto da<br />

propriedade, no sentido de se colocar a propriedade, ao lado dos valores<br />

sociais do bem comum e da solidariedade social, ainda que esta última<br />

esteja muito longe de se cumprir.<br />

Na reforma do Código Civil, a propriedade ganhou a diretiva<br />

instaurada pelo direito constitucional abraçando, portanto, a sistemática<br />

implantada pela ordem maior. Com as mudanças operadas no Código Civil,<br />

a propriedade privada ganhou uma nova disciplina, que agora passamos a<br />

expor.<br />

5.18.1. As inovações do Código Civil de 2002<br />

Conforme foi dito linhas anteriores, o Código Civil de 2002 adotou,<br />

no nosso entendimento, os valores trazidos pela Constituição de Weimar de<br />

1919 e imprimiu um novo valor ao instituto da propriedade, trazendo para o<br />

cenário jurídico a propriedade-função social.<br />

235


O artigo 1228 do Código Civil de 2002 equivale ao artigo 524 do<br />

Código de 1916, traz algumas mudanças iniciais no plano estrutural do<br />

direito à propriedade privada.<br />

Assegura o artigo 1228 da Lei n o 10.406/02:<br />

“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar<br />

e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem<br />

quer que injustamente a possua ou detenha”. 216<br />

Nesse sentido, pode-se entender que a regra cunhada nesta disposição<br />

mantém os atributos inerentes ao direito de propriedade, consagrados no jus<br />

utendi, jus fruendi, jus abutendi (ou disponendi) e a rei vindicatio.<br />

O artigo 1228 do novo Código Civil manteve a estrutura do<br />

individualismo tradicional.<br />

Todavia, a grande novidade foi trazida pelo parágrafo primeiro<br />

daquela disposição que assim disciplina:<br />

“Art. 1.228. (...).<br />

§ 1 o O direito de propriedade deve ser exercido em<br />

consonância com as suas finalidades econômicas e sociais<br />

216<br />

O Código Civil de 1916 estabelecia, no artigo 524 que : A lei assegura ao proprietário o direito de usar,<br />

gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer injustamente os possua.<br />

236


e de modo que sejam preservados, de conformidade com o<br />

estabelecido em lei especial, à flora, a fauna, as belezas<br />

naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e<br />

artístico, bem como evitada a poluição do ar e das<br />

águas”. 217<br />

Paulo Luiz Neto Lobo, em seus ensinamentos de direito civil<br />

constitucional ensina:<br />

“A função social é incompatível com a noção de direito<br />

absoluto, oponível a todos, em que se admite apenas a<br />

limitação externa, negativa. A função social importa<br />

limitação interna, positiva, condicionando o exercício e o<br />

próprio direito. Lícito é o interesse individual quando<br />

realiza igualmente o interesse social. O exercício do<br />

direito individual da propriedade deve ser feito no sentido<br />

da utilidade não somente para si, mas para todos. Daí ser<br />

incompatível com a inércia, com a inutilidade, com a<br />

especulação”. 218<br />

Partindo da lição desse jurista, podemos dizer que o direito de<br />

propriedade, mantendo-se, no sistema jurídico nacional, como um direito<br />

absoluto, é assegurado ao indivíduo, de modo que a função social da<br />

propriedade é um elemento, que qualifica e potencializa a propriedade, a<br />

fim de que ela atinja as finalidades econômicas, buscando satisfazer às<br />

necessidades do individuo e da coletividade.<br />

217<br />

Para melhor noção, o que está contido na expressão finalidades econômica e social, reportamos o leitor<br />

a tudo o que foi dito sobre a função social e a função econômica da propriedade.<br />

218<br />

NETO LOBO, Luiz Paulo. Revista de Informações Legislativas do Senado. Brasília, A 36. nº 141,<br />

jan./mar.1999, p. 106.<br />

237


Entendemos que a disposição contida no § 1º do artigo 1228 está em<br />

completa sintonia com o artigo 5º inciso XXIII da Constituição Federal, que<br />

exige que a propriedade atenda a uma função social, e mais, a estrutura<br />

trazida pelo novo Código Civil se adequa à realidade de que a propriedade<br />

está inserida na ordem econômica, cumprindo, assim, o comando do artigo<br />

170, II e III da Carta Federal.<br />

Nesse sentido, se pode garantir que o legislador do século XXI deu<br />

um tratamento ao direito de propriedade, também no âmbito da ordem<br />

econômica, vindo, em razão disso, a regular, no âmbito privado, a matéria<br />

já consagrada em sua estrutura constitucional.<br />

É importante frisar que para que haja o pleno exercício do direito de<br />

propriedade, seu titular deve fazê-lo, atendendo a uma finalidade econômica<br />

e social. O proprietário deve dar uma destinação econômica a coisa, da qual<br />

mantém a propriedade direta ou indireta.<br />

Não pode o proprietário manter o direito sobre a coisa, sem dar a ela<br />

uma destinação útil, como, por exemplo, a construção de casa para a<br />

moradia própria e da família.<br />

Como veremos adiante, igualmente sucede com a propriedade rural,<br />

que deve ser destinada a uma utilidade própria do meio rural. Além do<br />

mais, a destinação a ser dada à propriedade, deve, também, atender às<br />

regras estatuídas pelas disciplinas estabelecidas pelas legislações especiais,<br />

a fim de proteger, por exemplo, a fauna, a flora, o patrimônio artístico,<br />

estético, paisagístico, cultural, entre tantos outros.<br />

238


Há, portanto, uma exigência nuclear, que brota do comando privado<br />

do artigo 1228, § 1º, qual seja, o proprietário não pode deixar de usar a<br />

propriedade, sob pena de ferir o sistema normativo público, que emana do<br />

Código Civil. Esse comando, que emana das disposições do direito de<br />

propriedade, permite reconhecer a figura de um direito civil constitucional.<br />

Ao lado do direito individual da propriedade, encontram-se outras<br />

categorias de direitos que não são meramente privados, mas coletivos. Esses<br />

direitos são pertencentes à categoria dos direitos difusos e coletivos,<br />

reconhecidos pela nova ordem constitucional vigente, como é o caso do<br />

meio ambiente ecologicamente equilibrado.<br />

Passemos de agora em diante a tratar das disposições contidas no<br />

artigo 1228 do Código Civil, a fim de fazer uma breve abordagem acerca da<br />

função social da propriedade.<br />

Fazendo uma análise do artigo 1228, § 1º do Código Civil, pontifica<br />

Gustavo Tepedino:<br />

“A função social da propriedade confere, portanto, ao<br />

titular da propriedade, um duplo dever: o de deixar de<br />

praticar o ilícito, como colocar fogo numa floresta, e o de<br />

promover o meio ambiente, sob pena de perder a<br />

legitimidade constitucional. O Judiciário não poderá<br />

admitir a tutela de um direito de propriedade que<br />

desrespeita a sua função social. Decorre daí que a dicção<br />

do § 1º do art. 1.228 deve ser interpretada como um<br />

conteúdo objetivo da função social da propriedade, a<br />

239


traduzir os interesses que, expressamente indicados pelo<br />

codificador, devem ser preservados pelo titular do domínio<br />

para que o seu direito subjetivo seja assegurado”. 219<br />

A função social da propriedade, no novo diploma civil, é tratada no §<br />

1º do artigo 1228 da Lei n o 10.406/02, de modo que há, na realidade, um<br />

comando normativo inovador nesta disposição, porquanto revela a vontade<br />

do legislador de disciplinar o uso da propriedade, ao lado das riquezas e<br />

potencialidades do meio ambiente.<br />

5.18.2. Uso anti-social da propriedade<br />

No § 2º do artigo 1228 do Código Civil, o legislador impõe veto ao<br />

uso da propriedade imóvel tendente a prejudicar outro proprietário.<br />

O proprietário deve usar a propriedade, mas não abusar deste uso, sob<br />

pena de ao fazê-lo estar dando uma utilidade anti-social à coisa. Essa<br />

utilidade anti-social é contrária ao ordenamento jurídico e está, no nosso<br />

entendimento, a caracterizar o abuso de direito, ao qual a norma positiva do<br />

artigo 187 do diploma privado, impõe veto.<br />

219 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil, Tomo II, editora Renovar, 2006, p. 159.<br />

240


5.18.3. Propriedade e desapropriação<br />

No § 3º do artigo 1228 da Lei n o 10.406/2002, há um tratamento<br />

condizente com a norma constitucional, na medida em que o legislador<br />

trouxe a disciplina da desapropriação de imóvel. Com efeito, a nova<br />

disciplina civil, além de adotar os contornos da propriedade função-social e<br />

econômica, também disciplinou a matéria concernente à desapropriação de<br />

imóvel por necessidade e utilidade pública e interesse social e, ainda, em<br />

casos de requisição, para a hipótese de perigo público iminente.<br />

Assim, o Código Civil (artigo 1228, § 3º) se harmoniza com a<br />

Constituição Federal, (artigo 5º, XXIV e XXV; artigos 182, § 2º, 184 e 185,<br />

I e II); com o Decreto lei n o 3.365/41 (desapropriação por utilidade pública);<br />

Lei n o 4.132/62 (Desapropriação por interesse social) e demais legislações,<br />

que a sucederam.<br />

5.18.4. Função social da posse<br />

No § 4º do artigo 1228 da Lei n o 10.406/2002, há um tratamento, que<br />

reputamos, também, em harmonia com a Constituição Federal. Com efeito,<br />

o legislador infraconstitucional, além de garantir o direito à propriedade<br />

privada, se preocupou em obrigar o proprietário a dar uma destinação<br />

241


econômica à coisa, sob pena de sofrer o efeito da usucapião ou da<br />

desapropriação judicial.<br />

Antes mesmo do advento do novo Código Civil, já lecionava Luiz<br />

Edson Fachin:<br />

“A função social da propriedade é também princípio<br />

jurídico. Ao seu lado, a função social da posse, dela<br />

distinta, está a exigir novo tratamento legislativo,<br />

compatível com a posse material e com a redução dos<br />

prazos de usucapião a lapsos de tempos mais exíguos”. 220<br />

A função social da posse é uma tônica na realidade jurídica moderna<br />

e, ao que nos parece, tem o precípuo fim de levar, aquele que ocupa a terra,<br />

a adquirir a respectiva propriedade pela constante posse e destinação da<br />

coisa.<br />

Para isso, o legislador, por uma política legislativa que se amolda à<br />

realidade social de quem não tem a propriedade, buscou imprimir um<br />

verdadeiro ônus para o proprietário desidioso, que não atende à função<br />

social e econômica da propriedade.<br />

A disposição contida no § 4º do artigo 1228 do Código Civil está a<br />

caracterizar a função social da posse, na medida em que confere o direito à<br />

propriedade privada, por meio da usucapião, quando um número<br />

considerável de pessoas ocuparem a área por um período superior a 5<br />

220<br />

FACHIN, Luiz Edson. A Função Social da Posse e a Propriedade Contemporânea. Sergio Antonio<br />

Fabris Editor. Porto Alegre, 1.988, p. 95.<br />

242


(cinco) anos. O citado dispositivo exige que os ocupantes demonstrem, ao<br />

menos, a realização de obras ou serviços, considerados relevantes pelo juiz,<br />

e, que esta posse se tenha obtido de boa-fé.<br />

O grande problema que se verifica na prática é que esta posse não é<br />

consentida, até porque se assim o fosse, não geraria, a nosso ver, a<br />

aquisição pela usucapião ou desapropriação judicial, pois a posse irregular<br />

de terrenos se dá na modalidade clandestina, constituindo-se verdadeira<br />

invasão.<br />

Interpretando o § 4º do artigo 1228 da Lei n o 10.406/2002, afirma<br />

Gustavo Tepedino:<br />

“A interpretação literal ao dispositivo levaria à sua<br />

inaplicabilidade prática, sendo difícil caracterizar nesses<br />

casos a boa-fé subjetiva, ou seja, o desconhecimento de<br />

vício possessório nas situações ali descritas. A<br />

interpretação há de ser, aqui, evolutiva, expandindo-se a<br />

noção de boa-fé e ampliando-se a legitimidade dos títulos<br />

para esse efeito”. 221<br />

De acordo com a lição desse moderno civilista, depreendemos que se<br />

verifica a boa-fé se os possuidores estiverem munidos de instrumentos, ou<br />

seja, contratos, previamente assinados, com aqueles que venderam a<br />

propriedade, que, a priori, não lhes pertencia, comprovando-se, assim, a<br />

compra do imóvel.<br />

221 Ob.Cit,.p.160.<br />

243


Por sua vez, analisando o requisito da boa-fé, na mesma disposição<br />

legal, pondera Joel Dias Figueira Junior:<br />

“A expressão boa-fé apontada no art. 1.228, § 4º, do CC<br />

há de ser interpretada em harmonia com o próprio Código<br />

Civil e as regras constitucionais garantidoras do direito de<br />

propriedade, sob a luz de sua ‘função social’. Para<br />

alcançarmos esse desiderato, a interpretação há de ser<br />

histórica e extensiva, tendo em conta que a lei disse menos<br />

do que desejava o legislador, pois deveria ter incluído no<br />

dispositivo também o requisito da posse justa. Assim,<br />

fazia-se mister a seguinte redação: “ O proprietário<br />

também pode ser privado da coisa se o imóvel<br />

reivindicado consistir em extensa área, na posse justa,<br />

ininterrupta e de boa-fé...”. 222<br />

O permissivo desse § 4º deve ser analisado em sintonia com o § 5º do<br />

mesmo artigo 1228 do Código Civil, na medida em que está na esfera do<br />

julgador proferir a decisão de reconhecimento da posse e da propriedade,<br />

pelos ocupantes da área objeto de litígio.<br />

Vale lembrar que vários enunciados foram aprovados na Primeira<br />

Jornada de Direito Civil, sendo que o enunciado 82 versa sobre o artigo<br />

1.228 do Código Civil, onde ficou consignado: “Art. 1.228: É<br />

constitucional a modalidade aquisitiva de propriedade imóvel prevista nos<br />

§§ 4º e 5º do art. 1.228 do novo Código Civil”.<br />

222<br />

FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias. A Extensão do Conceito de “Boa-Fé” Em Limitação ao Direito de<br />

Propriedade Definida no art. 1.228, § 4º, do Código Civil - O Controvertido Instituto da “expropriação<br />

judicial”.<br />

244


5.18.5. Desapropriação judicial<br />

Ao se proceder a uma análise do § 5º do artigo 1228 do Código Civil,<br />

várias considerações jurídicas podem ser feitas. Entretanto, o que está longe<br />

de ser pacífica, são as questões ligadas ao pagamento da indenização, à<br />

consideração do que vem a ser obras consideradas de interesse social e<br />

econômicas, extensão da área ocupada, sem falar do quesito da boa-fé, antes<br />

já ventilado.<br />

Na análise desse dispositivo legal, há autores que defendem ser o<br />

caso de uma desapropriação judicial.<br />

Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, comentando a<br />

respeito da desapropriação judicial afirmam que ela:<br />

“É o ato pelo qual o juiz, a requerimento dos que exercem<br />

a posse-trabalho, fixa na sentença a justa indenização que<br />

deve ser paga por eles ao proprietário, após o que valerá<br />

a sentença como título translativo da propriedade, com<br />

ingresso no registro de imóveis em nome dos possuidores,<br />

que serão os novos proprietários”. 223<br />

Segundo esses autores:<br />

223<br />

NERY JUNIOR. Nelson, ANDRADE NERY, Rosa Maria de Novo Código Civil e Legislação<br />

Extravagante Anotados, Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 419-420.<br />

245


“Compõem o direito de desapropriação judicial: a) com<br />

relação ao imóvel: propriedade de outrem; área extensa,<br />

b) quanto à posse: ser ininterrupta e de boa-fé por cinco<br />

anos; ser caracterizada como posse-trabalho, isto é,<br />

exercida por pessoas que realizaram no imóvel, em<br />

conjunto ou separadamente, obras e serviços de interesse<br />

social ou econômico relevante”. 224<br />

Defendendo esta mesma posição, afirma Silvio de Salvo Venosa:<br />

“O sistema inovador se aproxima muito do instituto da<br />

desapropriação. Trata-se, pois, de uma desapropriação<br />

judicial sob novos princípios. Aliás esse pagamento da<br />

justa indenização descrita pela lei trará problemas de<br />

difícil transposição no caso concreto: imagine-se avaliar<br />

dezenas de terrenos ocupados por dezenas de titulares.<br />

Portanto, nem sempre será simples fazer com que a<br />

sentença seja registrada como título do imóvel em nome<br />

dos proprietários”. 225<br />

Teori Albino Zavascki, analisando o teor do § 5º do artigo 1228 em<br />

conjunto com a usucapião coletiva, sedimenta a tese de que há na inovação<br />

do Código Civil uma “desapropriação indireta”. Afirma o magistrado que,<br />

em ambos os casos, são:<br />

224<br />

Ibidem, loc. cit.<br />

225<br />

VENOSA, Silvio de Salvo. Código Civil Comentado. Coordenador Álvaro Villaça Azevedo. Editora<br />

Atlas, Vol. XII – Direitos das Coisas, São Paulo, 2003, p. 218.<br />

246


“(...) formas encontradas pelo legislador para dirimir<br />

crises de tensão concreta entre o direito de propriedade<br />

e o princípio da função social das propriedades, ambos<br />

de estrutura constitucional”. 226<br />

Também entendo que se analisada a questão da propriedade privada<br />

sob o ponto de vista do interesse público e do bem estar social, a disposição<br />

contida no § 5º do artigo 1228 do Código Civil é constitucional, pois a meu<br />

ver, o que pretendeu o legislador ordinário, foi disciplinar a propriedade no<br />

Estatuto Privado, em consonância com a disciplina contida nos incisos<br />

XXII e XXIII da Constituição Federal, sendo que coube ao Código Civil<br />

fixar o modus operandi para tanto.<br />

Se esse modus operandi, seja ele o mais correto ou justo, é algo que<br />

merece ser refletido, porquanto, a nosso ver, a falta de moradia é uma<br />

questão social e de política pública e o Código Civil não parece o melhor<br />

meio de definir uma política pública.<br />

Fazendo uma análise conjunta dos § § 4º e 5º do artigo 1228 da Lei n o<br />

10.406/02, pondera o professor Arruda Alvim:<br />

“A meu ver, aqui se trata de uma desapropriação que<br />

haverá de ser desencadeada pelo juiz e, uma vez pago o<br />

preço, estes que são os ocupantes da área tornar-se-ão<br />

proprietários. Pensam alguns que o preço deve ser pago<br />

pela União, se se tratar de área rural, ou pelo Município<br />

respectivo, se se tratar de área urbana. Julgamos, todavia,<br />

226<br />

ZAVASCKI, Teori Albino.A Reconstrução do Direito Privado. Organização Judith Martins-Costa.<br />

Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 855.<br />

247


que o pagamento deverá vir a ser feito pelos próprios<br />

possuidores, ou seja, é a esses que se refere o § 5º do art.<br />

1228” 227 .<br />

Temos, para nós, que o professor Arruda Alvim está com a razão,<br />

porquanto não se poderia conferir aos possuidores a propriedade da coisa,<br />

sem ao menos exigir deles o pagamento. A forma como esse pagamento se<br />

dará, aí sim, é uma questão tormentosa.<br />

Muitos podem até suscitar a hipótese de serem os possuidores<br />

pessoas humildes e sem condições econômicas de pagar pela fração que<br />

adquirirem. Todavia, essa é uma questão que, a nosso ver, não pode ficar<br />

apenas nas lamentações, porquanto, se assim se admitir, estar-se-á a conferir<br />

verdadeiro locupletamento ilícito aos possuidores, o que é vedado pelo<br />

ordenamento jurídico.<br />

A justa indenização há de ser apurada em regular perícia técnica, a<br />

ser determinada pelo juiz. Essa perícia também deve determinar a exata<br />

extensão da área e, sempre que possível, a metragem ocupada pelos co-<br />

possuidores. Diz-se, sempre que possível, pois poderá haver algum<br />

impedimento de ordem geológica, que impeça o fracionamento de<br />

determinada área ocupada por um dos possuidores, por exemplo,<br />

solapamento abrupto e deslocamento de talude. 228<br />

O perito, por determinação judicial e a requerimento dos possuidores,<br />

deve elaborar memorial descritivo de toda a área, bem como memorial<br />

227<br />

ARRU<strong>DA</strong> ALVIM NETTO, José Manoel de. Principais Controvérsias no Novo Código Civil. Função<br />

Social da Propriedade, Editora Saraiva, São Paulo, 2006, p.. 30.<br />

228<br />

Talude é uma inclinação lateral de um terreno ou de uma obra.<br />

248


descritivo individualizado de cada possuidor, a fim de que, uma vez<br />

reconhecendo a procedência da demanda, possa haver o registro<br />

individualizado da posse, conferindo assim a propriedade.<br />

As disposições contidas nos § § 4º e 5º do artigo 1228 do Código<br />

Civil, a nosso ver, hão de ser vistas sob a vertente da socialização do<br />

Direito.<br />

Com efeito, se o Direito Constitucional e o Direito Civil enveredam<br />

os caminhos para atingir os fins sociais, a paz e o bem comum, temos para<br />

nós que esses fins sociais podem ser atingidos, na medida em que o Estado<br />

confere direito aos cidadãos e, neste passo, a função social da posse nada<br />

mais é do que tornar a propriedade, geradora de riquezas, daquele que quer<br />

dela extrair as potencialidades, que a mesma pode oferecer.<br />

Quanto à natureza da decisão judicial que confere a propriedade aos<br />

possuidores, entendo que ela é constitutiva de direito real, que há<br />

necessariamente de ser averbada no registro de imóvel, a fim de assegurar o<br />

direito à propriedade e todos os efeitos, que do registro decorrem.<br />

A aplicação dos § § 4º e 5º do artigo 1288 do Código Civil de 2002,<br />

certamente, está trazendo muita polêmica não só em doutrina, mas também<br />

nos tribunais. Já há algum tempo, em São Paulo, o Tribunal de Justiça, na<br />

linha do que estabelece os § § 4º e 5º do artigo 1228 do Código Civil, havia<br />

reconhecido a posse de várias pessoas que ocupavam um imóvel, cuja<br />

titularidade havia sido “abandonada” pelo proprietário.<br />

Na realidade, o imóvel, quando da propositura de ação reivindicatória<br />

pelos proprietários, se encontrava ocupado por enorme quantidade de<br />

249


pessoas, que haviam construído sua moradia no local, fenômeno a que foi<br />

atribuído pelo relator do acórdão o título de “favelização”.<br />

Foi reconhecido, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que o imóvel<br />

não mais guardava as características antes existentes, porquanto haviam<br />

sido erigidas várias moradias no local, havendo uma nova realidade<br />

social. 229<br />

Essa nova realidade social, a que o acórdão se referiu, vai de encontro<br />

aos fins sociais e econômicos, a que se destina a propriedade, máxime, do<br />

dever, que tem o proprietário, de extrair as potencialidades, que a<br />

propriedade pode oferecer. Por outro lado, analisando melhor a questão,<br />

229<br />

9- O atual direito positivo brasileiro não comporta o pretendido alcance do poder de reivindicar<br />

atribuído ao proprietário pelo art. 524 do CC.<br />

A leitura de todos os textos do CC só pode se fazer à luz dos preceitos constitucionais vigentes. Não se<br />

concebe um direito de propriedade que tenha vida em confronto com a Constituição Federal, ou que se<br />

desenvolva paralelamente a ela. As regras legais, como se sabe, se arrumam de forma piramidal. Ao<br />

mesmo tempo em que manteve a propriedade privada, a CF a submeteu ao princípio da função social<br />

(arts. 5º, XXII e XXIII; 170, II e III; 182, 2º; 184; 186; etc.). Esse princípio não significa apenas uma<br />

limitação a mais ao direito de propriedade, como, por exemplo, as restrições administrativas, que atuam<br />

por força externa àquele direito, em decorrência do poder de polícia da Administração.<br />

O princípio da função social atua no conteúdo do direito. Entre os poderes inerentes ao domínio, previstos<br />

no art. 524 do CC (usar, fruir, dispor e reivindicar), o princípio da função social introduz um outro<br />

interesse (social) que pode não coincidir com os interesses do proprietário. Veja-se, a esse propósito,<br />

José Afonso da Silva, 'Direito Constitucional Positivos', 5ª ed., p. 249⁄0, com apoio em autores<br />

europeus).<br />

Assim, o referido princípio torna o direito de propriedade, de certa forma, conflitivo consigo próprio,<br />

cabendo ao Judiciário dar-lhe a necessária e serena eficácia nos litígios graves que lhe são submetidos.<br />

10 - No caso dos autos, o direito de propriedade foi exercitado, pelos autores e por seus antecessores, de<br />

forma anti-social. O loteamento - pelo menos no que diz respeito aos nove lotes reivindicandos e suas<br />

imediações - ficou praticamente abandonado por mais de 20 (vinte) anos; não foram implantados<br />

equipamentos urbanos; em 1973, havia árvores até nas ruas; quando da aquisição dos lotes, em 1978⁄9, a<br />

favela já estava consolidada. Em cidade de franca expansão populacional, com problemas gravíssimos<br />

de habitação não se pode prestigiar tal comportamento de proprietários.<br />

O jus reivindicandi fica neutralizado pelo princípio constitucional da função social da propriedade.<br />

Permanece a eventual pretensão indenizatória em favor dos proprietários, contra quem de direito.Diante<br />

do exposto, é dado provimento ao recurso dos réus para julgar improcedente a ação, invertidos os ônus<br />

da sucumbência, e prejudicado o recurso dos autores." (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,<br />

Apelação Cível nº 212.726, 1.994, relator Desembargador José Osório).<br />

250


entendo que a ação, proposta pelo proprietário, já poderia ter cominado com<br />

o pedido de condenação dos réus, ao pagamento de indenização para a<br />

hipótese de não reconhecimento do pleito reivindicatório, pois, como bem<br />

assegurou o acórdão, já havia uma desnaturalização da propriedade e uma<br />

ocupação que durava 20 (vinte) anos.<br />

Entendo que o Tribunal de Justiça proferiu a decisão corretamente, na<br />

medida em que ao proprietário não é dado o direito de abandonar a coisa,<br />

não importa a que título. Com efeito, uma cidade de extraordinária<br />

densidade demográfica, está a exigir do proprietário a tomada de ações,<br />

condizentes com a realidade social que se afigura no plano urbanístico,<br />

especialmente, quando se sabe que, no Brasil, o êxodo rural de famílias, que<br />

abandonam seus lares em vários cantos do país, em busca de melhores<br />

condições de vida e, também, de moradia, é histórico. Essa realidade já<br />

existe, em São Paulo, há mais de 5 (cinco) décadas e os proprietários dos<br />

imóveis ocupados não se aperceberam, ou não deram crédito à hipótese de<br />

ver seus imóveis ocupados.<br />

O que mais me intriga nesta questão toda, é o fato dos proprietários<br />

dos imóveis terem deixado os ocupantes tantos anos no local, vindo só anos<br />

mais tarde, a promover ação reivindicatória.<br />

Os proprietários, certamente, estão pagando o preço da desídia, do<br />

relapso, da imprudência e do abandono, práticas que não se pode aplaudir.<br />

Nesse sentido, entendo que o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu<br />

corretamente, ainda mais, no caso, em que conferiu direito aos proprietários<br />

de demandarem os possuidores, em ação de indenização. Aqui reside nossa<br />

251


opinião de que deveriam, os autores da ação, quando da propositura da<br />

reivindicatória, ter cumulado o pedido inicial com a indenização.<br />

5.19. Conseqüências para aquele que não atende a função social<br />

É conseqüência inafastável do não atendimento da função social da<br />

propriedade, a perda da propriedade imóvel, com a correspondente<br />

indenização do proprietário. Vale dizer que é dever jurídico do proprietário<br />

atender à função social, na medida em que a lei não poderia deixar o<br />

proprietário usar a coisa, sem lhe impor uma sanção para o caso de não uso.<br />

A sanção, em que pesem entendimentos divergentes, é a perda da<br />

propriedade, pela desapropriação de seu titular.<br />

Essa perda da propriedade é sanção legal, resultado da inoperância,<br />

sem motivo justificado, do proprietário, em face da cláusula condicionadora<br />

do exercício do direito de propriedade. É importante salientar que não basta,<br />

apenas, justificar, é preciso que a justificativa se amolde à realidade do local<br />

do imóvel e da comunidade. Com efeito, a propriedade atende à função<br />

social, quando se amolda à realidade do ambiente em que se encontra.<br />

No plano urbano, atenderá às exigências do plano diretor da cidade, na<br />

medida em que fica restrito à realidade das exigências expressas nas<br />

disposições estabelecidas pelo poder municipal. Por outro lado, se a<br />

propriedade está no meio rural, a função social, certamente, dirá respeito à<br />

necessidade da comunidade do ambiente rural, cuja necessidade é inadiável.<br />

252


Veja-se, portanto, que, dependendo do ambiente em que a propriedade<br />

se encontra, a função social exercerá uma destinação própria, condizente,<br />

portanto, com a realidade do ambiente. Vale dizer que toda e qualquer<br />

função social, necessariamente, partirá do binômio destinação econômica<br />

versos utilidade social.<br />

O novo proprietário, uma vez adquirindo a propriedade pela<br />

desapropriação, recebe, também, o ônus legal de cumprir a função social,<br />

que o anterior proprietário não cumpriu, sob pena de sofrer igual sanção,<br />

pelo não atendimento da cláusula social.<br />

5.20. Efetivação do direito de propriedade<br />

Nas três categorias de direitos, anteriormente expostas, verificamos<br />

que, para sua efetivação, o sistema jurídico pátrio positivado oferece um<br />

poderoso mecanismo de proteção, que tem como suporte a Constituição<br />

Federal.<br />

Nesse sentido, os direitos de primeira geração, tais como o direito<br />

civil e os direitos políticos possuem uma base constitucional sólida,<br />

traduzindo-se em normas auto-aplicáveis, porquanto a sua aplicabilidade<br />

obriga ao Estado a abstenção.<br />

O Estado não pode deixar de aplicar ou tornar eficazes esses direitos,<br />

posto que lhe é defesa a omissão.<br />

253


Os direitos de segunda geração, assim entendidos, os direitos sociais,<br />

econômicos e culturais nem sempre podem ser exigidos de modo amplo,<br />

como antes já demonstrado, pois, sabidamente, muitos deles, como o salário<br />

digno, dependem de políticas públicas a serem implementadas pelo Estado.<br />

Nesse sentido é a lição de Enrique Ricardo Lewandowski:<br />

“Os direitos econômicos, sociais e culturais, de<br />

elaboração mais recente em termos históricos, de seu<br />

turno, nem sempre podem ser exigidos através dos<br />

tribunais, não só porque não estão claramente definidos<br />

como os de primeira geração, como também porque<br />

dependem de uma ação positiva do Estado para se<br />

concretizarem”. 230<br />

Os direitos de terceira geração compõem uma categoria nova de<br />

direitos, cuja eficácia é mais difícil do que os direitos de segunda geração,<br />

porque são direitos difusos e coletivos pertencentes à titularidade<br />

indeterminada de pessoas. Sua proteção, no processo internacional, é ainda<br />

mais difícil, pois estão garantidos apenas no plano legal e teórico.<br />

Em relação precisamente à efetivação do direito de propriedade, nos<br />

parece claro que, no Brasil, há uma miserabilidade tal, que sufoca certas<br />

classes sociais, inviabilizando, portanto, a aquisição da propriedade privada.<br />

Para que todos, indistintamente, tenham acesso à propriedade, quer como<br />

230<br />

LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. A Formação da Doutrina dos Direitos Fundamentais, Lições de<br />

Direito Constitucional em Homenagem ao Jurista Celso Bastos, Editora Saraiva, edição 2.005, São<br />

Paulo, p. 177.<br />

254


meio de produção, quer como meio de consumo, apto a assegurar a moradia<br />

e a habitação, impõe-se que, no âmbito do Estado, sejam criadas políticas<br />

públicas, que permitam, a todos os cidadãos, adquirir a propriedade.<br />

Ainda que possa haver opiniões divergentes, entendo haver omissão<br />

do Estado brasileiro, na criação de políticas públicas que viabilizem o<br />

acesso e a aquisição da propriedade imobiliária.<br />

No Brasil, há uma enorme deficiência habitacional, que está<br />

relacionada à ausência do Estado, em promover políticas públicas que<br />

permitam a aquisição da propriedade. Na medida em que o Estado não cria<br />

meios de acesso à propriedade privada, há um flagrante aviltamento da<br />

disposição consagradora do direito de propriedade, estabelecido no artigo<br />

5º, inciso XXII da Carta Política.<br />

Sendo a norma constitucional, uma norma jurídica de aplicabilidade<br />

imediata, impõe-se a assertiva, segundo a qual todo o cidadão, o nato e o<br />

naturalizado, tem direito ao acesso à propriedade imobiliária, quer para o<br />

cultivo, se for ele agricultor, quer como proprietário, que dela se servirá<br />

para a moradia e a habitação.<br />

Assim, não se pode, simplesmente, privilegiar a Constituição, pelo<br />

fato dela garantir a propriedade privada e impor uma função social. É<br />

preciso criar instrumentos que viabilizem a posse e a propriedade da terra, e<br />

isso, no nosso entender, é uma questão de política pública, que deve ser<br />

adotada pelos governos, a fim de possibilitar e concretizar os preceitos<br />

constitucionais.<br />

255


5.21. Função social da propriedade e justiça social<br />

Ainda que possa haver opiniões divergentes, entendemos que tudo o<br />

que foi exposto acerca da propriedade e de sua função social está<br />

relacionado à idéia de justiça social, mormente, por encontrar a propriedade<br />

dentro de um novo perfil jurídico, que é a socialização da coisa,<br />

possibilitando seu uso, gozo e disposição, com vistas a atender à cláusula da<br />

função social da propriedade.<br />

Há, no plano do direito positivo brasileiro, uma tentativa de levar a<br />

propriedade a ser uma das pedras de toque da justiça social, introduzindo o<br />

instituto em vários pontos da Constituição Federal, ora como garantia no<br />

plano dos direitos individuais e coletivos, ora como condicionador da<br />

ordem econômica, para, dentro desse sistema, assegurar a exploração, como<br />

meio de produção, capaz de produzir riquezas.<br />

5.22. Função social da propriedade e as limitações ao direito de<br />

propriedade<br />

Ainda que possa impressionar os especialistas no assunto, há que se<br />

destacar que não se confunde função social da propriedade, com as<br />

limitações impostas pelo poder público ao uso da propriedade, porquanto<br />

estamos diante de duas realidades jurídicas distintas.<br />

256


Na primeira, como outrora foi dito, impõe-se a função social da<br />

propriedade, como condição sine qua non para que exista e subsista o<br />

direito de propriedade. É nesse sentido que a norma impinge ao particular o<br />

exercício do direito de propriedade, que deve, incondicionalmente, ser útil,<br />

para não prejudicar o próximo e não deixar de fornecer utilidades, a quem<br />

dela precise. Já as limitações ao direito de propriedade são imposições<br />

decorrentes da lei, ou do poder público, que vedam ao proprietário o uso<br />

anormal da propriedade ou o uso abusivo.<br />

Esse entendimento não é corroborado por parte da doutrina civilista,<br />

que vê, nas limitações ao direito de propriedade, o fim do caráter absoluto<br />

da propriedade, que sempre a configurou no mundo ocidental.<br />

Adota esse entendimento o saudoso professor Washington de Barros<br />

Monteiro, para quem:<br />

“O direito de propriedade não mais se reveste do caráter<br />

absoluto e intangível, de que outrora se impregnava. Está<br />

ele, sujeito, na atualidade, a numerosas limitações,<br />

impostas no interesse público e no interesse privado,<br />

inclusive nos princípios da justiça e do bem comum.<br />

Várias disposições constitucionais, administrativas,<br />

militares, penais e civis restringem o seu exercício, de tal<br />

modo que se pode afirmar ser totalmente impossível a<br />

completa enumeração de todas as restrições. (...)”. 231<br />

231<br />

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Direito das Cosias, Vol. 3, São Paulo:<br />

Editora Saraiva, 37ª edição, 2003, p.92.<br />

.<br />

257


Mais uma vez, a exemplo do que já foi dito quando tratamos da<br />

configuração do direito de propriedade, não há como se confundir a função<br />

social com as limitações administrativas, sejam fixadas pelo direito público,<br />

direito privado ou direito administrativo.<br />

Na realidade, há que se reconhecer a existência de um regime<br />

diferenciado, um tratamento diverso, a fim de evitar distorções, quanto à<br />

compreensão do que vem a ser limitações e intervenções públicas e a<br />

cláusula da função social da propriedade.<br />

Ensina o professor José Afonso da Silva:<br />

“A função social da propriedade não se confunde com os<br />

sistemas de limitação da propriedade. Estes dizem respeito<br />

ao exercício do direito, ao proprietário; aquela, à<br />

estrutura do direito mesmo, à propriedade”. 232<br />

Assim, se impõe a assertiva de que a função social da propriedade<br />

está relacionada à cláusula de destinação da utilidade do imóvel, ao passo<br />

que as limitações são vedações, impostas pelo poder público, para evitar o<br />

mau uso ou o uso inadequado da propriedade, fora das exigências da<br />

legislação municipal, estadual ou federal.<br />

232<br />

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27ª edição, Editora Malheiros, São<br />

Paulo, 2006,.p. 281-282.<br />

258


Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery também entendem<br />

que as limitações ao direito de propriedade são situações jurídicas diferentes<br />

da função social da propriedade, assegurando:<br />

“O proprietário vivencia situação jurídica positiva que lhe<br />

permite usar, gozar, dispor daquilo que é seu e reavê-lo de<br />

quem quer que injustamente o possua. Essa sua qualidade<br />

de proprietário se sujeita, entretanto, a restrições de<br />

ordem pública e de caráter privado. Pode-se afirmar que o<br />

exercício do direito real de propriedade impõe ao<br />

proprietário o cumprimento de deveres próprios do<br />

chamado Direito de Vizinhança (CC 1277 a 1313;<br />

CC/1916 554 a 558), bem como conduta consentânea com<br />

a função social da propriedade (CF 184 caput, 186 I a<br />

IV)”. 233<br />

Concordamos com as lições desses juristas, haja vista que as<br />

limitações ao direito de propriedade são vedações legais, impostas ao<br />

proprietário, atendendo à ordem urbanística de cada município, ao passo<br />

que a função social, como já se verificou, é uma cláusula condicionadora da<br />

destinação econômica da propriedade.<br />

Maria Helena Diniz, ao tecer seus ensinamentos referentes ao § 1º do<br />

artigo 1228 do Código Civil assegura:<br />

“Há limitação ao direito de propriedade com o escopo de<br />

coibir abusos e impedir que seja exercido, acarretando<br />

prejuízo ao bem-estar social. Com isso se possibilita o<br />

desempenho da função econômico-social da propriedade,<br />

233<br />

NERY JUNIOR. Nelson, ANDRADE NERY, Rosa Maria de Novo Código Civil e Legislação<br />

Extravagante Anotados, Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 418.<br />

259


preconizada constitucionalmente, criando condições para<br />

que ela seja economicamente útil e produtiva, atendendo o<br />

desenvolvimento econômico e os reclamos de justiça<br />

social. O direito de propriedade deve, ao ser exercido,<br />

conjugar os interesses do proprietário, da sociedade e do<br />

Estado, afastando o individualismo e o uso abusivo do<br />

domínio”. 234<br />

A interpretação da renomada jurista é brilhante, todavia, discordamos<br />

quando ela fala que há limitações ao direito de propriedade com o propósito<br />

de inibir o uso abusivo e impedir o uso com prejuízo ao bem-estar social.<br />

Parece-nos que este não é o melhor entendimento que se possa fazer.<br />

Entendemos não haver, na mencionada disposição, limitações ao uso da<br />

propriedade, mas sim uma outra vertente.<br />

Devemos lembrar que a Constituição, ao determinar que a<br />

propriedade atende a uma função social, estabeleceu um verdadeiro dever<br />

jurídico ao proprietário de, ao exercer seu direito, fazê-lo em consonância<br />

com a ordem social e, portanto, com o bem comum. Disso decorre que o<br />

comando, estabelecido no novo Código Civil, deixa claro que o<br />

proprietário, ao exercer seu direito “deve fazer” em consonância com as<br />

legislações especiais e, é aqui que reside a diferença do novo Código para o<br />

anterior.<br />

Não há limitações ao exercício do direito de propriedade naquela<br />

disposição, mas um comando normativo, que impõe um dever jurídico, isto<br />

234<br />

DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotação, 9ª edição, Revisado e atualizado, de acordo com o novo<br />

Código Civil, São Paulo, 2003. p. 785.<br />

260


é, um dever fazer, um dever de agir em atendimento a todo um sistema<br />

legal. Esse sistema legal é o constitucional civil. 235<br />

Não foi por outras razões que o legislador adotou, no sistema do<br />

Código Civil, a função social da propriedade, senão com o intuito de<br />

estabelecer uma disciplina condizente com o sistema positivo, vigente antes<br />

da promulgação do Código de 2002.<br />

Em consonância com o que foi exposto, devo dizer que não se pode<br />

interpretar o § 1º do artigo 1228 do Código Civil de 2002, como limitações<br />

ao exercício do direito de propriedade, mas, como a criação de um sistema<br />

jurídico harmônico, que enveredou os caminhos de atendimento e de<br />

obediência dos valores normativos, contemplados no sistema positivo<br />

constitucional e no sistema normativo da legislação especial.<br />

Urge reconhecer que o legislador traduziu nessa disposição, ainda<br />

que tarde, mas em boa hora, a diretriz mundial das legislações nacionais<br />

contidas em cada país, quando abarca os novos direitos, consagrados após a<br />

Segunda Guerra Mundial. Direitos estes que, como já se disse, não são<br />

novos, pois sempre existiram, apenas, não lhe eram atribuídas tutelas<br />

condizentes com o valor que cada um representa.<br />

Portanto, ao exercer os direitos ou atributos que da propriedade<br />

decorrem, o proprietário deve ter presente que há um plexo normativo, que<br />

não lhe impõe uma abstenção ou uma limitação, mas sim um dever jurídico<br />

235<br />

No sentido de que as limitações ao exercício da propriedade são diferentes da função sócia da<br />

propriedade, assegura Melhim Namem Chalub: “O conceito de função social da propriedade não se<br />

confunde com o sistema de limitações à propriedade, pois a função social diz respeito à própria estrutura<br />

do direito de propriedade, enquanto que as limitações têm como objeto o exercício do direito,<br />

expressando-se na esfera do poder de polícia (...)., in Propriedade Imobiliária. Editora Renovar. Rio de<br />

Janeiro, 2000. p. 12.<br />

261


de atender à ordem legal vigente, que, no fundo, é à busca de um meio<br />

ambiente ecologicamente equilibrado, participando desse meio, o vizinho, a<br />

comunidade e o Estado.<br />

262


Capítulo VI<br />

6. FUNÇÃO <strong>SOCIAL</strong> <strong>DA</strong> PROPRIE<strong>DA</strong>DE URBANA E RURAL<br />

6.1. Introdução<br />

Analisada, a propriedade, nos contextos histórico, axiológico e<br />

normativo, foi possível conhecer, e reconhecer, a evolução do instituto da<br />

propriedade e do direito à propriedade. As várias vertentes normativas que o<br />

direito de propriedade conheceu, no plano do individualismo, o<br />

consagraram, como um direito humano fundamental, ao lado do Estado<br />

Social de Direito, o que exigiu que o instituto fosse planificado, por meio<br />

do direito positivo, em todos os segmentos da atividade humana, dentre<br />

eles, o meio rural e o urbano. É o que se verá de agora em diante.<br />

6.2. A função social da propriedade urbana<br />

A doutrina especializada do Direito Constitucional brasileiro traz<br />

uma enorme contribuição à disciplina urbanística da propriedade. Nessa<br />

esteira, o mestre José Afonso da Silva destaca:<br />

263


“(.....) o direito de propriedade não pode superpor-se ao<br />

preceito constitucional da sua função social. A<br />

determinação urbanística, traduzida em planos ou projetos<br />

gerais ou especiais de urbanismo, no sentido de<br />

densificação de alguma área urbana, revela função social<br />

que se impõe a propriedade de terrenos vagos, que<br />

justifica a imposição de edificar em certo prazo. Ora,<br />

contraria o princípio da função social da propriedade a<br />

conservação de terrenos vazios nos centros urbanos, para<br />

fins de especulação”. 236<br />

Sob o prisma constitucional da propriedade assegura esse publicista:<br />

“A Constituição, como acabamos de ver, acolheu a<br />

doutrina de que a propriedade urbana é um típico conceito<br />

de direito Urbanístico, na medida em que a este cabe<br />

qualificar os bens urbanísticos e definir seu regime<br />

jurídico. A qualificação do solo como urbano, porque<br />

destinado ao exercício das funções urbanísticas dá a<br />

conotação essencial da propriedade urbana. Esta<br />

diferentemente da propriedade agrícola, é resultado já da<br />

projeção da atividade humana. Está portanto, impregnada<br />

de valor cultural, no sentido de algo construído pela<br />

projeção do espírito do Homem. Pois, pelo visto, ela só<br />

passa a existir a definir-se pela atuação das normas<br />

urbanísticas”. 237<br />

236<br />

SILVA, José Afonso da. Disciplina jurídico-urbanistíca da propriedade urbana, Rio de Janeiro. Revista<br />

de Direito Administrativo, nº 142 - out/dez, 1980, p. 9.<br />

237<br />

SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1981,<br />

p. 78.<br />

264


A função social da propriedade urbana deve ser reconhecida, não<br />

apenas como a destinação econômica da propriedade a atender os fins<br />

sociais, mas também, e, sobretudo, aos aspectos urbanísticos. Decorre daí<br />

que o proprietário deve cumprir as posturas municipais para adequar seu<br />

imóvel à realidade paisagística da cidade. Essa realidade urbanística, ao que<br />

nos parece, há de estar inserida no plano diretor, que é o vetor da política<br />

urbana.<br />

O que se percebe é que a função social da propriedade urbana está a<br />

exigir do proprietário o uso do imóvel de forma condizente com a realidade<br />

do meio urbano.<br />

6.3. Elementos de cognição da função social da propriedade urbana<br />

Para se estabelecer o conceito de função social da propriedade no<br />

plano da propriedade urbana, passamos a analisar os requisitos que<br />

elegemos, e reputamos, de cognição, ou seja, aqueles que conduzem à<br />

assertiva de que a propriedade só deve existir, se atender a uma função, que<br />

a norma estabeleceu, como condicionadora da ordenação das cidades.<br />

Cumpre observar que, nos termos do artigo 5º, inciso XXII da<br />

Constituição Federal, “é garantido o direito de propriedade”, e, o inciso<br />

XXIII, desse mesmo artigo, determina que “a propriedade atenderá sua<br />

função social”.<br />

265


Decorrem desses dois incisos, duas premissas fundamentais e<br />

indispensáveis, para a compreensão do conteúdo do direito de propriedade,<br />

no plano constitucional.<br />

Enquanto o inciso XXII, do artigo 5 o , da Carta Magna, estabelece o<br />

direito de propriedade, como uma garantia, o inciso XXIII do mesmo<br />

dispositivo, impõe um mandamento especial, a saber, o de que a<br />

propriedade deve incondicionalmente, atender à função social. Não<br />

devemos olvidar que a Constituição Federal estabeleceu mandamento<br />

finalístico, quando exige que a propriedade atenderá sua função social.<br />

Decorre daí que não haverá razão para o proprietário não se ater à<br />

necessária destinação do imóvel urbano, de que detém a posse, ou o<br />

domínio, pois, se isso não ocorrer, necessariamente surgirá o imperativo do<br />

Estado e as conseqüentes restrições ao direito de propriedade do particular,<br />

a fim de que o exercício dessa propriedade não seja feito, sem atender às<br />

imposições de ordenação das cidades, expressas no plano diretor, podendo,<br />

inclusive, trocar de dono, por meio da desapropriação.<br />

Na mesma linha constitucional, é imperioso transcrevermos o § 2º do<br />

artigo 182 da Constituição Federal, que estabelece:<br />

“Art. 182.(...)<br />

§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social,<br />

quando atende às exigências fundamentais de ordenação<br />

da cidade, expressas no plano diretor”.<br />

266


O dispositivo citado não nos fornece elementos de cognição, para que<br />

possamos delinear os elementos da função social da propriedade urbana,<br />

porquanto estabelece, apenas, que para que se cumpra a função social da<br />

propriedade, necessariamente, hão de ser atendidas, as exigências de<br />

ordenação da cidade, expressas no plano diretor. Nesse sentido, o plano<br />

diretor aparece como um vetor da política urbana, que tem como diretiva<br />

maior, para implementar a função social da propriedade, o atendimento aos<br />

preceitos fixados pelas exigências da política local de cada município.<br />

Diante dessa realidade, ainda que haja outros entendimentos, fornecemos<br />

alguns elementos, que nos permitem adiantar, que, sem eles, não há função<br />

social da propriedade no plano urbano, e, portanto, das cidades:<br />

a) Exigências fundamentais de ordenação das cidades expressas no<br />

plano diretor - o plano diretor, como mecanismo de implementação da<br />

política urbana deve, necessariamente, trazer os elementos indispensáveis, a<br />

que o proprietário faça o correto uso da coisa.<br />

b) Atendimento à ordem econômica - o proprietário deve, em sintonia<br />

com os mandamentos constitucionais, dar a destinação econômica à<br />

propriedade, como antes já referido.<br />

Segundo a Constituição, a ordem econômica tem por fim assegurar a<br />

todos, a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados<br />

os princípios indicados em seu artigo 170.<br />

A nossa Carta Magna, ao conceber a ordem econômica, sujeita aos<br />

ditames da justiça social para o fim de assegurar, a todos, a existência<br />

digna, dá, a esta, um conteúdo preciso, preordenando alguns princípios, tais<br />

267


como a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a redução das<br />

desigualdades regionais e sociais e a busca do pleno emprego.<br />

c) Atendimento da dignidade humana - A propriedade, sendo um<br />

direito do cidadão, deve existir, tendo como fundamento maior, a<br />

necessidade de se atender às necessidades da pessoa humana. Essas<br />

necessidades vão desde a posse da terra, no campo, para a moradia e a<br />

habitação, como também nas cidades, representam o direito à propriedade,<br />

para que a família possa obter moradia.<br />

A dignidade da pessoa humana pode, assim, ser visualizada, na<br />

medida em que o cidadão e sua família, tendo a propriedade da terra,<br />

possam nela se estabelecer. No plano do bem estar social, a propriedade<br />

proporciona, ao homem das cidades, a plena harmonia com sua família e<br />

com a sociedade, possibilitando o equilíbrio humano, emocional e cultural,<br />

premissas básicas de um Estado Social de Direito, cuja pedra de toque é a<br />

socialização do direito. Nesse sentido, a propriedade e sua conseqüente<br />

função social, no plano urbanístico, inserem o homem nas relações<br />

interpessoais, dando-lhe afeições e prazer em seu status dignitatis,<br />

porquanto um homem, sem propriedade, sem moradia e habitação, é um<br />

homem desprovido de sua dignidade.<br />

A propriedade urbana, no que se refere à moradia, e como direito<br />

humano e fundamental, é bem elucidada pelo professor Sergio Iglesias<br />

Nunes de Souza, que assegura:<br />

268


“O direito fundamental é um direito interdependente,<br />

principalmente quando se trata também de direitos<br />

humanos. O mesmo se dá com o direito à moradia. Existe<br />

um liame entre ele e o direito à vida, à integridade física, à<br />

educação, à existência, ao segredo doméstico, à<br />

inviolabilidade do domicílio etc., demonstrando que é um<br />

direito interdependente, não isolado, portanto conjugado a<br />

outros direitos também fundamentais”. 238<br />

Vista sobre este prisma, a propriedade urbana, atendendo sua função<br />

social, no plano da moradia digna da família, desempenha, também, a<br />

função econômica, que é propiciar, como outrora foi dito, as riquezas<br />

necessárias à satisfação da pessoa humana. Portanto, todo prédio urbano,<br />

necessariamente, há de atender à ordem econômica, urbanística e ambiental,<br />

a fim de propiciar o crescimento harmônico das cidades. Esse crescimento<br />

harmônico representa o equilíbrio ecológico e propicia a sustentabilidade<br />

das cidades, dependendo, incondicionalmente, da correta utilização da<br />

propriedade urbana.<br />

Por outro lado, o Poder Público pode fazer uso de instrumentos<br />

legais, para coibir o uso da propriedade, que não atende, no plano<br />

urbanístico, à função social. O que se percebe é que a função social da<br />

propriedade urbana está a exigir, do proprietário, o uso do imóvel, de forma<br />

condizente com a realidade do meio urbano, usando de instrumentos legais<br />

para exigir a correta destinação do imóvel.<br />

238<br />

NUNES DE SOUZA, Sergio Iglesias. Direito à Moradia e de Habitação. Editora Revista dos Tribunais.<br />

São Paulo, 2004, p. 120.<br />

269


Sobre esse aspecto disserta Luiz Paulo Neto Lobo:<br />

“No caso da propriedade urbana, outros mecanismos de<br />

intervenção estatal estão previstos: o parcelamento ou a<br />

edificação compulsórios e o imposto progressivo no<br />

tempo. O conflito entre a concepção individualista da<br />

propriedade e a concepção social emerge na reação que<br />

se nota nos tribunais à implementação, pelos municípios,<br />

do imposto progressivo sobre terrenos urbanos<br />

desocupados, apenas utilizados para fins<br />

especulativos”. 239<br />

Assim, pode se dizer que a função social da propriedade urbana<br />

funciona como uma diretiva a impedir que o proprietário faça uso da coisa,<br />

apenas, para alcançar fins egoísticos, deixando de dar a devida destinação<br />

ao imóvel.<br />

6.4. A função social da propriedade rural<br />

Deve-se dizer que a posse e a propriedade rural são, sem dúvida, os<br />

mais conhecidos instrumentos de labor de que se tem conhecimento, haja<br />

vista que, desde os tempos mais antigos da presença do homem na terra, a<br />

cultura de subsistência foi, e ainda é, a prática mais utilizada nas<br />

sociedades, que tornou, e continua a tornar, possível o assentamento do<br />

homem no campo.<br />

239<br />

NETO LOBO, Luiz Paulo. Revista de Informações Legislativas do Senado. Brasília, A 36. nº 141,<br />

jan./mar.1999, p. 106.<br />

270


Leciona a professora Telga de Araújo:<br />

“A função social, em particular no campo do direito<br />

agrário, assenta-se na ação individual e na ação coletiva<br />

do poder público, de modo a que se proceda à gradual<br />

correção das distorções verificadas na estrutura agrária<br />

nacional, mediante a extinção de latifúndios e minifúndios<br />

e do regime de arrendamentos rurais, e outras formas de<br />

exploração do economicamente mais fraco por parte da<br />

elite fundiária do País, e reformulação dos contratos de<br />

parceria retificando as distorções constatadas na prática,<br />

de forma a promover, obviamente, a justiça social, o<br />

progresso e o bem-estar do camponês – trabalhadores sem<br />

terra ou pequenos agricultores mininfunciários –<br />

integrando-o no contexto do desenvolvimento econômico,<br />

chamando-o à civilização e à participação na vida social,<br />

econômica, cultural e política do país”. 240<br />

Com apoio nos ensinamentos dessa autora, podemos dizer que a<br />

função social da propriedade rural deve ser cumprida, a partir da atuação do<br />

Estado, que deve lançar mão de uma política agrária, tendente a pôr fim aos<br />

grandes e pequenos latifúndios, e, por meio da celebração de negócios<br />

jurídicos, evitar as distorções geradas com a implementação dessas políticas.<br />

Isso possibilita a que os agricultores desenvolvam sua atividade no campo,<br />

proporcionando o bem estar, no âmbito econômico, social e cultural.<br />

240<br />

ARAUJO, Telga de. Função Social da Propriedade. Enciclopédia Saraiva do Direito, São Paulo, 1.979,<br />

p. 11.<br />

271


O atual perfil do direito de propriedade não permite que o<br />

proprietário de extensa área rural deixe de dar, ao imóvel, a devida utilidade<br />

econômica, porquanto, sabidamente, ele é fonte de riquezas, que deve<br />

propiciar as comodidades à comunidade local e à sociedade como um todo.<br />

6.5. Elementos de cognição da função social da propriedade rural<br />

O direito de propriedade e sua conseqüente função social foram<br />

tratados no plano da propriedade rural, logo, da propriedade agrária. Ao<br />

lado da propriedade agrária estão presentes os conflitos sociais gerados pela<br />

disputa da posse da terra, por exemplo, o M.S.T. (Movimento dos Sem<br />

Terras).<br />

No plano da propriedade rural, igualmente, a Constituição Federal<br />

exige que a função social seja atendida, observando os critérios fixados em<br />

lei especial.<br />

Nesse linhar, como estamos analisando a função social no plano<br />

constitucional, cumpre-nos fazer uso dos requisitos, constantes do artigo<br />

186 da norma de estrutura, que preceituam:<br />

“Art. 186 – A função social é cumprida quando a<br />

propriedade rural atende, simultaneamente, segundo<br />

critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos<br />

seguintes requisitos: aproveitamento racional e adequado;<br />

utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e<br />

preservação do meio ambiente”.<br />

272


Tratando da propriedade rural e de sua função social, disserta<br />

Tupinambá Miguel Castro do Nascimento:<br />

“O artigo 186 ora anotado seguiu orientação diversa da<br />

Constituição de 1969, que dependia integralmente da lei<br />

ordinária complementadora. A atual também depende de<br />

lei subconstitucional, mas em parte. Os requisitos já são<br />

indicados no próprio texto constitucional, mas de acordo<br />

com critérios e graus de exigência estabelecidos pela lei<br />

infraconstitucional. Os requisitos têm a eficácia, força e<br />

estabilidade que as normas constitucionais têm. Os graus<br />

de exigência e os critérios de aplicação ficam, porém,<br />

mais pertos da realidade social, visto que regulados pela<br />

lei ordinária, mais fácil de modificações.<br />

Assim, a função social da propriedade rural atende e deve<br />

obediência a dois mandamentos de ordem legal: a) quanto<br />

aos requisitos, a todos aqueles indicados na própria<br />

norma em anotação, todos eles normativamente mais<br />

abrangentes do que os constantes no Estatuto da Terra; b)<br />

quanto aos critérios e graus de exigência de cada<br />

requisito, a matéria é entregue à legislação<br />

infraconstitucional, que disporá a respeito. Da aplicação<br />

harmônica deste conjunto de normas – constitucional e<br />

ordinária – é que se preenche a função social.<br />

Os requisitos arrolados no artigo 186, têm a natureza de<br />

exaustivos. Há um verdadeiro numerus clausus<br />

constitucional. Nenhuma lei infraconstitucional pode criar<br />

outros requisitos”. 241<br />

241<br />

CASTRO DO NASCIMENTO, Tupinambá Miguel. Comentários à Constituição Federal. Editora<br />

Livraria do Advogado. Porto alegre, 1.997. Ob. Cit. p. 182..<br />

273


Respeitada a doutrina desse ilustre autor, é certo que a simples<br />

análise do artigo 186 da Constituição Federal, permite destacar os seguintes<br />

requisitos: (a) aproveitamento racional e adequado; (b) utilização adequada<br />

dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente. Esses<br />

elementos permitem, ao intérprete, constatar que a Constituição Federal<br />

exige que o proprietário, ou quem tenha a posse, utilize-se da terra e dos<br />

recursos naturais, de modo racional e adequado suficiente para, dela, tirar<br />

proveito, para si e para a coletividade, sem descurar do dever de<br />

preservação do meio ambiente.<br />

O uso racional da terra se dá, invariavelmente, pela destinação da<br />

cultura de modo não predatório, ou seja, sem a extração das riquezas<br />

ambientais. Com efeito, este uso deve ser compatível com a preservação das<br />

fontes minerais, como a água, o minério e outros. De igual forma, o uso<br />

racional da terra não permite o uso, pelo proprietário ou ocupante, de<br />

defensivos agrícolas, que coloquem em risco o solo, tornando-o<br />

inaproveitável ou de difícil recuperação.<br />

Na exploração da propriedade rural, o proprietário deve, igualmente,<br />

preservar os recursos naturais disponíveis, como as fontes d´água, as<br />

reservas minerais, a fauna e a flora.<br />

Esta exigência está em consonância com o artigo 1228, § 1º do<br />

Código Civil, tornando-se um sistema perfeito e harmônico de proteção aos<br />

bens ambientais, os quais adiante serão analisados.<br />

274


O exercício do direito de propriedade e a extração das<br />

potencialidades que a terra oferece, não podem ser implementadas, sem o<br />

devido comprometimento do homem, com uma prática ambiental segura.<br />

A prática ambiental segura conduz à assertiva de que a propriedade,<br />

bem utilizada, é aquela que respeita aos comandos do artigo 225 da<br />

Constituição Federal, que, de todos, exige a preservação do meio ambiente<br />

tanto para a presente geração, quanto para as futuras. Esta preocupação, no<br />

plano do exercício do direito de propriedade, obriga o proprietário a se<br />

adequar à realidade do mundo contemporâneo, frente às necessidades de<br />

proteção do meio ambiente.<br />

275


Capítulo VII<br />

7. FUNÇÃO AMBIENTAL <strong>DA</strong> PROPRIE<strong>DA</strong>DE<br />

7.1. Introdução<br />

A função social da propriedade ganhou novos contornos. Ela está,<br />

atualmente, inserida no âmbito da preservação do meio ambiente, de modo<br />

que o proprietário, ao destinar sua propriedade para o fim desejado, há que<br />

se ater ao fato, de que não pode colocar em risco o meio ambiente.<br />

Reconhecemos assim, a existência de um perfil ambiental à<br />

propriedade, que é protegida em nível constitucional. Sendo, a propriedade,<br />

um direito subjetivo, esse direito deve ser exercido, no âmbito da proteção<br />

do meio ambiente, para cuja proteção, a norma constitucional não impôs<br />

restrição. Ao contrário, criou um mecanismo próprio de proteção ao meio<br />

ambiente que, nos dias atuais, é uma proteção autônoma, abalizada por uma<br />

base principiológica, cujas fontes são a Conferência de Estocolmo de 1972,<br />

a Eco-92 e os Tratados Internacionais.<br />

Colocar em risco o meio ambiente é, em outras palavras, não destinar<br />

a propriedade de modo a prejudicá-lo.<br />

Em razão do princípio da função social da propriedade, é vedado, ao<br />

proprietário, fazer uso anti-social, ou seja, contrariamente aos princípios<br />

constitucionais.<br />

276


Como, outrora, foi dito, o direito de propriedade foi concebido como<br />

direito absoluto, especialmente, após a Revolução Francesa, período em que<br />

a burguesia tomou para si a propriedade, como condição indispensável para<br />

a existência da liberdade.<br />

No âmbito do meio ambiente, a Constituição Federal impõe diretivas<br />

ao direito de propriedade. Isto porque, embora a propriedade seja um direito<br />

humano e fundamental, seu titular será passível de perdê-lo por<br />

desapropriação, se não exercê-lo, dentro do conteúdo finalístico, que é a sua<br />

função social, já que, nesta hipótese, haverá ofensa constitucional.<br />

Nesse contexto, impõe-se que o direito de propriedade seja<br />

assegurado, mas dentro de uma visão macro, que, no nosso entendimento, é<br />

aquela estabelecida pelo artigo 225 da Carta Política.<br />

De fato, desta disposição legal, que estabelece ser dever do Estado e<br />

da coletividade preservar o meio ambiente, na busca pela manutenção de<br />

um ambiente ecologicamente equilibrado, resulta que este dever de<br />

preservação se impõe, também, no uso da propriedade. Nesse aspecto, a<br />

propriedade ambiental surge, também, como vetora da preservação do<br />

ecossistema.<br />

A esse comando constitucional se filiou o artigo 1228, § 1º do novo<br />

Código Civil, traduzindo-se uma harmonia legislativa e um tratamento<br />

especial para a propriedade ambiental, que emergiu com essas duas<br />

disposições legais.<br />

277


A questão da autonomia privada, que sempre norteou o direito do<br />

proprietário sobre a coisa, está a merecer à luz dessas disposições, uma<br />

nova interpretação no cenário jurídico.<br />

Essa interpretação exige, do jurista, a compreensão, de que não se<br />

pode fazer uma leitura civilista apenas, considerando que a questão<br />

ambiental se notabilizou, no cenário mundial, como uma preocupação<br />

planetária, que exige um tratamento multidisciplinar, transdiciplinar e<br />

interdisciplinar das normas jurídicas.<br />

Como, anteriormente, realçado, o proprietário deve exercer um<br />

poder-dever sobre a propriedade, tendente a destiná-la, economicamente, e<br />

extrair dela, as riquezas necessárias, para si próprio, para a família e para a<br />

sociedade. Todavia, o processo de geração da riqueza, que essa propriedade<br />

deve proporcionar, é que exigirá uma atenção redobrada do proprietário, na<br />

medida em que deve fazê-lo dentro de uma perspectiva, ambientalmente,<br />

correta.<br />

Usar a propriedade numa perspectiva, ambientalmente, correta, é<br />

respeitar as disposições constitucionais e infraconstitucionais, concernentes<br />

à proteção da coisa.<br />

Lembra, com nítida percuciência, Rosana Cardoso Brasileiro Borges:<br />

278


“O advento da função ambiental provocou alterações nas<br />

funções do Estado, que, por exemplo, tende a repartir as<br />

responsabilidades pela proteção do meio ambiente,<br />

incluindo a função ambiental no âmbito essencialmente<br />

público e os deveres correspondentes a tal função não são,<br />

conseqüentemente, exclusivamente públicos”. 242<br />

Há que se ter clareza que não se pode admitir o uso da propriedade,<br />

sem atender à disposição contida no artigo 225 da Constituição Federal e<br />

àquela prevista no § 1º do artigo 1228 do Código Civil, sob pena da<br />

propriedade carecer de proteção, mormente quanto à sua eficácia, no plano<br />

do ordenamento. É importante que verifiquemos que a Constituição<br />

Federal, no artigo 225, exige, do Estado e da coletividade, a preservação do<br />

meio ambiente. Essa preservação deve-se dar, em consonância com o<br />

princípio da função social da propriedade. Tem-se, na realidade, dois<br />

princípios vetores distintos, sendo um comando para a preservação do meio<br />

ambiente e outro determinado ao cumprimento da função social, o que<br />

equivale a dizer que não se tratam de princípios que se contradizem, mas<br />

que se completam, se vinculam e exigem uma aplicabilidade em conjunto.<br />

Nesse sentido, leciona Raimundo Alves de Campos Junior:<br />

“O princípio da função social exerce um papel<br />

preponderante na conciliação do direito de propriedade à<br />

proteção ambiental. A nossa Constituição explica esta<br />

relação quando cuida da propriedade rural, ao<br />

estabelecer que a função social só é cumprida se há<br />

242<br />

BORGES, Rosana Cardoso Brasileiro. Função Ambiental da Propriedade. Revista de Direito<br />

Ambiental, nº 09, São Paulo, janeiro-março de 1.998, p. 69.<br />

279


preservação do meio ambiente. Os princípios (função<br />

social e preservação do meio ambiente) são autônomos,<br />

mas profundamente interligados”. 243<br />

Ditas essas palavras, cumpre-nos tratar, com mais vagar, da função<br />

social ambiental da propriedade, em seus vários elementos naturais.<br />

7.2. O que legitima o uso da propriedade para atender a uma função<br />

ambiental ?<br />

O que legitima usar a propriedade, para atender a uma função sócio-<br />

ambiental, é, exatamente, ter consciência de que o meio ambiente é um bem<br />

prezável, cuja tutela está albergada pela Constituição Federal.Vale dizer, o<br />

proprietário não pode usar a coisa, sem respeitar as normas ambientais.<br />

Essas normas não se situam num plano do indivíduo, mas no plano<br />

coletivo, tal premissa permite dizer que, se o indivíduo não respeitar as<br />

normas ambientais, está sujeito às sanções de ordem administrativa, civil e<br />

penal, tendo em vista que a tutela do meio ambiente recebeu do legislador<br />

tríplice proteção constitucional.<br />

243<br />

CAMPOS JUNIOR, Raimundo Alves de. O Conflito entre o Direito de Propriedade e o Meio<br />

Ambiente. Editora Juruá. Curitiba, 2004, p. 139.<br />

280


7.3. A função ambiental da propriedade no Código Civil brasileiro<br />

O Código Civil brasileiro estabelece algumas diretrizes para a<br />

preservação da propriedade, especialmente, quando estabelece preceitos<br />

que visam atender à função social da propriedade.<br />

O novo Código Civil disciplina no § 1º do artigo 1228 que:<br />

“Art. 1228. (...)<br />

§ 1º . O direito de propriedade deve ser exercitado em<br />

consonância com suas finalidades econômicas e sociais e<br />

de modo que sejam preservados, de conformidade com o<br />

estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas<br />

naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e<br />

artístico, bem como evitar a poluição do ar e das águas”.<br />

O Código Civil acompanha a Constituição Federal, disciplinando a<br />

função social da propriedade e também a função ambiental da propriedade.<br />

Isso fica claro, quando desdobra um rol exemplificativo de bens ambientais<br />

que, invariavelmente, integram o meio ambiente e exige, do proprietário,<br />

uma atuação em conjunto, buscando sua preservação.<br />

O novo Código Civil, ao albergar a função social e ambiental da<br />

propriedade, atende às novas exigências do mundo contemporâneo,<br />

colocando fim ao modelo do Codex de 1916. É necessário, no entanto,<br />

281


examinar as categorias de bens ambientais inseridos no § 1º do artigo 1228<br />

do Estatuto privado vigente.<br />

7.4. A propriedade como um bem ambiental<br />

A propriedade privada, no plano do direito constitucional e do direito<br />

constitucional civil, é um bem jurídico ambiental. Deve-se dizer, nesse<br />

plano, que o direito ambiental é uma ciência autônoma, porquanto dotada<br />

de legislação e base principiológica própria. 244<br />

O direito ambiental é um ramo do direito dotado de autonomia<br />

própria, que busca a preservação do meio ambiente, recebendo, da Carta<br />

Magna, uma proteção nunca vista em nosso país. O artigo 225 do texto<br />

constitucional estabelece o dever de todos preservarem o meio ambiente,<br />

para as gerações presentes e futuras. Esse dever jurídico é compatível com a<br />

realidade jurídica dos novos direitos, consagrados após a Segunda Guerra<br />

Mundial.<br />

O proprietário não pode, imbuir-se do individualismo impregnado<br />

com o Código de Napoleão, a ponto de fazer uso de sua propriedade, sem<br />

examinar, antes, as exigências normativas constitucionais de preservação do<br />

meio ambiente, há, portanto, no plexo legislativo nacional, uma propriedade<br />

ambiental e, isto deve ser respeitado por todos.<br />

244<br />

Os princípios de Direito Ambiental foram consagrados pela Conferência de Estocolmo em 1972 e pela<br />

Conferência Rio-92.<br />

282


Com isso podemos dizer que o Código Civil de 2002 trouxe a figura<br />

da propriedade ambiental, na medida em que o particular não pode exercer<br />

os atributos que dela decorrem, sem observar as finalidades econômicas e<br />

sociais, preservando, ainda, os demais recursos ambientais, integrantes do<br />

ecossistema.<br />

Pelo que se depreende do disposto do § 1º do artigo 1228 do Código<br />

Civil, o legislador, no limiar do terceiro milênio, enveredou os caminhos de<br />

uma tutela civil coletiva dos recursos e bens ambientais, abandonando a<br />

prática da proteção privatista do Código Civil de 1916, que se diga, não<br />

trazia a proteção desses recursos, atribuindo-lhe uma disciplina, apenas no<br />

âmbito dos bens públicos e privados.<br />

As regras, estatuídas no § 1º do artigo 1228 do Código Civil,<br />

remetem o aplicador da lei ao artigo 225, caput da Constituição Federal,<br />

que impõe, ao Poder Público e à coletividade, o dever de preservar o meio<br />

ambiente, com vistas a manter o equilíbrio do mesmo, para as futuras<br />

gerações. O Código Civil está em consonância com a Constituição, art. 5º<br />

XXIII, traduzindo-se num sistema perfeito e harmônio de defesa,<br />

preservação e proteção da propriedade ambiental.<br />

283


7.5. A propriedade e a flora<br />

O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com a<br />

disciplina ambiental da flora, que abrange “(....) todas as formas de<br />

vegetação, úteis à terra que revestem, o que inclui as florestas, cerrados,<br />

caatingas, brejos, e mesmo de forrageiras que cobrem os nossos campos<br />

naturais”. 245<br />

A vegetação de uma região é indispensável para manter o equilíbrio<br />

do meio ambiente, e, ao contrário do que se viu nos últimos 40 (quarenta)<br />

anos, em São Paulo e nas demais cidades do Brasil, ela não foi respeitada.<br />

Observa-se, com isso, que o desmatamento acelerado e o crescimento<br />

desordenado das cidades levaram a um completo desequilibro do meio<br />

ambiente. Com efeito, em grande maioria, os proprietários não respeitam a<br />

legislação existente, então, devastam as áreas de preservação permanente<br />

com ocupação desordenada, criam verdadeiros cinturões de pobreza e<br />

infestam o panorama ecológico do espaço físico de nossas terras. Assim<br />

como a propriedade, a flora, além de ser um bem da vida, é um recurso<br />

ambiental, que o proprietário deve respeitar, quando desejar empreender a<br />

moradia, a economia de subsistência ou a atividade empresarial. 246<br />

245<br />

SILVA, José Afonso da Silva. Direito Ambiental Constitucional. Editora Malheiros, 2ª Edição, 3ª<br />

Tiragem, São Paulo, 1.999. p. 110.<br />

246 º<br />

O artigo 1 da Lei nº 4.771/65,(Código Florestal) estabelece que as florestas e as demais formas de<br />

vegetação “são bens de interesse comum a todos os habitantes do País”, sendo garantido o direito de<br />

propriedade, porém, com todas as limitações impostas pela legislação vigente".<br />

284


Não pode o proprietário usufruir da propriedade a qualquer título.<br />

Seu direito deve respeitar a flora, que é uma categoria de bem prezável, cuja<br />

tutela o Estado elevou a categoria de bem transindividual.<br />

7.6. A propriedade e a fauna<br />

A fauna é outro bem ambiental. Com efeito, o professor José Afonso<br />

da Silva adverte:<br />

“Em sentido lato, a palavra fauna refere-se ao conjunto<br />

de todos os animais de uma região ou de um período<br />

geológico, abrangendo aí a fauna aquática, a fauna das<br />

árvores e do solo (insetos e microorganismos) e a fauna<br />

silvestre (animais de pelo e de pena). Não é de se<br />

incluírem os animais domésticos ou domesticados, os de<br />

cativeiros, criatórios e de zoológicos particulares,<br />

devidamente legalizados”. 247<br />

É de todo oportuno lembrar que numa fauna estão as espécies<br />

animais e elas podem estar localizadas numa região determinada. A fauna<br />

pode ser silvestre, terrestre ou aquática. A fauna brasileira está disciplinada<br />

pela Lei n o 5197 de 23 de janeiro de 1967. 248<br />

247<br />

SILVA, José Afonso da. OB. Cit. p. 129.<br />

248<br />

Art. 1º. Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem<br />

naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e<br />

285


No entanto, o Código privado de 1916 a tinha como res nullius. 249<br />

Com a nova disciplina, a fauna passou a ter proteção do Estado diretamente,<br />

essa proteção ficou mais ampla, com as disposições estatuídas pelo § 1º do<br />

artigo 1228 do novo Codex.<br />

Deve-se dizer, ainda, que com a Lei n o 6938/81, que estabeleceu a<br />

Política Nacional de Meio Ambiente, a fauna brasileira ganhou status de<br />

recurso ambiental, conforme se depreende do artigo 3º, inciso V, da referida<br />

norma. 250<br />

Nesse sentido, se infere, desses dispositivos, que o proprietário não<br />

pode destinar seu imóvel de qualquer forma, deve, antes, observar as leis<br />

ambientais, para evitar agressão à fauna e à flora.<br />

criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição,<br />

caça ou apanha.<br />

§ 1º Se peculiaridades regionais comportarem o exercício da caça, a permissão será estabelecida em ato<br />

regulamentador do Poder Público Federal.<br />

§ 2º A utilização, perseguição, caça ou apanha de espécies da fauna silvestre em terras de domínio<br />

privado, mesmo quando permitidas na forma do parágrafo anterior, poderão ser igualmente proibidas<br />

pelos respectivos proprietários, assumindo estes a responsabilidade de fiscalização de seus domínios.<br />

Nestas áreas, para a prática do ato de caça é necessário o consentimento expresso ou tácito dos<br />

proprietários, nos termos dos arts. 594, 595, 596, 597 e 598 do Código Civil.<br />

249<br />

Artigo 593. São coisas sem dono e sujeitas à apropriação:<br />

I- os animais bravios, enquanto entregues às sua natural liberdade;<br />

II- os mansos e domesticados que não forem assinados, se tiverem perdido o hábito de voltar ao lugar<br />

onde costumam recolher – se, salvo a hipótese do art. 596;<br />

III- os enxames de abelhas, anteriormente apropriados, se o dono da colméia, a que pertenciam, os não<br />

reclamar imediatamente;<br />

IV- as pedras, conchas e outras substanciam minerais, vegetais ou animais arrojados às praias pelo mar, se<br />

não apresentarem sinal de domínio anterior.<br />

Artigo 595. Pertence ao caiador o animal por ele apreendido. Se o caçador for no encalço do animal e o<br />

tiver ferido, este lhe pertencerá, embora outrem o tenha apreendido.<br />

Artigo 600. Pertence ao pescador o peixe, que pescar, e o que arpoado, ou farpado, perseguir, embora<br />

outrem o colha.<br />

250<br />

V - recursos ambientais: a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o<br />

mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora.<br />

* Inciso V com redação determinada pela Lei número 7.804, de 18 de julho de 1989.<br />

286


7.7. A propriedade e o patrimônio histórico e cultural<br />

Constitui patrimônio histórico e cultural o patrimônio brasileiro,<br />

assim considerados os bens pertencentes à União. Esses bens são<br />

decorrentes da memória viva da nação, arraigados na cultura da sociedade,<br />

ao longo dos tempos.<br />

De acordo com Édis Milaré, esses bens podem ser:<br />

“(....) considerados individualmente e em conjunto; não se<br />

trata somente daqueles eruditos ou excepcionais, pois<br />

basta que tais bens sejam portadores de referência à<br />

identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos que<br />

formam a sociedade brasileira. 251<br />

O direito positivo brasileiro elevou esses bens a uma categoria<br />

jurídica própria, de titularidade da União, consoante se depreende do artigo<br />

216, incisos I a V, ao tratar do patrimônio histórico e cultural, como bens<br />

especiais. A letra da lei deixa claro que bens de natureza material e<br />

imaterial, que estejam separados, ou em conjunto, fazem parte do<br />

patrimônio nacional. 252<br />

251<br />

MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente, 2ª Edição. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2001, p. 2002.<br />

252<br />

Artigo 216 – Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial,<br />

tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos<br />

diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão;<br />

II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras,<br />

287


Ao lado do patrimônio histórico e cultural está o dever do<br />

proprietário de, ao exercer seu direito de propriedade, não ferir o direito<br />

maior, que é o direito coletivo, de todos, a uma identidade como nação.<br />

Deve-se assim compreender que o proprietário não pode a seu bel prazer,<br />

construir, em sua propriedade, um edifício, que coloque em prejuízo as<br />

áreas preservadas pela União, porque são direitos transindividuais e não<br />

direitos particulares.<br />

Nesse sentido, o particular deve, antes de destinar sua propriedade, à<br />

moradia, à habitação ou à alguma atividade econômica, perquirir ao órgão<br />

público gestor do patrimônio cultural, sobre a existência, ou não, de algum<br />

impedimento, quanto à atividade que pretende explorar.<br />

7.8. A propriedade e a poluição do ar e das águas<br />

O exercício do direito de propriedade deve estar em consonância com<br />

a preservação dos corpos d´água existentes no imóvel do proprietário, ou<br />

ainda, em seus arredores. Nesse sentido, não pode o proprietário negar-se à<br />

proteção do recurso hídrico, em atendimento, apenas, aos seus interesses.<br />

objetos documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V –<br />

os conjuntos urbanos e sítios de valor históricos, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,<br />

ecológico e científico.”material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de<br />

referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos<br />

quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações<br />

científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos documentos, edificações e demais espaços<br />

destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor históricos,<br />

paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.”<br />

288


A água é o maior bem da vida, antes tido como infinito, hoje, já<br />

reconhecida, como uma fonte esgotável. Dela precisa toda espécie humana<br />

e qualquer outra espécie, seja a vegetal, animal e outras que fazem parte do<br />

ecossistema.<br />

Nenhum proprietário pode extrair outros bens do ecossistema, se não<br />

preservar os cursos d´água. Decorre daí que o exercício do direito de<br />

propriedade é condicionado por uma força jurígena maior que o interesse<br />

coletivo.<br />

Tanto no meio rural, como no urbano, a atividade exercida na<br />

propriedade deve atender à legislação vigente, de modo que os recursos<br />

hídricos sejam preservados no seu estado natural, sem alterar o seu curso<br />

normal. Isso é tão importante que o Brasil criou um sistema nacional de<br />

gerenciamento de recursos hídricos. 253<br />

7.9. A propriedade e as áreas de proteção permanente<br />

As áreas de preservação permanente também mereceram do<br />

legislador um tratamento especial. O direito a propriedade privada ou<br />

pública, bem como seu conseqüente uso, devem estar em sintonia com a<br />

preservação das unidades de conservação, que, no Brasil, ganham proteção<br />

253<br />

A Política Nacional de Recursos Hídricos foi instituída por meio da Lei nº 9.433/97, e definiu a água<br />

como um recurso natural, bem de domínio comum, dotada de valor econômico e sujeita a usos<br />

múltiplos.<br />

289


especial com a Lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000, que estabeleceu o<br />

Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC.<br />

No Brasil, a primeira área reservada, explicitamente, para a<br />

conservação dos recursos naturais foi a da Estação do Alto da Serra de<br />

Paranapiacaba.<br />

De acordo com Maria Teresa Jorge Pádua:<br />

“A primeira unidade de conservação foi criada no Brasil<br />

em 1886, em São Paulo: Parque Estadual da Cidade.<br />

Somente em 1937 foi criado o primeiro Parque Nacional:<br />

o de Itatiaia no Rio de Janeiro. Em 1939 surgiram os de<br />

Iguaçu, no Paraná e Serra dos Órgãos no Rio de Janeiro.<br />

Em 1981, graças aos esforços do eminente<br />

conservacionista brasileiro, Dr. Paulo Nogueira Neto,<br />

começou-se o estabelecimento de Estações Ecológicas,<br />

possuindo hoje o País 21, que totalizam mais de 2.100.000<br />

hectares”. 254<br />

No Estado de Estado de São Paulo, a 1ª APA (Área de Proteção<br />

Ambiental) instituída foi a Bacia do Rio Paraíba do Sul, no Município de<br />

Bananal, criada em 13 de abril de 1982. Vale salientar que a primeira área<br />

de relevante interesse econômico, foi a de Cosmópolis, Município de<br />

Cosmópolis, criada em 9 de janeiro de 1985.<br />

254<br />

PÁDUA, Maria Teresa Jorge. Diagnóstico de Unidades de Conservação no Brasil. In Relatório<br />

Brasileiro para Rio/92, 1994, p.214.<br />

290


Já a primeira Estação Ecológica, no âmbito federal, foi a da Juréia,<br />

localizada no Município de Iguape, criada em 04 de junho de 1980. Já, a<br />

primeira Reserva Biológica foi a do Alto da Serra de Paranapiacaba, no<br />

Município de Santo André, criada em 9 de agosto de 1938.<br />

O exercício do direito de propriedade deve, portanto, estar em<br />

sintonia com a preservação do meio ambiente, apto a possibilitar a<br />

preservação dos ecossistemas envolvidos. Não é demais lembrar que este é<br />

um dever do Estado e da coletividade, consoante determinação expressa no<br />

artigo 225 da Constituição Federal.<br />

De acordo com Guilherme José Purvin de Figueiredo:<br />

“À coletividade cabe, precipuamente, utilizar-se da<br />

propriedade dentro de uma perspectiva que contemple o<br />

respeito à sua função social, que se aperfeiçoa pelo<br />

cumprimento simultâneo a cinco requisitos estabelecidos<br />

constitucionalmente, que são, como já destacamos noutras<br />

passagens: aproveitamento racional e adequado,<br />

utilização adequada dos recursos naturais disponíveis,<br />

preservação do meio ambiente, observância das<br />

disposições que regulam as relações de trabalho e<br />

exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e<br />

trabalhadores, isto é, observância à legislação sobre meio<br />

ambiente do trabalho”. 255<br />

255<br />

FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A Propriedade no Direito Ambiental. Adcoas, Rio de<br />

Janeiro, 2004, p.255.<br />

291


As áreas de conservação ambiental e de preservação permanente, por<br />

terem fins precípuos de utilidade pública e de garantia da diversidade<br />

biológica, merecem uma proteção, condizente com a problemática<br />

ambiental, que eclodiu, nos últimos trinta anos da história da humanidade.<br />

Nesse passo, as áreas de preservação ambiental estão em sintonia<br />

com o princípio da função social da propriedade, pois realizam a vontade do<br />

legislador de impor veto a atividade predatória, de quem ocupa<br />

desordenadamente as matas e florestas.<br />

292


Capítulo VIII<br />

8. JURISPRUDÊNCIA <strong>DA</strong> FUNÇÃO <strong>SOCIAL</strong> <strong>DA</strong> PROPRIE<strong>DA</strong>DE<br />

8.1. Introdução<br />

O objetivo do presente capítulo é fazer um breve levantamento da<br />

jurisprudência, acerca da função social da propriedade, nos Tribunais<br />

brasileiros.<br />

Citaremos algumas jurisprudências e tecerei alguns comentários,<br />

acerca dos acórdãos pesquisados, procurando, deles, extrair as várias<br />

concepções, a que chegaram os pretores de nosso país.<br />

Neste trabalho, como já ficou explicitado, buscamos trazer, à baila, a<br />

história da propriedade, sua configuração jurídica, o perfil que ela assumiu,<br />

ontem e hoje, bem como o entendimento da doutrina, acerca de sua função<br />

social. Procuramos, ainda, catalogar o tema, na contextualidade do Estado<br />

Social de Direito.<br />

Cumpre, de agora em diante, em poucas palavras, trazer o<br />

entendimento dos tribunais, acerca da função social da propriedade e sua<br />

conseqüente aplicabilidade no dia a dia.<br />

293


Cumpre desde logo lembrar que a pesquisa sobre a função social da<br />

propriedade, nos tribunais, é ampla e está a considerar a aplicação desta<br />

cláusula aberta em várias vertentes, de modo que a jurisprudência<br />

pesquisada envolve a propriedade urbana, a propriedade rural, a<br />

propriedade ambiental e a propriedade, como bem de produção, todas elas,<br />

encartadas na cláusula da função social.<br />

8.2. O entendimento do Superior Tribunal de Justiça<br />

A propriedade deve atender à função social, isto é ponto pacífico.<br />

Com efeito, acórdão da lavra da Primeira Turma do Colendo Superior<br />

Tribunal de Justiça, manteve decisão do Tribunal paulista que negou o<br />

direito a indenização, aos proprietários de áreas de terra, situadas nas<br />

imediações da Serra do Mar. O inconformismo dos recorrentes se resume ao<br />

fato de que, na criação de Parque Estadual da Serra do Mar, teria havido<br />

ocupação de parte da área usada, para implantação do parque pelo Poder<br />

Público.<br />

Os autores da ação de indenização sustentaram o uso da propriedade<br />

para o parque da Serra do Mar, defenderam seu direito a propriedade e que<br />

ela estava afeta à função social. No entanto, no caso concreto, não houve<br />

reconhecimento de que parte da propriedade estava sendo utilizada,<br />

carecendo, assim, os recorrentes de direito a indenização.<br />

294


Oportuno lembrar que neste acórdão está presente a função social da<br />

propriedade e a função sócio-ambiental da propriedade, porquanto a área,<br />

onde foi construída o parque da Serra do Mar, está inserida num trecho de<br />

área de preservação permanente, logo, o Poder Público tem interesse que a<br />

área sofra a interferência da Administração, para garantir as função social<br />

ecológica. 256<br />

O uso da propriedade urbana deve estar em sintonia com o princípio<br />

da função social da propriedade urbana, mormente ser condizente com o<br />

fim comum das pessoas, que vivem em dado município. Quando estão em<br />

jogo as limitações urbanísticas é possível reconhecer a competência<br />

concorrente dos entes públicos para legislar nessa matéria.<br />

8.2.1. Função social da propriedade urbana e interesse coletivo<br />

Apreciando recurso ordinário em mandado de segurança, concernente<br />

à competência para legislar sobre limitações administrativas, a Segunda<br />

256<br />

4. Nenhuma indenização é devida, pelo fato de nenhum prejuízo terem sofrido os recorridos. O uso da<br />

propriedade está vinculada a sua função social. Esta tornou-se presente com a necessidade de preservarse,<br />

para o bem da humanidade, os recursos naturais da Mata Atlântica. *Não exploravam qualquer<br />

atividade comercial ou industrial no imóvel, dele não obtendo renda de qualquer limite. Não há de se<br />

chancelar indenização no valor de mais de 4,5 milhões de reais, fixada em 1995, acrescido de juros de<br />

mora, juros compensatórios, correção monetária e honorários, para cobrir alegadas limitações<br />

administrativas em 112 ha. de terra sem qualquer exploração econômica. (Resp 468405 / SP; Recurso<br />

Especial 2002/0109926-7 - DJ Data:19/12/2003 PG:00328 Relator: Min. JOSÉ DELGADO (1105)<br />

Data da Decisão: 20/11/2003 - Órgão Julgador: T1 - Primeira Turma).<br />

295


Turma do Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que os entes<br />

públicos possuem competência concorrente. 257<br />

Esse acórdão, a meu ver, é, por demais, amplo, não só porque<br />

reconhece haver a submissão ao princípio da função social da propriedade<br />

no uso do solo urbano, mas, também, porque reconhece a existência de<br />

competência concorrente, para legislar sobre matéria afeta às limitações ao<br />

direito de propriedade. Vista por esse ângulo, é salutar a decisão da<br />

Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, porquanto reconhece não<br />

apenas no exercício da administração pública o dever de impor limitações<br />

ao exercício do direito de propriedade, mas reconhece que a coisa<br />

“propriedade” deve se submeter e atender aos interesses coletivos. Há,<br />

portanto, o reconhecimento, ainda que de forma indireta, do princípio da<br />

supremacia do interesse público sobre o particular, na medida em que a<br />

propriedade não pode, apenas, atender aos fins egoísticos do proprietário,<br />

porquanto, se assim o prevalecer, estar-se-á ferindo a regra principiológica<br />

de ordenação das cidades, que se realiza por meio do plano diretor urbano.<br />

A função social da propriedade não está afeta apenas à propriedade<br />

imobiliária, mas também à mobiliária, pois há várias propriedades, urbana,<br />

rural, industrial, intelectual, dos bens de produção, entre outras.<br />

257 O uso do solo urbano submete-se aos princípios gerais disciplinadores da função social da propriedade,<br />

evidenciando a defesa do meio ambiente e do bem estar comum da sociedade. Consoante preceito<br />

constitucional, a União, os Estados e os Municípios têm competência concorrente para legislar sobre o<br />

estabelecimento das limitações urbanísticas no que diz respeito às restrições do uso da propriedade em<br />

benefício do interesse coletivo, em defesa do meio ambiente para preservação da saúde pública e, até,<br />

do lazer. ROMS 13252 / PR; Recurso Ordinário Em Mandado de Segurança 2001/0070379-8 Fonte - DJ<br />

- Data: 03/11/2003 PG:00285 Relator - Min. Francisco Peçanha Martins (1094) - Data da Decisão -<br />

19/08/2003 - Órgão Julgador - T2 – Segunda Turma.<br />

296


É possível reconhecer nesse sentido, que a função social da<br />

propriedade deve ser condizente com o correto uso da coisa e dos bens a<br />

que ela está afeta. Não pode o proprietário, a pretexto de que tem o direito<br />

sobre a coisa, fazer uso da forma como bem entende, pois é necessário<br />

respeitar a legislação em vigor.<br />

8.2.2. Função social dos bens de produção<br />

Também, em nome e por conta do princípio da função social da<br />

propriedade, já se reconheceu ser lícita, a atividade fiscalizatória da<br />

administração pública, quando se suspeita que máquinas eletrônicas podem<br />

estar sendo usadas, para propiciar o jogo de azar, caracterizando-se<br />

atividade vedada pelo ordenamento jurídico. 258<br />

A meu ver o que quis dizer esse acórdão é que há de se preservar a<br />

propriedade de coisas que geram empregos, dentro de uma harmonia do<br />

direito, ou seja, a propriedade de máquinas de jogo de azar, usadas<br />

irregularmente, atenta contra o direito do proprietário que, regularmente,<br />

desempenha atividade econômica, e, aqui sim, a propriedade como bem de<br />

produção, cumpre sua função social. Todavia, quando empregados, os<br />

equipamentos, em atividades que o Estado julga ilícita, não cumprem a<br />

função social.<br />

258<br />

ROMS – Recurso Ordinário em Mandado de Segurança/RJ nº 14454 – 2002/0016623-6 – Primeira<br />

Turma do Superior Tribunal de Justiça – Ministro Luiz Fux – 06/08/2002 – Diário de Justiça:<br />

23/09/2002 – pg. 226 – RT Vol. 812 – pg. 158.<br />

297


8.3. O entendimento do Supremo Tribunal Federal<br />

O Supremo Tribunal Federal por inúmeras vezes entendeu ser<br />

legítima a fixação do IPTU (Imposto Sobre a Propriedade Territorial<br />

Urbana) progressivo, quando o cumprimento da função social da<br />

propriedade não é cumprido.<br />

As decisões da Corte de Justiça fundamentam a legalidade da fixação<br />

da fixação da progressividade do IPTU, quando o proprietário não cumpre<br />

os preceitos estabelecidos no artigo 182, § 4º, II da Constituição Federal,<br />

ou seja, não cumpre a função social da propriedade. 259<br />

259<br />

EMENTA: IPTU: progressividade. 1. O STF firmou entendimento – a partir do julgamento do RE<br />

153.771, Pleno, 20.11.96, Moreira Alves – de que a única hipótese na qual a Constituição admite a<br />

progressividade das alíquotas do IPTU é a do art. 182, § 4º, II, destinada a assegurar o cumprimento da<br />

função social da propriedade urbana. 2. manifestou-se também o plenário da Corte pela<br />

inconstitucionalidade da cobrança do IPTU de forma progressiva, estabelecida mediante a concessão de<br />

isenções, variáveis conforme o valor venal do imóvel (RE 167.036, Ilmar Galvão, DJ 20.06.97).<br />

No mesmo sentido: Recurso Extraordinário nº 248892 e AI-ED 408062 / SP - SÃO PAULO -<br />

EMB.DECL.NO AGRAVO DE INSTRUMENTO - Relator(a): Min. SEPÚLVE<strong>DA</strong> PERTENCE -<br />

Julgamento: 13/06/2006 - Órgão Julgador: Primeira Turma - DJ 04-08-2006 PP-00055 - EMENT<br />

VOL-02240-05 PP-00925. ainda:<br />

EMENTA: 1. IPTU: progressividade: L. 5.641/89 do Município do Belo Horizonte: o STF firmou o<br />

entendimento - a partir do julgamento do RE 153.771, Pleno, 20.11.96, Moreira Alves - de que a única<br />

hipótese na qual a Constituição - antes da EC 29/00 - admitia a progressividade das alíquotas do IPTU<br />

era a do art. 182, § 4º, II, destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana.<br />

2. Progressividade: declaração de inconstitucionalidade: inviabilidade da concessão de efeitos ex nunc,<br />

no caso: precedentes. 3. Taxa de limpeza pública: inconstitucionalidade, conforme a jurisprudência do<br />

STF (v.g. RE 361.437, 1ª T., Ellen Gracie, DJ 19.12.2002; RE 337.349 AgR, 2ª T., Carlos Velloso, DJ<br />

22.11.2002). 4. Taxa de iluminação pública - caso anterior à EC 39/2002 - ilegitimidade por ter como<br />

fato gerador prestação de serviço inespecífico, não mensurável, indivisível e insuscetível de ser referido<br />

a determinado contribuinte: precedente (RE 233.332, Galvão, Plenário, DJ 14.05.99). AI-AgR 486301.<br />

AI-AgR 486301 / MG - MINAS GERAIS - AG.REG.NO AGRAVO DE -INSTRUMENTO - Relator(a):<br />

Min. SEPÚLVE<strong>DA</strong> PERTENCE - Julgamento: 13/12/2006 -Órgão Julgador: Primeira Turma - DJ 16-<br />

02-2007.<br />

"É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da Emenda Constitucional 29/2000,<br />

alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da<br />

propriedade urbana". 3. RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Taxa de coleta de lixo e limpeza<br />

pública (TCLLP). Cobrança. Inviabilidade” - AI-ED 516410 / RJ - RIO DE JANEIRO -<br />

EMB.DECL.NO AGRAVO DE INSTRUMENTO - Relator(a): Min. CEZAR PELUSO - Julgamento:<br />

298


Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal pacificou<br />

entendimento de que não pode fixar a alíquota progressiva no IPTU antes<br />

do advento da Emenda Constitucional nº 29/2000, salvo se tal medida foi<br />

adotada para fazer cumprir o princípio da função social da propriedade.<br />

09/05/2006 - Órgão Julgador: Primeira Turma - DJ 02-06-2006 PP-00016 - EMENT VOL-02235-07<br />

PP-01399<br />

EMENTA: I. IPTU: progressividade: L. 691/84 do Município do Rio de Janeiro. 1. O STF firmou o<br />

entendimento - a partir do julgamento do RE 153.771, Pleno, 20.11.96, Moreira Alves, de que a única<br />

hipótese na qual a Constituição admite a progressividade das alíquotas do IPTU é a do art. 182, § 4º, II,<br />

destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana. II. Taxa de Limpeza<br />

Pública e Coleta de Lixo instituída pelo Município do Rio de Janeiro: inconstitucionalidade, conforme a<br />

jurisprudência do STF (v.g. RE 249.070, 1ª T., Ilmar Galvão, DJ 17.12.1999).<br />

RE-AgR 338859 / RJ - RIO DE JANEIRO - AG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO<br />

Relator(a): Min. SEPÚLVE<strong>DA</strong> PERTENCE - Julgamento: 10/10/2006 - Órgão Julgador: Primeira<br />

Turma - DJ 06-11-2006 PP-00036 - EMENT VOL-02254-04 PP-00797<br />

299


CONCLUSÕES:<br />

Ao final do presente trabalho, algumas conclusões foram extraídas<br />

das pesquisas realizadas, acerca instituto da propriedade e da função social.<br />

1- O direito de propriedade concebido, como um direito absoluto<br />

entre os romanos, continua, nos dias de hoje, com esse mesmo caráter<br />

absoluto. É a norma jurídica, que impõe ao instituto esse absolutismo, que<br />

só assim o é, porque a norma jurídica o perfilha dessa forma.<br />

2- Desde os primeiros momentos da cultura humana, a propriedade<br />

representou, para o seu titular, uma fonte de riqueza necessária, para a<br />

garantia da sobrevivência do indivíduo e do grupo familiar,<br />

desempenhando, uma função social, em prol do bem comum e da<br />

coletividade.<br />

3- A função social da propriedade é o resultado da política<br />

legislativa, empreendida pelo legislador constitucional e infraconstitucional,<br />

resultado do rompimento com os tradicionais conceitos de liberdade e<br />

direito subjetivo, exacerbados e herdados da Revolução Francesa e da<br />

Revolução Industrial.<br />

4- A filosofia jurídica desempenhou um papel marcante para<br />

conceber a propriedade, como um direito inviolável, porquanto a concebia,<br />

como um direito natural do homem. Não quero, com isso, dizer que a<br />

filosofia das duas revoluções, bem como as correntes filosóficas, foram as<br />

culpadas pelo individualismo. Não há culpados, o que há, é a eclosão de<br />

300


modelos jurídicos, corporificados na realidade histórica das sociedades, e<br />

que, por certo, atendem às necessidades de cada época.<br />

5- No evoluir dos tempos, os modelos jurídicos sofreram<br />

transformações, capazes de dinamizar os direitos e de lhes dar<br />

corporificação condizente com a evolução do próprio Direito. Foi isso que<br />

ocorreu com a propriedade.<br />

6- O que torna legítimo o direito de propriedade é a sua correta<br />

utilização pelo proprietário e a extração das potencialidades geradoras de<br />

riquezas. Essa geração de riqueza útil ao proprietário e a coletividade, é<br />

condição essencial, para o cumprimento da função social.<br />

7- O atual direito de propriedade, assegurado no plano do direito<br />

constitucional positivo, assume um perfil individualista e funcionalizado,<br />

possibilitando, ao titular, exercer seus atributos (usar, gozar, dispor e<br />

reivindicar), mas exigindo o dever de assegurar, à comunidade, a harmonia<br />

necessária, para que todos sejam beneficiados com os bens, que dela<br />

possam advir.<br />

8- O indivíduo tem direito à aquisição da propriedade privada. Esse<br />

direito e os meios econômicos devem ser proporcionados pelo Estado, que é<br />

quem tem a incumbência normativa, de possibilitar a todos, acesso à<br />

propriedade e aos frutos que ela proporciona. Para isso, é indispensável a<br />

implantação de políticas públicas que viabilizem a aquisição da<br />

propriedade.<br />

301


9- De fato, só haverá eficácia, para a aquisição da propriedade<br />

privada, se o Poder Público fornecer os instrumentos para sua aquisição, e,<br />

nesse sentido, embora a Constituição Federal seja, também, nesse ponto,<br />

auto-aplicável, ela exige os instrumentos, que a tornem efetiva.<br />

10- Efetivar a aquisição da propriedade é torná-la possível e<br />

condizente com os comandos normativos constitucionais, tratados neste<br />

trabalho. É preciso dizer que a Constituição tem que ser cumprida. Não se<br />

pode admitir que a propriedade seja uma garantia, mas ainda haja uma<br />

imensa maioria de brasileiros, esperando a divindade lhe viabilizar a posse e<br />

a propriedade da terra, mas, ao que nos parece, esse não é o desejo do<br />

empresariado, do latifundiário brasileiro e dos governantes, que, depois de<br />

dois séculos de Revolução Francesa, continuam somente tornando eficaz a<br />

liberdade, pendentes de efetividade, a igualdade e a solidariedade.<br />

11- O princípio da função social da propriedade não tem, a nosso ver,<br />

o condão de abolir o direito constitucional à propriedade privada, mas esta<br />

deve se harmonizar com aquela, possibilitando compatibilizar o uso, gozo e<br />

disposição da coisa.<br />

12- A propriedade urbana, que atende à função social é aquela que<br />

atende ao modelo urbanístico da cidade, exigido pelo legislador<br />

constitucional e infraconstitucional, especialmente, no que tange ao plano<br />

diretor, vetor da política urbana.<br />

13- A propriedade rural, quando bem empregada, é a propriedade<br />

que, a nosso ver, mais cumpre sua função social, porquanto, ao fixar o<br />

302


homem no campo e possibilitar a extração de riquezas para o pequeno,<br />

médio e grande agricultor, cumpre a função social local e à distância.<br />

14- A propriedade está inserida, no contexto de defesa do meio<br />

ambiente, exigindo, do proprietário, o atendimento das normas de direito<br />

ambiental, compatibilizando o uso com a preservação dos bens ambientais.<br />

15- Por fim, nesse trabalho, procuramos deixar nossa contribuição à<br />

sociedade brasileira, ao defender que os poderes consagrados ao instituto do<br />

direito de propriedade não foram abolidos e nem se enfraqueceram, ao<br />

contrário, o que fez o legislador foi harmonizar o direito de propriedade,<br />

com a realidade do mundo contemporâneo, que é tornar a coisa útil a todos,<br />

empreendendo e promovendo a produção de riquezas, para o proprietário e<br />

para a coletividade.<br />

16- Quem não dá a devida destinação econômica a seu imóvel,<br />

desrespeita os comandos constitucionais e infraconstitucionais, e, pode, em<br />

razão dessa realidade, perder a propriedade, em proveito daquele que quer<br />

exercer o direito e obedecer às regras impostas pelo ordenamento jurídico.<br />

17- A cláusula da função social da propriedade não retirou os<br />

atributos do direito de propriedade e nem os limitou, mas, ao contrário, os<br />

qualificou, na medida em que a propriedade, como garantia individual, foi<br />

colocada, no âmbito dos direitos transindividuais e fundamentais, exigindo<br />

de seu titular o cumprimento da função social e da função sócio ambiental<br />

da propriedade.<br />

18- A jurisprudência dos Tribunais desempenha papel de<br />

fundamental importância, que é dar uma interpretação, o mais ampla<br />

303


possível, ao comando normativo da cláusula da função social, respeitando<br />

as regras de interpretação e a realidade histórica, com a qual a propriedade<br />

ganhou um perfil novo, o perfil funcional.<br />

304


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