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O ATENEU Raul Pompéia I “Vais encontrar o mundo, disse-me meu ...

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Desde muito, andava querendo ver um cadáver, espetáculo real, de<br />

mãos contraídas, revirados beiços. As cartas iconográficas de parede<br />

deixavam-<strong>me</strong> impassível, com as estampas teóricas de cérebros a<br />

descoberto, globos oculares exorbitados, ventres golpeados em abas,<br />

mostrando vísceras, figuras humanas de pé, descansando a um quadril,<br />

movendo a supinação num jeito de complacência passiva, esfolados<br />

para que lhes víssemos as veias, modelos vivos da ciência em pose de<br />

suplício, constância de brâmane, como à espera que houvéssemos<br />

aprendido de cor a circunvolução do sangue, para vestir de novo a<br />

pele e os músculos deslocados. Não <strong>me</strong> bastava.<br />

Nos grandes armários havia <strong>me</strong>lhor: peças anatômicas de massa,<br />

sangrando verniz ver<strong>me</strong>lho, legitima hemorragia; corações enor<strong>me</strong>s,<br />

latejantes, úmidos à vista, mas que se destampavam como terrinas;<br />

olhos de ciclope, arrancados, que pareciam viver ainda estranha<strong>me</strong>nte<br />

a vida solitária e inútil da visão; mas olhos que se abriam como<br />

formas de projéteis de entrudo Mas eu queria a realidade. a morte ao<br />

vivo.<br />

Lembrava-<strong>me</strong> de ter visto um anjinho, entre velas no caixão agaloado,<br />

simples carinha amarelenta, sombreada de azul em nódoas dispersas,<br />

em mãos crispadas numa fita, cobrindo-se de flores a imobilidade do<br />

último sono. Vira ainda uma velha, na essa elevada, uma opulenta<br />

velha que morrera sem herdeiros. Ao redor, choravam muito as tochas<br />

pranto de cera cor de <strong>me</strong>l, inconsoláveis, espichando compridas<br />

chamas, que pareciam subir ao teto com um filete de fumo.<br />

Distinguiam-se bem os dois pés para dentro, em botinas de pano; e o<br />

nariz pronunciando-se sob o lenço de rendas.<br />

Isto não era ter visto cadáver. Eu queria o cadáver flagrante, despido<br />

dos artifícios de armação e religiosidade, que fazem do defunto<br />

simples pretexto para um cerimonial de aparato. O que <strong>me</strong> convinha<br />

era o galho por terra, ao capricho da queda, decepado da árvore da<br />

existência, tal qual.<br />

O cadáver do criado estava em condições; com a vantagem do adereço<br />

dramático do sangue e do cri<strong>me</strong>, como nos teatros.<br />

Encaminhava-<strong>me</strong>, pois, para a cozinha e sentia palpitações fortes,<br />

abalando-<strong>me</strong> certo modo de agradável pavor. A cozinha do Ateneu,<br />

além dos aloja<strong>me</strong>ntos da copa, era espaçosa como um salão. Às

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