O ATENEU Raul Pompéia I “Vais encontrar o mundo, disse-me meu ...
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De noite, nova<strong>me</strong>nte ao lado do Franco, a fatigar-<strong>me</strong> na tarefa das<br />
páginas, tive que ficar até tarde numa das salas do pri<strong>me</strong>iro andar.<br />
Pelas dez e <strong>me</strong>ia, o diretor, antes de sair para casa, veio ver-nos.<br />
“Ainda escrevem... estes peraltas?...” <strong>disse</strong>-nos de enor<strong>me</strong> altura, à<br />
guisa de boas-noites, e desapareceu confiando-nos ao amável João<br />
Numa, bácoro, inspetor das salas de cima. Na sua qualidade de<br />
gorducho, o João não era diligente. Apenas viu parar Aristarco,<br />
trancou a última porta do Ateneu e foi dormir.<br />
Acabrunhado pela noitada anterior, estava eu de sono que mal podia<br />
erguer a cabeça. De uma vez que cedi ao cansaço fui despertado por<br />
sentir que <strong>me</strong> alisavam a mão. Ador<strong>me</strong>cera sobre o braço direito<br />
contra a carteira, pousando o rosto na tinta do castigo, deixando cair o<br />
braço esquerdo para o banco. Um instante depois estava fora da sala,<br />
de um pulo, como se tivesse reconhecido em sonhos que o Franco era<br />
um monstro.<br />
Ao dia i<strong>me</strong>diato saí da cama como de uma <strong>me</strong>tamorfose. Imaginei,<br />
generalizando errado, que a contemplação era um mal, que o<br />
misticismo andava traidora<strong>me</strong>nte a degradar-<strong>me</strong>: a convivência fácil<br />
com o Franco era a prova. O Ateneu honrava-<strong>me</strong>, por esse tempo, com<br />
um conceito que só depois avaliei. Eu não <strong>me</strong> julgava assim tão<br />
apeado, mas supus-<strong>me</strong> direta<strong>me</strong>nte a caminho de um <strong>me</strong>rgulho. Se a<br />
alma tivesse cabelos, eu registraria neste ponto um fenô<strong>me</strong>no de<br />
horripilação moral.<br />
Fiquei perplexo.<br />
O triunfo na escola podia ser o Sanches; em compensação, a<br />
humildade vencida era o Franco. Entre os dois extremos repugnantes,<br />
revelavam-se-<strong>me</strong> três amostras típicas à linha do bem viver: Rebelo,<br />
um ancião; Ribas, um angélico; Mata, o corcunda, um policia secreta.<br />
Para angélico decidida<strong>me</strong>nte não tinha jeito, estava provado, nem<br />
omoplatas magras; para ancião, não tinha idade, nem óculos azuis,<br />
nem mau hálito; para ser o Mata, faltava-<strong>me</strong> o justo caráter e a<br />
corcova... Onde estava o dever? Na cartilha? Na opinião de Aristarco?<br />
Na misantropia senil dos óculos azuis?<br />
Salteou-<strong>me</strong> nisto, às avessas, o relâmpago de Damasco:<br />
independência.