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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA<br />
VOLUME 9 • 1996 • ISSN 0103-7676<br />
Revista de Ciências Sociais<br />
O <strong>DIREITO</strong><br />
<strong>NOS</strong> A<strong>NOS</strong> <strong>90</strong><br />
20<br />
impulso<br />
ISSN 0103-7676 PIRACICABA/SP VOLUME 9 Nº 20 P 1-184 1997
UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA<br />
Reitor<br />
ALMIR DE SOUZA MAIA<br />
Vice-Reitor Acadêmico<br />
ELY ESER BARRETO CÉSAR<br />
Vice-Reitor Administrativo<br />
GUSTAVO JACQUES DIAS ALVIM<br />
impulso<br />
REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS<br />
da Universidade Metodista de Piracicaba<br />
Volume 9 1996 Número 20<br />
COMISSÃO EDITORIAL<br />
Elias Boaventura (presidente)<br />
Elizabeth Maria Alcântara<br />
Marcelo Fabri<br />
Maria Thereza Miguel Peres<br />
Valdemar Sguissardi<br />
EDITORA UNIMEP<br />
CONSELHO DE POLÍTICA EDITORIAL<br />
Almir de Souza Maia (presidente)<br />
Antonio Roque Dechen<br />
Casimiro Cabrera Peralta<br />
Davi Ferreira Barros<br />
Elias Boaventura<br />
Ely Eser Barreto César (vice-presidente)<br />
Francisco Cock Fontanella<br />
Gislene Garcia Franco do Nascimento<br />
José Antonio Arantes Salles<br />
José Ranali<br />
EDITOR<br />
Heitor Amílcar da Silveira Neto (MTb 13.787)<br />
A revista IMPULSO é uma publicação quadrimestral<br />
da Universidade Metodista de Piracicaba, produzida pela<br />
Editora UNIMEP.<br />
As opiniões expressas nos artigos, tanto os encomendados<br />
como os enviados espontaneamente, são de responsabilidade<br />
dos seus autores.<br />
ASSINATURAS, REDAÇÃO E<br />
ADMINISTRAÇÃO<br />
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Impulso is a journal focused on social sciences published three<br />
times a year by Universidade Metodista de Piracicaba (São Paulo<br />
– Brazil). It contains papers on scientific and technological<br />
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for submission of articles can be requested to the Editor.<br />
Impulso é indexada por – Impulso is indexed by<br />
Base de Dados do IBGE; Bibliografia Bíblica Latino-<br />
Americana; Índice Bibliográfico Clase (UNAM);<br />
Sumários Correntes em Educação.<br />
EQUIPE TÉCNICA<br />
Edição executiva: Heitor Amílcar da Silveira Neto e Israel Belo<br />
de Azevedo<br />
Assistência editorial: Francisco Cock Fontanella<br />
Secretaria editorial: Geci Souza Silva<br />
Capa: Genival Cardoso<br />
Imagem: Stock Photos<br />
Impressão da capa: Gráfica Editora Camargo Soares<br />
Supervisão gráfica: Carlos Terra<br />
DTP e produção: Gráfica <strong>Unimep</strong><br />
Impressa em Duplicadora Digital Xerox Docutech 135<br />
EDITADA EM SETEMBRO /1997
O Direito nos Anos <strong>90</strong><br />
O Direito dos anos <strong>90</strong> nos deixa uma dúvida e nos impõe uma dificuldade. O jurista<br />
brasileiro, adepto de um formalismo exacerbado, preso ao positivismo jurídico, não<br />
parou para avaliar as conseqüências sociais desta limitação e insiste em tratar o Estado<br />
Democrático de Direito brasileiro com instrumentos inadequados.<br />
No momento de romper com as ilusões do Direito clássico, alguns poucos se sujeitam<br />
a deixar o ontologismo, mas o fazem com restrições, temerosos que venha a lume<br />
uma crise que persegue nosso Direito e, com instrumentos puramente pragmáticos, tentam<br />
criar espantalhos revestidos de ideologias superadas para aparentar harmonia,<br />
onde só existe confrontação.<br />
De um lado, há o recurso aos princípios do processo, como forma de acelerar a<br />
aplicação da justiça, numa tentativa de torná-la acessível a todos, e diante da crise de<br />
legitimação, procuram justificar a ampliação da máquina Estatal. Este caminho, paliativo,<br />
se mostra saturado em pouco tempo. Faltam fundamentos e propostas sérias para<br />
serem enfrentados os problemas de uma sociedade complexa e mutante, que não mais<br />
admite a universalidade imperativa dos preceitos normativos.<br />
A dignidade da pessoa humana não tem conceitos absolutos, apriorísticos, que possam<br />
ser impostos como o caminho real e concreto para os objetivos do homem. Há um<br />
consenso entre os homens, que decorre da consciência do seu papel na construção desta<br />
sociedade, presente e futura, o da necessidade de reconhecimento de seus direitos humanos<br />
por órgãos legítimos e confiáveis.<br />
A base de toda esta reestruturação, o mínimo exigido para que possamos enfrentar<br />
os novos tempos, está na Universidade. A reformulação do ensino, com novas metodologias,<br />
novas visões críticas que nos permitam compreender o Direito e adequá-lo à vida<br />
social moderna.<br />
As publicações científicas, como esta, possibilitarão amplos debates sobre os rumos<br />
do Direito, num compasso uniforme, ou bem próximo do contexto social.<br />
Do contrário, continuaremos mantendo a aparência de legitimidade e de justiça,<br />
fundada num pseudo saber atual, produto das migalhas que recebemos do continente<br />
europeu.<br />
A. L. CHAVES CAMARGO
SUMÁRIO<br />
O <strong>DIREITO</strong> <strong>NOS</strong> A<strong>NOS</strong> <strong>90</strong><br />
7 Reforma curricular:<br />
perfumarias fundamentais<br />
ALOYSIO FERRAZ PEREIRA<br />
15 Leituras e debates em torno da<br />
interpretação no Direito Constitucional<br />
nos anos <strong>90</strong><br />
JOSÉ RIBAS VIEIRA<br />
21 Do processo legislativo:<br />
breves considerações<br />
JOÃO MIGUEL DA LUZ RIVERO<br />
31 Filosofia do Direito em Habermas<br />
JOÃO BOSCO DA ENCARNAÇÃO<br />
39 A teoria da Justiça de<br />
John Rawls e algumas dificuldades:<br />
uma leitura<br />
JORGE ATÍLIO SILVA IULIANELLI<br />
57 O método do Direito:<br />
questões de lógica jurídica<br />
ERCÍLIO A. DENNY<br />
67 Segurança pública e garantias individuais<br />
sob a ameaça da criminalidade comum e<br />
organizada, na visão de Winfried Hassemer<br />
SAMUEL ZEM
81 Bases do Direito Penal no<br />
Estado Democrático de Direito<br />
A. L. CHAVES CAMARGO<br />
95 A relevância causal da omissão<br />
EDUARDO SILVEIRA MELO RODRIGUES<br />
123 Limitações ao poder punitivo do Estado<br />
EDSON JOSÉ MENEGHETTI<br />
137 Sistemas de transmissão<br />
do Direito de Propriedade:<br />
um estudo no Direito Alemão<br />
VICTOR HUGO TEJERINA VELÁSQUEZ<br />
159 União estável:<br />
antiga forma de casamento de fato<br />
ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO<br />
RESENHAS<br />
169 O direito à vida<br />
JOSÉ RENATO SCHMAEDECKE<br />
RESUMOS/ABSTRACTS<br />
173 Resumos/abstracts
REFORMA CURRICULAR:<br />
PERFUMARIAS FUNDAMENTAIS<br />
ALOYSIO FERRAZ PEREIRA<br />
O Ministério da Educação baixou, a 30 de dezembro de<br />
1994, a portaria nº 1886, que “fixa as diretrizes curriculares e o<br />
conteúdo do curso jurídico” no Brasil em nível de graduação.<br />
No artigo 6º classifica e enumera, sob a denominação de<br />
“matérias fundamentais”, as seguintes: Introdução ao Direito,<br />
Filosofia (Geral e Jurídica; Ética Geral e Profissional), Sociologia<br />
(Geral e Jurídica), Economia e Ciência Política (com Teoria do<br />
Estado).<br />
Ao lado dessas, a Portaria refere outra classe de matérias, as<br />
“profissionalizantes”, tradicionalmente chamadas “jurídicas”. Com<br />
exceção de Introdução ao Direito, as primeiras não podem, a rigor,<br />
ser qualificadas de jurídicas e passam, portanto, agora a ser legalmente<br />
consideradas fundamentais ao ensino dos cursos jurídicos.<br />
São profissionalizantes, segundo a nova norma, os Direitos<br />
Constitucional, Civil, Administrativo, Tributário, Penal, Processual<br />
Civil, Processual Penal, do Trabalho, Comercial e Internacional.<br />
Além disso, a portaria modifica substancialmente o sistema<br />
de avaliação do trabalho discente ao estabelecer no artigo 9º: “Para<br />
conclusão do curso, será obrigatória apresentação e defesa de<br />
monografia final, perante banca examinadora, com tema e orientador<br />
escolhidos pelo aluno”.<br />
Essas “diretrizes curriculares” (art. 16) “são obrigatórias aos<br />
novos alunos matriculados a partir de 1996 nos cursos jurídicos que,<br />
no exercício de sua autonomia, podem aplicá-los imediatamente”.<br />
Outras modificações foram igualmente introduzidas pela norma.<br />
impulso<br />
7
O curso jurídico de graduação se completará “em pelo menos<br />
cinco e no máximo oito anos letivos”. A função prática do ensino<br />
mereceu, na lei, cuidadosa regulamentação referente ao estágio<br />
supervisionado. O texto legal informa também que o seu teor se<br />
apoia no “que foi recomendado nos Seminários Regionais e Nacional<br />
dos Cursos Jurídicos, e pela Comissão de Especialistas de<br />
Ensino de Direito, da SESU-MEC”. Neste artigo, porém, se há de<br />
focalizar tão somente a transformação legal no que toca às duas<br />
grandes classes das matérias a serem ensinadas em graduação.<br />
PRIMEIRA REAÇÃO<br />
Na primeira reação à portaria ministerial se constata já, em<br />
algumas universidades, no terreno do imediatismo corporativo,<br />
sob a forma de disputa em torno da questão de se saber se as disciplinas<br />
não-jurídicas – filosofia geral e jurídica, ética geral e profissional,<br />
economia e ciência política (com teoria do Estado) –<br />
devam ser ensinadas por professores juristas ou por não-juristas,<br />
que as lecionam em outras unidades destinadas propriamente ao<br />
seu cultivo. Assim, por exemplo, na Universidade de São Paulo,<br />
filosofia, ética e sociologia gerais, ciência política (com teoria do<br />
Estado) e economia deveriam ser confiadas a docentes que as professam<br />
na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, e a<br />
última, na de Economia e Administração.<br />
Observe-se que, na Faculdade de Direito da USP, a sociologia<br />
geral já é ensinada por professor indicado pela Faculdade de<br />
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, mas a filosofia do direito foi<br />
sempre entregue a professores da casa, desde a sua fundação, há<br />
168 anos. Parece-me correto confiar as disciplinas não-jurídicas a<br />
professores das áreas que propriamente as incluem: filosofia geral,<br />
sociologia geral, ética geral, economia e ciência política, deixando-se<br />
ao curso jurídico: filosofia do direito, sociologia jurídica,<br />
ética profissional e teoria do Estado. Embora a filosofia do direito<br />
e a sociologia do direito não sejam, a rigor, jurídicas – pois são<br />
apenas a filosofia e a sociologia tout court enquanto se voltam para<br />
os fenômenos jurídicos, tomando-os como objeto de sua preocupação<br />
e exame, segundo a abordagem que lhes é peculiar –, é prudente<br />
serem ensinadas por juristas que tenham também formação<br />
ou estudos aprofundados de filosofia e sociologia. A ética geral,<br />
matéria filosófica entre as que mais o são, segue o destino de sua<br />
matriz, a filosofia, mas a profissional deve atribuir-se a jurista, pois<br />
supõe-se que este domine nos detalhes, as suas regras, implicações<br />
8 impulso
e natureza, cujos problemas pedem vivência na prática operativa<br />
do direito.<br />
A filosofia do direito é bom, seja mesmo confiada a juristafilósofo,<br />
isto é, jurista que medita e pensa o direito criticamente<br />
como filósofo. Isto não quer dizer que não possa este assunto ser<br />
professado por filósofo-jurista, como disto a história dá testemunho<br />
nos casos de Aristóteles, Tomás de Aquino, Hobbes, Rousseau,<br />
Kant, Hegel, Marx e outros, que influíram profundamente no<br />
direito, embora não militassem em profissão jurídica nem lecionassem<br />
direito. De resto, o desamor que o jurista médio, em sua<br />
maioria, manifesta à filosofia, aconselha preferir a sua atribuição<br />
ao filósofo, sobretudo se se tem em conta a inexistência de filosofia<br />
no curso de humanidades.<br />
A ciência política e a economia, como é óbvio, são matérias<br />
intimamente ligadas ao direito enquanto fenômeno e como conhecimento<br />
prático ou teórico. A respeito, temos o exemplo do que, há<br />
décadas, acontece na Europa, onde várias faculdades de direito são,<br />
ao mesmo tempo, de ciências políticas ou econômicas ou sociais.<br />
Têm então, em sua própria estrutura pedagógica e em seus quadros,<br />
os recursos necessários a se proverem de docentes em política,<br />
economia e sociologia. Quanto à “teoria do Estado” (entende-se:<br />
teoria geral do Estado é disciplina que, nas escolas de direito, tem<br />
sido sucedânea à da ciência política, incluindo esta última ao lado<br />
de outras como filosofia e sociologia políticas, história institucional,<br />
áreas comuns ao direito, etc. A sua adoção como obrigatória na<br />
quase unanimidade dos currículos, entre nós, constitui prova do<br />
reconhecimento da relação congênita que interliga política e<br />
direito; sem falar da história dos cursos jurídicos no Brasil, onde as<br />
academias de Recife e São Paulo sempre manifestaram fortíssima<br />
vocação política, pelo menos enquanto não existiram universidades<br />
ou escolas destinadas especificamente aos estudos políticos e<br />
sociais. Mas deixemos aí essa questão entregue à rixa entre os interessados<br />
em melhorar o próprio salário ou currículo.<br />
SEGUNDA REAÇÃO<br />
Outra reação à portaria ministerial nº 18.886 parte, para usar<br />
termo simplificador, do técnico do direito. O espectro de suas<br />
modalidades vai do rábula portador de diploma ao legista travestido<br />
de kelseniano. De um lado, a técnica tem seu lugar próprio na<br />
atividade jurídica, mas sua função é subordinada ou preordenada<br />
aos fins a que tem de servir. De outro lado a técnica resulta de<br />
impulso<br />
9
1 Dom Casmurro, cap. XVII.<br />
2 LESSA, Pedro. Estudos de filosofia<br />
do Direito. São Paulo, 1916.<br />
3 KELSEN. Teoria pura da direita.<br />
Prefácio à 2ª ed. e início<br />
do cap. I.<br />
condições e causas que a abrangem e ultrapassam, de princípios<br />
que estão fora do seu campo visual. Contentar-se com ser técnico<br />
em direito significa limitar-se ao empírico utilitário, renunciar à<br />
racionalidade científica e à lúcida compreensão do direito em seu<br />
contexto social, existencial e ontológico. Esta compreensão<br />
revela-se indispensável ao próprio exercício das profissões jurídicas.<br />
Limitar-se à técnica seria resignar-se a agir e trabalhar como disse<br />
fazê-lo aquele inseto que Machado de Assis imaginou interpelar:<br />
“Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos<br />
absolutamente nada dos textos que roemos, nem amamos ou<br />
detestamos o que roemos: nós roemos”. 1<br />
Os que se autodenominam técnicos ainda demonstram algum<br />
espírito crítico. Mas, os que pretendem o título de professor,<br />
quando, na realidade jurássica não passam de técnicos da espécie<br />
normativista, estes só podem mesmo espantar-se diante da portaria<br />
inovadora e combatê-la e rejeitá-la. Estes são os costumeiros adversários<br />
de filósofos e sociólogos, a manifestarem agora, no limiar<br />
desta reforma do ensino jurídico, a mesma incompreensão que,<br />
quinhentos anos antes de Cristo, Heráclito de Éfeso agredia, no seu<br />
obscuro estilo: “os cães ladram contra os que não conhecem”.<br />
Mas é tempo de mostrar aos tecno-juristas, ou “juristas”,<br />
que houve um juiz mineiro, ministro do Supremo Tribunal Federal,<br />
professor de filosofia na Faculdade do Largo de São Francisco,<br />
chamado Pedro Lessa, que afirmou, e conseguiu demonstrá-lo<br />
com facilidade, que o direito só será ciência quando sua<br />
elaboração e aplicação resultarem do trabalho científico da sociologia<br />
(em sentido amplo) e da reflexão crítica da filosofia. 2 Não<br />
se diga que Lessa é antigo e Kelsen, atual. A primeira edição dos<br />
Estudos é de 1911, mas a segunda foi revista e veio à luz em<br />
1916. Abrindo o prefácio à primeira edição de sua Teoria pura<br />
(1934), Kelsen informava: “Há mais de duas décadas empreendi<br />
desenvolver uma teoria jurídica pura”. Isto equivale a dizer que a<br />
teoria pura data da mesmíssima época em que Pedro Lessa publicava<br />
a sua obra principal...<br />
Os tecno-juristas definem-se como aqueles operadores e teóricos<br />
que reduzem a disciplina direito “à análise do Direito positivo<br />
como sendo a realidade jurídica”. 3 Circunscrevem-na à dogmática<br />
jurídica que, como “o indica a própria expressão, tem por objeto o<br />
dogma do direito, (...) isto é, as leis (no sentido técnico, especial,<br />
do termo)”, “normas para fins práticos, que se impõem à vontade.<br />
10 impulso
Não se confundem com as afirmações científicas, que se dirigem à<br />
inteligência”. 4<br />
O direito positivo (um código, uma lei extravagante, etc.)<br />
encerra um conjunto de preceitos ou regras, “imposto à atividade<br />
voluntária do homem”, pelos quais “se ordena que se faça, ou<br />
deixe de fazer, alguma coisa”. A dogmática jurídica, enquanto<br />
explanação da arte do direito positivo e a “teoria pura”, como<br />
exposição da “análise” do mesmo direito, constituem, no mínimo,<br />
uma tecnologia e, no máximo, uma dialética do tipo retórico tradicional.<br />
Confundi-las com a ciência é, para usar a expressão de<br />
Lessa, “desconhecer um dos mais vulgares elementos da lógica”. 5<br />
Todavia, as leis, as “normas de conduta, os preceitos artísticos,<br />
não podem deixar de ter por base verdades científicas”. “Aqui<br />
passamos para o domínio da ciência”. Resumindo Pedro Lessa: 6 as<br />
leis jurídicas estão sujeitas a leis “no sentido em que o termo é<br />
empregado pelos cultores de todas as ciências”. 7 Também nós juristas<br />
podemos, ao fazer as leis jurídicas, “observar os fatos sociais e<br />
formular as leis a que estão subordinados, determinar o que há de<br />
constante e necessário na sua produção”. 8<br />
Assim, na perspectiva de Lessa, o que hoje predominantemente<br />
se ensina como direito (disciplina escolar teórico-prática)<br />
nos cursos jurídicos do Brasil (como também em outros países) e<br />
o que ainda agora se publica como tal, não constituem ciência, já<br />
no sentido em que a entendia o jurista-filósofo brasileiro.<br />
As “leis devem ser formuladas de acordo com a teoria científica<br />
do direito. À consagração em disposições legais preexistem<br />
lógicamente os direitos, estudados e reconhecidos pela ciência<br />
jurídica”. 9 E Pedro Lessa conclui: “a filosofia do direito é a síntese<br />
final dessa ciência”.<br />
Dir-se-ia que a portaria ministerial de 30 de dezembro de<br />
1994 tem por objetivo, no essencial, realizar, com um atraso de 79<br />
anos, o projeto de Pedro Lessa: conduzir o ensino à concepção<br />
teórica e à atividade prática de uma verdadeira ciência do direito.<br />
E, para alcançar esse fim, elegeu os meios: as disciplinas que<br />
donomina fundamentais, entre as quais inclui – fato inédito na<br />
legislação federal – filosofia, sociologia, ética e ciência política.<br />
Sob reserva de um reforço de subsídios, também atuais e<br />
variados (incabíveis neste espaço), já é possível afirmar, sem exagero<br />
ou contundência, que se vai tornando irresponsável, quando<br />
não hilariante, o desespero dos defensores do positivismo tecnojurídico,<br />
ao apostrofar as “perfumarias jurídicas”.<br />
4 LESSA, Pedro, op. cit., p. 66.<br />
5 LESSA, Pedro, op. cit.<br />
6 LESSA, Pedro, op. cit., p. 77<br />
7 LESSA, Pedro, op. cit.<br />
8 LESSA, Pedro, op. cit.<br />
9 LESSA, Pedro, op. cit., p. 86.<br />
impulso<br />
11
Instalados com segurança na civilização do capital e do consumo,<br />
os tecno-burocratas do direito exigem a manutenção do establishment<br />
jurídico, a perpetuação do status quo no seu aparelho<br />
ideológico universitário e a conservação do Estado burguês de<br />
direito. Ao seu olfato, as perfumarias, tornadas obrigatórias pela<br />
portaria, ameaçam o ensino do direito com uma perigosa exalação<br />
do veneno crítico, componente necessário da filosofia, da livre pesquisa<br />
e da reflexão científica. A tecno-burocracia, no ramo da pedagogia<br />
jurídica, quer cumprir a sua sagrada missão de reproduzir a<br />
ordem lógico-teológica, aquela imutável estrutura piramidal que,<br />
assentada na base sobre as sentenças judiciais, é aureolada, no vértice,<br />
por um único mandamento “divino”: pacta sunt servanda.<br />
Percebendo que se movem na direção da história, os técnojuristas<br />
se agitam contra legem, contra o estatuto científico do seu<br />
mester, enfim contra a filosofia, esse cavalo de Tróia que a portaria<br />
vem de introduzir dentro dos muros da cidadania neo-liberal, para<br />
dispersar o seu devaneio social-democrático.<br />
E até um professor de escatologia, que outrora viemos a<br />
conhecer, apostaria hoje em que a reforma ministerial será revogada,<br />
por razões contrárias às dos tecno-juristas, aflitos por abolir<br />
as perfumarias. O nosso escatologista diria que todos nós, homens<br />
comuns, sociólogos, filósofos, juristas, professores, sendo apenas<br />
seres-humanos, seguimos fatalmente para o nada, aonde nos leva<br />
este caminho errado chamado história, processo inelutável do niilismo,<br />
destino da civilização tecno-cristã. Ele diria ainda que continuamos<br />
em perigo e que não há sinal de salvação. A portaria, lei<br />
precária humana, deve pois cair sob o rolo compressor da técnica<br />
e, se vingar, terá a aplicação disfigurada, quiçá oposta às intenções<br />
transformadoras que lhe deram origem e sentido.<br />
10 Existindo no espaço, na luz e<br />
no tempo, a estátua contém uma<br />
infinidade de perfis ou de faces.<br />
TERCEIRA REAÇÃO (CONCLUSIVA)<br />
E eis que aí uma terceira reação à portaria ministerial nos<br />
pareceu observável, na qual convergem, de uma parte, juristas de<br />
atualizada formação humanística e larga experiência profissional<br />
e, de outra, sociólogos, filósofos e historiadores, atentos aos desenvolvimentos<br />
do direito e do seu ensino, capazes de penetrante<br />
compreensão da sua significação e papel. Com as opiniões e reflexões<br />
que externaram, interpretando a portaria, é possível, quem<br />
sabe? modelar representativamente uma figura escultural 10 do<br />
jurista, para servir de paradigma aos professores de direito, por definição<br />
dedicados a formar e instruir conscienciosamente os alunos.<br />
12 impulso
Quer dizer: formar juristas cientes da situação profissional e política<br />
em que se encontram, conscientes do dever moral ou religioso<br />
que assumem, preocupadamente cônscios de que, no âmbito que a<br />
liberdade concede a cada um, avançam abertos à realização da verdade,<br />
disponíveis para o seu destino.<br />
A partir dessa metáfora plástica, cabe observar que não há<br />
um único perfil de jurista ou do jurista, como frequentemente se<br />
supõe ou se propõe. Os Romanos tinham perfeita noção de que<br />
havia, entre eles, pelo menos, dois perfis ou duas faces diferentes<br />
de jurista: o perfil do advogado e o do jurisprudente: Cícero e Hortênsio,<br />
por exemplo, realizavam o primeiro perfil, Labeão e Papiniano,<br />
entre outros, respondiam ao perfil de jurisprudente. Uma<br />
faculdade de direito deve pois ter em mira uma série aberta de<br />
paradigmas ou perfis: juiz e legislador, assessores e auxiliares de<br />
um e de outro, delegados de polícia, com seus escrivães e funcionários,<br />
advogados das mais variadas especialidades e funções... A<br />
luz gira e circula sobre a efígie do jurista: seu perfil muda no passar<br />
do tempo, no deslocar-se do observador à sua roda. Deixemos<br />
também à espontaneidade, à vocação e à liberdade dos alunos a<br />
escolha do perfil que projetam. Apegar-se ou impor um só perfil<br />
de jurista na universidade seria dirigismo totalitário, como ao<br />
tempo de Stalin e de Hitler.<br />
Mas é tempo de parar aqui estas considerações, para voltar<br />
nosso enfoque à portaria em questão. Com ela, depois dela, “cessa<br />
tudo quanto a antiga musa canta”: legem habemus. Só nos restava,<br />
antes de cumprí-la, interpretá-la. Questão de hermenêutica, só...<br />
A portaria tem por fim, evidentemente, operar profunda<br />
transformação no ensino do direito e na formação dos seus operadores,<br />
noutras palavras, dos juristas. Este fim pedagógico preordena-se,<br />
como meio, a objetivo de valor social, político e humano<br />
superior: a transformação do próprio direito, como instrumento de<br />
mudança e atualização de toda a sociedade brasileira e da nação,<br />
que têm necessidade de justiça. Ora, para alcançar esses objetivos,<br />
tão desejados por todo o povo brasileiro, é necessário elaborar e<br />
manter um direito dinâmico, o mais possível adequado à realidade<br />
econômica, social e política. Para isso é indispensável a ação<br />
incessante das ciências sociais, postas a serviço da criação de um<br />
direito justo e da manutenção de um aparelho judicial lúcido e atualizado.<br />
E é indispensável também, e principalmente, o exercício –<br />
a nível do ensino jurídico universitário – da crítica filosófica livre<br />
e permanente. Tais desideratos só se atingem, a nível universitário,<br />
impulso<br />
13
pela conexão entre as ciências sociais e o conhecimento jurídico,<br />
em seus aspectos teórico e prático. Cabe à filosofia o papel de<br />
coordenar e julgar, dialética e criticamente, as interrelações entre<br />
aquelas ciências e o direito, entre as suas visões do real, preparando-se<br />
o terreno a opções e projetos coletivos, inclusive os planos<br />
econômicos e políticos. Tal é o sentido profundo e determinante<br />
da portaria em exame. Se os fins são esses, os principais<br />
meios consistem: 1º no ensino desenvolvido das denominadas<br />
“disciplinas fundamentais”, ao lado das “profissionalizantes”; 2º<br />
na implementação da estrutura de preparação e realização da<br />
prova monográfica; e 3º na instauração do estágio prático supervisionado.<br />
Eis aí o caminho que sabiamente a portaria elegeu para libertar<br />
o nosso direito do empirismo, da improvisação, do imobilismo,<br />
da ignorância e dos interesses criados em benefício das elites retrógradas,<br />
com sua tradicional clientela de bacharéis. Essa lei é uma<br />
rara oportunidade de contribuir para superar a trágica e histórica<br />
inércia de uma “sociedade nacional” de desigualdades e injustiça.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
LESSA, Pedro. Estudos de filosofia do Direito. São Paulo, 1916.<br />
KELSEN, H. Teoria pura do direito. Coimbra: Martins Fontes.<br />
Prefácio à 2ª ed. e início do cap. I.<br />
14 impulso
LEITURAS E DEBATES EM<br />
TORNO DA INTERPRETAÇÃO<br />
NO <strong>DIREITO</strong> CONSTITUCIONAL<br />
<strong>NOS</strong> A<strong>NOS</strong> <strong>90</strong> *<br />
JOSÉ RIBAS VIEIRA<br />
Uma reflexão a respeito da temática de interpretação constitucional<br />
vem sendo suscitada, nos últimos tempos, por algumas<br />
dinâmicas importantes.<br />
Podemos, por exemplo, compreendê-la pelo novo papel<br />
advindo com a presença do Judiciário na atual crise do Estado e da<br />
própria ordem política. Assiste-se, assim, a um processo de jurisdicização<br />
de todo o discurso político. Lembra Antoine Garapon, 1<br />
por exemplo, como as reivindicações políticas estão materializadas,<br />
hoje, numa mensagem nitidamente jurídica de luta por direitos<br />
individuais e coletivos. Seguindo ainda a lição do referido<br />
autor francês quanto ao fenômeno da jurisdicização do discurso<br />
político, encontramos como no nosso quotidiano social são incorporadas<br />
categorias próprias do universo do Direito, a saber: imparcialidade,<br />
transparência, contraditória, argumentação, etc.<br />
Acresce a esse contexto da presença do Judiciário o fato de<br />
que vivenciamos uma ordem internacional articulada a uma força<br />
de integração econômica e política a qual jamais foi presenciada.<br />
Nesse quadro integracionista, pode ser visualizado o que ocorre na<br />
União Européia com a existência de um Direito Comunitário em<br />
cujo âmbito institucional a ordem estatal fica enfraquecida. Quanto<br />
a esse caso específico, mais uma vez, o Direito e o Judiciário<br />
* Palestra proferida no Programa<br />
de Pós-Graduação de Direito<br />
UNIMEP, em 29 de maio de<br />
1996.<br />
1 GARAPON, Antoine. Le Gardien<br />
des promesses. Justice et<br />
Démocratie. Paris: Odile Jacob,<br />
1996, p. 41.<br />
impulso<br />
15
2 V. a obra de HESSE Konrad.<br />
Derecho Constitucional y Derecho<br />
Privado. Madrid: Civitas<br />
S.A., 1995; na qual esse constitucionalista<br />
alemão discute, por<br />
exemplo, a invasão dos parâmetros<br />
do texto constitucional<br />
no campo do Direito Privado.<br />
Assim, ele aponta alguns critérios<br />
para diferenciar a ordem jurídica<br />
privada do Direito Constitucional.<br />
3 V. GARAPON, Antoine, op.<br />
cit.<br />
(o Juiz Nacional) passam a ser mecanismos necessários de articulação<br />
entre o Estado e a ordem jurídica supra-nacional (no caso<br />
a União Européia). Garapon na sua obra citada observa, também,<br />
que o impulso integracionista via Direito Comunitário tem servido<br />
como elemento para estabelecer, pela primeira vez, uma comunicação<br />
e transmigração de institutos e experiências jurídicas de<br />
caráter inédito.<br />
Na sociedade brasileira, é fácil constatar também a presença<br />
em todos os níveis de nossa vida social dessa jurisdização do discurso<br />
político. Convivemos também, tanto pela força da vigência<br />
da própria Constituição Federal de 1988, quanto dos resultados de<br />
um processo de profunda integração econômica em escala mundial<br />
(globalização), com fenômeno da recepção e interrelacionamento<br />
de novos institutos jurídicos.<br />
Não precisaríamos aprofundar mais a nossa análise para indicar<br />
que se depara, atualmente, com uma nova forma de dizer o<br />
direito. Este surge com toda a pujança não de uma estrutura codificada,<br />
mas sim de uma perspectiva, cada vez maior, de sentido<br />
jurisprudencial. Sem dúvida nenhuma, nesse quadro de valorização<br />
de papel do juiz há um fortalecimento da força dos instrumentos<br />
interpretativos.<br />
Dentro desse retorno da importância jurídica, temos de reconhecer<br />
a posição de destaque que ocupa o Direito Constitucional.<br />
Essa presença central desse campo de conhecimento deve-se, entre<br />
outros fatores, à relevância assumida pelos textos constitucionais<br />
como elementos irradiadores de toda a vida social. 2 Não podemos<br />
esquecer, também, que determinados institutos ou princípios constitucionais<br />
passaram a ser norteadores para a própria resolução de<br />
conflitos. É o caso, por exemplo, da posição de grandeza como<br />
assume o princípio da proporcionalidade para dirimir e limitar as<br />
diferenças de aplicações normativas.<br />
Em conseqüência do espaço ocupado pelo Direito Constitucional<br />
dentro desse universo social crescente de jurisdicização, a<br />
metodologia da interpretação constitucional vem merecendo um<br />
maior destaque de atenção. Tal fato materializa-se na importância<br />
assumida pela jurisdição constitucional via modelo concentrado de<br />
controle de constitucionalidade dos Tribunais Constitucionais.<br />
Vale sublinhar que o fenômeno social da jurisdicização e o<br />
alargamento da presença do Direito levam Antoine Garapon 3 a<br />
manifestar a sua preocupação quanto a um paradoxo. Neste<br />
momento, as ordens jurídicas articuladas com um de seus operadores<br />
16 impulso
principais, que é o juiz, desempenham uma função essencial de<br />
assegurar o processo democrático, ao reconhecer direitos individuais<br />
ou coletivos pleiteados pelos cidadãos. Entretanto, há um risco<br />
sério, no sentido da continuidade dessa autonomização do direito e<br />
do avanço da prestação jurisdicional em todos os níveis da sociedade,<br />
de virmos a assistir a substituição do jogo democrático pelo<br />
império da estrutura jurídica. Devemos acrescentar as ponderações<br />
de Garapon à indagação de como poderemos equilibrar o mundo<br />
legal para evitar o enfraquecimento do quadro democrático.<br />
Sem dúvida nenhuma, a interpretação constitucional através<br />
de sua jurisdição própria é um exemplo concreto da validade da<br />
reflexão levantada pelo mencionado estudioso francês. 4 Assim,<br />
privilegiaremos os métodos interpretativos constitucionais para<br />
responder a esse nosso questionamento.<br />
Com esse intuito é que nós pretendemos discutir as próximas<br />
etapas de nossa análise, direcionando o problema da interpretação<br />
constitucional sob duas perspectivas:<br />
• a sua finalidade; e<br />
• a delimitação de seus limites e atores.<br />
A FINALIDADE DA INTERPRETAÇÃO<br />
CONSTITUCIONAL<br />
Numa postura tradicional e de fundamentos dentro de uma<br />
roupagem de liberalismo, a interpretação constitucional foi sempre<br />
enquadrada no sentido de estabelecer uma adequação da lei ou do<br />
ato administrativo ao texto constitucional. Nessa linha de raciocínio,<br />
esse entendimento reduzia a metodologia interpretativa constitucional<br />
e o seu instrumento de viabilização (Jurisdição Constitucional)<br />
a um mero exame da noção de supremacia da norma constitucional<br />
dentro da ordem jurídica. 5<br />
Entretanto, em razão do caráter mais arrojado da jurisdição<br />
constitucional em nossos dias e de uma definição mais ampla do<br />
sentido do Texto Constitucional, 6 a interpretação constitucional<br />
passou a assumir um aspecto teleológico dentro da estrutura normativa<br />
de sua dinamização e de adequação constante com a própria<br />
realidade social. Daí, é pertinente lembrar, agora, das inquietudes<br />
levantadas por Antoine Garapon de contarmos com um<br />
Direito e um de seus operadores (no caso o Juiz Constitucional)<br />
que passariam a substituir, perigosamente, o próprio sistema<br />
democrático.<br />
4 LARENZ, Kark. Metodologia<br />
da Ciência do Direito. 2ª ed.<br />
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenksian,<br />
1989. Kark Larenz<br />
lembra que, de um lado, a interpretação<br />
constitucional não sediferencia<br />
em substância dos<br />
outros critérios de interpretação,<br />
mas, de outro lado, aquela forma<br />
interpretativa apresenta uma repercursão<br />
diferente de metodologias<br />
de compreensão de outras<br />
disciplinas do direito.<br />
5 Cabe observar que o nosso<br />
Supremo Tribunal Constitucional,<br />
mesmo após a ampliação<br />
de suas competências de contrato<br />
da constitucionalidade, a<br />
partir da Constituição Federal<br />
de 1988, está adstrito, ainda, a<br />
essa posição clássica da prevalência<br />
pura e simples do Texto<br />
Constitucional.<br />
6 Vide SCHNEIDER, Hans Peter.<br />
Democracia y Constitución.<br />
Madrid: Centro de Estudios<br />
Constitucionales, 1991. Aqui, o<br />
autor define a Constituição através<br />
de três estruturas: a pro-dinâmica<br />
(que tem de estar adaptada<br />
à realidade social); a programática<br />
(estabelecendo uma<br />
utopia social); e a fragamentária<br />
(na qual, ao estar aberta à sociedade,<br />
cabe à jurisdição constitucional<br />
compatibilizar seus princípios,<br />
lacunas e conflitos normativos<br />
constitucionais).<br />
impulso<br />
17
7 ELY, J.H. Democracy and<br />
Distrust; a theory of Judicial<br />
Review. Cambridge: Harvard<br />
University Press, 1980.<br />
8 DWORKIN, Ronald. Freedoms<br />
Law: the moral reading<br />
of the American Constitution.<br />
Cambridge: Harvard University<br />
Press, 1996.<br />
9 HÄBERLE, Peter. Le libertá<br />
fondamentali nello Stato Constituzionale.<br />
Roma: La Nuova<br />
Italia Cientifica, 1993. Nessa<br />
obra, é óbvio que Häberle discute<br />
a sua teoria institucional<br />
dos Direitos Fundamentais para<br />
culminar com a defesa de uma<br />
abertura da interpretação constitucional.<br />
LIMITES E ATORES DA INTERPRETAÇÃO<br />
CONSTITUCIONAL<br />
Dentro de uma perspectiva de mapeamento das leituras e dos<br />
debates da metodologia interpretativa constitucional, podemos<br />
visualizar que há dois conjuntos teóricos para a análise de suas<br />
contribuições: o de base norte-americana e o de origem alemã.<br />
Todos esses dois sistemas interpretativos postam-se diante de<br />
uma reflexão com o objetivo de perquirir quais seriam as delimitações<br />
possíveis da função interpretativa em relação à norma constitucional.<br />
Na lição de J. H. Ely, 7 teríamos nos Estados duas correntes:<br />
uma de caráter interpretativista, de não só adotar os métodos<br />
clássicos de interpretação, como também, de procurar respeitar ao<br />
máximo os parâmetros da norma constitucional; a outra de um<br />
perfil não interpretativista estando voltada para buscar uma compreensão<br />
da norma constitucional além de suas fronteiras. Nessa<br />
linha não interpretativista, por exemplo, está Ronald Dworkin, 8 o<br />
qual defende uma adequação do texto constitucional norte-americano<br />
a padrões morais dentro do que esse estudioso denomina do<br />
conjunto amplo do Bill of Rights. Na teoria alemã, essa delimitação<br />
de interpretativista e não interpretativista aparece em relação<br />
àqueles constitucionalistas que estariam mais vinculados a uma<br />
visão tradicional de metodologia interpretativa na esteira de<br />
Savigny, ou aqueles que estariam mais abertos à sociedade através<br />
das posições do jurista alemão Smend, defendidas na República de<br />
Weimar nos anos 20.<br />
Contudo, não se trata apenas de apontar esses marcos restritivos<br />
da interpretação constitucional, é necessário, ainda, delimitar<br />
quem são os seus reais participantes. Dentro desse raciocínio, teremos<br />
os questionamentos se a metodologia de entendimento da<br />
norma constitucional deva estar meramente resumida aos contornos<br />
institucionais da jurisdição constitucional. Dworkin defende<br />
que a postura de um juiz constitucional poderia estar aberta aos<br />
padrões morais do que ele denomina de comunidade, como consta<br />
da sua última obra já referida por nós. O constitucionalista alemão,<br />
Peter Häberle, 9 já apresenta uma postura mais radical no sentido<br />
de que a sociedade estabelece um consenso inspirado para uma<br />
abertura do Tribunal Constitucional se fundamentar. É importante<br />
registrar que, apesar de posições semelhantes de abertura para<br />
sociedade, assumida por esses dois autores, cremos existirem algumas<br />
diferenças de graus entre eles. Ronald Dworkin caracteriza-se<br />
para nós mais numa direção valorativa e moral. E em relação a<br />
18 impulso
Peter Häberle, seu pensamento sobre o papel da interpretação<br />
constitucional traduz-se numa defesa mais arraigada de um compromisso<br />
democrático para a jurisdição constitucional.<br />
É nessas posições mais radicais a respeito da função dos<br />
instrumentos interpretativos que vale sublinhar as observações<br />
ponderadas de um antigo integrante do Tribunal Constitucional<br />
alemão, que é Ernst Wolfgang Böckenford. 10 Lembra esse jurista<br />
alemão que a metodologia interpretativa não pode assumir uma<br />
postura dissolvedora ou destruidora da própria norma constitucional.<br />
CRITÉRIOS E MARCOS PARA A INTERPRETAÇÃO<br />
CONSTITUCIONAL<br />
Nessa parte do nosso estudo, é importante para nós aprofundar<br />
o pensamento de Böckenford. O jurista alemão está consciente<br />
de estabelecer critérios para demarcar a função interpretativa constitucional.<br />
Lembra o autor de Escritos sobre Derechos Constitucionales<br />
que não importa que o método de interpretação seja de um<br />
Ernst Forstroff (respeitando a norma constitucional através de elementos<br />
interpretativos tradicionais), ou de um Peter Häberle (tratando-se,<br />
como já vimos, de uma perspectiva tópica a respeito dos<br />
dispositivos constitucionais abertos à sociedade), ou então a figura<br />
de um Rudolf Smend, preocupado com o papel integrador da<br />
constituição, ou a presença de Konrad Hesse, direcionado para o<br />
problema da concretização normativa ou, ainda, a noção da norma<br />
tratada através de um programa estruturante de interpretação 11<br />
onde, com maior ou menor diferença, o sentido da norma constitucional<br />
através desses métodos interpretativos seria atingido.<br />
Defende Böckenford uma posição de que o único meio de evitar<br />
esse problema, é do intérprete por meio de sua metodologia estabelecer<br />
o seu entendimento prévio a respeito da função do texto<br />
constitucional 12 e da sua jurisdição. Esse pensador alemão reitera<br />
que tem de haver, por exemplo, por parte do intérprete constitucional<br />
uma postura mais moderada em relação à constituição e aos<br />
instrumentos de controle de constitucionalidade. Exemplificando,<br />
Böckenford sustenta que a jurisdição constitucional não pode ser<br />
um espaço substitutivo de órgãos judiciários, ao transformar-se,<br />
automaticamente, em mecanismo de revisão de todas as decisões<br />
judiciais, ao exercer a sua competência de controle de constitucionalidade.<br />
10 BÖCKENFORD, Ernst-Wolfgang.<br />
Escritos sobre Derechos<br />
Constitucionales. Baden-Baden:<br />
Nomos Verlagsgesellchaft,<br />
1993.<br />
11 V. MÜLLER, Friedrich. Discours<br />
de la méthode juridique.<br />
Paris: PUF, 1996.<br />
12 Por exemplo, SCHNEIDER,<br />
Hans Peter, op. cit., tem uma<br />
posição bastante instrumental<br />
da Constituição.<br />
impulso<br />
19
CONCLUSÃO<br />
Acreditamos, assim, que essa advertência e critério apontados<br />
por Böckenford, respondem claramente, à preocupação indicada<br />
por Garapon. 13 Isto é, de que as atuais posições assumidas<br />
pelo direito e o papel do juiz podem acarretar uma perigosa substituição<br />
do jurídico pela ordem democrática. A saída é, por conseqüência,<br />
na direção de refletirmos mecanismos de equilíbrio para<br />
a função de prestação jurisdicional, mas, ao mesmo tempo, que<br />
assegure a manutenção não só das garantias constitucionais de fortalecimento<br />
da cidadania, como também, e principalmente, do<br />
jogo democrático.<br />
13 VIEIRA, José Ribas. A Perspectiva<br />
do espaço público na<br />
compreensão democrática do<br />
Direito. Direito, Estado e Sociedade,<br />
Rio de Janeiro, n. 7, jul./<br />
dez. p. 59-72, 1995. Neste artigo,<br />
já advertíamos as dificuldades<br />
do direito de trabalhar com a<br />
democracia. Assim, na mesma<br />
linha de raciocínio de Garapon,<br />
mostrávamos como a excessiva<br />
institucionalização materializada<br />
pelo jurídico estereliza qualquer<br />
pretensão democrática através<br />
(por exemplo) das demandas<br />
dos movimentos sociais.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
BÖCKENFORD, Ernst-Wolfgang. Escritos sobre Derechos Constitucionales.<br />
Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellchaft, 1993.<br />
DWORKIN, Ronald. Freedoms law: the moral reading of the<br />
American Constitution. Cambridge: Harvard University Press,<br />
1996.<br />
ELY, J.H. Democracy and Distrust; a theory of Judicial Review.<br />
Cambridge: Harvard University Press, 1980.<br />
GARAPON, Antoine. Le gardien des promesses. Justice et<br />
démocratie. Paris: Odile Jacob, 1996.<br />
HÄBERLE, Peter. Le libertá fondamentali nello Stato Constituzionale.<br />
Roma: La Nuova Italia Cientifica, 1993.<br />
HESSE, Konrad. Derecho Constitucional y Derecho Privado.<br />
Madrid: Civitas, 1995.<br />
LARENZ, Kark. Metodologia da Ciência do Direito. 2ª ed. Lisboa:<br />
Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.<br />
MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Paris:<br />
PUF, 1996.<br />
SCHNEIDER, Hans Peter. Democracia y Constitución. Madrid:<br />
Centro de Estudios Constitucionales, 1991.<br />
VIEIRA, José Ribas. A Perspectiva do espaço público na compreensão<br />
Democrática do Direito. Direito, Estado e Sociedade,<br />
Rio de Janeiro, n. 7, jul./dez. 1995.<br />
20 impulso
DO PROCESSO LEGISLATIVO:<br />
BREVES CONSIDERAÇÕES<br />
JOÃO MIGUEL DA LUZ RIVERO<br />
Para fazermos algumas considerações sobre o processo legislativo,<br />
faz-se necessário destacar que estaremos a estudar sobre a<br />
função legislativa, que tem sua origem no Poder Legislativo de<br />
acordo com a doutrina clássica, segundo ensina Montesquieu, em<br />
sua obra célebre O Espírito das Leis e sua evolução até este final<br />
de século.<br />
Diz Montesquieu:<br />
A liberdade política em um cidadão é aquela<br />
tranqüilidade de espírito que provém da convicção que<br />
cada um tem da sua segurança. Para ter-se essa liberdade,<br />
precisa que o Governo seja tal que cada cidadão<br />
não possa temer outro.<br />
Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de<br />
Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo,<br />
não há liberdade. Porque pode temer-se que o<br />
mesmo Monarca ou o mesmo Senado faça leis tirânicas<br />
para executá-las tiranicamente.<br />
Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não<br />
estiver separado do Executivo e do Legislativo. Se estivesse<br />
junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a<br />
liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz<br />
seria Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o<br />
Juiz poderia ter a força de opressor.<br />
impulso<br />
21
Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um<br />
mesmo corpo de principais ou de nobres, ou de Povo,<br />
exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de<br />
executar resoluções públicas; e o de julgar os crimes<br />
ou as demandas dos particulares. 1<br />
1 MONTESQUIEU, Charles de,<br />
SECONDAT, Baron de. (1689-<br />
1755.) O espírito das leis.<br />
Introdução, tradução e notas de<br />
Pedro Vieira Mota. 3ª ed. aum.<br />
São Paulo: Saraiva, 1994,<br />
p. 165.<br />
Destaca ainda Montesquieu que o Poder Executivo deve ter<br />
sua participação no processo legislativo limitada à faculdade de<br />
impedir (o que hoje conhecemos como veto), sendo a ele vedada a<br />
faculdade de estatuir, da mesma forma como o Poder Legislativo<br />
não deverá executar.<br />
Lembrando ainda que o processo legislativo estará a completar-se<br />
pela participação do Poder Legislativo no exercício da sua<br />
faculdade nata de estatuir e pelo Poder Executivo no exercício de<br />
sua faculdade de impedir. Desta forma podemos dizer que da integração<br />
harmônica, como preconiza Montesquieu, teremos poderes<br />
que, por um movimento necessário, serão compelidos a caminhar<br />
em concerto.<br />
Montesquieu e Locke elaboraram idéias opostas ao poder<br />
soberano dos reis, assim colocando em xeque a teoria do absolutismo<br />
(todo poder emana de Deus; o rei o exerce em nome de<br />
Deus) objetivando controlar o poder soberano em nome de Deus,<br />
através das leis e da divisão dos poderes. Ambos convergem na<br />
assertiva de que o Poder Legislativo é que deve elaborar as leis, o<br />
Poder Executivo deve cuidar da execução das leis e o Poder Judiciário<br />
somente estaria a administrar a execução da lei em situação<br />
de conflito.<br />
Segundo nos orienta Sampaio (1967), o processo legislativo<br />
pode ser entendido também em um sentido sociológico, que seria<br />
o conjunto de fatores reais ou fáticos que põem em movimento os<br />
legisladores e o modo como eles costumam proceder ao realizar a<br />
tarefa legislativa. Neste momento nos referimos às influências que<br />
o processo legislativo sofre através da opinião pública, das crises<br />
sociais, das pressões de grupos organizados, lobbying, dos acordos<br />
de partidos, das compensações políticas, da composição partidária<br />
ou social da assembléia, da troca de votos (logrolling) entre os<br />
parlamentares, etc.<br />
Sampaio (1967), destaca que, ao observarmos o processo<br />
legislativo em sentido sociológico, na verdade estamos a analisar a<br />
conduta ou comportamento legislativo, e assim, conclui que o<br />
mais recomendável é reservar a expressão processo legislativo<br />
22 impulso
para a linguagem jurídica, pois de outra forma estaremos apenas a<br />
demonstrar os resultados das relações entre as condições sociais e<br />
o processo legislativo para o jurista, o político e o legislador, com<br />
a finalidade de melhor ajustá-lo às necessidades políticas.<br />
Ferdinand Lassalle entende que a Constituição de um país é<br />
em essência, a soma dos fatores reais do poder, que regem nesse<br />
país, sendo esta a Constituição real e efetiva, não passando a<br />
Constituição escrita de uma folha de papel 2 (Constituição em sentido<br />
sociológico).<br />
Carl Schmitt considera a Constituição como uma decisão fundamental,<br />
decisão concreta de conjunto sobre o modo e a forma de<br />
existência da unidade política, fazendo distinção entre Constituição<br />
e leis constitucionais 3 (Constituição em sentido político).<br />
Para Hans Kelsen a Constituição é norma pura, puro deverser,<br />
sem qualquer pretensão a fundamentação sociológica, política<br />
ou filosófica 4 (Constituição em sentido jurídico).<br />
A partir destas reflexões iniciais, tentaremos apresentar, preliminarmente,<br />
algumas breves considerações sobre o processo<br />
legislativo em seu significado jurídico, sendo que por ele o direito<br />
revela a sua própria criação, a produção, e criação, a modificação<br />
ou revogação de normas gerais ou individualizadas e diz quem<br />
participa e como deve participar.<br />
Estaremos ainda engajados na tarefa de mostrar como o processo<br />
legislativo evoluiu em nosso direito interno durante os 173<br />
anos do Brasil como nação independente.<br />
(BREVE) HISTÓRICO DO PROCESSO<br />
LEGISLATIVO NA BRASIL<br />
Com o fim da fase colonial, (época em que o processo legislativo<br />
era marcadamente autocrático) e com o surgimento do Brasil<br />
independente tivemos, a partir de 7 de setembro de 1822, a<br />
regra do processo representativo, sendo apenas interrompido pelo<br />
processo autocrático, nos interregnos de governos de fato:<br />
• De 7/9/1822 (data da proclamação da Independência do<br />
Brasil) a 3/5/1823 (data da instalação da Assembléia Geral Constituinte<br />
e Legislativa do Império do Brasil);<br />
• De 12/11/1823 (Dissolução da Constituinte) a 6/5/1826<br />
(Instalação da 1ª Legislatura Monárquica);<br />
• De 15/11/1889 (data da Proclamação da República) a 24/<br />
02/1891 (data da Promulgação da 1ª Constituição Republicana);<br />
2 APEED, José Afonso da Silva.<br />
Curso de Direito Constitucional<br />
Positivo. 9ª ed. rev. e ampl. São<br />
Paulo: Malheiros, 1992, p. 40.<br />
3 APEED, José Afonso da Silva,<br />
op. cit.<br />
4 APEED, José Afonso da Silva,<br />
op. cit.<br />
impulso<br />
23
5 CAMPANHOLE, Adriano,<br />
CAMPANHOLE, Hilton Lobo.<br />
Constituições do Brasil. compil.<br />
e atual. dos textos, notas revisão<br />
e índices. 11ª ed. São Paulo:<br />
Atlas, 1994, p. 775-776.<br />
• De 24/10/1930 (Revolução de 1930) a 16/7/1934<br />
(Constituição da Revolução de 1930);<br />
• De 10/11/1937 (Outorga da Constituição do Estado Novo)<br />
a 18/9/1946 (Promulgação da Constituição Liberal).<br />
• De 9/4/1964 a 27/10/65 (Período em que não se baixou<br />
decreto-lei e se teve a curiosa coexistência do processo autocrático<br />
e do representativo).<br />
• De 27/10/1965 (Ato Institucional nº 2) a 15/03/67 (Posse<br />
do Pres. Costa e Silva)<br />
Até a Carta de 1934 mantivemo-nos sob a orientação da doutrina<br />
clássica da separação dos poderes, mesmo durante a fase<br />
imperial e a existência do Poder Moderador.<br />
Apesar da Constituição de 1824 ter sido outorgada pelo Imperador,<br />
destacamos a inteligência do art. 178, que diz: É só constitucional<br />
o que diz respeito aos limites, e atribuições respectivas dos<br />
poderes políticos, e aos direitos políticos, e individuais dos cidadãos.<br />
Tudo, o que não é constitucional, pode ser alterado sem as<br />
formalidades referidas, pelas legislaturas ordinárias. 5 Desta forma<br />
tivemos uma Constituição semi – rígida, que em parte, dependendo<br />
da matéria, poderia ser alterada pelo procedimento padrão.<br />
Em seu art. 174 encontramos a limitação temporal para<br />
reforma, de 4 anos após ter sido jurada a Constituição<br />
Na Constituição de 1824 (do Império), art. 52 ao 70; a<br />
Constituição de 1891 (da República), art. 36 ao 40; a Constituição<br />
de 1934 (da Revolução de 1930) em seus artigos 41 ao 49 observamos<br />
a existência de emendas à Constituição e leis ordinárias,<br />
sendo que nas duas Constituições republicanas citadas incluem-se<br />
as resoluções.<br />
É em 1937, na Constituição do Estado Novo, outorgada por<br />
Getúlio Vargas, que localizamos a maior diversidade de atos legislativos,<br />
sendo um constitucional (emenda à Constituição) e doze<br />
ordinários, que elencamos a seguir:<br />
1) lei comum, votada pelo Parlamento (Câmara dos Deputados<br />
e Conselho Federal);<br />
2) lei votada apenas pelo Conselho Federal, para o Distrito<br />
Federal e os Territórios (art. 53);<br />
3) atos normativos do Conselho da Economia Nacional<br />
sobre as matérias das letras b e c do art. 61, sujeitos a veto absoluto<br />
implícito do Presidente da República (art. 62);<br />
4) legislação baixada pelo Conselho de Economia Nacional,<br />
autorizada por plebiscito da iniciativa do Chefe de Estado (art. 63);<br />
24 impulso
5) decretos-leis presidenciais até que se reunisse o Parlamento<br />
(art. 180);<br />
6) decretos-leis baixados pelo Presidente da República, por<br />
delegação do Parlamento (art. 12);<br />
7) decretos-leis do Presidente da República para atender às<br />
necessidades do Estado, durante o recesso ou dissolução do Parlamento<br />
(art. 13);<br />
8) decretos-leis expedidos livremente pelo Presidente da<br />
República sobre as matérias especificadas no art. 14;<br />
9) decretos-leis modificativos do Orçamento, por proposta fundamentada<br />
do Departamento Administrativo (art. 69, parágrafo 2º);<br />
10) atos do Presidente da República, determinando a execução<br />
provisória de tratados ou convenções internacionais (que,<br />
materialmente, podem ser de natureza legislativa, nos termos do<br />
art. 74, n);<br />
11) decretos legislativos, ou que outro nome tivessem, para o<br />
referendum do Parlamento aos tratados e à celebração da paz, bem<br />
como para autorização de declaração de guerra ou a passagem de<br />
forças estrangeiras pelo território nacional, pois seria absurdo concluir,<br />
do silêncio da Constituição, que tais atos (art. 74, d, g, h e i)<br />
ficassem sujeitos a sanção presidencial;<br />
12) resoluções de cada ramo do Parlamento, que só podia<br />
funcionar separadamente (art. 40). 6<br />
Notadamente foi a Carta constitucional que maior número de<br />
atos legislativos abrigou, da mesma forma como se demonstram<br />
terem sido desnecessários na medida em que a maioria da legislação<br />
ordinária veio sob a forma de decreto-lei, conforme previa o<br />
art. 180. Registre-se ainda que o número de decretos-leis alcançou<br />
a marca histórica de 9.<strong>90</strong>8 nesse período, incluindo-se entre eles a<br />
maioria dos Códigos vigentes como por exemplo: Código Penal,<br />
Código Penal Militar, Código de Propriedade Industrial, Código<br />
de Processo Penal, C.L.T. (Consolidação das Leis do Trabalho).<br />
Não podemos esquecer o momento político representado<br />
pelo regime de exceção que caracterizou a era Vargas, daí termos<br />
um processo legislativo tão esdrúxulo quanto compreensível.<br />
Em 1946, a Constituição (Liberal para uns e Conservadora<br />
para outros) recupera a doutrina clássica da divisão dos poderes,<br />
consagrando em seu art. 36, parágrafo 2º a indelegabilidade de<br />
atribuições entre os poderes da União.<br />
É em 1956, no Governo de Juscelino Kubitschek, que surge a<br />
idéia de Revisão do Processo Legislativo, de autoria da Comissão<br />
6 SAMPAIO, Nelson de Souza.<br />
O processo legislativo. São Paulo:<br />
Saraiva, 1967.<br />
impulso<br />
25
de Juristas que apresenta anteprojeto de forma cautelosa, a fim de<br />
aconselhar a delegação legislativa a comissões de qualquer das<br />
casas do Congresso; a autorização do Executivo para elaborar projeto<br />
de lei; a fixação de prazo para a apreciação dos projetos de<br />
iniciativa presidencial bem como, qualquer que fosse a iniciativa,<br />
para a revisão do projeto pela Câmara, sob pena de serem considerados<br />
aprovados, entre outras disposições.<br />
É neste período que começamos a antever o fracasso do processo<br />
de democratização que deveria consolidar-se à luz da<br />
Constituição de 1946.<br />
A proposta de Revisão do Processo Legislativo nos mostra a<br />
intenção do fortalecimento do Executivo em detrimento do Poder<br />
Legislativo como expressão máxima da democracia e com atribuição<br />
exclusiva sobre o processo de elaboração das leis.<br />
Com a eleição e renúncia do então Presidente Jânio Quadros<br />
chega-se ao auge de uma crise institucional, ratificada com os<br />
esforços que visavam ao impedimento do Vice-Presidente João<br />
Goulart em assumir a Presidência.<br />
Tal crise teve como desdobramento a Emenda Constitucional<br />
nº 4, de 2 de setembro de 1961, que adotou o parlamentarismo,<br />
consagrou a delegação legislativa e a categoria de lei complementar<br />
(art. 22).<br />
Com este cenário político e com a vigência da Emenda nº 4,<br />
caminhamos a passos largos para o movimento de 1964 (Golpe<br />
militar), que culminara com o Ato Institucional nº 1, de 9 de abril<br />
de 1964 e a instalação do primeiro Governo Militar, tendo como<br />
Presidente H. Castelo Branco.<br />
A Emenda nº 4, de 1964 traz inovações que irão vigorar até<br />
31 de janeiro de 1966, quais sejam: direito de iniciativa do Executivo<br />
para Reforma Constitucional, marcando prazo para sua tramitação<br />
no Congresso; limite de tempo para deliberação dos projetos<br />
presidenciais pelo Legislativo, os quais seriam considerados aprovados<br />
pelo esgotamento do prazo; inclusão dos projetos de criação<br />
ou aumento de despesa na iniciativa do Presidente da República,<br />
proibidas emendas que elevassem as despesas propostas.<br />
Com os ideais liberais somados aos governos da década de<br />
60, calcados em justificativas como a procrastinação legislativa e a<br />
necessidade de modernizar o processo legislativo com vista à<br />
necessidade de obter-se uma celeridade legislativa necessária ao<br />
novo regime político e modelo econômico adotado, parte-se para<br />
uma reforma do processo legislativo através da Constituição de 24<br />
26 impulso
de janeiro de 1967, que fixa o processo legislativo através de seu<br />
art. 49, onde lê-se: O processo legislativo compreende a elaboração<br />
de: I – Emendas à Constituição; II – Leis Complementares da<br />
Constituição; III – Leis Ordinárias; IV – Lei Delegadas; V –<br />
Decretos-Leis; VI – Decretos Legislativos; VII- Resoluções. 7<br />
Desta forma a Constituição do Regime autoritário de 1967<br />
estabelece uma clara ruptura com a ordem constitucional anterior<br />
no momento em que propõe, através de novas orientações, uma<br />
quebra com a doutrina clássica da separação dos poderes pela<br />
indelegabilidade do poder legislativo. Assim sendo, passa o Poder<br />
Executivo a participar efetivamente do processo legislativo e já<br />
não mais se limitando, juridicamente, à iniciativa do veto.<br />
Com o aumento da tensão social e a intensificação dos conflitos<br />
ideológicos inaugura-se, no Brasil, sob o comando do Presidente<br />
A. Costa e Silva, a chamada democracia excludente, especialmente<br />
pela edição do ato institucional nº 5, de 13/12/68, que<br />
reveste o Executivo de verdadeiro poder imperial.<br />
Em 17/10/69, os Ministros Militares, no uso de suas atribuições<br />
conferidas pelo art. 3º, do A. I. nº 10, de 14/10/69, combinado<br />
com o parágrafo 1º, do art. 2º, do A. I. nº 5, de 13/12/68 e considerando<br />
o fechamento do Congresso Nacional através do Ato<br />
Complementar nº 38, de 13/12/68, dão ao Brasil a Emenda Constitucional<br />
nº 1, com 217 artigos que, em seu art. 46, repete a redação<br />
do art. 49 da Constituição de 1967. Porém vale destacar a<br />
ampliação material que o Decreto-Lei recebe através do art. 55, da<br />
Emenda nº 1, que diz:<br />
O Presidente da República, em casos de urgência ou de<br />
interesse público relevante, e desde que não haja<br />
aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis sobre<br />
as seguintes matérias:<br />
I – Segurança nacional;<br />
II – finanças públicas, inclusive normas tributárias; e<br />
III – criação de cargos públicos e fixação de vencimentos. 8<br />
Neste contexto o país atravessa a década de 70; em seu final,<br />
com o General Ernesto Geisel, inicia-se o processo de abertura<br />
política e anistia, processo este que teve sua continuidade garantida<br />
durante o Governo do General João Batista Figueiredo. Neste<br />
momento histórico os reclamos dos diversos segmentos da sociedade<br />
civil não deixaram dúvida de que o momento seguinte, já na<br />
7 Constituição do Brasil, promulgada<br />
em 24 de janeiro de<br />
1967. Em: CAMPANHOLE,<br />
Adriano, CAMPANHOLE, Hilton<br />
Lobo. op. cit., p. 343.<br />
8 Constituição da República<br />
Federativa do Brasil, com redação<br />
dada pela Emenda Constitucional<br />
nº 1/1969. Em: CAMPA-<br />
NHOLE, Adriano, CAMPA-<br />
NHOLE, Hilton Lobo, op. cit.,<br />
p. 224.<br />
impulso<br />
27
década de 80, deveria ser o da efetiva democratização do país,<br />
onde já não havia mais terreno fértil para a Ordem Constitucional<br />
vigente, que ruía junto com o Regime Militar, portanto, o Brasil<br />
passava a viver a chamada Situação Constituinte, 9 conforme intitula<br />
o Senador Severo Gomes, o momento político-social vivido<br />
pelos brasileiros.<br />
Para a sucessão do Presidente João B. Figueiredo o Brasil se<br />
mobiliza para a aprovação da Emenda Dante de Oliveira que previa<br />
eleições diretas para presidente, não sendo aprovada pelo Congresso<br />
Nacional. Desta forma a eleição ocorre através do Colégio<br />
Eleitoral, tendo como resultado, a eleição de Tancredo Neves<br />
como Presidente e José Sarney como Vice – Presidente.<br />
Por uma fatalidade histórica Tancredo Neves é impedido, por<br />
sua morte, de assumir a Presidência da República, que é assumida<br />
por José Sarney para o cumprimento do mandato que, em cumprimento<br />
às promessas eleitorais de Tancredo de instalar uma Assembléia<br />
Nacional Constituinte e consequentemente dar uma nova<br />
Constituição ao Brasil, convoca a Assembléia Nacional Constituinte<br />
através da Emenda nº 26, de 27 de novembro de 1985.<br />
A Constituição de 1988, cognominada de Constituição<br />
Cidadã, por Ulisses Guimarães, na verdade traz em si uma das<br />
maiores e mais graves contradições. Isto é facilmente observado<br />
nos artigo 59 e seguintes que tratam do Processo Legislativo.<br />
A alteração mais significativa é a eliminação do Decreto-Lei,<br />
que naquele contexto significava o maior entulho do regime autoritário<br />
de 1964, porém ao apagar das luzes dos trabalhos constituintes,<br />
são engendradas no texto constitucional as chamadas Medidas<br />
Provisórias (art. 59 e 62 da Constituição Federal de 1988).<br />
Os atos legislativos estão elencados atualmente em nosso<br />
direito positivo no art. 59, onde se lê:<br />
9 GOMES, Sen. Severo. Situação<br />
constituinte. Em: ABRA-<br />
MO, Claudio, ROSSI, Clóvis,<br />
DALLARI, Dalmo de Abreu<br />
(org.). Constituinte e democracia<br />
no Brasil hoje. São Paulo:<br />
Brasiliense, 1985, p. 81-84.<br />
10 Constituição da República<br />
Federativa do Brasil: promulgada<br />
em 5 de outubro de 1988.<br />
Em: CAMPANHOLE, Adriano,<br />
CAMPANHOLE, Hilton<br />
Lobo, op. cit., p. 44.<br />
O processo legislativo compreende a elaboração de:<br />
I – emendas à Constituição;<br />
II – leis complementares;<br />
III – leis ordinárias;<br />
IV – leis delegadas;<br />
V – medidas provisórias;<br />
VI – decretos legislativos;<br />
VII – resoluções. 10<br />
28 impulso
Os atuais atos legislativos elencados no art. 59 estão divididos<br />
em duas categorias: 1º) Atos jurídicos de força constitucional:<br />
emendas à Constituição; 2º) Atos Infraconstitucionais: leis complementares,<br />
leis ordinárias, leis delegadas, decretos legislativos, resoluções<br />
e extraordinariamente medidas provisórias que deverão ser<br />
convertidas em lei pelo Congresso Nacional, num prazo de 30 dias.<br />
O processo legislativo padrão se abre por uma fase introdutória,<br />
a iniciativa (art. 61) passa por uma fase constitutiva, que compreende<br />
a deliberação (arts. 64, parágrafo 1º, 65) e a sanção (art.<br />
66) e uma fase complementar, (art. 66, parágrafo 5º e 7º) e também<br />
a publicação (art. 1º, da Lei 4657/42 – L.I.C.C. e art. 84, IV).<br />
CONCLUSÃO<br />
Consideramos que o processo legislativo, como se mostra na<br />
atual Constituição, extrapola a intenção de modernizar o Estado no<br />
que tange ao processo de elaboração das leis, ferindo, desta forma,<br />
a consolidação do Estado Democrático de Direito, na medida em<br />
que se mostra apenas e tão somente com vocação de estabelecer<br />
um fortalecimento do Executivo e um conseqüente desequilíbrio<br />
entre os Poderes, não desejado e nem tão pouco recomendado pela<br />
doutrina constitucional.<br />
A Constituição, como lei fundamental da nação (escrita ou<br />
costumeira), deve considerar que, anteriormente, a sociedade já se<br />
mostrava constituída naturalmente com um ordenamento prévio a<br />
que, todos os indivíduos se submetem e reconhecem, de forma<br />
legítima, e de modo mais involuntário que voluntário.<br />
O objetivo da Constituição é substituir o governo dos reis<br />
pelo governo das leis, observando que o legislador não elabora ou<br />
cria, mas revela a lei natural de forma racional.<br />
Assim, concluímos que o processo legislativo, por suas peculiaridades,<br />
deve garantir em todo o seu procedimento, um mínimo<br />
de legitimidade eliminando, ao máximo, as distorções existentes<br />
como, por exemplo, o exercício da função legislativa pelo Executivo<br />
que, quando permitido através do art. 62, transforma a<br />
Constituição do país, que deve ser um instrumento estável e garantidor<br />
dos direitos e limitador do poder, em um documento frágil e<br />
praticamente comparado a um programa de governo, que pode ser<br />
alterado a cada mandato presidencial e a qualquer tempo, gerando,<br />
dessa forma, instabilidade e insegurança aos seus destinatários.<br />
impulso<br />
29
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS<br />
ABRAMO, Claudio, ROSSI, Clóvis, DALLARI, Dalmo de Abreu<br />
(org.). Constituinte e democracia no Brasil hoje. São Paulo:<br />
Brasiliense, 1985.<br />
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 16ª ed.<br />
ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 1994.<br />
CAMPANHOLE, Adriano, CAMPANHOLE, Hilton Lobo.<br />
Constituições do Brasil. Compilação e atualização dos textos,<br />
notas, revisão e índices. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 1994.<br />
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL:<br />
promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização dos textos,<br />
notas remissivas e índices por Juarez de Oliveira. 11ª ed. atual. e<br />
ampl. São Paulo: Saraiva, 1995. (Coleção Saraiva de legislação)<br />
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à<br />
Constituição brasileira de 1988. v. 2, São Paulo: Saraiva,<br />
1992.<br />
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional.<br />
18ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 19<strong>90</strong>.<br />
MONTESQUIEU, Charles de, SECONDAT, Baron de. (1689-<br />
1755). O espírito das leis. Introdução, tradução e notas de<br />
Pedro Vieira Mota. 3ª ed. aum. São Paulo: Saraiva, 1994.<br />
SAMPAIO, Nelson de Souza. O Processo Legislativo. São Paulo:<br />
Saraiva, 1967.<br />
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.<br />
9ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1992.<br />
30 impulso
FILOSOFIA DO <strong>DIREITO</strong><br />
EM HABERMAS<br />
JOÃO BOSCO DA ENCARNAÇÃO<br />
O presente estudo tem por escopo entender o conceito de<br />
Direito em Jürgen Habermas contribuindo para a identificação da<br />
crise do Direito.<br />
Partindo da “curiosidade” científica acerca do que poderia ser<br />
o Direito na época “pós-moderna”, examinamos a visão desse filósofo<br />
contemporâneo, para ver nela, quem sabe, uma identidade.<br />
Sua trajetória parte de uma orientação inicialmente situada<br />
na chamada “teoria crítica” da Escola de Frankfurt, mas logo<br />
envereda por caminhos próprios, que são, na verdade, um feixe<br />
eclético de doutrinas de várias linhas. Trazem consigo, no entanto,<br />
algo em comum: certo positivismo.<br />
Não é de admirar que Habermas, que começa com a crítica<br />
ao positivismo, venha a desembocar num rigor tão grande contra<br />
esse mesmo positivismo, que acaba dogmatizando seus princípios,<br />
para depurá-los de quaisquer influências ou interesses que possam<br />
“perturbar” a comunicação, cujo modelo ideal vem perseguindo.<br />
Em Conhecimento e interesse, Habermas ainda dizia que o<br />
positivismo é a negação da reflexão, 1 entendendo que a “neutralidade<br />
axiológica”, que o caracteriza, devia ser criticada, inclusive<br />
no pensamento de Max Weber, cujo “neokantismo” 2 constitui<br />
uma forma de positivismo, particularmente cínica da consciência<br />
burguesa”. 3<br />
Depois, no entanto, entendeu que o positivismo jurídico seria<br />
útil como instrumento de “integração social”, 4 inobstante o formalismo<br />
burocrático de Weber tenha provocado um empobrecimento<br />
1 Erkenntnis und Interesse, p. 3.<br />
2 Zur Logik der Sozialwissenschaften,<br />
p. 96.<br />
3 Zur Reconstruktion des Historischen<br />
Materialismus, p. 12.<br />
4 Zur Reconstruktion des Historischen<br />
Materialismus, p. 42<br />
e 144.<br />
impulso<br />
31
5 RH, p. 369 a 376.<br />
6 Der Philosophische Diskurs<br />
der Moderne, p. 331.<br />
7 Der Philosophische Diskurs<br />
der Moderne, p. 272.<br />
8 Zur Logik der Sozialwissenschaften,<br />
p. 96.<br />
9 Strukturwandel der Öffentlichkeit,<br />
p. 109.<br />
10 Strukturwandel der Öffentlichkeit,<br />
212.<br />
11 Cf. SANTOS, Juarez Cirino<br />
dos. Direito Penal: a nova parte<br />
geral. Rio de Janeiro: Forense,<br />
1985.<br />
do direito como instrumento organizativo, 5 criticando ainda a<br />
expansão da burocracia jurídica, 6 pois, como alertou Foucault, a<br />
expansão do direito acaba sendo um risco para os seus supostos<br />
beneficiários. 7 Isso, no entanto, não o impediu de ser reconhecido<br />
como um “positivista”, aliás, de um “positivismo vulgar”, como<br />
ele próprio refere 8 e acaba assumindo a adoção do “dogmatismo”<br />
na sua última obra, como instrumento de preservação da vontade<br />
pública.<br />
É essa mesma vontade pública que, no início, ao atribuí-la à<br />
“esfera pública burguesa”, julgava ser “dominadora”, 9 pois o<br />
público não participa da formação da vontade, mas apenas aclama<br />
o resultado do processo político. 10<br />
Habermas negou a “pretensão de universalidade da Hermenêutica”,<br />
mas cai no equívoco de universalizar a comunicação<br />
lingüística, como se tudo se resumisse no problema da linguagem.<br />
E mais que isso, fica na utopia da “situação ideal de fala”, que<br />
jamais ocorrerá.<br />
Isso é coerente com o “funcionalismo”, o “estruturalismo” e<br />
o “sistemismo”, próprios do positivismo sociológico-jurídico ou<br />
sociologismo jurídico, que, reagindo ao dogmatismo, numa “volta<br />
aos fatos”, apresenta, nas palavras de Juarez Cirino dos Santos, 11<br />
a visão de uma falsa unidade social (negando a existência das classes<br />
e a luta das classes) para propor, em síntese, mais integração e<br />
maior comunicação como formas de solução de conflitos sociais<br />
ou de superação da anomia.<br />
Enquanto isso, vamos nos arranjando como podemos! Marx<br />
não gostava dos “socialistas utópicos”, querendo logo partir para<br />
uma práxis dentro do que havia de real. Habermas, no entanto,<br />
pretende cumprir o testamento de Marx com uma figura ideal que,<br />
se ocorrer, tornará desnecessária a sua própria teoria. Habermas<br />
busca em Marx o Marx sociólogo, em detrimento do Marx economista,<br />
certamente em razão da sua procedência da sociologia. De<br />
outro lado, pode-se observar também, que sua teoria supõe uma<br />
sociedade organizada de maneira tal que dificilmente encontraria<br />
um Lebenswelt maduro para sua aplicação.<br />
A discussão com Luhmann, que não nos interessou em primeiro<br />
plano, pode acabar inócua, uma vez que o “purismo” da<br />
Teoria do Agir Comunicativo acaba minando-a justamente por não<br />
querer tomar partido, por temer o papel de ideologia. Se não o<br />
assume, entretanto, acaba sendo ideologia assim mesmo. A<br />
“Razão Comunicativa” é um canal vazio, onde se pode colocar<br />
32 impulso
qualquer líquido. Mais que isso, porém, uma forma vazia e elástica,<br />
que se amolda procedimentalmente conforme o seu conteúdo.<br />
E isso, paradoxalmente, é devido à sua rigidez dogmática, bastante<br />
visível. Embora a partir de princípios alocados topicamente, e<br />
visando um fim, não se impede que passe a ser, daí por diante,<br />
uma “ética de princípios”, mormente quando esse fim pragmaticamente<br />
colocado, é apenas e puramente o da comunicação ideal,<br />
quando interesse e razão coicidem, quando o interesse que guia o<br />
conhecimento é o interesse na emancipação.<br />
Como distinguiu O. Höffe, Habermas trabalha com algo abstrato,<br />
uma analogia, que é a linguagem, enquanto há toda uma realidade<br />
a sua volta. 12<br />
Se a sua filosofia, pretensamente “pós-moderna”, por “desfundamentalizar”<br />
a razão, junta Marx com Kant, através das diversas<br />
linhas filosóficas, do Pragmatismo, que entende uma filosofia<br />
prática, ao Estruturalismo Genético, que entende um modelo de<br />
diagnóstico crítico que pode ser transplantado para a crítica da<br />
sociedade, de modo “reconstrutivo”, não consegue escapar por<br />
isso dos modernos que pretende aperfeiçoar. É certo que o Estruturalismo<br />
pode se coadunar com o pensamento oriundo do Marxismo.<br />
Marx mesmo utilizou esse termo “estrutura” para se referir<br />
às ideologias sociais de modo geral. E não é contraditório também<br />
que Habermas junte Kant com Darwin, ainda nos moldes do velho<br />
positivismo comteano, pois o “Estruturalismo” tem a ver com a<br />
Biologia de Spencer, ao que Habermas junta o Pragmatismo, que<br />
se alia à Fenomenologia, segundo os princípios kantianos. 13<br />
Em suma, Kant com Marx, ou um Kant marxista e um Marx<br />
kantianizado, ambos “desfundamentalizados”, resulta num Habermas.<br />
Mas vai perdendo Marx de vista. Na área particular da filosofia<br />
do direito, Habermas é um Savigny com Kelsen.<br />
A diferença da sua teoria para o Direito Natural Moderno é<br />
que este se fundava na lei como “declaração” de direitos (direitos<br />
naturais) e para ele a lei também é uma declaração, mas não passa<br />
de uma declaração de vontades estabelecidas pelo consenso.<br />
O relativismo de Habermas, que ele tenta consertar com uma<br />
dose excessiva de dogmatismo, é mais grave do que o da Teoria do<br />
Conhecimento. Kant ainda conciliava “Razão Pura” e ”Razão Prática”,<br />
deixando um lugar para o que a razão não era capaz: a religião.<br />
Talvez o seu fundamentalismo permitisse isso. No caso de<br />
Habermas, entrentanto, o sonho de criar algo sutil como a Razão<br />
Comunicativa, que paira num abstrato sem ligação alguma com<br />
12 HÖFFE, Otfried, p. 14.<br />
13 Cf. História do pensamento.<br />
São Paulo: Nova Cultural, v. IV,<br />
p. 705; e também BONOMI,<br />
Andrea. Fenomenologia e estruturalismo.<br />
São Paulo: Perspectiva,<br />
1974.<br />
impulso<br />
33
14 Cf. ND, p. 9.<br />
15 Nachmetaphysisches Denken,<br />
p. 25.<br />
16 Nachmetaphysisches Denken,<br />
p. 62; cf. p. 186.<br />
17 Nachmetaphysisches Denken,<br />
p. 186.<br />
qualquer tipo de fundamentação (diga-se aliás, fundação, o que<br />
subentende tradição), acabou ironizado por ele mesmo. Após analisar<br />
a recente tentativa de volta à metafísica, 14 diz que para o europeu<br />
o termo “metafísica” lembra religião, ou seja, a história da<br />
salvação judaico-cristã. 15 Inobstante, incluiu entre os “metafísicos”<br />
Kant, Fichte e Hegel, de cujos pensamentos não consegue escapar.<br />
Por fim, confessa que um cotidiano totalmente profanizado não é<br />
possível: a religião é insubstituível e o pensamento pós-metafísico<br />
coexiste com uma práxis religiosa, pois a filosofia, em sua forma<br />
pós-metafísica, não pode substituí-la e nem eliminá-la. 16 A pretensa<br />
indiferença positivista para com a metafísica só mostra o<br />
receio do confronto. Ainda aqui acaba seguindo uma tradição:<br />
aquela que separa fé e razão.<br />
Trata-se, com efeito, de uma “esperança desesperada” de<br />
quem está por um fio. O próprio Habermas responde às críticas: A<br />
Razão Comunicativa é certamente uma tábua insegura e vacilante,<br />
mas não se afunda no mar das contingências, ainda quando tal<br />
estremecimento em alto mar seja o único modo como pode “dominar”<br />
as contingências. 17 Ou seja, sobrevive do não confronto, do<br />
conformar-se de uma tábua que não enfrenta, mas que se mantém<br />
sempre ao sabor das ondas. Um caniço que não racha porque se<br />
curva na direção do vento. Parece que não se trata de uma dialética,<br />
mas de uma aceitação. A luta contra a tradição, tão propugnada<br />
pelo Iluminismo, se mantém com as mesmas armas do<br />
adversário.<br />
Habermas quer ser crítico, mas se insere como nenhum<br />
outro, no seio de uma tradição.<br />
Seu conceito de Direito segue essa filosofia. O Direito como<br />
instrumento, compondo normas de segundo grau, sugere questões<br />
interessantes. A denúncia de uma tendência à burocratização e à<br />
expansão do Direito como meio de controle estatal, por exemplo,<br />
faz sentido. Contra isso é o princípio do “Direito Mínimo” que, é<br />
um princípio do Liberalismo, seguindo a idéia de que o Estado é<br />
um mal necessário e, pois quanto menos melhor. Revela-se, portanto,<br />
e ainda, um liberal, e, por mais que procure inaugurar um<br />
“pós-modernismo”, não se desprende das raízes modernas.<br />
Revela-se, no entanto, um arauto do governo das leis, as mesmas<br />
que sugeriu não estarem cumprindo a função de garantir a liberdade,<br />
mas pesando como definidora de deveres. Ao mesmo tempo<br />
sustenta que só o dogmatismo pode garantir a liberdade!<br />
34 impulso
Se olharmos por dentro de um “tridimensionalismo” fragmentado,<br />
que considera “fato”, “valor” e “norma” isoladamente,<br />
sendo “fato” relacionado com o sociologismo jurídico, “valor”<br />
com um certo direito natural ou a preocupação pelo justo, e<br />
“norma” como dogmatismo do positivismo jurídico, a crítica de<br />
Habermas se situa claramente contra “valor” e “norma”, privilegiando<br />
a ocorrência sociológica (fato), o que não impedirá de cair<br />
também num dogmatismo de ordem sociológica. É por isso que<br />
dizíamos anteriormente que o verdadeiro embate se dá contra a<br />
Ontologia, de modo especial contra a Hermenêutica Filosófica e<br />
contra as perspectivas de um certo Direito Natural. 18<br />
Na sua última obra, “Faktizität und Geltung...”, absorve-se<br />
no estudo mais direto da filosofia do direito e ali demonstra que<br />
“fato” e “norma”, ou seja, “eficácia” e “vigência”, são os dois elementos<br />
consideráveis do Direito. Entretanto, quando se fala de<br />
norma, supõe-se valorações de condutas e, pois, uma ideologia.<br />
Se concordarmos com o diagnóstico de Habermas, não aceitamos<br />
a colocação do Direito em si como instrumento meramente<br />
comunicativo, produto ainda da mera comunicação, na forma de<br />
um culturalismo ou, como o quer Habermas, de uma “razão comunicacional<br />
pura”.<br />
Em primeiro lugar, devemos nos perguntar se a vontade geral<br />
é possível. Aristóteles 19 já havia alertado para a possibilidade da<br />
“democracia”, ou seja, para um governo pela vontade popular, pois<br />
esta é vulnerável à “demagogia”, à ação dos condutores do povo,<br />
que são exatamente os líderes políticos que deverão representar o<br />
povo e discutir sua vontade no parlamento, como asseveram clássicos<br />
como Rousseau ou mesmo Savigny. Isso é válido para sociedades<br />
mal organizadas ou para sociedades altamente organizadas,<br />
embora nos meios menos estruturados, como são países como o<br />
Brasil, fique mais fácil entender a insuficiência dessa teoria.<br />
O próprio Habermas, no início, ao apontar para a circunstância<br />
de que a vontade popular, fruto do consenso, é na verdade provocada<br />
pela propaganda, que domestica, 20 responde negativamente<br />
a essa questão. Mas posteriormente, acabou entendendo que<br />
“compreender” é “concordar”, 21 acreditando numa “ética do discurso”,<br />
que implica não em valores, mas apenas numa validez<br />
deôntica. 22 É a conexão essencial entre “eficácia” e “vigência”,<br />
tema de sua última obra, “Faktizität und Geltung...”<br />
Por outro lado, subtraindo-se a verdade à Ontologia, deixando-a<br />
ao sabor da vontade popular, se é que essa vontade sem<br />
18 Há muitos conceitos de Direito<br />
Natural. Sobre Direito Natural,<br />
o pensamento de Heidegger<br />
e a Hermenêutica, cf. a obra do<br />
prof. Aloysio Ferraz Pereira, segundo<br />
o qual nos orientamos e<br />
que está relacionada na Bibliografia.<br />
19 Política, Capítulo IV.<br />
20 Strukturwandel der Öffentlichkeit,<br />
p. 229.<br />
21 Vorstudien und Ergänzungen<br />
Zur Theorie des Komunicativen<br />
Handelns, p. 704 a 707.<br />
22 MH, p. 126.<br />
impulso<br />
35
23 FG, 11.<br />
24 Ética a Nicômaco, Livro V.<br />
25 MAXIMILIANO, Carlos.<br />
“Hermenêntica e aplicação do<br />
direito.”,op. cit., p. 33.<br />
26 Cf. GILISSEN, John. Introdução<br />
histórica ao Direito.<br />
Trad. A.M. Hespanha e L.M.<br />
Macaísta Malheiros. Lisboa:<br />
Fundação C. Gulbenkian, 1988.<br />
No âmbito específico do Direito<br />
Penal e da aplicação da pena,<br />
cf. o clássico estudo de SALEI-<br />
LLES, R. L'individualisation<br />
de la peine. 2ª ed. Paris: Felix<br />
Alcan, 1<strong>90</strong>9.<br />
condução é possível, caímos num relativismo e não temos parâmetros.<br />
O período do Nazismo, por exemplo, que Habermas cita<br />
como um período de “distorção” do Direito, demonstra a ele<br />
mesmo que o Direito como mera expressão da vontade, pelo<br />
Estado, corre esse tipo de risco. Uma comoção popular, um povo<br />
comovido, um povo conduzido, uma vontade entusiasmada... Um<br />
grande perigo.<br />
Finalmente, em relação às conseqüências hermenêuticas da<br />
teoria habermasiana, basta dizer que ele mesmo confessou-se<br />
inapto para a discussão de caráter jurídico. 23<br />
Realmente, falta-lhe a experiência do aplicador do Direito. A<br />
lei, por ser genérica, contém, na sua própria essência, a lacuna da<br />
generalidade. O momento e a ocasião da feitura da norma são<br />
necessariamente diversos do momento e ocasião da sua aplicação,<br />
seja pelo dinamismo da vida social, seja pela individualidade de<br />
cada um.<br />
Aristóteles 24 já ensinava que a eqüidade é necessária para corrigir<br />
o erro da lei, feita não pela inspiração do justo, mas do conveniente.<br />
Sua generalidade compõe seu erro e na prática da sua aplicação,<br />
quando esta se realiza, faz-se mister torná-la equitativa, justa.<br />
Habermas acredita que a interpretação hermenêutica só é<br />
necessária diante do “entendimento perturbado”, encarando a hermenêutica<br />
como mero “procedimento” que não pode interferir<br />
materialmente para não comprometer a vontade popular já formalizada<br />
na norma. É por isso que assevera que a “ética do discurso”<br />
não abstrai conteúdos, ou seja, assegura-se conteúdos (eficácia)<br />
pela validez (vigência) da norma.<br />
Entretanto, a não interpretação, como ponderou Carlos Maximiliano,<br />
25 é impossível. A intransigência do “Code de Napoleón”<br />
não durou muito e logo se teve que facilitar a individualização da<br />
aplicação da lei, inclusive da lei penal, com sua então rígica legalidade.<br />
26<br />
A proibição de interpretar só faz mascarar a ideologia do<br />
aplicador e a “corrupção” da ordem legal. Afinal a lei tem uma<br />
razão primeira, um fim último, e para seu cumprimento é que deve<br />
ser adaptada a cada instante da sua “realização”. A lei é instrumento<br />
e não fim em si mesmo: visa prevalecer a harmonia do<br />
justo, da conduta segundo a verdade. O Direito em si é que não<br />
pode ser instrumento, pois deve ser o arcabouço da verdade em si<br />
mesma, privilegiando a sua realização prática como justo.<br />
36 impulso
Se a questão é “verdade” ou “método”, Habermas opta pelo<br />
método, querendo um paradigma procedimental para o Direito, o<br />
que não é novo na História do pensamento.<br />
A semelhança de Habermas com Tobias Barreto não fica só<br />
no fato de ambos acharem difícil a prática do pensar num país<br />
como o Brasil.<br />
Para Tobias Barreto, que seguia o pensamento alemão do seu<br />
tempo bem de perto e, portanto, a mesma tradição de Habermas, o<br />
Direito não é revelado e nem descoberto (abandona os conceitos<br />
de Direito Natural Clássico e Moderno), mas é produzido pelo<br />
grupamento humano e suas condições concretas de estruturação e<br />
reprodução. 27 Tobias era um positivista de primeira geração.<br />
Evidentemente, para um pensamento oriundo da Sociologia,<br />
interessa (e aqui entra o interesse que guia o conhecimento) o estabelecimento<br />
de uma prática social. Esse cotidiano social, a realidade<br />
em que o Direito se encontra, não pode ser ignorada. O crescimento<br />
do Direito positivo como forma de controle da vida social<br />
evidentemente também é um “uso” do Direito. Mas isso diagnosticado,<br />
não permite um empirismo tal, ainda que revestido de uma<br />
“Razão Comunicacional”, que faça das combinações tópicas um<br />
determinante para o conceito de justiça.<br />
Há que entender isso, sob pena de não termos um parâmetro<br />
de verdade e justiça e acabarmos fomentando uma ideologia!<br />
Nesse ponto ao menos concordamos com Ricoeur: Uma busca da<br />
verdade, sem crítica da própria busca, torna-se uma ideologia, assim<br />
como é ideologia uma crítica tal que não permita a busca. E acrescentamos:<br />
a crítica diagnostica, mas não cura. Para a solução do<br />
problema diagnosticado, o método não basta. É preciso corrigir a<br />
cada instante a generalidade do comando legal, ainda que obediente<br />
a um procedimento constitucional, convertendo-o topicamente<br />
naquilo para o que foi predestinado: instrumento de aplicação da<br />
justiça. Ao contrário do que pretende Habermas, como solução, a<br />
lei é meio e o Direito é fim, pois o Justo independe da vontade e é<br />
a aplicação de um princípio teórico de Verdade, a Igualdade. Eqüidade,<br />
mais que a mera busca da solução quando não há lei, é a<br />
manutenção ou resgate da Igualdade, no cumprimento da finalidade<br />
da lei como instrumento, que é a realização do Direito. Para<br />
isso, não há método eficaz, pois como sabiamente ponderou Gadamer,<br />
o homem experiente sabe da fragilidade de todos os planos e<br />
é, assim, um decepcionado, na medida em que não pode determi-<br />
27 Introdução ao Estudo do Direito.<br />
Estudos de Direito. Rio de<br />
Janeiro: Laemmert, 1892, p. 36;<br />
cf. BATISTA, Nilo. Introdução<br />
crítica ao Direito Penal brasileiro.<br />
Rio de Janeiro: Revan,<br />
19<strong>90</strong>, p. 18.<br />
impulso<br />
37
nar a realidade conforme a sua vontade num arremedo de ontologia<br />
que é o dogmatismo. Ao contrário, a verdade vem por si só.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro.<br />
Rio de Janeiro: Revan, 19<strong>90</strong>.<br />
BONOMI, Andrea. Fenomenologia e estruturalismo. São Paulo:<br />
Perspectiva, 1974.<br />
GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Trad. A.M.<br />
Hespanha e L.M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação C.<br />
Gulbenkian, 1988.<br />
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito.<br />
10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988.<br />
PEREIRA, Aloysio Ferraz. Estado e direito na perspectiva da libertação.<br />
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.<br />
PEREIRA, Aloysio Ferraz. O direito como ciência. São Paulo:<br />
Revista dos Tribunais, 1980.<br />
PEREIRA, Aloysio Ferraz. História da filosofia do direito. São<br />
Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.<br />
SALEILLES, R. L'individualisation de la peine. 2ª ed. Paris: Felix<br />
Alcan, 1<strong>90</strong>9.<br />
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: a nova parte geral.<br />
Rio de Janeiro: Forense, 1985.<br />
38 impulso
A TEORIA DA JUSTIÇA<br />
DE JOHN RAWLS E<br />
ALGUMAS DIFICULDADES:<br />
UMA LEITURA<br />
JORGE ATÍLIO SILVA IULIANELLI<br />
A abordagem que Rawls faz da justiça é apresentada não<br />
como uma teoria moral, mas como uma teoria da justiça stricto<br />
sensu. 1 Ele, portanto, pretende discutir quais princípios devem<br />
orientar a ação justa dos indivíduos e da sociedade, mas não pretende<br />
abordar o conjunto de normas que deve reger a vida dos<br />
indivíduos. Por outro lado, como seria impossível travar tal discussão<br />
sem reconhecer-se comprometido com a lguma teoria moral,<br />
ele assume estar falando desde uma perspectiva que chama de kantiana.<br />
2 Assim, sua postura moral é deontológica e não teleológica:<br />
a conduta seria orientada por valores subjetivamente assumidos,<br />
autonomamente, e não em vista a alcançar algum bem. Assim, uma<br />
das teorias da justiça que assume como concorrente é o utilitarismo,<br />
na medida em que esse possui o princípio da benevolência 3<br />
(alcançar o maior bem possível com a ação moral).<br />
A teoria da justiça construída por Rawls possui alguns conceitos<br />
básicos, quais sejam, posição original, véu da ignorância,<br />
equilíbrio reflexivo ou ponderação racional, sujeito racional, princípio<br />
da igualdade democrática e da diferença, justiça processual ou<br />
procedural. Esses conceitos querem expressar primeiramente, que<br />
o sujeito da justiça é a estrutura básica da sociedade e, por conseguinte,<br />
a justiça é estabelecida contratualmente. A estrutura básica<br />
1 RAWLS, John. Uma teoria da<br />
justiça. Trad. Vamireh Chacon.<br />
Brasília: UNB, 1981, p. 37.<br />
2 RAWLS, John, loc. cit., p. 22.<br />
Falando de seus propósitos com<br />
Uma teoria da justiça, afirma:<br />
“A teoria resultante é muito<br />
próxima da de Kant”.<br />
3 FRANKENA, W. Ética. São<br />
Paulo: Zahar, 1981, p. 59.<br />
impulso<br />
39
4 RAWLS, John, op. cit., p. 27.<br />
5 RAWLS, John, op. cit.,<br />
p. 57ss. (par. 9)<br />
6 TUGENDHAT, E. Problemas<br />
de la ética. México, 1983,<br />
p. 15-38.<br />
7 Estou pensando efetivamente<br />
em duas possibilidades de sentido<br />
para comunidade ética.<br />
Uma é tomista, como expressa,<br />
por exemplo, Marcelo Perine<br />
(PERINE, M. Precisamos de<br />
uma nova moral? Impulso, Piracicaba,<br />
v. 14, n. 7, p. 92,<br />
1994.): “A tradição tomista<br />
cristã permite, por exemplo,<br />
uma compreensão da sociedade<br />
humana como comunidade ética.<br />
Por comunidade ética entende-se<br />
aqui um 'modo de vida<br />
em sociedade no qual as relações<br />
intersubjetivas são regradas<br />
por leis concebidas como<br />
leis públicas'”. A outra concepção<br />
nos é oferecida por Habermas<br />
ao compreender a comunidade<br />
lingüística como comunidade<br />
regulativa (HABERMAS,<br />
J. Justification and application.<br />
Cambridge: MIT Press, 1993,<br />
p. 40.), conforme ao falar de<br />
proibições, obrigações e sentimentos<br />
morais, afirma: “Eles<br />
todos pertencem a uma comunidade<br />
na qual relações interpessoais<br />
e ações são reguladas<br />
por normas de interação e podem<br />
ser julgadas à luz dessas<br />
normas como justificáveis ou<br />
injustificáveis”.<br />
é composta pelo conjunto dos indivíduos de uma dada sociedade.<br />
Isso implica numa atitude procedural da justiça. Assim, a justiça<br />
possibilita a ação justa e não, necessariamente, a boa ação. Embora<br />
entre o bem e a justiça exista uma relação de proximidade e semelhança,<br />
eles não se confundem, nem a justiça esgota a moralidade<br />
da ação.<br />
A visão contratualista da teoria da justiça Rawls remonta a<br />
Locke, Rousseau e Kant. Sua intenção é, a partir dessas teorias,<br />
apresentar uma da justiça capaz de, em disputa com o utilitarismo<br />
e o intuicionismo, estabelecer uma concepção de justiça orientada<br />
por princípios e orientadora da ação que possa ultrapassar os limites<br />
da ação dirigida para a consecução do maior bem possível,<br />
apenas, ou guiada pelo sentimento ou emoção. “A linha mestra é a<br />
produção de uma teoria de justiça que seja uma alternativa viável<br />
a estas doutrinas, que têm dominado por muito tempo nossas tradições<br />
filosóficas”. 4<br />
A proposta de nossa reflexão é identificar os principais passos<br />
na construção da teoria da justiça de Rawls, identificando suas<br />
contribuições, especialmente no que tange à discussão do equilíbrio<br />
reflexivo. 5 Em seguida, discutirei as críticas metodológicas<br />
apresentadas por Tugendhat. 6 Finalmente, procurarei expor brevemente<br />
algumas considerações sobre o seguinte problema: é possível<br />
considerar a estrutura básica da sociedade como uma comunidade<br />
ética? 7 Em outros termos, a apresentação de uma posição original,<br />
que seria um acordo entre os membros de uma dada sociedade<br />
constitui uma comunidade ética?<br />
A TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS:<br />
O EQUILÍBRIO REFLEXIVO<br />
O equilíbrio reflexivo, como metodologia, oferece um grave<br />
problema quanto a sua exeqüibilidade. Rawls propõe-se discutir<br />
infindavelmente sua concepção de justiça (interessam apenas as<br />
dele e as do leitor), de modo a dirimir as dúvidas. Trata-se de um<br />
conjunto de ponderações: parte-se das afirmações do senso comum<br />
sobre justiça, investiga-se sua plausibilidade e procede-se de forma<br />
a questionar-lhes as pretensões ou antepondo dúvidas possíveis.<br />
Verificado erro nas concepções, procede-se à verificação de sua<br />
extensão. Nesse sentido, o recurso a outras teorias concorrentes é<br />
tão legítimo como o recurso a exemplos de fatos de justiça tomados<br />
do cotidiano, que, no entanto, são preferíveis àquelas.<br />
40 impulso
Por outro lado, dado o caráter primitivo das abordagens sobre<br />
a teoria da justiça, o recurso à teoria do contrato fica legitimado. 8<br />
Uma das mais interessantes afirmações sobre a noção de equilíbrio<br />
reflexivo refere-se ao papel temporário ou transitório das definições,<br />
elas não estão num primeiro plano, mas sim à possibilidade<br />
do questionamento enquanto permanecer alguma dúvida<br />
possível:<br />
do ponto de vista da filosofia moral, o melhor apanhado<br />
do sentido de justiça de uma pessoa, não é o que<br />
se adaptava anteriormente a seus julgamentos no exame<br />
de qualquer conceito de justiça, mas será o que confronta<br />
seus julgamentos em equilíbrio reflexivo. 9<br />
A primeira idéia realmente importante na concepção de<br />
Rawls é que justiça possui um papel fundamental na regulamentação<br />
das instituições e da vida das sociedades, isso porque “justiça<br />
é a primeira virtude para as instituições sociais como a verdade<br />
para o pensamento” (§ 1). Assim sendo, é necessário considerar<br />
como a justiça pode ordenar as instituições ou a ordem na sociedade,<br />
assim como a verdade pode ser orientadora do pensamento.<br />
Ou seja, é necessário verificar a afirmação da prioridade da virtude<br />
da justiça. Há três ordens de problemas para o estabelecimento da<br />
justiça como capaz de desempenhar o papel de instituir a boa<br />
ordem na sociedade: é necessário que haja algum entendimento<br />
sobre o que é justiça; em segundo lugar, é necessário que exista<br />
uma compreensão desse conceito que seja eficaz, i.e., capaz de<br />
estabelecer a boa ordem; finalmente, é necessário que a justiça<br />
estabeleça efeitos desejáveis, que seja estabilizadora das relações.<br />
Rawls afirma que essas suas idéias, expostas no primeiro<br />
parágrafo da primeira parte, guardam o básico de sua teoria da justiça.<br />
Isso significa ao menos três coisas: justiça é um acordo da<br />
estrutura básica da sociedade; tal acordo, necessariamente conduz à<br />
boa ordem, à estabilidade-equilíbrio; o sujeito da justiça é a estrutura<br />
básica da sociedade – as instituições sociais. Assim a principal<br />
idéia de justiça (§ 3) é a do estabelecimento de um contrato social<br />
que, acima de ser um acordo capaz de erigir a sociedade ou seu<br />
governo, deve ser compreendido como o acordo original, numa<br />
posição original de igualdade entre todas as partes, reunidas pelos<br />
mesmos interesses, elegendo princípios orientadores (reguladores)<br />
8 Este recurso à teoria do contrato<br />
é tão legítimo como o seria<br />
qualquer outro, apesar das imprecações<br />
de Rawls contra o intuicionismo<br />
e o perfeccionismo.<br />
No entanto, isso não afeta o fundamental<br />
da noção de equilíbrio<br />
reflexivo, muito embora não<br />
apresente nenhum argumento<br />
em favor de sua exeqüibilidade,<br />
a não ser no sentido de tratar-se<br />
de uma tentativa filosófica infindável.<br />
9 RAWLS, John, op. cit., p. 59.<br />
impulso<br />
41
10 RAWLS, John, op. cit., p.<br />
119.<br />
de entendimentos e cooperações sociais. “A esta maneira de ver os<br />
princípios de justiça chamaremos de eqüidade” (p. 33).<br />
O mais complicado desse acordo na posição original é que<br />
ele é celebrado entre seres racionais. Nesse ponto, Rawls está<br />
assumindo uma das complexas opções da ética kantiana, qual<br />
seja, a proposição de que a razão é o móvel da lei moral, e,<br />
portanto, a obrigação moral, a responsabilidade moral, que é a<br />
outra face da obrigação, são frutos de uma decisão racional, um<br />
juízo racional construído autonomamente pelo sujeito da ação.<br />
Assim, a moralidade do ato não se encontra na relação exclusiva<br />
com o bem, mas, principalmente, na consciência moral do agente<br />
(Cf. CrPr I, I). A máxima se erige em lei universal porque é uma<br />
decisão racional, aplicável, pois, a todos os seres de razão.<br />
Frankena, por exemplo, apresenta como dificuldade a isso o fato<br />
de nem toda máxima, racional, desejável, poder ser erigida como<br />
lei universal. (Ver FRANKENA, W. op. cit. p. 48) Mas as questões<br />
emergentes dessa opção kantiana são ainda maiores quando<br />
consideramos o problema da racionalidade: por que considerar<br />
que os homens, como agentes morais, identificam-se como seres<br />
de razão? Qual a legitimidade da afirmação da moralidade ser<br />
regida por uma razão, ainda que prática? Não obstante concordar<br />
com as afirmações questionadas, é necessário advertir que aí se<br />
trata de uma opção complexa.<br />
Esse conceito de racionalidade não está explicado, mas<br />
Rawls fala em “juízos racionais”, que elegem uma compreensão<br />
de bem; fala, também, em “metas racionais” no sentido de objetivos.<br />
Isso, a racionalidade do acordo e a igualdade dos contraentes,<br />
estabelece a justiça como eqüidade.<br />
A posição original é fundamental para o estabelecimento da<br />
justiça. Ela corresponde ao estado de natureza no contrato social.<br />
Nela os contratantes encontram-se todos numa situação de ignorância<br />
sobre a própria situação social (status), posição de classe ou<br />
quanto cabe a cada um na distribuição de bens ou capacidades naturais,<br />
como inteligência, força e outras. Eles também desconhecem<br />
conceitos de bem ou propensões psicológicas específicas. Para que<br />
a justiça como eqüidade possa ser estabelecida, é necessário supor<br />
um acordo fundamentado nessa mútua ignorância, nessa condição<br />
de igualdade, na qual ninguém leva vantagem ou é prejudicado. A<br />
esse “desconhecimento” Rawls chama “véu da ignorância”. 10<br />
Mas, esse “véu da ignorância”, que promove a igualdade<br />
fundamental da posição original, supõe alguns conhecimentos:<br />
42 impulso
“sua sociedade está sujeita às circunstâncias da justiça e do que<br />
isto implica”, “entendem os assuntos políticos e os princípios da<br />
teoria econômica; sabem a base da organização social e as leis da<br />
psicologia humana”. Isso é assim por um motivo simples, no<br />
entanto, não evidente: os princípios de justiça que regulam a boa<br />
ordem “precisam se adaptar às características do sistema de cooperação<br />
social, às quais devem regular, e não há razão para excluir<br />
esses fatos”. Há duas possibilidades de explicação do véu da<br />
ignorância, uma mais próxima à teoria kantiana, outra mais pragmática.<br />
Tomaremos a possibilidade kantiana adiante ao falarmos<br />
da racionalidade pressuposta.<br />
O véu da ignorância o que é? Trata-se de uma defesa da eqüidade,<br />
para que possa ser escolhida uma concepção de justiça que<br />
afete a todos sem o comprometimento das diferenças naturais. Isto<br />
é, o véu da ignorância permite uma decisão unânime sobre a concepção<br />
de justiça. Isso porque, se tal desconhecimento está estabelecido,<br />
ninguém vai negociar melhores favorecimentos que outros.<br />
Além disso, qualquer um poderá participar da posição original em<br />
qualquer momento. Mesmo as gerações futuras ficam garantidas<br />
pela concepção de justiça estabelecida nessa posição original, na<br />
medida em que não há ponderações sobre a necessidade de poupar<br />
ou não, de reagir ou não às soluções de justiça que a história já<br />
ofereceu. Não há concepção de justiça existente na posição original;<br />
apenas existe uma situação de igualdade fundamental, que<br />
permite a ereção de uma concepção de justiça: “cada um está forçado<br />
a escolher por todos”.<br />
Dessa forma, a concepção de justiça nasce com dois princípios<br />
fundamentais, necessariamente: o princípio da igualdade<br />
democrática e o da diferença distributiva. Pois, se na posição original<br />
há uma igualdade fundamental, o princípio da igualdade democrática<br />
como que decorre dela; e, por outro lado, como ninguém<br />
deseja tirar vantagens da situação do outro, a justiça distributiva é<br />
eqüitativa. Na verdade, Rawls afirma que estes dois princípios são<br />
aqueles possíveis de “serem escolhidos na posição inicial” (§ 11,<br />
p. 67). Esses princípios devem ser compreendidos de forma serial,<br />
isto é, a igualdade democrática deve preceder à diferença distributiva.<br />
No entanto, de forma alguma Rawls está afirmando que a justiça<br />
é conduzida apenas por estes princípios, mas sim que estes são<br />
fundamentais e que quaisquer outros a eles estão subordinados.<br />
É na descrição desses princípios que se dará a afirmação de<br />
uma teoria da justiça que seja uma “alternativa viável”. Todo o<br />
impulso<br />
43
11 Os princípios da igualdade<br />
democrática e da diferença distributiva<br />
referem-se às<br />
instituições sociais. Rawls adverte<br />
que apenas na segunda<br />
parte discute qual dos princípios<br />
deve ser adotado (Ver RAWLS,<br />
John, op. cit., p. 63.). Os princípios<br />
dão sustentabilidade a idéia<br />
de justiça processual, que será<br />
explicada adiante.<br />
12 Entende-se por instituições<br />
“um sistema público de regras<br />
que determina ocupações e posições<br />
acompanhadas por seus<br />
respectivos direitos e deveres,<br />
poderes, imunidades e semelhantes”.<br />
Cf. RAWLS, John,<br />
op. cit., p. 63.<br />
13 Os parágrafos 10-17, assim<br />
como toda a segunda parte, tratam<br />
das instituições. Os parágrafos<br />
18-19 e 51-52, embora<br />
existam outros dispersos (66-<br />
67; 78 e 82), dizem respeito aos<br />
princípios orientadores dos<br />
indivíduos e serão abordados<br />
adiante.<br />
14 RAWLS, John, op. cit., p.<br />
66-67.<br />
capítulo 2 da primeira parte (§§ 10-19), bem como a segunda parte<br />
(§§ 31-50), especialmente), explicam os dois princípios e suas<br />
decorrências, assim como os princípios auxiliares, por assim dizer. 11<br />
A noção dos princípios ficará, para Rawls, vinculada à racionalidade<br />
da Teoria da Justiça. Mas, de certa forma, a descrição dos<br />
princípios independe dessa racionalidade pretendida. Eles estão<br />
ordenados em acordo com o “bom senso” (senso comum). A obrigatoriedade<br />
que pretendem também advém da força do contrato.<br />
Há duas ordens de princípios de justiça: os que se aplicam às<br />
instituições 12 e os que se aplicam aos indivíduos. 13 Estas ordens<br />
não devem ser confundidas, pois se aplicam a sujeitos diferentes.<br />
Para o que interessa inicialmente, a saber, a análise da opção por<br />
princípios na posição original, é necessário conceber a estrutura<br />
básica da sociedade como constituída por instituições e essas submetidas<br />
a uma concepção comum de justiça, sem o que seria<br />
impossível escolher princípios que pudessem torná-la exeqüível.<br />
Sem dúvida, há vários problemas sobre esse ponto de partida<br />
que Rawls adota, e ele os reconhece e procura refutá-los. Basicamente<br />
podem ser resumidos em dois: as instituições podem ser<br />
injustas? Ou, elas não podem estar inseridas em um sistema social<br />
injusto apesar de serem justas? Ao que ele responde o óbvio: é evidente<br />
que as instituições não estão isentas da possibilidade da<br />
injustiça delas mesmas ou do sistema social efetivamente.<br />
No entanto, “a justiça formal, ou a justiça como método,<br />
exclui tipos significativos de justiça. Supondo-se que as instituições<br />
sejam razoavelmente justas, então será de grande importância que<br />
as autoridades sejam imparciais e não influenciáveis por pessoas,<br />
dinheiro, ou outras considerações irrelevantes, quando tratando de<br />
casos particulares”. Por outro lado, “a força das reivindicações de<br />
justiça formal, de obediência ao sistema, depende claramente da<br />
justiça real ou substantiva das instituições e da possibilidade de<br />
reformulá-los”. 14 Há uma relação entre justiça formal e justiça<br />
substantiva que é de dependência dessa última com relação à construção<br />
de seus argumentos: ela não pode reivindicar o impossível.<br />
A justiça substantiva, de certo modo, é o limite da justiça formal.<br />
Portanto, não é uma questão simples. As instituições são consideradas<br />
por Rawls, não apenas formalmente, mas efetivamente.<br />
A efetividade das instituições, levando-se em consideração uma<br />
concepção comum de justiça, pode ser injusta, assim como a do<br />
sistema social onde elas estão envolvidas, sendo possível mesmo a<br />
hipótese de um sistema injusto apesar da justeza de todas as suas<br />
44 impulso
instituições. Todavia, o objeto da reflexão é a possibilidade de,<br />
numa situação de posição original, na qual os indivíduos assumem<br />
o véu da ignorância, para si e para as instituições, optar-se por<br />
princípios constituintes de uma concepção de justiça válida igualmente<br />
para todos. Isso não está impedido. Fica mesmo afirmada a<br />
possibilidade de erigir-se uma concepção procedural de justiça, i.e,<br />
uma concepção formal de justiça que sirva como método.<br />
Quais princípios de justiça são possíveis serem adotados na<br />
posição original? Já dissemos anteriormente: igualdade democrática<br />
e diferença distributiva. Resta, porém, apresentar porque<br />
motivo 15 esses dois princípios podem ser adotados na posição<br />
original. Tal possibilidade está vinculada a uma concepção mais<br />
ampla de justiça, expressa da seguinte forma:<br />
Todos os valores sociais – liberdade, oportunidade,<br />
rendas, bens e as bases do respeito próprio – deveriam<br />
ser distribuídas igualmente, a menos que uma distribuição<br />
desigual de um desses valores, ou de todos,<br />
viesse a trazer vantagens para alguns. A injustiça não é<br />
apenas a desigualdade que não traz benefícios para<br />
todos. 16<br />
No que diz respeito à fundamentação dos princípios, Rawls<br />
apresenta as teses da necessidade de publicidade e finalidade para<br />
a eleição dos princípios de justiça, coerentes com a concepção de<br />
justiça como eqüidade. Antes de mais nada, parece ser significativo<br />
destacar que, para Rawls, a concepção de justiça assenta-se em<br />
uma compreensão das instituições sociais básicas como mutantes,<br />
portanto, a ordem social é mutante e a escolha de princípios de justiça,<br />
que são princípios racionais, podem modificar-se de acordo<br />
com a maior ou menor racionalidade que a sociedade tenha. 17 Os<br />
princípios de justiça devem estar fundamentados na contratualidade.<br />
Isto quer dizer que eles devem ser os mais públicos e publicizáveis<br />
e atender o mais possível à finalidade do contrato – e a<br />
finalidade dos contraentes (referência ao reino dos fins, de Kant).<br />
A argumentação de Rawls na defesa dessas duas características<br />
motivacionais dos princípios de liberdade democrática e diferença<br />
distributiva é bastante truncada. Ele faz, primeiramente, com<br />
que a idéia de publicidade esteja vinculada à necessidade de limitar<br />
as diferenças injustas, ou seja, vincula-se a capacidade de produzir<br />
um bem maior para a própria sociedade. Ele atribui isso ao<br />
15 RAWLS, John, op. cit. No último<br />
parágrafo, ele explica o<br />
porquê da prioridade do princípio<br />
da liberdade na ordenação<br />
léxica ou serial dos princípios.<br />
16 RAWLS, John, op. cit., p.<br />
68-69. Ele termina dizendo: “É<br />
óbvio que esta concepção é extremamente<br />
vaga e necessita de<br />
interpretação”.<br />
17 RAWLS, John, op. cit., p.<br />
398.<br />
impulso<br />
45
18 Toda essa argumentação é altamente<br />
utilitarista; o que ele<br />
não quer. Porém, ele afirma não<br />
o ser na medida em que afirma a<br />
noção de sacrifício: as pessoas,<br />
em vista do bem de todos, aceitariam<br />
o sacrifício, na medida<br />
em que isso implicasse também<br />
em vantagens para elas mesmas,<br />
desde que movidas por sentimentos<br />
morais, tais como o de<br />
auto-respeito. Os sacrifícios,<br />
por outro lado, são demandados<br />
pela estrutura básica da sociedade,<br />
como uma questão de<br />
justiça. Cf. RAWLS, John, op.<br />
cit., p. 146.<br />
19 RAWLS, John, op. cit., p.<br />
147-148.<br />
20 Estado de Direito é compreendido<br />
no estilo do Estado Constitucional<br />
dos Estados Unidos<br />
da América.<br />
efeito psicológico das pessoas se amarem, desejarem seu próprio<br />
bem. E é público que uma ordem justa pode conduzir a isso.<br />
Assim, os princípios de liberdade e diferença conduziriam ao<br />
auto-respeito, a afirmação de mútua cooperação entre as partes, e,<br />
portanto, de vantagens para todos. 18<br />
Mais truncado ainda é seu empenho em fazer reconhecer que<br />
o contrato efetivado na posição original seja conseqüência da finalidade<br />
do ser humano. Assim, numa leitura de Kant, afirma que por<br />
ser o homem um fim e não um meio, os princípios de justiça se<br />
impõem por garantir que sacrifícios possam ser feitos, num acordo<br />
de que o que se perde não contribui em nada para as expectativas<br />
representativas. 19 Ele considera que a cooperação social fica fortalecida<br />
com essa noção de ser humano como fim. Assim, a finalidade<br />
do auto-respeito permite o mútuo respeito, conforme Rawls.<br />
A discussão seguinte, com referência às motivações, diz respeito<br />
à prioridade da liberdade. Ele argumenta que o princípio da<br />
liberdade é regulador do princípio da diferença. Isso significa que<br />
a concepção de bondade, enquanto racionalidade, permite admitir<br />
que, em vista da excelência e fins a que as pessoas são atraídas, a<br />
liberdade é o principal interesse regulador, pois senão as pessoas<br />
estariam arbitrariamente discriminadas em conformidade às diferenças<br />
de posição social ou diferenças naturais. Ele supõe, ainda,<br />
que essa afirmação da prioridade da liberdade é mais possível em<br />
uma sociedade “bem estruturada”, i.e., regulada pelo Estado de<br />
Direito. 20<br />
O primeiro princípio, da liberdade democrática, expõe que a<br />
extensão da liberdade deve ser a maior possível e igual para todos<br />
(“compatível e similar com a liberdade de outros indivíduos”,<br />
§ 11). Os dois princípios são seriais, segundo Rawls, o primeiro<br />
princípio antecedendo ao outro, não apenas logicamente, mas efetivamente.<br />
Ele não apresenta muita dificuldade de compreensão<br />
para esse primeiro princípio. Na verdade, nem o discute muito.<br />
Como que supõe que a justiça, para ser efetivada, dependa do exercício<br />
mais pleno possível de uma igualdade democrática, o que significa<br />
o exercício das, assim chamadas, liberdades civis burguesas,<br />
que possuem duas expressões básicas: liberdade política ou civil<br />
(eleitoral, expressão e pensar, reunião e associação) e liberdade<br />
pessoal (associada ao direito à propriedade). Na verdade, a igual-<br />
46 impulso
dade democrática, de acordo com Rawls, está assentada nos direitos<br />
à propriedade e à organização (divergência) política.<br />
O segundo princípio, porém, é bastante mais complexo e a<br />
ele Rawls vai dedicar muito mais atenção. 21 Ele se expressa, de<br />
forma geral, do modo seguinte: as desigualdades econômicas e<br />
sociais devem ser distribuídas de forma que (a) tragam vantagens<br />
para todos e (b) “que sejam ligados a posições e a órgãos abertos<br />
para todos”. Rawls afirmara que o véu da ignorância supunha<br />
todos esquecerem seu status e condição social, assim como quaisquer<br />
diferenças naturais (tais como inteligência, força, etc.), a fim<br />
de que a concepção de justiça partilhada não fosse fruto da barganha<br />
ou dos jogos de interesse particulares, mas que a concepção<br />
de justiça fosse a mais equânime possível. Ora, esse princípio da<br />
desigualdade distributiva aparentemente contrapõe-se a essa orientação.<br />
Contudo, não é isso que ele conclui.<br />
Ele propõe uma explicação do segundo princípio – supondo<br />
um sentido único para o primeiro – que o combina ao princípio da<br />
eficiência (que não tinha aparecido até aqui, e que não é um dos<br />
princípios fundamentais da concepção de justiça que ele está apresentando).<br />
Resumirei a explicação, afirmando o seguinte: o princípio<br />
da eficiência garante a exeqüibilidade da distribuição desigual de<br />
modo que ninguém possa ser prejudicado, mas que as vantagens<br />
possam ser distintas conforme as capacidades. Isto é, supõe-se a<br />
diferença dos indivíduos (e das instituições) em base às eficiências<br />
comparadas: um é mais eficiente que outro. Ora, se as vantagens são<br />
possíveis a todos (a), de acordo com a posição de cada um (b), isso<br />
significa que ninguém é ludibriado nesse sistema de distribuição e<br />
aos menos providos de capacidade ficam garantidas as vantagens<br />
possíveis de tal distribuição. Ou seja, a distribuição é diferenciada,<br />
uns têm mais vantagens que outros, mas todos têm vantagens. 22<br />
A segunda parte de Teoria da Justiça debruça-se sobre os dois<br />
princípios, sobre as possibilidades de aplicabilidade, discorrendo<br />
ainda sobre os princípios de justiça atinentes às instituições. Em<br />
princípio, é formulada uma teoria dos quatro estágios 23 da posição<br />
original, procurando tornar mais compreensível a aplicação dos<br />
princípios. O primeiro estágio é o véu da ignorância, a posição original<br />
propriamente dita, na qual as orientações são dadas apenas<br />
pelos conhecimentos decorrentes da justiça. O consenso firmado<br />
nesse estágio é produzido em torno dos princípios coerentes com a<br />
concepção de justiça como eqüidade. Em seguida, o segundo estágio,<br />
corresponde à etapa constituinte. Isso por que a justiça é con-<br />
21 Muito embora estes princípios,<br />
por serem derivados da estrutura<br />
básica da sociedade,<br />
apresentarem suas raízes nos<br />
valores sociais como expostos<br />
acima (nota 12), eles encontram<br />
uma centralidade, na exposição<br />
de Rawls, no valor “liberdade”.<br />
Apesar desse valor constituir<br />
muito mais ao primeiro princípio<br />
que ao segundo, ele não deixa<br />
de participar também deste.<br />
Na verdade, o segundo princípio<br />
será mais importante para a<br />
concepção de justiça eqüitativa<br />
que o anterior. Sem o anterior<br />
seria impossível propor uma regulação<br />
eqüitativa, pois faltaria<br />
o acesso aos bens. Mas, sem o<br />
segundo, o equilíbrio diferenciado<br />
da vida social seria inaccessível.<br />
Resta verificar o quanto<br />
essa noção de boa ordem é meramente<br />
ideológica.<br />
22 RAWLS, John, op. cit., p.<br />
72s. Isso só pode ser assim considerado,<br />
segundo Rawls, se ao<br />
princípio da eficiência for<br />
acrescido o princípio da diferença,<br />
que garante, segundo ele,<br />
que se, corretamente, os melhores<br />
posicionados têm melhores<br />
vantagens, fica assegurado ao<br />
menos afortunados serem beneficiados<br />
com isso, graças à reação<br />
em cadeia provocada por<br />
esse outro princípio.<br />
23 RAWLS, John, op. cit., p.<br />
159-162.<br />
impulso<br />
47
24 Mais adiante abordaremos a<br />
proximidade entre Rawls e Kant<br />
ao tratarmos do tema da racionalidade.<br />
siderada a partir da estrutura básica da sociedade, e, por conseguinte,<br />
em conformidade com o estabelecimento do Estado de<br />
Direito, supondo-se que ele seja a melhor forma possível de estrutura<br />
social. Nesse estágio, o conhecimento das estruturas econômicas,<br />
políticas, sociais e culturais da sociedade é suposto, pois o que<br />
está sendo estabelecido é o pacto constituinte, orientado pelos dois<br />
princípios de justiça. O terceiro estágio, pois, é o momento legislativo,<br />
no qual se estabelecem as regulamentações da vivência dos<br />
princípios. O quarto e último estágio é o da aplicabilidade dessas<br />
regulamentações. Os outros parágrafos (§ 32-40) desse capítulo,<br />
que se intitula liberdade igual, tratam da liberdade de consciência<br />
e expressão e da liberdade política – além de uma consideração<br />
sobre o tema da eqüidade em Kant. 24<br />
Na verdade, o próprio Rawls considera que essas observações<br />
dizem respeito propriamente a uma filosofia política. Não<br />
obstante, cabe ressaltar três questões. Primeiramente, há uma<br />
lacuna que precisa ser notada. Quanto ao princípio da igualdade<br />
democrática, uma das liberdades constituintes era a liberdade do<br />
direito de propriedade. Esse direito não é abordado nesse momento,<br />
mas, indiretamente, no próximo capítulo, quando será tratado o<br />
princípio da diferença distributiva. A segunda questão diz respeito<br />
ao princípio de tolerância. A liberdade de consciência e expressão,<br />
numa sociedade ordenada pelos princípios de justiça, que constitui<br />
um Estado de Direito, deve ter espaço para os intolerantes? Sim,<br />
com reservas. Ou seja, deve haver limites para a intolerância, seu<br />
limite é positivamente a liberdade de expressão e consciência dos<br />
outros grupos (religiosos ou políticos). A tolerância está subordinada<br />
ao interesse comum. A outra questão diz respeito ao direito<br />
de participação política. A liberdade política deve ser a mais<br />
extensa possível. Em geral se admite nos Estados de Direitos a<br />
relação 1 cidadão = 1 voto. Mas, há exceções: crianças, idosos,<br />
incapazes...<br />
Enfim, há limites também para a participação. O princípio de<br />
liberdade conduz ao princípio de responsabilidade. Os limites à<br />
liberdade são encontrados no princípio de responsabilidade. Os<br />
limites à liberdade são conseqüência da responsabilidade pela<br />
constituição/manutenção do Estado de Direito.<br />
O segundo princípio de justiça, o da diferença distributiva,<br />
orienta principalmente à vida econômica da sociedade. Uma teoria<br />
da justiça, um princípio de justiça em relação à economia, tem a<br />
função de orientar os cidadãos na busca de algum critério para a<br />
48 impulso
justa distribuição das vantagens sociais. E aí repousa a questão:<br />
como pode, diante de interesses socialmente estabelecidos, imporse<br />
algum princípio de justiça, numa concepção de justiça como<br />
eqüidade? A solução proposta por Rawls consiste em fazer decorrer<br />
os princípios de justiça não de alguma concepção ideal, ou a<br />
priori, mas da concepção de uma estrutura social básica que seja<br />
justa, ou que tenda à justiça, e na qual fossem valorizados não<br />
todos os interesses, mas alguns interesses/desejos básicos, os quais<br />
sejam comuns. (§ 41) A conseqüência disso não é o estabelecimento<br />
de um nível geral/comum de pobreza, mas é, por um lado,<br />
a proteção dos desafortunados com os níveis de elevação da<br />
riqueza (por meio da tributação); por outro, até que a sociedade<br />
chegue a um estágio no qual a poupança seja desnecessária, é justo<br />
que se preveja o suficiente para que as gerações futuras possam<br />
chegar até este justo estágio, visto que é justo cada um fazer sua<br />
parte no processo de desenvolvimento das sociedades (isto deve<br />
ser feito por meio da poupança justa).<br />
Duas observações a respeito do papel do mercado nesse princípio<br />
regulativo: (1) Para Rawls, o sistema de mercado é mais<br />
compatível com liberdades iguais e justa igualdade de oportunidade<br />
(diferentemente distribuída); (2) o mercado deve ser regulado<br />
pelo Estado (por meio da tributação, fazendo com que ele esteja<br />
voltado para o bem comum), porém, o mercado é orientado,<br />
necessariamente pelo princípio do benefício e não pelo princípio<br />
da justiça. Portanto, ficam reconhecidas prioridades na condução<br />
da vida econômica e política: prioridade da liberdade e prioridade<br />
da justiça sobre o bem-estar e a eficiência.<br />
Caberia considerar agora os princípios orientadores dos<br />
indivíduos. Rawls considera que há uma hierarquia na adoção dos<br />
princípios, que ele adota em sua exposição. Tal hierarquia confere<br />
prioridade aos princípios orientadores das instituições básicas da<br />
sociedade, em especial considerando-se a efetividade de uma posição<br />
original. Em seguida adviriam os princípios orientadores dos<br />
indivíduos, que vivem em sociedade, e supõe-se uma boa ordem,<br />
qual seja uma sociedade justa ou tão justa como razoavelmente<br />
pode sê-lo. Ainda se apresentaria, numa consideração sobre os<br />
princípios de justiça, o direito internacional.<br />
Eles são apresentados como sendo apenas dois: a eqüidade e<br />
o dever natural. Na verdade, o princípio de eqüidade é suposto<br />
como a concepção de justiça comum, ou seja, aquela decorrente<br />
da aplicação dos dois princípios das instituições, os da liberdade<br />
impulso<br />
49
democrática e da diferenciação distributiva. A eqüidade deve<br />
orientar o indivíduo nas suas relações com os outros indivíduos<br />
favorecendo a perceber suas obrigações, no sentido de tarefas.<br />
Nesse sentido há dois tipos de obrigações, distintos e complementares:<br />
a obrigação política e a pública. A primeira refere-se<br />
especialmente aos cidadãos que ocupam cargos públicos; estes<br />
devem cumprir as tarefas que lhes cabem, sem querer avantajar-se<br />
com isso, em vista do bem comum, por obrigação do cargo.<br />
A outra, a obrigação pública, diz respeito a todos. Ou seja, pelo<br />
princípio de eqüidade cada um deve ocupar o papel social que lhe<br />
cabe, visto que se supõe uma boa ordem, como expresso acima.<br />
O princípio do dever natural pode ser considerado positiva e<br />
negativamente, como aqueles deveres relacionados à mútua cooperação<br />
entre os indivíduos. Entre os deveres naturais se destaca o<br />
dever de justiça, a saber, o de ajustar-se, adequar-se à ordem estabelecida,<br />
cooperando para que ela possa atingir sua própria justiça.<br />
Disso decorre que, ao avaliar dessa forma a obrigação e o dever<br />
natural, Rawls faz algumas considerações a respeito da desobediência<br />
civil e da recusa por motivos de consciência.<br />
O mais importante, parece-me, é a constatação de que apenas<br />
em alguns casos são justificáveis essas atitudes num Estado de<br />
Direito, a saber, naquelas em que grupos minoritários, ou indivíduos,<br />
sentindo-se injustiçados, não participem das orientações<br />
legais, supostamente justas para a maioria, sem prejudicar ao conjunto<br />
intencionalmente, além do descumprimento da lei.<br />
Até esse momento, optamos por apresentar as idéias de Rawls<br />
sem o recurso às suas justificativas propriamente racionais e suas<br />
discussões sobre a razão prática. Propositalmente procuramos perceber<br />
como a Teoria da Justiça, como eqüidade, e suas idéias mais<br />
importantes, do ponto de vista da própria teoria e de uma filosofia<br />
política, estão como que, por assim dizer, absolutamente apresentadas.<br />
Terminando a exposição das idéias que considerei serem as<br />
mais importantes em Teoria da Justiça, discutiremos a concepção<br />
de sujeito racional e a relação dessa concepção estabelecida, por<br />
Rawls, com uma possível teoria de Kant sobre a eqüidade.<br />
Primeiramente, deve-se estabelecer o que é compreendido<br />
por racionalidade. Racionalidade é a capacidade de se decidir por<br />
uma meta e planejar os meios para sua execução. Assim, considera-se<br />
que, na situação original, seres racionais estabelecem um<br />
pacto (contrato) para construírem uma concepção de justiça.<br />
A racionalidade desses sujeitos possibilita que eles escolham entre<br />
50 impulso
as diversas concepções de justiça aquela que mais se aproxima da<br />
eqüidade e possam optar pelos princípios orientadores das<br />
instituições (liberdade democrática e diferença distributiva) e dos<br />
indivíduos (eqüidade e dever natural). Essa decisão racional tem<br />
uma meta, a de constituir uma concepção de justiça o mais próximo<br />
possível da justiça substantiva; assim, esse ser racional é<br />
extremamente autônomo, pois, na situação original está livre de<br />
qualquer limite obsessor de sua decisão.<br />
Ora, essa concepção de racionalidade e sujeito racional é<br />
propriamente retirada de Kant. A consideração da situação original<br />
é, assim, numa versão kantiana,<br />
o ponto de vista, a partir do qual os noumenos olham o<br />
mundo. (...) Devem, então decidir quais princípios<br />
quando seguidos e acompanhados conscienciosamente<br />
na vida cotidiana, manifestarão essa liberdade na sua<br />
comunidade, revelarão mais plenamente sua independência<br />
diante das contingências naturais e do acidente<br />
social. 25<br />
Os princípios são vistos como imperativos categóricos, os<br />
contratantes como noumenos, e a posição original como uma<br />
interpretação processual da autonomia. Assim, ele mantém, dessa<br />
forma sua proximidade a Kant, por meio da teoria do contrato e<br />
por uma concepção de razão prática não comunicável com a razão<br />
teórica.<br />
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE<br />
A TEORIA DA JUSTIÇA<br />
Uma observação que Tugendhat faz e parece-me extremamente<br />
pertinente é sobre a postura teórica de Rawls. John Rawls<br />
afirma-se próximo a Kant, mas pelo modo com que organiza sua<br />
teoria parece muito mais próximo dos normo-utilitaristas. Senão,<br />
vejamos. Ele orienta a escolha dos princípios fundamentais não a<br />
partir da racionalidade de um ponto de vista moral qualquer, mas<br />
pela regulação dos jogos de interesse numa dada estrutura social.<br />
A suposição básica é que ninguém queira ser prejudicado, e não<br />
apenas que todos queiram igualdade de acesso às vantagens possíveis.<br />
Ora, esse princípio é orientado por uma vantagem, ou seja,<br />
uma finalidade e ações com vista a um fim são teleológicas e<br />
deontológicas (orientadas racionalmente).<br />
25 RAWLS, John, op. cit., p.<br />
200.<br />
26 BLOOM, A. Declínio da<br />
cultura ocidental. São Paulo:<br />
Nova Cultural & Best Sellers,<br />
1989, p. 35-36.<br />
impulso<br />
51
Uma outra observação que me parece pertinente é feita por<br />
Bloom, 26 que nota em Rawls uma atitude de defesa da ordem estabelecida<br />
estado-unidense, acima de tudo das atitudes não discriminatórias.<br />
“A indiscriminabilidade, portanto, é um imperativo moral,<br />
porque o seu antônimo é a discriminação”. É claro que isso é uma<br />
caricatura de Rawls, mas segundo Bloom, isso é um processo no<br />
qual a sociedade estado-unidense sempre esteve: manutenção das<br />
igualdades civis. Como ele diz, “a igualdade perante a lei não protege<br />
o ser humano judeu, italiano ou negro do menosprezo e do<br />
ódio”. Poder-se-ia contra-argumentar dizendo que Rawls não está<br />
propondo uma concepção de justiça substancial, mas uma concepção<br />
formal, que seja procedural: que indique possibilidades de<br />
procedimento. Mas, também é verdade que Rawls procurou tratar o<br />
mais próximo possível de uma concepção substancial de justiça,<br />
chegando mesmo a avaliar determinados sentimentos morais, como<br />
a vergonha ou a tolerância. Mas, não indicou nenhuma possibilidade<br />
de reverter sentimentos de intolerância agressivos...<br />
Queria considerar o modo com o qual a idéia de estrutura<br />
básica da sociedade é trabalhado. Ele tem a ver com duas funções<br />
básicas do Estado de Direito: manutenção dos direitos políticos e<br />
do direito à propriedade. Ora, isso significa depreender das estruturas<br />
do Estado Constitucional e do Mercado os princípios de justiça.<br />
O que significa, por sua vez, considerar que as estruturas do<br />
Estado Constitucional e do Mercado sejam justas. E, ainda, uma<br />
pressuposição anterior, como o Estado é o responsável por regular<br />
as liberdades, supõe-se que ele esteja subordinado às regras do<br />
Mercado. Antes que eu seja acusado de fazer afirmações indevidas,<br />
não nos esqueçamos das considerações de Rawls acerca do Mercado<br />
como instituição. Tanto é assim que Rawls procura estabelecer<br />
como prioritárias a liberdade e a justiça em relação ao bem-estar e<br />
à eficiência. Se é necessário estabelecer tais prioridades, é porque<br />
o natural seria que elas não existissem. Elas são fruto de um<br />
acordo para regular o Mercado.<br />
Uma última observação diz respeito à disparidade entre as<br />
teorias contratualista e racional da justiça. A teoria contratualista<br />
não depende, necessariamente, das considerações da moral como<br />
conduzida pela razão prática. Nesse sentido, como já assinalei<br />
anteriormente, Rawls é muito mais um normo-utilitarista que kantiano.<br />
Mesmo a afirmação de que o contrato é celebrado entre<br />
seres racionais está subordinada a um mundo social, das<br />
instituições básicas, que constroem princípios aos quais os princí-<br />
52 impulso
pios também devem estar subordinados, em vista de uma concepção<br />
de justiça como eqüidade. A postura de Rawls é antes a de<br />
alguém que procura justificar o Estado Constitucional, como é<br />
conhecido nos Estados Unidos da América, do que de alguém procurando<br />
uma concepção de justiça como eqüidade, que seja<br />
generalizável e universal, conceitos, como admitido por Rawls,<br />
insuficientes do ponto de vista epistemológico, mas necessários.<br />
CRÍTICA DE TUGENDHAT À TEORIA DA JUSTIÇA<br />
A tese de Tugendhat é a seguinte: Rawls não consegue apresentar<br />
uma teoria da justiça substantiva por não se dar conta da<br />
insuficiência de seu método proposto (equilíbrio reflexivo) em<br />
relação a iniciar sua análise a partir do ponto de vista moral. Para<br />
ele, Rawls incorre em um equívoco metodológico que implica em<br />
imprecisões graves na teoria. Ele não propõe o abandono da teoria<br />
do contrato como possibilidade de expressar uma teoria da justiça<br />
próxima à justiça substantiva, mas avalia que, perseguindo os pressupostos<br />
de Rawls, a saber, o método do equilíbrio reflexivo e a<br />
não discussão do ponto zero na constituição da posição inicial,<br />
esse intento é infundado.<br />
Sua argumentação procede em duas etapas. Primeiramente,<br />
observando a questão metodológica, adverte que a premissa de<br />
que o estabelecimento de um equilíbrio reflexivo, que permita<br />
atingir por ponderação racional uma concepção de justiça que seja<br />
adequada moralmente, é insuficientemente argumentada. Segundo<br />
ele, o primeiro equívoco consiste em procurar estabelecer uma<br />
teoria da justiça em primeira e segunda pessoa e não em terceira.<br />
Essa opção, que não permite a visão do observador, é, em si, problemática.<br />
E, apresenta-se problemática na teoria por propor assertoricamente<br />
crenças morais/crenças de justiça. O que justifica a<br />
opção pelos princípios de justiça propostos? Não há uma fundamentação<br />
suficiente, na medida que simplesmente depreende-se<br />
que seriam os melhores princípios em vista da construção da justiça<br />
como eqüidade. Isto é apresentado como um argumento ad<br />
hominem, considera apenas as improváveis teses do utilitarismo.<br />
Na segunda etapa, avalia o que decorrera, segundo ele, do<br />
engano cometido. Nesse sentido, questiona o fato de Rawls optar<br />
por uma posição original ao invés de ter como ponto de partida um<br />
ponto de vista moral. Mais: afirma que Rawls, propondo que a<br />
posição original fosse compreendida de forma processual em quatro<br />
estágios, não reconhece um estágio anterior, estágio zero, no<br />
impulso<br />
53
qual ele optou por determinado conjunto de valores como imparcialidade,<br />
racionalidade dos agentes, justiça processual construída<br />
contratualmente. Critica a inadequação de levantar-se completamente<br />
o véu da ignorância no quarto estágio, fazendo com que não<br />
haja mais nada que contenha o instinto de competição; assim, a<br />
imparcialidade na execução da justiça fica comprometida.<br />
Segundo Tugendhat, isso criaria um argumento ad hominem contra<br />
Rawls e sequer poderia serem sustentados os princípios de justiça,<br />
no quarto estágio, diante dos juízos morais ponderados frutos<br />
do equilíbrio reflexivo.<br />
A impressão é que as críticas de Tugenhadt a Rawls são fruto<br />
de uma incompreensão das intenções expressas por ele. O equilíbrio<br />
reflexivo como método não quer abandonar a hipótese de uma teoria<br />
da justiça em terceira pessoa, apenas quer dedicar-se a explorar a<br />
possibilidade de construção de uma teoria da justiça mais próxima<br />
da vida cotidiana. Isso garante que uma teoria em terceira pessoa<br />
não permitiria uma teoria substantiva? Por que deixar de partir das<br />
definições seria garantia maior de imparcialidade na construção de<br />
uma teoria da justiça? Na verdade, uma teoria em terceira pessoa<br />
necessariamente é mais distante do modo como as experiências cotidianas<br />
e intersubjetivas são vividas. Ademais, a teoria em primeira e<br />
segunda pessoa é mais adequada a uma proposta contratualista.<br />
Mas, realmente, não creio que o fato da teoria não ser elaborada em<br />
terceira pessoa garanta maior imparcialidade a ela.<br />
A crítica à inexistência do nível zero procede. Há um conjunto<br />
de pressupostos que não estão apresentados na proposta de<br />
Rawls. Ele não explica porque supõe a racionalidade dos sujeitos,<br />
a não ser no parágrafo 40, no qual afirma estar assumindo a leitura<br />
que Kant faz da autonomia. Mesmo assim, a consideração de seres<br />
racionais, iguais e livres não é apresentada como pressuposto para<br />
a existência da posição original. Também a imparcialidade, assumida<br />
como uma postura adequada para assumir-se a concepção<br />
comum de justiça como eqüidade, fica pressuposta, sem ser explicitada.<br />
Enfim, a posição original é um artifício necessário para o<br />
estabelecimento de uma teoria contratualista da justiça como eqüidade,<br />
mas seus pressupostos não foram justificados.<br />
27 PERINE, M., op. cit.; HA-<br />
BERMAS, J., op. cit.<br />
A PRETENSÃO A UMA COMUNIDADE ÉTICA 27<br />
Rawls afirma no parágrafo 40 que na posição original estaria<br />
constituída uma comunidade ética de noumenos. Tal pretensão<br />
pode ser sustentada sem problemas? Em que sentido Rawls está<br />
54 impulso
afirmando a existência de uma comunidade ética na posição original?<br />
A idéia expressa sobre a posição original, que dá início à teoria,<br />
o contrato donde são originados os princípios de justiça, é claramente<br />
apresentada no referido parágrafo como uma assembléia<br />
de noumenos livres, iguais e racionais que decidem a respeito de<br />
como deverão conduzir-se numa estrutura básica de sociedade<br />
considerada como sendo uma boa ordem.<br />
Definitivamente Rawls atribui à posição original o status de<br />
comunidade ética por ela, primeiramente, considerar os indivíduos<br />
em sua condição social, a saber em sua situação relacional. Em<br />
segundo lugar, estes indivíduos racionais são, até mesmo, desprovidos<br />
de inveja. 28 Isso significa a existência de uma postura orientada<br />
pela razão (prática) e não por quaisquer níveis externos ao<br />
agente. Além do mais, na posição original, como foi visto anteriormente,<br />
os indivíduos estão preocupados com o bem de todos, o<br />
bem comum, e, em assim sendo, sacrificam-se espontaneamente,<br />
autonomamente.<br />
Ora, o conceito de comunidade ética, quer como apresentado<br />
no tomismo, quer como defendido pelos adeptos da ética do discurso,<br />
supõe, especialmente, o caráter intersubjetivo (social) dessa<br />
comunidade. O que caracteriza uma comunidade ética é o fato de<br />
a referência não serem os interesses privados, mas aqueles que<br />
podem ser partilhados moralmente pelos outros seres humanos<br />
(quer seja pela consideração da igualdade fundamental da pessoa<br />
humana, quer pela consideração da pertença a uma mesma comunidade<br />
do mundo da vida social, ou comunidade lingüística). Nessas<br />
condições, a comunidade é ética se, e somente se, for reguladora<br />
dos princípios orientadores da vida comum.<br />
Nesse sentido, Rawls está plenamente habilitado a considerar<br />
que, na posição original, tal comunidade foi estabelecida. Na verdade,<br />
a teoria do contrato supõe a existência de tal comunidade.<br />
Mas, o fundamento dessa comunidade é o estabelecimento de um<br />
mundo social hipotético. Assim, não se trata de uma comunidade<br />
ética substancial, mas formal. Tanto o tomismo, como os adeptos<br />
da ética do discurso, supõem a comunidade ética como parte do<br />
mundo da vida 29 dos indivíduos. A comunidade ética de tomistas<br />
e adeptos da ética do discurso situa-se como uma condição da existência<br />
de sujeitos-atores éticos, e não apenas como uma contingência<br />
na teoria.<br />
Para Rawls, o mundo social hipotético é apenas um pressuposto<br />
suficiente para estabelecer o esforço em vista de uma conce-<br />
28 Esta é uma idéia acidental,<br />
bastante discutida por Rawls,<br />
mas que não nos pareceu uma de<br />
suas principais idéias, no entanto,<br />
ele estabelece que sem essa<br />
consideração da ausência de inveja<br />
na posição original seria<br />
inadmissível que os contraentes<br />
pudessem buscar os princípios<br />
de uma concepção comum de<br />
justiça que significasse vantagens<br />
para todos.<br />
29 Estou entendo por mundo da<br />
vida o conjunto de relações sociais<br />
e culturais pré-existentes<br />
ao indivíduo, substrato da vida<br />
do indivíduo, espaço contextual<br />
de sua existência. Cf. HABER-<br />
MAS, J. Para a reconstrução<br />
do materialismo dialético. São<br />
Paulo: Brasiliense, 1981.<br />
impulso<br />
55
pção de justiça como eqüidade. Suficiente, mas não necessário. Na<br />
verdade, é necessário e suficiente para o esforço em vista do estabelecimento<br />
de qualquer concepção moral que exista uma comunidade<br />
ética. Disso concluímos que, por um lado, Rawls, de fato, a<br />
estabelece, formalmente, muito embora, por outro lado, isso não<br />
signifique que seja necessário supor como tal a assembléia dos<br />
contraentes que vise estabelecer uma concepção de justiça como<br />
eqüidade, por meio de um método como o equilíbrio reflexivo.<br />
Em síntese, a comunidade ética, como suposta por Rawls,<br />
não é suficiente e necessária para o estabelecimento da justiça<br />
como modus vivendi, ainda que pudesse ser assumida como<br />
modus operandi, ao menos por quem assume o normo-utilitarismo<br />
como orientador ético.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS<br />
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Vamireh Chacon.<br />
Brasília: UNB, 1981.<br />
TUGENDHAT, E. Problemas de la ética. México, 1983.<br />
HABERMAS, J. Justification and application. Cambridge: MIT<br />
Press, 1993.<br />
HABERMAS, J. Para a reconstrução do materialismo dialético.<br />
São Paulo: Brasiliense, 1981.<br />
PERINE, M. Precisamos de uma nova moral? Impulso, v. 14, n. 7,<br />
Piracicaba: UNIMEP, p. 97-114, 1994.<br />
FRANKENA, W. Ética. São Paulo: Zahar, 1981.<br />
BLOOM, A. Declínio da cultura ocidental. São Paulo: Nova<br />
Cultural & Best Sellers, 1989.<br />
56 impulso
O MÉTODO DO <strong>DIREITO</strong>:<br />
QUESTÕES DE LÓGICA JURÍDICA<br />
ERCÍLIO A. DENNY<br />
Quando se trata de conceituar o que é a lógica jurídica, isto<br />
é, qual parte da lógica é aplicável ao direito, há necessidade de<br />
definir o que se entende por “direito”.<br />
Existem duas formas de se conceituar o direito: a primeira<br />
compreende-o como um “conjunto de normas”. A segunda<br />
maneira é o de percebê-lo como “o justo” (tó díkaion).<br />
O <strong>DIREITO</strong> COMO “CONJUNTO DE NORMAS”<br />
O que caracteriza o pensamento jurídico contemporâneo é<br />
considerar o direito como uma produção do espírito humano. Ele<br />
seria constituído de normas, através das quais os homem comanda<br />
os fatos da natureza. Atrás desta visão está o dualismo essencial da<br />
filosofia cartesiana que separa, como dois mundos distintos, o<br />
espírito e o corpo, ou do pensamento kantiano que aparta o “ser<br />
em si” do “fenômeno”, o ser do dever ser.<br />
Este modo de filosofar comporta inumeráveis variantes.<br />
Savigny (1779-1861) e a Escola Pandectista entendem que a regra<br />
de direito não é o produto do espírito do homem individual, mas<br />
do espírito coletivo dos povos. Pode-se distinguir na filosofia que<br />
entende o direito como norma, duas principais direções:<br />
a) Para alguns pensadores, a regra de direito é o produto da<br />
razão humana. Um exemplo típico desta tendência é dado pela<br />
teoria de Hugo Grócio (1583-1645), que pretende tirar o seu sistema<br />
de regras de direito, a partir de alguns princípios racionais de<br />
moralidade, como “não furtar”, “cumprir as promessas”, “reparar<br />
impulso<br />
57
os danos causados”... De forma parecida, Kant (1724-1804) tentou<br />
construir seu direito natural sobre alguns axiomas racionais da<br />
razão pura prática.<br />
b) Outros teóricos atribuem as regras do direito à vontade<br />
humana. Esta tendência é típica de Hobbes (1588-1679) e de todo<br />
o positivismo jurídico. O direito, então, é constituído pela vontade<br />
do legislador, estabelecido pelo contrato social.<br />
Pouco importa aqui que o direito provenha da razão ou da<br />
vontade, ou ainda da mistura de uma e outra, pois, de qualquer<br />
maneira, ele é produto do espírito humano, sendo constituído de<br />
regras postas e concebidas pelo espírito do homem. Tanto numa<br />
teoria como em outra, o direito é definido como “um conjunto de<br />
regras”, e isto é o que se ensina tradicionalmente nas Faculdades<br />
de Direito.<br />
Para esta visão de direito, o método jurídico a ser seguido é<br />
o de que toda a solução jurídica deve ser encontrada, por inferência,<br />
a partir de regras que residem no pensamento humano, provindas<br />
ou de sua razão ou de sua vontade. A solução de direito só<br />
poderá ser fundamentada e a sua validade só pode ser demonstrada<br />
se ela estiver ligada dedutivamente a determinada regra jurídica;<br />
e esta mesma precisa estar unida a um princípio.<br />
As grandes obras da doutrina jurídica a partir da Idade<br />
Moderna cultivam apenas o método dedutivo. Trata-se da elaboração<br />
de um corpo de regras jurídicas. É um tempo de criação de<br />
grandes sistemas. Quando se trata da aplicação do direito na esfera<br />
judiciária, a doutrina moderna convida a tirar a sentença dedutivamente<br />
da regra de direito, seja ele codificado nas grandes obras da<br />
doutrina, seja ele colocado nos textos das leis pela vontade mais<br />
ou menos arbitrária do legislador. Tal é a forma da qual se revestem,<br />
em última análise, os tratados de direito. Isto não pode ser<br />
diferente, a partir do momento em que se admite que o direito é<br />
“um conjunto de normas” ou que ele é aquilo que se deduz destas<br />
regras positivas.<br />
Daí já se pode prever a noção que estes teóricos têm da lógica<br />
jurídica. A concepção de lógica aceita por estes pensadores para o<br />
direito é a da lógica matemática, daquela das ciências exatas.<br />
A lógica, no mundo moderno, está ligada especialmente à<br />
ciência e ao uso do raciocínio dedutivo. Ensina-se que ela, em<br />
sentido estrito, é o estudo das inferências, que permitem passar,<br />
com rigor, de uma proposição a outra. A análise dos conceitos e<br />
dos juízos têm, assim, o papel auxiliar e secundário. Até o início da<br />
58 impulso
Idade Moderna, a lógica admitia o silogismo, procedente dos<br />
Analíticos de Aristóteles. A partir de Descartes (1596-1650),<br />
houve o abandono da lógica formal e o descrédito do estudo do<br />
raciocínio silogístico. Quer-se usar o raciocínio matemático não só<br />
no estudo dos nomes e das forma, mas na ciência universal, indo<br />
até à filosofia. O raciocínio ao modo de Euclides (450-380 a.C.) é<br />
considerado um substituto da antiga lógica formal. Trata-se sempre<br />
de um raciocínio dedutivo.<br />
Qual seria o instrumento mais adequado às necessidades da<br />
arte jurídica? O direito, tal como o imaginam os positivistas e os<br />
normativistas, é o paraíso da lógica, entendida como a arte da<br />
dedução. É a partir daí que dá para entender o aparecimento de<br />
numerosos tratados de metodologia jurídica, a começar do século<br />
17, que apresentam esta espécie de lógica jurídica. Todos se esforçam<br />
para reduzir a ciência jurídica a um conjunto de teoremas.<br />
Procuram a matematização do direito.<br />
Para os positivistas, as regras de direito se unem num conjunto<br />
sistemático em razão de sua forma e de seu regime de produção,<br />
e não em razão de seu conteúdo. Assim, a dedução tem<br />
papel central no direito, principalmente na etapa da aplicação das<br />
leis às situações concretas, na passagem da regra de direito para a<br />
sentença judicial. Para alguns, o silogismo tem a preferência em<br />
relação ao modelo matemático. A obra do juiz seria um silogismo:<br />
a “menor” seria o caso em espécie, o “maior” seria expressa pela<br />
regra jurídica, e a “conclusão” seria constituída pela sentença judicial.<br />
É claro que há dificuldade de adaptar o caso concreto à norma<br />
jurídica, neste sistema conceptual. Entretanto, o importante é que<br />
a sentença seja deduzida analiticamente da regra, com ou sem silogismo.<br />
De outra forma não seria uma “solução jurídica”. O que é<br />
importante é a lógica, a lógica da dedução, que tem o seu lugar no<br />
mundo do direito, em razão deste ser uma produção ou uma construção<br />
do espírito humano.<br />
A atitude de indiferença, que Descartes e muitos de seus discípulos<br />
manifestaram com relação à lógica formal, pode explicar a<br />
duração, até atualmente, da ficção da construção de uma ciência<br />
do direito dedutiva. Não se sabe até quando os juristas levarão a<br />
lógica a sério na aplicação do direito. Indo às últimas consequências,<br />
a lógica jurídica dedutiva traz efeitos catastróficos. Aceitando-se<br />
como direito apenas o que se deduz da regra, chega-se a<br />
monstruosidades na vida prática. Foi o que percebeu Von Jhering<br />
(1818-1892), quando combateu a “lógica jurídica”, aquela levada<br />
impulso<br />
59
1 Ética a Nicômaco, 1129a<br />
2 Digesto, 1, 1, 6: “id quod<br />
justum est”.<br />
3 S. Th. 2 - 2ae, q. 57 a. 1<br />
ao extremo pela ciência do direito pandectista, a denominada<br />
“jurisprudência dos conceitos”.<br />
A crise de fé do jurista no valor da lógica chega a exageros.<br />
Ele deixa a produção das regras de direito ao capricho dos poderes<br />
de fato, à força, ao “curso da História”... Reagindo às doutrinas<br />
legalistas, aparecem o “intuitivismo”, o “direito livre”, a independência<br />
com relação à lei ou à lógica... Desta forma se torna impossível<br />
constituir uma ciência do direito. A realidade é que o dedutivismo<br />
lógico-jurídico da modernidade trouxe uma reação igual e<br />
contrária, que foi o irracionalismo jurídico...<br />
Direito e lógica jurídica se casam mal. Esta é opinião da<br />
maior parte dos lógicos, que não vêem com bons olhos a pretendida<br />
“ciência” do direito e nem o alegado “rigor” dos raciocínios<br />
jurídicos. Com relação aos juristas, bom número deles desconfia<br />
desta espécie de lógica.<br />
Na busca de uma solução viável, há que se evitar tanto o<br />
logicismo quanto o irracionalismo. Para isso há necessidade de se<br />
repensar o que seja a lógica jurídica e a idéia que se tem de direito.<br />
O direito como “o justo” é como entendiam os Antigos. Com<br />
efeito, entre os gregos o direito é “o justo” (tó díkaion). Aristóteles<br />
(384-322 a.C.) afirma que “vemos que todos os homens entendem<br />
por justiça aquela disposição de caráter que torna as pessoas prepensão<br />
a fazer o que é justo, que as faz agir justamente, e desejar<br />
o que é justo”. 1 O Digesto, também, afirma que o direito “é aquilo<br />
que é justo”. 2 A mesma visão foi continuada pelos glosadores e<br />
repetida por Tomás de Aquino (1225-1274). 3<br />
A solução justa, a boa solução jurídica, deve ser procurada<br />
para cada caso, necessitando ser adaptada a cada situação litigiosa.<br />
O direito dos Antigos era casuístico. Ele não é identificado com<br />
regras abstratas e gerais, saídas da cabeça do legislador ou de qualquer<br />
outro, mas com a solução concreta, que deve ser encontrada<br />
para cada caso.<br />
Isto não quer dizer que não haja regras. A vida social evoluiu<br />
tanto que não pode se dar ao luxo de viver sem normas. Entretanto,<br />
a relação das leis com o direito é que precisa ser determinada.<br />
Tanto na Grécia como em Roma, o Estado também legisla.<br />
Entretanto, as leis são tão pouco numerosas que se pode fazer abstração<br />
delas. O que existe, principalmente, são regras doutrinais<br />
produzidas pelos jurisconsultos. Elas servem de modelos, nascidos<br />
espontaneamente das relações jurídicas justas. Elas servem de<br />
guias para outras decisões. Contudo, essas regras não constituem<br />
60 impulso
“o direito”, porque elas são falíveis. Seus autores são particulares<br />
e, aparentemente, contraditórios. Há, pois, necessidade de compará-las<br />
a novos fatos e, para responder exatamente às condições<br />
de cada caso, cada solução deve se adaptar à “natureza da coisa”,<br />
à essência de cada caso.<br />
O método para isso é diferente. O discurso é outro. É uma<br />
outra espécie de ciência do direito. O método dos juristas romanos<br />
era controversial. As questões de direito aconteciam com disputas<br />
longas e rigorosamente conduzidas. Coisa totalmente diferente do<br />
“intuitivismo”, do apelo ao “sentimento” do direito, do “irracionalismo”...<br />
Os juristas romanos raciocinavam a partir de regras, pois<br />
existiam normas de direito neste regime: encontram-se leis positivas<br />
e, muito mais ainda, dispositivos doutrinais. O Digesto, que<br />
representa apenas uma pequena parte da literatura dos jurisconsultos<br />
romanos, foi uma fonte rica de inspiração para as codificações<br />
do século passado e início deste, principalmente no que se refere<br />
ao ramo do Direito Civil. Durante a Idade Média foi acrescentado<br />
um grande número de máximas e de brocardos.<br />
Nota-se que o método destes juristas não era o da passagem<br />
das regras à sentença. Não é um trabalho de pura dedução do<br />
direito a partir de normas.<br />
Por primeiro, não é possível extrair o direito de um processo<br />
de pura dedução, pois as regras são muito numerosas e, além<br />
disso, contraditórias. A ilusão, cara a Leibniz (1646-1716), de que<br />
as regras de direito romano formassem um todo homogêneo, está<br />
abandonada pelos romanistas. Os textos dos juristas romanos parecem<br />
constituir um conjunto de contradições. As regras de direito<br />
não formam a “unidade da ordem jurídica” com a qual sonhou<br />
Kelsen (1881-1973).<br />
Diante de tantas regras, de qual delas se extrairia o direito?<br />
Uma serve à causa de determinado pretendente, enquanto que<br />
outra serve à do seu adversário. A função do juiz seria a de escolher<br />
entre as normas aquela da qual ele extrairia o direito. O certo<br />
é que este trabalho não se executa pela via dedutiva.<br />
Em segundo lugar, existe uma razão que exclui a possibilidade<br />
de que a solução seja encontrada por inferência dedutiva:<br />
nenhuma das regras usadas pelos juristas consegue inferir a solução<br />
plenamente adaptada ao caso concreto. As normas foram estabelecidas<br />
pelos jurisconsultos trabalhando sobre precedentes, sobre<br />
impulso<br />
61
4 Cf. S. Th. 1 – 2ae, q. 93, a. 6<br />
casos mais ou menos parecidos, e não sobre princípios da razão<br />
pura ou a partir de uma lei da razão previamente conhecida.<br />
Nenhum destes precedentes é exatamente idêntico ao caso que se<br />
vai julgar. E o direito é entendido aqui como a solução concreta<br />
apropriada ao caso em espécie, à própria natureza da causa. A solução<br />
apropriada não pode ser extraída exclusivamente da lei prevista<br />
para casos diferentes. Há necessidade, pois, de uma outra fonte.<br />
A sentença, para ser justa, idealmente deveria se apoiar sobre<br />
uma regra. Entretanto, não existe esta regra pré-estabelecida. Ela é<br />
descoberta ao mesmo tempo em que é exarada a sentença. Se existisse<br />
esta norma pré-estabelecida, seria a “lei eterna”, na língua<br />
neotomista. 4 Entretanto, dela o homem não tem o respectivo<br />
segredo: Tomás de Aquino convida a procurar a ordem da lei<br />
eterna em seu reflexo, isto é, na natureza das coisas que mudam.<br />
O arsenal de regras oferecido pelos códigos é insuficiente. O<br />
Digesto proclama expressamente: Jus non a regula sumatur (o<br />
direito não seja tirado da regra). Os romanos não aceitavam um<br />
método exclusivamente dedutivo.<br />
Então, qual seria o método? Pode-se seguir o seguinte<br />
esboço:<br />
a) Por primeiro, o trabalho de pesquisa do direito não é<br />
monódico. A busca do direito se faz de várias formas, é uma obra<br />
polifônica. Com efeito, no esquema do judiciário, de onde sai a<br />
solução do direito, estão necessariamente presentes os advogados<br />
das partes, e também imprescindivelmente o representante da<br />
sociedade, dos terceiros que têm algum interesse no processo, e<br />
por último, o juiz que dá a conclusão. A luz sairá do embate entre<br />
os contendores contrários. O lugar da busca do direito era a controvérsia.<br />
b) Na controvérsia, exerciam-se ações diversas. Usava-se a<br />
dedução, pois o homem usa-a sempre. Cada advogado trazia os<br />
dispositivos legais que eram do interesse de seu cliente, e destes<br />
textos ele deduzia as conclusões que lhe interessavam. Entretanto,<br />
não é só o advogado que faz o direito. Não é ele que o faz em<br />
definitivo. Existe a figura do juiz, cuja função é presidir o confronto<br />
entre as diferentes regras alegadas. Discute-se a pertinência<br />
de cada regra, e sua relevância para o caso, ao tipo de processo<br />
em questão, à espécie em particular. Tudo isto tem a finalidade de<br />
62 impulso
escolher entre diferentes regras, por uma contínua referência ao<br />
caso concreto, dentro do arsenal contraditório de regras alegadas no<br />
processo; de procurar as mais adequadas no encontro da solução.<br />
Este trabalho nada tem de dedutivo.<br />
c) A solução não será tirada analiticamente, através do<br />
método dedutivo, de uma regra pré-existente. As regras servem de<br />
meio para se chegar à solução definitiva. Esta decorre da natureza<br />
do caso e não da análise da regra.<br />
Assim, se tal é o processo normal de invenção do direito, se<br />
não é da sua essência ser rigorosamente conforme a uma regra<br />
pré-estabelecida, compreende-se que a “ciência do direito” dificilmente<br />
terá uma forma axiomática. Com efeito, os “sistemas de<br />
direito” da Antiguidade, da Idade Média e até do século XVI têm<br />
uma estrutura diferente dos sistemas da época moderna: são classificações<br />
de casos, de tipos de negócios ou de questões, e não<br />
sistemas dedutivos de regras; Assim são o Digesto e as Institutas.<br />
É o contrário do que acontece com os tratados teóricos e abstratos,<br />
que afirmam um sistema dedutivo de regras; não merecem o<br />
nome de direito, pois não conseguem encontrar solução nova para<br />
o caso concreto. A idéia de direito construída por tais pensadores<br />
perdeu a sua essência. O direito não constitui pura dedução.<br />
Assim, também, a lógica jurídica pode ser tudo, menos um<br />
complexo de operações puramente dedutivas. Se há uma lógica,<br />
não é no sentido rigoroso do termo. Não é o desdobramento analítico<br />
de determinada questão dada previamente, mas a arte de<br />
conduzir dentro de certa ordem uma pesquisa ativa.<br />
Não se trata, aqui, de uma “lógica do necessário”. Os raciocínios<br />
da controvérsia jurídica não são do tipo constrangente. Só<br />
há premissas razoáveis, cujas inferências levam a uma solução<br />
jurídica. A verossimilhança está fundada em regras doutrinais ou<br />
na opinião de uma autoridade, podendo ambas ser discutidas.<br />
Este procedimento, se bem que seja racional, está contido inteiramente<br />
dentro do provável. A controvérsia judiciária do direito<br />
romano ou medieval tinha por objetivo chegar a um acordo o<br />
mais amplo possível entre as opiniões. Havia uma tentativa de se<br />
aproximar da verdade. Só, então, vinha a sentença.<br />
Não se trata, portanto, de uma lógica pura, da lógica formal.<br />
O discurso que levava das regras de direito à sentença não era<br />
impulso<br />
63
5 Ret. I, 1 e 14.<br />
feito através de “formas puras” do pensamento. Havia um vai-evem<br />
permanente entre os conceitos e o caso concreto que estava<br />
sendo analisado. No pensamento aristotélico-tomista, o mundo do<br />
pensamento não era separado do mundo das coisas, como aconteceu<br />
depois de Descartes e de Kant.<br />
Aristóteles sublinhava que existem setores imensos da obra<br />
intelectual humana onde não dá para usar o método perfeito da<br />
lógica formal descrita principalmente nos Analíticos. Como<br />
exemplo, citava a descoberta dos princípios na própria ciência e o<br />
universo da vida prática. O Estagirita tinha cultura universal:<br />
conhecia não só matemática, física, biologia, mas também as pesquisas<br />
ordenadas à vida prática, como aquelas que se usavam na<br />
ágora e nos tribunais. Ele sabia que aí devem ser adotados procedimentos<br />
adequados às controvérsias políticas e jurídicas.<br />
Para os que se interessam pela lógica do direito, há que se<br />
estudar as obras dialéticas de Aristóteles, principalmente os<br />
“Tópicos” e a “Retórica”. Ele estuda nos “Tópicos” a dialética.<br />
Esta é um método e uma arte, que permite responder sobre todas<br />
as questões, e que ensina a raciocinar, sem contradições, sobre a<br />
opinião. Em razão de estar fundada na “dóxa” (opinião), a dialética<br />
é uma arte, não uma ciência. Como lógica do provável, ela<br />
participa da verdade, já que ensina a raciocinar corretamente, partindo<br />
de proposições plausíveis.<br />
A “Retórica” de Aristóteles é uma verdadeira técnica, uma<br />
arte. Considera-a como um método persuasivo, cuja temática é<br />
“comum” a outras artes, e que a partir do comum estrutura as<br />
suas argumentações. Ela não trata dos princípios ou premissas<br />
básicas de cada ciência particular, mas dos tópicos, dos lugares<br />
ou conceitos que de u'a maneira semelhante são comuns a todas<br />
as coisas. Assim Aristóteles pode dizer que a retórica é correlativa<br />
da dialética. 5<br />
Nem a retórica e nem a dialética são disciplinas especiais.<br />
Todas as pessoas as usam durante a vida. Sempre que se ataca ou<br />
de defende uma opinião, pratica-se a dialética. Cada vez que se<br />
acusa ou se defende, sempre que se aconselha, que se censura ou<br />
se louva alguém, usa-se da retórica. Como a dialética e a retórica<br />
não se propõem demonstrar, elas podem estabelecer duas proposições<br />
opostas, em suas diversas modalidades. Entretanto, é o<br />
64 impulso
verdadeiro que se presta melhor para o raciocínio e a persuasão<br />
do que o falso. Como o médico, o dialético e o retórico não são<br />
obrigados a triunfar; uma vez feito o que podiam fazer, estão<br />
desobrigados de tudo o mais.<br />
CONCLUSÃO<br />
Hoje, a humanidade está longe do regime de produção do<br />
direito que existia na Roma clássica. Longe porque a educação<br />
hodierna condicionou o homem a crer que o direito é o produto do<br />
espírito do legislador. Há uma crença que direito é o direito positivo<br />
estabelecido nos códigos e demais dispositivos legais. A hermenêutica<br />
jurídica consiste na dedução de normas gerais de dispositivo<br />
que deve ser aplicado no caso concreto. Assim, o juiz deve<br />
deduzir automaticamente a sua sentença do código. Esta crença<br />
tem o seu fundamento: o mundo moderno o sacrificou por razões<br />
de segurança e de previsibilidade da vida social; ele é desconfiado<br />
do arbítrio do juiz. Em razão disso, o direito positivo cresceu<br />
incomparavelmente ao que era antes.<br />
Sabe-se que o trabalho efetivo do juiz consiste, ontem como<br />
hoje, em procurar a solução de direito pela via da dialética. Ele<br />
escolhe no conjunto das regras legais alegadas de parte a parte<br />
normas que não são concordantes entre si, e que não constituem<br />
nenhuma “ordem jurídica” homogênea. Busca além da regra legal,<br />
se for necessário. Cria novas regras para tornar a sentença adequada<br />
ao caso em espécie, que é sempre novo. As coisas mudam<br />
menos do que as novas maneiras de as ver.<br />
Nestas circunstâncias, existe na produção do direito uma<br />
parte que é viva e imprevisível. É ilusório querer construir uma<br />
ciência do direito totalmente axiomática. Um sistema coerente de<br />
regras, dentro de uma ordem jurídica, pode ser admirado como<br />
obra-prima de lógica formal, entretanto, ele está fora da realidade<br />
do direito. O direito, que deseja ser uma ciência, não pode jamais<br />
atender ao estatuto de uma ciência estável e rigorosa. Os sistemas<br />
não constituem o direito, estando ao seu lado. A verdadeira solução<br />
lhes escapa, porque a sua verdadeira fonte não reside nas<br />
regras, mas nas coisas.<br />
A melhor garantia contra o arbítrio do juiz e contra o “julgamento<br />
por eqüidade” não está na ficção de um regime dedutivo do<br />
direito, mas num sólido e consciente procedimento controversial.<br />
O cerne da lógica jurídica está no estudo da dialética.<br />
impulso<br />
65
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
AQUINATIS, Sanctus Thomas. Summa theologiae. 2ª ed. Madrid:<br />
BAC, 1956.<br />
ARISTÓTELES. Obras. 2ª ed. Madrid: Aguilar, 1973.<br />
AUGUSTI, Justiniani. Digesta. Milano: F. Vallardi, 1931.<br />
FASSÒ, Guido. Historia de la filosofía del derecho. 3ª ed. Madrid:<br />
Pirámide, 1982.<br />
KAUFMANN, Arthur, HASSEMER, Winfried. El pensamiento<br />
jurídico contemporaneo. Madrid: Debate, 1992.<br />
VILLEY, Michel. Seize essais de philosophie du droit. Paris: Dalloz,<br />
1969.<br />
VILLEY, Michel. Critique de la pensée juridique moderne. Paris:<br />
Dalloz, 1976.<br />
66 impulso
SEGURANÇA PÚBLICA E<br />
GARANTIAS INDIVIDUAIS SOB A<br />
AMEAÇA DA CRIMINALIDADE<br />
COMUM E ORGANIZADA NA<br />
VISÃO DE WINFRIED HASSEMER<br />
SAMUEL ZEM<br />
SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL DA POLÍTICA<br />
DE SEGURANÇA NA ALEMANHA<br />
A criminalidade e a violência preocupam, atualmente,<br />
de modo intenso, os cidadãos na República Federal<br />
Alemã. Uma política, com base antes na “garantia da<br />
liberdade” do que no “combate à criminalidade”, não<br />
pode minimizar o tema. 1<br />
1. Hassemer nos coloca hoje, na Alemanha, frente ao debate<br />
deste problema, que não é novo, embora muito importante. Notamos<br />
pelo que se noticia que, tanto lá, como cá, a dificuldade está<br />
em encontrar-se uma política que concilie, ao mesmo tempo, segurança<br />
pública, liberdades individuais, combate ao crime organizado<br />
e à criminalidade. Lá, todavia, a questão das garantias individuais<br />
assume um contorno mais nítido, e toda a discussão em<br />
torno do combate ao crime se passa, necessariamente, respeitandose<br />
esses princípios.<br />
1 HASSEMER, Winfried. Perspektiven<br />
einer neuen Kriminalpolitik.<br />
Innere Sicherheit im<br />
Rechtsstaat, Straftverteidigertag,<br />
v. 19, p. 15, Freiburg 1995.<br />
impulso<br />
67
A atual política neoliberal, que predomina, começa a preocupar.<br />
Não tem dado resultados satisfatórios, porque não privilegia um<br />
adequado modo para enfrentar a criminalidade, falta-lhe criatividade<br />
nos meios de intervenção. Houve por esta política uma adequação<br />
a um método, no qual a ênfase foi a uma maior pressão à<br />
opinião pública e aos meios típicos de investigação dos atos criminosos.<br />
Depara-se com o primeiro problema: como reduzir a<br />
recente intensificação da violência e da criminalidade sobre eles.<br />
A criminalidade e a violência sempre assustam, mas, em<br />
compensação, quando o Estado escolhe o recrudescimento das<br />
normas e os métodos usados chegam a ameaçar os direitos fundamentais,<br />
surge uma situação no mínimo curiosa: aqueles que não<br />
vêem com bons olhos tais métodos se escandalizam, enquanto os<br />
outros ficam fascinados. Por que tais métodos atraem? Certamente<br />
quem acredita vê neles a solução.<br />
Mas, não é tão simples assim. Temos não apenas um tipo de<br />
criminalidade, mas pelo menos dois. Hassemer não quer que sejamos<br />
ingênuos. A criminalidade organizada, por este mesmo<br />
motivo, não se deixa conhecer em profundidade; por isto dá ensejo<br />
a que se ameace o plano de combate com propostas que podem<br />
interferir na privacidade. Por outro lado, a criminalidade de massa,<br />
por seu volume, já não é mais possível controlar. A impotência dos<br />
atuais métodos põe o Estado em xeque. Surge daí a ameaça de se<br />
lançar mão de métodos que possam ferir a dignidade das pessoas.<br />
O processo de intervenção do Estado no combate ao crime,<br />
em vez de ser de ordem da Política Criminal, vira apenas caso de<br />
polícia, não há o debate político. Sabe-se que na Alemanha as<br />
questões de segurança interna são sempre um tema tabu, porque se<br />
teme que uma eficiente intervenção estatal com polícia secreta e<br />
seu aparato descambe para um Estado do tipo intervencionista. A<br />
tendência da atual política, no entanto, é sempre no sentido de<br />
aumentar a intervenção policial.<br />
A presença da polícia não deve ser afastada, na visão de Hassemer,<br />
porém não se pode creditar a ela a solução de todo o problema.<br />
Nem tudo o que é desejável é factível.<br />
2. Sabe-se que a política conservadora usa do tema criminalidade<br />
e seu combate para sua sustentação, e vem sendo pressionada<br />
pelas exigências de um combate eficaz. Aparece aí um conflito.<br />
Não se pode sacrificar a liberdade em nome da segurança, e a política<br />
de liberdade com segurança, além de não estar sendo lembrada,<br />
fica impotente frente aos arroubos populistas destes conservadores.<br />
68 impulso
Desta política conservadora resulta que a ênfase acaba sendo<br />
no Direito e na Ordem, por serem um campo onde eles têm maior<br />
atuação, e acabam resultando no acatamento pela opinião pública.<br />
O sentimento de ameaça e a impotência dos Estados acabam<br />
determinando que se apóie tal tipo política.<br />
Por que ênfase no Direito e na Ordem? Como adiante se<br />
verá, não se resolve questão dessa envergadura apenas com mais<br />
leis e mais policiamento. O Direito aqui é o ordenamento positivo<br />
penal, enquanto a Ordem representa o sistema policial organizado<br />
e repressivo. A opinião pública aceita a implementação desta política,<br />
porque, acuada pelo clima geral de insegurança gerada pela<br />
mídia, se predispõe favoravelmente a este tipo de discurso.<br />
Os conservadores exploram a opinião pública, temerosa<br />
frente ao aumento da criminalidade organizada, porém não tomam<br />
atitudes frente ao problema, limitam-se a apontá-lo, sem todavia<br />
encaminhá-lo para uma solução. E os crimes aumentam.<br />
Essa tranquilidade do poder criminoso atua no sentido de<br />
levar-se a pensar em sacrificar as liberdades individuais. Os direitos<br />
fundamentais dos cidadãos são informalmente quebrados, e<br />
qualquer proteção aos dados pessoais não é vista pelos combatentes<br />
do crime senão como qualquer direito liberal e são rotulados<br />
de exagerados e distantes da vida. Isso significa que, em nome do<br />
combate ao crime, se vilipendiam os valores humanos e seus<br />
direitos. Revela, como já se disse acima, falta de criatividade<br />
frente ao problema.<br />
A crítica não é somente aos conservadores, mas também<br />
àqueles que deveriam expor e defender as tradições, especialmente<br />
uma política criminal estatal de liberdade com segurança pública e<br />
direitos fundamentais de segurança que não é adequadamente<br />
exposta. Significa que aqueles que têm o bastão da defesa dos<br />
direitos individuais deveriam se esforçar mais, pois o recrudescimento<br />
da intervenção policial não é só o resultado de uma política<br />
conservadora, mas também da inércia daqueles.<br />
CRIMINALIDADE DE MASSA E<br />
CRIMINALIDADE ORGANIZADA<br />
3. O fato de a população acreditar que a questão central da<br />
criminalidade reside no combate à criminalidade de massa, dificulta<br />
o combate a criminidade em geral. Todavia, frente às garantias<br />
constitucionais, o crime organizado, que é em grande parte<br />
impulso<br />
69
esponsável por aquele, tem seu combate obstruído, tornando a<br />
situação tensa. Esta é a questão-chave do problema; precisa-se<br />
tocar naquelas garantias para tentar resolvê-la.<br />
Face aos diversos tipos de crime, que aumentam em quantidade,<br />
enquanto os casos solucionados diminuem, fica a população<br />
à mercê, impotente, não só corporal e economicamente falando,<br />
mas psicológica e normativamente. Essa estranha isenção e inércia<br />
coloca a população em xeque diante da força do Direito.<br />
A colocação é crucial: deseja-se sempre que a prepotência<br />
social, que aponta sempre para uma solução de intervenção, seja<br />
minimizada, porém, a necessidade de combate ao crime com as<br />
medidas que devem ser tomadas vai em sentido contrário. Tornase<br />
então, em ausência de segurança para os mais fracos. O Direito<br />
tem, entre outras tarefas, a de garantir o cidadão frente à prepotência<br />
do Estado. Surge, por isto, a necessidade de se discutir a utilização<br />
de outros métodos, que não somente o uso da Polícia e do<br />
Direito, porque nas formas de criminalidade organizada, na maioria<br />
das vezes, não estão presentes. Pode-se pensar na aplicação de<br />
prevenção técnica, maior presença policial, mudança no modo de<br />
vida da juventude, inovação na política de drogas, etc.<br />
Desta forma, o problema é relativizado e trazido para a discussão<br />
dentro do contexto da necessidade diária das pessoas com<br />
segurança e liberdade.<br />
4. Todavia, a tática que se utiliza do medo das pessoas diante<br />
da criminalidade de massa, mantendo-as alheias ao debate do problema<br />
da criminalidade de massa, é de cunho populista. O temor<br />
ao criminoso e a debilidade estatal frente a isto tornam-se um<br />
grave problema.<br />
A criminalidade tem estado aí por um longo tempo: arrombamento<br />
de residências, roubo e usualmente a violência contra os<br />
fracos na rua, furtos de automóveis e bicicletas, e recentemente a<br />
dissimulada violência contra os estrangeiros. É obvio que a origem<br />
destas formas de criminalidade está mais profunda, como por<br />
exemplo, o comércio internacional de drogas e armas, e exige<br />
outras formas de intervenção. Uma nova política de intervenção<br />
aponta para o combate deste tipo de criminalidade como forma de<br />
se diminuir a criminalidade de massa.<br />
Como método de trabalho, teríamos primeiro que fazer um<br />
completo levantamento das formas de criminalidade, para conhecermos<br />
nas suas origens, e, a partir daí darmos combate a eles.<br />
70 impulso
5. A criminalidade organizada é bem menor que a de massa,<br />
e certamente não subsiste sozinha, ela depende da criminalidade<br />
de massa e a fomenta. Então, ao combater a criminalidade organizada,<br />
estaríamos combatendo a criminalidade de massa. Também<br />
a corrupção no legislativo, executivo e judiciário.<br />
Necessitamos conhecer melhor a criminalidade organizada,<br />
as investigações estão no início e existe a possibilidade de uma<br />
confiante explicação criminológica.<br />
Há explicações que o colocam com um enorme potencial de<br />
ameaça, o que provocou até agora mudanças quantitativas na<br />
estrutura de seu combate, como pena e Direito Processual Penal.<br />
Porém não se pode olvidar que no combate ao crime organizado<br />
deve-se passar por uma mudança qualitativa. O potencial de ameaça<br />
do crime organizado manifesta-se pela usurpação das instâncias<br />
estatais, que influenciam a definição, esclarecimento ou condenação<br />
do criminoso. Confunde-se, portanto, as fronteiras de criminalidade<br />
e combate à criminalidade. O combate ao crime organizado<br />
deve guiar-se pela prevenção oportuna.<br />
Hassemer descreve a criminalidade organizada como um<br />
fenômeno ágil, que acompanha o mercado, um tanto escasso (lá),<br />
e que conta com múltiplos meios de acobertamento. No Brasil, o<br />
que se observa, no caso do tráfico, em especial no Rio de Janeiro,<br />
é a substituição do próprio Estado, inclusive nas questões sociais<br />
dos moradores dos morros e subúrbios.<br />
Um Estado duplamente impotente gera este tipo de solução,<br />
os espaços antes ocupados pela assistência social e policial estatal,<br />
agora são reduto do crime organizado. Ouve-se falar em divisão<br />
dos espaços de atuação dos diversos grupos, e mais recentemente,<br />
a partilha por atividade, em que determinado grupo se encarrega<br />
do tráfico de armas, enquanto outros se concentram na distribuição<br />
de drogas ou assaltos a carros-fortes e seqüestros. De um modo<br />
geral, o fenônemo tende a seguir a mesma técnica de divisão e<br />
atribuição das tarefas que qualquer empresa capitalista organizada<br />
pratica.<br />
Uma das questões sérias, a nosso ver, diz respeito ao argumento<br />
que países produtores usam, quando países consumidores<br />
como os Estados Unidos os acusam de lassidão no combate a produção.<br />
Este argumento é o de que se não houvesse mercado não<br />
haveria produtor. Nada mais óbvio; no entanto, sempre haverão<br />
impulso<br />
71
produtores e consumidores, e a minimização do problema certamente<br />
não se faz com penas duras e repressão policial.<br />
Ele pensa que até se saberia como combatê-la, mas seria uma<br />
postura ingênua. Seria, frente a uma situação ameaçadora e frente<br />
a um inimigo desconhecido, por ignorância criminológica, sair<br />
“atirando às cegas”. Uma política criminal, no caso, deve lançar<br />
mão de considerável força, engajando-a para o esclarecimento criminológico.<br />
Necessita ao máximo se assegurar dos meios para<br />
atingir o alvo. A experimentação científica dos assertos das ciências<br />
filosóficas deve ser permanente e feita de modo seguro.<br />
O ESTREITAMENTO DO <strong>DIREITO</strong><br />
6. O sistema policial é impotente diante da criminalidade<br />
organizada. Também o Direito Penal tem sido reduzido em detrimento<br />
dos direitos fundamentais. Resulta que princípios consagrados<br />
são postos de lado, como o in dubio pro reo, a lisura na averiguação.<br />
Embora colocados como legítimos pelas autoridades,<br />
diversos meios como vigilância telefônica, grampos, confisco,<br />
penalização pela lavagem do dinheiro, etc, o que não é pouco,<br />
muita coisa ainda deve ser feita.<br />
Mas não é esse o ponto da discussão. As autoridades põem<br />
esses meios como irrenunciáveis, o que é prova da debilidade<br />
argumentativa, de uma orientação com base no direito de uma<br />
política de segurança.<br />
7. A aceitação desses métodos leva à transformação do<br />
direito estatal, nivela os limites entre polícia e direito processual<br />
penal, os métodos de investigação como vigilância telefônica,<br />
observação policial, observação velada, estendem-se necessariamente<br />
sobre um terceiro “desinteressado”, vale dizer, inocente.<br />
Estes métodos levam a um agravamento, como a ampliação da<br />
escuta telefônica, ao flagrante preparado e à entrada dos meios oficiais<br />
secretos no combate à criminalidade. Isto não traz muitas utilidades,<br />
mas certamente muitos danos.<br />
Não dá para se dizer que resultado tem dado o agravamento,<br />
se positivo ou negativo. A necessidade de informação não é uma<br />
ciência teórica da vontade, mas a preocupação de intervenção do<br />
Direito, que observa de cima, vale dizer, do ponto de vista do<br />
poder.<br />
Embora tudo isso tenha sido posto em ação, sabe-se que o<br />
foram de maneira superficial. Os legisladores conhecem que, por<br />
72 impulso
exemplos: a vigilância telefônica esbarra nos avanços tecnológicos,<br />
os bloqueios de rua, na correta conduta das pessoas. O acompanhamento<br />
do suspeito, na Alemanha, choca com problemas<br />
étnicos, não se dispõem. Não se pode usar indiscriminadamente<br />
as permissões constitucionais.<br />
O Estado não deve usar dos mesmos métodos, que persegue,<br />
por exemplo, a privacidade do cidadão é invadida, quando ele abre<br />
as portas de sua residência para o levantamento de um crime ocorrido<br />
dentro dela, mas é legitimada em nome da elucidação. O contrário<br />
se dá, quando ela é invadida, pela polícia para uma batida;<br />
aí, o Estado se coloca no mesmo nível do criminoso. Então, a<br />
fronteira entre crime e seu combate desaparece.<br />
Se o Estado usa desses métodos, mesmo sendo constitucional,<br />
acaba a transparência, tanto para o surpreendido como para a<br />
publicidade em geral.<br />
Hassemer anota que as pessoas de um modo geral, quando a<br />
ameaça é especialmente grave, abrem mão de suas garantias constitucionais.<br />
Porém, frente a tal situação, requer-se uma posição de<br />
ponderação, cuja visão não seja restrita ao caso.<br />
QUESTÕES DE FUNDO<br />
8. Não se pode falar em sociedade sem pensar nos riscos que<br />
existem; eles fazem parte do nosso cotidiano. A sociedade de risco<br />
vislumbra crescente dificuldade; essas relações crescentes antecipam<br />
ameaças difusas. Significa que não devemos pressupor menos<br />
prejuízo do o esperado, nem melhorar o prejuízo já ocorrido. Isso<br />
gera uma tendência: há a fortificação dos fortes e o enfraquecimento<br />
dos fracos. As instituições de controle social, como a<br />
família, a vizinhança, e a comunidade escolar têm perdido a suas<br />
força. Diante disso, fazer-se normas, sem profundas investigações,<br />
é anacrônico.<br />
Uma visão não científica reforça a tese de que deve haver um<br />
recrudescimento dos meios de repressão. Enquanto isso, um<br />
grande número de pessoas faz seu futuro incerto. A falta de instrução,<br />
de empregos, o aumento das rendas, do aluguel, dos custos<br />
com saúde, resulta: a crescente chance dos hábeis para enriquecer<br />
e ascender socialmente; o relativo empobrecimento dos outros.<br />
Esta postura é que nos leva a ser contrários à criminalidade e a<br />
violência. A norma social, da qual a norma do Direito depende,<br />
deve ser modificada a longo prazo. Num mundo de “diabos”, nem<br />
a polícia nem o Direito têm chance.<br />
impulso<br />
73
9. Contrariamente existem fenômenos superficiais. A violência<br />
na televisão, que é feita para o prazer, não é a fonte da<br />
desgraça, mas o prenúncio. Essa orientação para a violência é<br />
nata, a sua representação não teria resultado se não o fosse. Isto<br />
significa que se fosse possível atingir a personalidade das pessoas<br />
com a violência pela televisão seria possível também modificá-las<br />
para o bem.<br />
Não é apenas a ameaça que determina a política de segurança<br />
pública, porém a observação das reações das pessoas. O Estado é<br />
mais sensível a este fator. São exigências para uma maior intervenção<br />
estatal, elas autorizam a ação e a intervenção. Em vista disso,<br />
não há uma relação direta entre a ameaça e o sentimento de ameaça;<br />
um crime de reduzida probabilidade pode gerar um clamor<br />
maior pelo sentimento de ameaça do que crimes mais freqüentes,<br />
porém com potencial de ameaça menor. Pequenos furtos acontecem<br />
em maior número, seqüestros em número reduzidíssimos,<br />
porém o potencial de ameaça é maior neste último.<br />
A política deve, então, trabalhar com as condições de origem<br />
da ameaça, e isto se complica à primeira vista. Os detalhes não<br />
foram ainda pesquisados, quais os fatores que tornam a ameaça<br />
concreta. O processo de erosão da norma baseia-se que eles são o<br />
resultado da desestabilização normativa. O sentimento de ameaça<br />
é difuso e então não há diferenças, por princípio, da ameaça criminal<br />
e ameaça concreta.<br />
CAMINHOS<br />
10. A posição de estabilidade da norma se justifica porque<br />
não há uma panacéia atuante contra a violência e criminalidade. O<br />
caminho correto tende muito mais para uma política interna pragmática,<br />
diferenciada e orientada para o futuro.<br />
Tanto o receio da criminalidade como a criminalidade tem<br />
raízes profundas. Uma correta política criminal deve procurar e<br />
identificar as prioridades e reduzir as intervenções permitidas, que<br />
estejam na lista das autoridades. Deve também procurar e anular a<br />
ingerência que a política de segurança tem hoje, para adequá-la à<br />
medida correta.<br />
Isto significa que a política de segurança pública deve conciliar<br />
a efetividade policial com garantias de direito constitucional e<br />
penal. Tem que se mostrar: é política de segurança sem respeito à<br />
juventude, trabalho, o social; cultura por muito tempo de uma<br />
74 impulso
organização sem esperança. Isto torna a política de segurança<br />
interna sem sentido.<br />
A reflexão sobre a política de segurança deve ser pragmática.<br />
A ocupação científica criminológica deve selecionar os temas a<br />
tratar, para não ficar apenas nos problemas do dia-a-dia; deve recusar<br />
medidas dogmáticas escolásticas como a escuta clandestina.<br />
Precisamos tomar uma posição frente aos problemas da violência<br />
para sabermos quais meios usar em contrário.<br />
Uma política pragmática deve ser versátil e reconhecer<br />
quando necessário fazer as mudanças e então fazê-las. O que tem<br />
ocorrido é de uma intervenção ser posta no Código Penal e lá permanecer.<br />
A política pragmática, ao contrário, não conta somente<br />
com a obtenção de acerto ou erro, mas também com resultados<br />
aproximados, não claramente entendidos, mas necessários. Além<br />
do endurecimento, a política de segurança deve ter em seu programa<br />
também consideração correção e moderação.<br />
A resposta política para a criminalidade deve ser apta para<br />
distinguir entre criminalidade de massa e criminalidade organizada.<br />
Podemos, é claro, por causa da ameaça, pensar em mudança<br />
do processo não a longo prazo, porém devem ser pensadas sob<br />
uma perspectiva de longo prazo. Significa que não devemos ser<br />
imediatistas.<br />
11. A política criminal atual deve abrandar os meios, como<br />
conseqüência da sociedade de risco. Deve diminuir o fechamento<br />
da sociedade e a conseqüência disto e um abrandamento para as<br />
pessoas.<br />
Intervenções nas normas, na economia e na solidarização da<br />
sociedade são intervenções políticas diretas. Mas em que amplitude<br />
seria desejável o retrocesso. “Modernização não se pode<br />
‘recusar’, vive-se nela”. 2<br />
A politica interna pode também até certo ponto desgastar ou<br />
distribuir o resultado da modernização, quer apele para o retrocesso<br />
ou para a modernização. Aqui há uma chance de vida, dos<br />
fracos, das crianças, da juventude, dos velhos e dos estrangeiros. A<br />
política social, que é a melhor política criminal, vale nesta relação<br />
desde antigamente. 3<br />
Isto ainda não é um programa prestimoso, mas é uma política<br />
de curto prazo, para obter resultados de longo prazo.<br />
O patriotismo leva a uma solidarização da sociedade (nacionalismo).<br />
Uma política de fechamento, não só econômico, mas de<br />
parâmetros normativos, pode tornar, pela tradição dos países<br />
2 HASSEMER, Winfried, op.<br />
cit., p. 19.<br />
3 HASSEMER, Winfried, op.<br />
cit., p. 19.<br />
impulso<br />
75
europeus e em especial pela história recente da Alemanha um<br />
fermento e desenvolver uma consciência de solidariedade e<br />
comunhão no cidadão. Seria uma barreira contra a decadência da<br />
sociedade e o deslize para a criminalidade. Mas, precisamos ponderar<br />
os direitos fundamentais, quando pensarmos em efetividade<br />
policial um contra o outro.<br />
Para uma perspectiva de longo prazo, nossa discussão favorece<br />
a segurança em detrimento do aspecto político. Devemos ter<br />
em vista que os elementos de um eficiente e técnico controle do<br />
crime são fixados a longo prazo, porém apenas superficialmente os<br />
olhamos. Uma política de segurança seria melhor debatida entre<br />
os cidadão interessados do que com os experts. O debate entre<br />
estes contempla apenas questões criminalísticas. Isto, sem dúvida,<br />
não parece ser favorável, pelo enfraquecimento do meio político,<br />
pois retira uma tendencial solução do problema pelo meio, através<br />
do acobertamento da observação. Para a política de segurança<br />
interna, é, a longo prazo, perigoso o estar orientada sob este setor,<br />
pois a sociedade sozinha pode não se livrar do problema da violência<br />
e da criminalidade.<br />
12. Uma política pragmática deve prevalecer sobre os conflitos<br />
de crença. Nós devemos a distintas forma de criminalidade<br />
com distintas formas de combate responder. Precisa-se caminhar a<br />
passos firmes.<br />
A atual política policial dá resultados, por exemplo, sobre<br />
aquelas formas de crime que assustam diretamente os cidadãos,<br />
que se utilizam de seguranças profissionais particulares, o que é<br />
uma política de segurança escandalosa, direito estatal perigoso,<br />
pois privatiza um meio natural que é o âmago da estatização, também<br />
desproporção entre rico e pobre em segurança diante do criminoso,<br />
prejuízo na construção da norma, nos direitos fundamentais<br />
de segurança e no controle estatal do combate aos criminosos.<br />
Uma política de segurança pragmática se assentará não<br />
somente em um novo regulamento de direito policial e processual<br />
penal, mas numa mudança não muito acentuada: equipamento e<br />
presença da polícia, posição política melhorada, preparação e<br />
remuneração, prevenção técnica melhorada, regulamentação da<br />
entrada para serviços de segurança e vigilância, ênfase reforçada<br />
no fator humano em vez do tecnológico, etc. Certamente com<br />
esses meios será obtida uma segurança muito mais eficaz dos<br />
cidadãos.<br />
76 impulso
Outro aspecto importante é abrandar o direito penal, até descriminalizar,<br />
naqueles casos em que este, mesmo sendo brando (na<br />
Alemanha), age contraprodutivo, em especial a política das drogas.<br />
A política de drogas é um dos poucos campos onde a criminalidade<br />
de massa e a criminalidade organizada tocam-se um no<br />
outro: criminalidade organizada é antes de tudo o comércio internacional<br />
com narcóticos; o recrutamento da criminalidade entre<br />
dependentes de drogas constitui de novo uma boa parte de nossa<br />
criminalidade de massa. Também é urgente encontrar aqui uma<br />
saída segura politicamente. 4<br />
Como se pode observar, o consumo de drogas é combatido<br />
pelos males que causa à saúde e pela dependência que cria. Mas<br />
também não se pode negar, como observa Hassemer, que a dependência<br />
leva a prática de outros crimes, de natureza criminal desorganizada,<br />
tais como furtos, roubos, extorsão, etc; também leva o<br />
dependente a participar do esquema organizado, pois aí há um<br />
plus de exigência comercial do meio: dependentes se relacionam<br />
melhor com outros dependentes; também para dissimular o tráfico,<br />
já que na maioria das vezes os traficantes-dependentes são pessoas<br />
de bom nível social. O tráfico não sobreviveria somente com os<br />
consumidores de baixa renda. Desse comprometimento dependente-traficante<br />
nascem problemas de todo tipo que não se pode<br />
resolver com apenas proibição e pena.<br />
Desta forma, o problema das drogas deixa de ser só do<br />
Direito Penal, mas também da saúde pública. O mercado negro<br />
agradece a esses tipos de intervenção, que lhes dá ganhos exorbitantes.<br />
Enquanto seus lucros sobem, sobem também o número dos<br />
contágios, dos óbitos e a tentação do dependente. Hassemer não<br />
defende a “heroína na drogaria”, mas uma gradual liberalização no<br />
direito penal das drogas e uma experiência controlada, de tratamento<br />
dos dependentes, acompanhando passo a passo e protegendo-os,<br />
e ao final estabelecendo-se uma política de drogas,<br />
semelhante às que existem para o tabaco, álcool e medicamentos,<br />
com severo controle estatal da produção e distribuição, porém sem<br />
penas. Proscrição das drogas, porém, com ajuda diferenciada aos<br />
dependentes.<br />
Este entendimento se baseia em que não é possível o extermínio<br />
total das drogas. Isto vem sendo tentado há muito tempo,<br />
não é nem viável nem suportável pelo Estado. Então, uma política<br />
pragmática no sentido não de liberar mas de a médio prazo controlar<br />
é uma perspectiva. A criminalidade existe na sociedade, é uma<br />
4 HASSEMER, Winfried, op.<br />
cit., p. 20.<br />
impulso<br />
77
5 HASSEMER, Winfried, op.<br />
cit., p. 20.<br />
6 HASSEMER, Winfried, op.<br />
cit., p. 21.<br />
“sociedade de risco” e o ser humano tem que conviver com ela, e<br />
essa criminalidade em grande parte é gerada pelos fatores acima<br />
apontados.<br />
Sempre foi o sonho de países autoritários, como a ex-DDR,<br />
uma sociedade livre da criminalidade, como nos contos de fada,<br />
porém a realidade mostra que se tem que afrouxar os parafusos<br />
dessa regulagem. Política criminal pragmática deve trabalhar com<br />
a possibilidade da continuidade da criminalidade. Com isso se<br />
evita o exacerbamento dos meios policiais e penais e se restabelece<br />
um equilíbrio entre o direito à segurança e o direito dos atingidos<br />
por esse flagelo.<br />
13. E volta-se ao começo: tudo deve ser amplamente debatido,<br />
acerca das dimensões do direito à liberdade que foi quase por<br />
inteiro perdido. Deve-se angariar a compreensão dos ultrapassados<br />
para com os direitos fundamentais, os quais não são estorvo para<br />
um trabalho policial razoável. Não podemos esquecer que o criminoso<br />
não traz uma marca identificável; assim, uma investigação<br />
ilimitada pode não saber fazer a distinção entre o “bom” e o<br />
“mau” cidadão. Na Europa a presunção de inocência vale, e, no<br />
entanto, se investiga mesmo não havendo um autor, mas apenas<br />
um suspeito. Quem debate o tema deve afastar esse tipo de manipulação<br />
verbal.<br />
Toda intervenção deve, apesar dos conflitos de crença, preservar<br />
os direitos fundamentais. Isto significa que devemos concentrar<br />
e controlar toda intervenção. Não se pode generalizar a<br />
intervenção estatal nas investigações. Quanto mais precisa a intervenção<br />
sobre seu alvo for posta, tanto mais antes pode ela ser<br />
aceita, porque ela tanto menos dano normativo faz. 5 Pois atingese,<br />
na melhor das hipóteses, o suspeito, também o inocente e um<br />
realmente não envolvido. Quanto mais exatamente se atingir o<br />
alvo, menos dano jurídico se traz e torna a intervenção aceitável.<br />
O princípio determina: quanto menos, para o ofendido e a opinião<br />
pública, um direito fundamental de intervenção é controlável,<br />
tanto mais é ele insuportável normativamente. 6<br />
O que se pretende é um controle dos meios investigatórios do<br />
Estado. Não se pode em nome do combate à criminalidade organizada<br />
deixar ao arbítrio da polícia o uso de meios intervencionistas<br />
na privacidade dos cidadãos, tais como escuta clandestina de telefone<br />
(grampo), invasão de residências, prisão de suspeitos etc,<br />
porque pode ocorrer que, em virtude da ameaça, o cidadão concorde<br />
com tais arbítrios. Aqui cabe uma indagação: mas seria preferível<br />
78 impulso
sacrificar as garantias individuais em nome do combate ao crime<br />
organizado, sendo que há outros meios, como uma política de saúde<br />
com gradual liberalização do uso das drogas pelos dependentes, que<br />
certamente determina uma redução na criminalidade comum.<br />
CONCLUSÃO<br />
14. As questões levantadas por Hassemer estão na ordem do<br />
dia em todos os países em que o Estado Democrático de Direito<br />
impera e que adotam em suas constituições os princípios da dignidade<br />
humana, da liberdade, do respeito à privacidade, à intimidade<br />
e a segurança e a livre disposição dos bens etc.<br />
Exatamente por isto é que o debate se inflama. A questão é<br />
como conciliar estes direitos conquistados, com o combate à<br />
criminalidade, se o crime se acoberta atrás desses.<br />
Outro ponto que se levanta relativamente a este é: se não dá<br />
para conciliar, qual deles se deve sacrificar? Se a opção for a favor<br />
da segurança e da propriedade, onde poderá chegar; ou se for<br />
pelos primeiros, que conseqüências trará. Creio que a segunda<br />
alternativa é a única que realmente não traz prejuízos. Os direitos<br />
individuais constitucionais conquistados a duras penas, não podem<br />
ser sacrificados em nome de uma falsa segurança, aliás o discurso<br />
da segurança sempre norteou as iniciativas políticas que acabaram<br />
por destruí-la.<br />
Os povos, via de regra, apoiam o recrudescimento dos meios<br />
repressivos, mas se esquecem facilmente dos seus resultados tão<br />
logo eles cessam. A violência deste meios não é sempre visível nem<br />
se dá a eles o mesmo destaque que se dá à criminalidade comum.<br />
Assim, é recomendável a aplicação de novas política de<br />
segurança e de saúde públicas com outros meios, alguns já disponíveis,<br />
e que têm eficácia estatisticamente comprovada, como a<br />
educação, a melhoria do nível sócio-econômico, e, no caso dos<br />
dependentes, o tratamento controlado e outros. Seus custos não<br />
são baixos, mas se comparados às demais medidas como o<br />
aumento do aparato policial, construção de presídios, etc, certamente<br />
não haverá prejuízo. A outra opção é muito perigosa e seu<br />
implemento por si só já é uma insegurança.<br />
impulso<br />
79
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA<br />
HASSEMER, Winfried. Prespektiven einer neuen Kriminalpolitik.<br />
Innere Sicherheit im Rechtsstaat, Straftverteidigertag, v. 19,<br />
Freiburg 1995.<br />
80 impulso
BASES DO <strong>DIREITO</strong> PENAL<br />
NO ESTADO DEMOCRÁTICO<br />
DE <strong>DIREITO</strong><br />
A. L. CHAVES CAMARGO<br />
Os direitos fundamentais, em geral, são objeto de sérios conflitos<br />
no âmbito do Direito Penal, diante do significado ambivalente,<br />
que ainda pauta nossa sistemática.<br />
Busca-se um meio para prevenir a delinqüência, ao mesmo<br />
tempo em que a intervenção indiscriminada do Estado colide com<br />
os princípios básicos do direito penal, no Estado Democrático de<br />
Direito.<br />
O conflito está em cada setor da atividade jurídica brasileira,<br />
tendo sido criadas várias comissões, que pretendem fazer cumprir<br />
a Constituição Federal, no que diz respeito aos direitos fundamentais,<br />
porque estes são os reflexos da dignidade da pessoa humana. 1<br />
A discussão, entretanto, se mantém sob uma diretriz meramente<br />
formal, pois ainda não há uma consciência, ou uma linha,<br />
para a aplicação e execução das normas penais. Este fato está, intimamente,<br />
ligado à estagnação das idéias penais, no Brasil, que não<br />
conseguiu superar a fase de um dogmatismo exagerado, ou seja,<br />
uma postura crítica direcionada para um direito penal moderno.<br />
A pretensão de avanço das idéias penais esbarra num reflexo,<br />
ainda patente, de um longo período autoritário, onde a intervenção<br />
do Estado não tinha limites, justificada pelo aumento da criminalidade<br />
e paralela repressão punitiva, com penas exacerbadas e argumentos<br />
de caráter moral, já afastados do direito penal moderno. 2<br />
1 A dignidade da pessoa humana<br />
é um dos fundamentos do<br />
Estado Democrático de Direito,<br />
artigo 1º, III, da Constituição<br />
Federal.<br />
2 Vide a lei dos chamados “crimes<br />
hediondos”, que tem fundamento<br />
na Constituição Federal,<br />
artigo 5º, XLIII, totalmente<br />
incompatível com os princípios<br />
do Estado Democrático de<br />
Direito.<br />
impulso<br />
81
3 No caso brasileiro, quando se<br />
trata da discussão sobre temas,<br />
tabus, como, por exemplo, imputabilidade<br />
penal, aborto, transexualismo,<br />
etc., a pauta dos<br />
debates é o aspecto moral, ou<br />
moralista, das diversas facções,<br />
sem muita preocupação com os<br />
direitos fundamentais.<br />
A própria denominação de “crimes hediondos” reflete a<br />
índole moral, que ainda sustenta várias posturas de juristas pátrios,<br />
causando, na prática, sérias conseqüências pela rigidez das penas e<br />
pelo impedimento de benefícios previstos para os demais crimes.<br />
O sistema progressivo, na execução penal, foi deixado de lado, e<br />
os institutos, já consagrados em nosso Direito, da fiança, liberdade<br />
provisória e da prescrição foram esquecidos.<br />
Até o momento, não se conseguiu conceituar o que é crime<br />
hediondo, a não ser através da retrógrada visão do direito penal do<br />
resultado. A discussão dos direitos humanos, no âmbito jurídico,<br />
deve ter como meta o respeito à dignidade da pessoa humana,<br />
afastadas as dimensões meramente formais, que colidem com o<br />
fundamento da legitimação.<br />
O caráter social dos direitos humanos é dado, na sociedade<br />
moderna, por ser uma sociedade pluralista, que oferece condições<br />
para o exercício efetivo destes direitos, não só pela maioria, mas<br />
também, pela minoria.<br />
A Constituição Brasileira no seu artigo 5º enumera os direitos<br />
fundamentais, ao mesmo tempo em que estabelece a proteção<br />
destes direitos. A complexidade do Estado moderno, entretanto,<br />
leva a conflitos entre a regulamentação da proteção destes direitos<br />
fundamentais e a tarefa dos legisladores. Muitas vezes, na ânsia de<br />
proteção a determinados direitos, o legislador ultrapassa a barreira<br />
ou limites estabelecidos pelos direitos fundamentais.<br />
O conflito se acentua quando há necessidade de proteção a<br />
determinados bens jurídicos e, para tanto, o legislador, visando à<br />
segurança social, vê-se diante de um problema, que deve ser resolvido,<br />
em razão do futuro da própria sociedade. Temos, como<br />
exemplo, as leis sobre genética, aborto, transexualidade e, ainda,<br />
as que regulam os direitos trabalhistas. 3<br />
A solução, muitas vezes, é atribuída ao direito penal, com<br />
consequências irreparáveis, deixando-se de lado as específicas<br />
funções deste no Estado Democrático de Direito.<br />
O esclarecimento da questão se encontra no papel, que<br />
exerce o Direito Penal, através de sua sistematização e do significado<br />
da dogmática, na atualidade.<br />
82 impulso
CONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA DO<br />
<strong>DIREITO</strong> PENAL<br />
Devemos entender por sistema científico uma ordenação<br />
lógica dos conhecimentos particulares, compatíveis entre si, não<br />
apresentando contradição.<br />
Positivismo empírico<br />
O direito penal, até o final do século XVIII, consegue se<br />
separar do direito canônico e do civil, mas o autêntico início com<br />
qualidades autônomas acontece no começo o século XIX, sob a<br />
influência iluminista do século XVIII, após as idéias reformistas<br />
de Beccaria. As primeiras construções científicas são atribuídas a<br />
Bentham, Filangieri, Romagnosi e Feuerbach. 4<br />
Nesta primeira época da denominada Escola Clássica, a ciência<br />
do direito penal é dominada por um naturalismo que tenta<br />
reproduzir no sistema de direito os elementos naturais do delito.<br />
O sistema Liszt-Beling adota o conceito de delito, que tem<br />
por base um comportamento dominado pela vontade, enquanto a<br />
tipicidade era um acontecer externo, descrito na Parte Especial,<br />
sem necessidade de qualquer valoração. A reprodução dos fatos da<br />
natureza não impede, entretanto, que se atenha aos fundamentos<br />
metafísicos para a descrição do crime como ente jurídico, prévio,<br />
capaz de perpertuar-se no tempo e no espaço, para atingir seu<br />
objetivo final, a paz social.<br />
A antijuridicidade, neste sistema, se apresenta como algo<br />
estranho à natureza, com um caráter meramente normativo, considerando<br />
a ação contrária à lei e ao direito.<br />
O elemento subjetivo (dolo e culpa) estava na culpabilidade<br />
representado pela relação entre o autor e o resultado, de modo a<br />
possibilitar a gradação destes elementos, influindo diretamente na<br />
fixação da pena, na medida em que se apresentasse com maior ou<br />
menor intensidade.<br />
Há o predomínio da lógica formal na construção dogmática,<br />
que, na concepção de Von Liszt, reconhece dois aspectos na ciência<br />
jurídico-penal: o sistemático e o prático.<br />
Este sistema naturalístico de Liszt-Beling se manteve,<br />
durante muito tempo, devido ao conceito de causalidade, com o<br />
triunfo da teoria da equivalência que, com seu monismo causalista,<br />
impedia qualquer valoração normativa. 5<br />
4 CUEVA, Lorenzo Morillas.<br />
Metodología y Ciencia Penal.<br />
Granada: Comares, p. 14.<br />
5 SCHÜNEMANN, Bernd. Introducción<br />
al razonamento sistemácito<br />
en Derecho Penal.<br />
Em: El sistema moderno del<br />
derecho penal: cuestiones fundamentales.<br />
Trad. Jesús-María<br />
Silva Sánchez. Madrid: Tecnos,<br />
1992, p. 46.<br />
impulso<br />
83
O formalismo<br />
Outra influência na evolução sistemática do direito penal foi<br />
a de Hans Kelsen, que, com base na distinção entre ser e dever ser,<br />
atribui à Ciência do Direito uma característica normativa. Esta<br />
não se ocupa de fatos, ou acontecimentos, mas, do conjunto de<br />
normas.<br />
Entre nós, este tecnicismo-jurídico, com a supervalorização<br />
da letra da lei em detrimento de seu espírito, atinge uma exuberância<br />
formalista. O formalismo impede a análise de elementos<br />
importantes da realidade social, pois tudo se converte no império<br />
da lei, determinando em muitos aspectos contradições inadmissíveis.<br />
6<br />
6 A influência do tecnicismojurídico,<br />
no Brasil, foi decisiva,<br />
ainda persistindo sentenças que<br />
simplificam o Direito Penal num<br />
argumento lógico-dedutivo, que<br />
tem como premissa maior a lei,<br />
e como premissa menor o fato<br />
e, a decisão, como conclusão.<br />
Não há, em geral, preocupação<br />
com outros acontecimentos sociais,<br />
ou fatores, que possam determinar<br />
a falsidade de qualquer<br />
das premissas.<br />
7 SHÜNEMANN, Bernd, op.<br />
cit., p. 49.<br />
8 JESCHECK, H. H. Tratado<br />
de Derecho Penal. Trad. José<br />
Luis Manzanares Samaniego.<br />
4ª ed. Granada: Comares, 1993,<br />
p. 124-125.<br />
Neokantismo<br />
Outra forma de superação do naturalismo e do formalismo<br />
kelseniano foi o surgimento de uma nova fase da sistemática do<br />
direito penal, sob a influência da Escola Sudocidental Alemã, de<br />
origem kantiana.<br />
O formalismo se impôs pela recusa de qualquer postulado<br />
metafísico, afastando do Direito considerações filosóficas, políticas<br />
ou religiosas e, através da jurisprudência dos interesses, procurou<br />
negar à causalidade conceitos causais em relação ao resultado.<br />
Toda solução jurídica deveria ser encontrada nos limites do jus<br />
positum.<br />
A reação neokantiana adota um logicismo axiológico e<br />
aplica uma teoria dos valores para elaborar a teoria jurídica. A<br />
dogmática e a sistemática estabelecem critérios de valor para uma<br />
decisão especificamente jurídica. 7<br />
A influência ocorre no âmbito da antijuridicidade, que deixa<br />
de ser uma categoria meramente formal do sistema Liszt-Beling,<br />
para determinar o surgimento da “antijuridicidade material”. Esta<br />
é definida como o comportamento socialmente danoso, permitindo,<br />
assim, a aplicação da excludente da antijuridicidade, através<br />
do que se denominou meio adequado para um fim justo, ou princípio<br />
de mais proveito que dano.<br />
Seguindo a doutrina de Rickert e Lask, segundo a qual os<br />
conceitos em Direito deveriam sempre se referir a valores, a tipicidade<br />
supera a jurisprudência dos conceitos e interpreta teleologicamente<br />
o tipo a partir do bem jurídico protegido, o que de certa<br />
forma persiste até hoje. 8<br />
84 impulso
O direito penal recebe a nova sistemática como solução dos<br />
problemas complexos até então não resolvidos pelos sistemas<br />
anteriores, mantendo, entretanto, os mesmos elementos do crime<br />
(ação, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade) na mesma<br />
ordem.<br />
A culpabilidade é entendida com novos elementos e, a partir<br />
de Frank, se reconhece a existência de elementos objetivos, mantidos<br />
o dolo e a culpa, como formas e elementos desta culpabilidade.<br />
A concepção normativa da culpabilidade se impôs com destacados<br />
penalistas, como Mezger, com seu causalismo valorativo,<br />
colocando em destaque, a inexigibilidade de conduta diversa como<br />
causa da exclusão ou diminuição da responsabilidade.<br />
O normativismo, que pauta o direito penal, ainda é “novidade”<br />
para os juristas brasileiros, que não conseguiram assimilar<br />
no seu todo este sistema e insistem em manter como válidos seus<br />
conceitos, não aceitando os aspectos decisivos, que impossibilitam<br />
a manutenção deste positivismo na atualidade.<br />
Finalismo<br />
Após o período totalizador, representado pelo nacional-socialismo,<br />
onde prevaleceu o direito penal da vontade, Welzel investe<br />
contra o pensamento neokantiano, em especial contra o relativismo<br />
valorativo e o normativismo.<br />
O neokantismo se caracteriza pelo subjetivismo, pois exclui<br />
os valores do objeto, condicionando seu conhecimento à aplicação<br />
dos conceitos jurídicos a priori. Esta metodologia resulta no relativismo<br />
gnoseológico, pois os valores, que não provêm do objeto,<br />
são subjetivos.<br />
O finalismo repudia o subjetivismo neokantiano, pregando a<br />
necessidade de se retornar a uma epistemologia objetivista. Ao<br />
mesmo tempo, afirma a necessidade de determinar-se o método<br />
segundo o objeto. 9<br />
Postula, assim, duas ordens do real: a ordem do suceder<br />
(Ordnung des Geschehens) e a ordem do pensar (Ordnung des<br />
Meinens). Esta última se caracteriza no direito penal pelo caráter<br />
final da ação. O conceito naturalístico de ação não mais serve ao<br />
Direito Penal, pois a dogmática jurídico-penal parte de um conceito<br />
pré-jurídico de ação final e de uma estrutura lógico-objetiva. 10<br />
As mudanças, introduzidas pelo finalismo de Welzel, atingem<br />
o conceito de tipo, que não mais pode limitar-se a um tipo formal<br />
objetivo, mas, com a estrutura final da ação, tem de apresentar um<br />
9 Cf. MIR PUIG, Santiago. Introducción<br />
a las bases del Derecho<br />
Penal. Barcelona: Bosch, p.<br />
253.<br />
10 WELZEL, Hans. Introducción<br />
a la filosofía del derecho.<br />
Trad. Felipe González Vicen. 2ª<br />
ed. Madrid: Biblioteca Jurídica<br />
Aguillar, l974, p. 257.<br />
impulso<br />
85
tipo subjetivo, que surge junto daquele. No crime doloso este elemento<br />
se encontra no próprio verbo da ação, restanto à culpabilidade<br />
não mais a concepção normativa, afastada de modo completo,<br />
mas, o conhecimento potencial da proibição.<br />
A influência do finalismo no direito penal alemão e europeu<br />
fez-se sentir com profundidade com alguns efeitos no direito penal<br />
brasileiro, a partir do Código Penal de 1984. Ocorre que, entre<br />
nós, ainda não mereceu um interesse acentuado o estudo de todos<br />
os aspectos desta corrente sistemática, mas insistimos em afirmar<br />
seus preceitos, com ímpeto de positivistas jurídicos, o que cria<br />
conflitos insuperáveis na doutrina e jurisprudência diante do antagonismo<br />
metodológico destes sistemas de direito penal.<br />
Hassemer salienta que, contra o finalismo não “germinou<br />
nenhuma erva dogmática”, mas os opositores se limitaram às críticas<br />
metodológicas, o que não abalou seus alicerces. 11 Seus<br />
seguidores continuaram a desenvolver a teoria numa busca incessante,<br />
para suprir as lacunas, que surgiram com este sistema aplicado<br />
ao Direito Penal.<br />
11 HASSEMER, Winfried. Três<br />
temas penais. Porto Alegre e<br />
São Paulo: Fundação Escola<br />
Superior do Ministério Público,<br />
1993, p. 23 ss.<br />
12 A Constituição Federal de<br />
1988 indica como um dos fundamentos<br />
do Estado Democrático<br />
de Direito brasileiro o pluralismo<br />
político. Artigo 1º, IV.<br />
Sistema atual<br />
Na atualidade, o Direito Penal sofre os abalos naturais em<br />
busca de uma eficácia para fazer frente à nova criminalidade. Ao<br />
mesmo tempo em que se pretende adotar os princípios, que decorrem<br />
do Estado Democrático de Direito, procura-se atribuir às decisões<br />
jurídicas uma estruturação científica. Neste sentido, há exigências<br />
de precisão e clareza nas decisões jurídicas que apontam<br />
para uma maleabilidade hermenêutica de um sistema aberto.<br />
A norma penal não mais se apresenta como hermética, ligada<br />
simplesmente ao autor, nem mesmo naquela relação empírica e<br />
material, puramente causal, capaz de impor uma sanção penal<br />
pelos atos de uma pessoa no querer volitivo e final, sem qualquer<br />
valoração legislativa.<br />
O direito penal pressupõe um sistema aberto, que tem por<br />
base uma norma jurídico-penal que, na dinâmica interpretativa terá<br />
em vista o pluralismo da sociedade. 12<br />
O pluralismo aceita a sociedade como grupos de pessoas,<br />
que no seu conjunto representam o Estado. A maioria é dominante<br />
com respeito integral às minorias. Isto se contrapõe à idéia que<br />
predomina entre nós de uma sociedade unitária com valores prévios<br />
e aceitos por todos como verdadeiros.<br />
86 impulso
Nesta visão de sociedade, os participantes da comunicação<br />
pertencem a um grupo e garantem a solidariedade, compondo as<br />
ordens legítimas. 13 Desta forma, as pessoas, como estruturas<br />
simbólicas, no agir comunicativo, constituem-se reciprocamente<br />
com a sociedade através da ação e da fala. Os conceitos valorativos<br />
se uniformizam pela maioria e numa interação dos grupos,<br />
sob o ponto de vista social, há a coesão solidária, determinando a<br />
estabilização da sociedade. 14<br />
Assim, para um sistema moderno de direito penal há a necessidade<br />
da apreensão pelo interpréte destas variantes de relações<br />
interpessoais, ou mesmo intergrupais, que revelam o conceito<br />
vigente dos bens jurídicos protegidos pela norma. 15<br />
Há uma tendência atual de atribuir, como missão específica<br />
do direito penal, a proteção ao bem jurídico diante de possíveis<br />
lesões ou colocação em perigo. Esta opinião majoritária, na Alemanha<br />
e na Espanha, encontra críticos, uma vez que não se consegue<br />
esclarecer o conceito deste bem jurídico e muito menos de<br />
dano social relevante.<br />
De acordo com Hassemer, 16 estas críticas são infundadas,<br />
pois não levam em conta outros critérios, como por exemplo, o<br />
dano social, a subsidiariedade, a tolerância, etc. Estes possibilitam<br />
fixar as metas do Direito Penal dentro dos limites traçados pela<br />
Constituição e pela idéia de Estado de Direito.<br />
Nesta linha de idéias constata-se o dinamismo do conceito de<br />
bem jurídico, que merecerá a proteção penal, ou estará no âmbito<br />
de proteção do tipo penal. Haverá neste aspecto uma preocupação<br />
da metodologia jurídico-penal para uma aproximação com a realidade.<br />
A realidade, conforme já referimos, se reflete na coesão mais<br />
ou menos solidária das redes de interação dos grupos sociais.<br />
Assim, a ciência do direito penal, como ciência social, estará mais<br />
próxima desta realidade e dentro do âmbito específico da vida<br />
social.<br />
Os conceitos valorativos do bem jurídico não mais serão prévios,<br />
como pretendia o positivismo jurídico, ou ontológicos, como<br />
no finalismo, mas dependerão, em cada fato, do agir comunicativo,<br />
determinando a ocorrência do dano relevante social, quando<br />
o dissenso na comunicação concretizar este dano capaz da interferência<br />
do direito penal. 17<br />
O direito penal possui instrumentos eficazes de controle<br />
social, que o diferenciam dos demais pela imposição de sanções<br />
13 HABERMAS, Jürgen. Pensamento<br />
pós-metafísico. Trad.<br />
Flávio Beno Sibeneichler. Rio<br />
de Janeiro: Tempo Brasileiro,<br />
1992, p. 96.<br />
14 HABERMAS, Jürgen, op.<br />
cit., p. 101.<br />
15 Sobre a formação da consciência<br />
da ilicitude com base na<br />
teoria habermasiana do agir comunicativo,<br />
vide nosso livro:<br />
Culpabilidade e reprovação penal.<br />
São Paulo: Sugestões Literárias,<br />
1993, p. 165 ss.<br />
16 HASSEMER, Winfried. Introducción<br />
a la criminología y<br />
al derecho penal. Valência: Tirant<br />
le Blanch, 1989, p. 113.<br />
17 Estudo mais pormenorizado<br />
desta posição se encontra em<br />
nosso livro citado, Culpabilidade....,<br />
p. 161 ss.<br />
impulso<br />
87
estritivas da liberdade e, ao interferir no dissenso, atua de forma<br />
pedagógico-social, pois reforça os conceitos valorativos vigentes<br />
num determinado grupo, resolvendo os conflitos mais graves, que<br />
decorreram deste mesmo dissenso na comunicação.<br />
Junto a esta interferência o direito penal consegue através de<br />
institutos, que constituem o sistema codificado, aplicar uma sanção<br />
penal, para atingir a finalidade, que é oferecer uma oportunidade<br />
ao condenado para um esforço individual de convívio com<br />
seu grupo social. 18<br />
Evidentemente, dentro desta proximidade do direito penal<br />
com a realidade social, a Política-Criminal exerce acentuada influência,<br />
havendo mesmo uma tendência na Alemanha em admitir<br />
como um avanço o interesse pelas consequências do direito penal,<br />
não mais se limitando à dogmática. 19<br />
Esta união entre a dogmática e a política criminal foi denominada<br />
de dogmática realista, 20 pois, esta última, como ciência<br />
social, permite a concretização da lei baseada na realidade, objeto<br />
da regulação, tendo em vista as necessidades político-criminais.<br />
Todo o debate do Direito Penal moderno na Europa, diversamente<br />
do que ocorre entre nós, ainda adormecidos num positivismo<br />
jurídico ortodoxo, está voltado para a busca de norma mais<br />
eficaz para a reprovação criminal, sem abandonar os princípios,<br />
que regem o direito penal no Estado Democrático de Direito.<br />
18 V. nosso livro. Culpabilidade...,<br />
p. 231.<br />
19 HASSEMER, Winfried. Perspectivas<br />
de uma moderna política<br />
criminal. Em: Três temas de<br />
Direito Penal, op. cit., p. 84.<br />
20 MIR PUIG, Santiago, op.<br />
cit., p. 345.<br />
PRINCÍPIOS NORTEADORES DO<br />
<strong>DIREITO</strong> PENAL MODERNO<br />
A partir de 1988, com a promulgação da Constituição Federal,<br />
ficou patente no seu artigo 1º que o Brasil é um Estado Democrático<br />
de Direito e tem como fundamento:<br />
I – a soberania;<br />
II – a cidadania;<br />
III – a dignidade da pessoa humana;<br />
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e<br />
V – o pluralismo político.<br />
Estes fundamentos com certeza são os limites da interferência<br />
do Estado na vida do cidadão, refletindo nos princípios, que<br />
regem o Direito Penal no Estado Democrático de Direito, bem<br />
como, delimitando o poder de punir do Estado.<br />
88 impulso
Princípio da intervenção mínima<br />
O direito penal no Estado Democrático de Direito depara-se<br />
com uma ambivalência, que leva a uma antinomia: restringe a<br />
liberdade ao mesmo tempo em que tem por função proteger os<br />
bens jurídicos, utilizando-se do instrumento mais severo, que é a<br />
interferência nos direitos humanos dos cidadãos através da aplicação<br />
de penas.<br />
Desde o início da sistematização com a denominada Escola<br />
Clássica até os nossos dias, parece não ter havido problemas, toda<br />
vez em que se encara o direito penal como compensatório ou retributivo.<br />
Cominada a pena e adequada ao tipo praticado, esta surgia<br />
como a manifestação do poder do Estado, para reconduzir ao equilíbrio<br />
social.<br />
O desenvolvimento da ciência penal paralela às novas formas<br />
de Estado determinou o conflito entre esta postura, que tinha como<br />
limite o mínimo e máximo das penas cominadas e a fórmula de<br />
adequação da pena à culpabilidade do autor com respeito aos<br />
direitos fundamentais não atingidos pela sanção penal.<br />
A interferência do Estado ficou limitada ao âmbito do indispensável<br />
para solução de conflitos, mas somente quando se tratar de<br />
fatos, que atingem de forma relevante o bem jurídico protegido.<br />
A necessidade de interferência estatal encontra, ainda, uma<br />
barreira, que é justificar a pena não só com um objetivo preventivo,<br />
ne peccetur, mas, como um ne punietur, em que o réu não<br />
sofra indevidamente um abuso maior com uma pena inadequada.<br />
Para concretizar-se o princípio da intervenção mímina, devese<br />
ter em conta o caráter fragmentário do direito penal.<br />
A fragmentariedade se expressa naquela intervenção do<br />
direito penal, quando há uma antijuridicidade específica decorrente<br />
do âmbito de proteção da norma, com um conceito de bem<br />
jurídico adequado ao momento social e, ainda, respeitando o<br />
código de comunicação do grupo social. Isto quer dizer que nem<br />
sempre aquilo que se apresenta como um ilícito pode ser resolvido<br />
no âmbito penal. Neste sentido, há a afirmativa de Hassemer,<br />
segundo a qual há de se fazer uma distinção entre tipicidade e antijuridicidade,<br />
para manter-se a sensibililidade do jurista. 21 22<br />
Assim o direito penal é a ultima ratio da intervenção estatal<br />
na proteção aos bens jurídicos. 23 Isto é, haverá interferência do<br />
Estado através do direito penal, somente quando não houver outro<br />
meio de controle social, ou seja, quando o dissenso comunicativo<br />
atingir um bem jurídico, causando-lhe um dano relevante.<br />
21 HASSEMER Winfried adverte<br />
que: “tanto os estudantes<br />
principiantes como os avançados<br />
que preparam os temas memoristicamente,<br />
quando superam o<br />
estágio da tipicidade, repetem,<br />
em seus exames e informes jurídico-penais<br />
a frase “a tipicidade<br />
é indício de antijuridicidade. E<br />
esclarece que esta afirmativa revela<br />
pobreza de linguagem,<br />
bem como de conhecimentos<br />
jurídicos”. Em: Fundamientos<br />
de Derecho Penal. Trad. Francisco<br />
Munhóz Conde. Barcelona:<br />
Bosch, 1984, p. 265, nota de<br />
radapé n. 86.<br />
22 Ainda sobre a fragmentariedade<br />
do Direito Penal,<br />
MAIWALD, Manfred. Zum<br />
fragmentarischen charakter des<br />
Strafrechts. Em: Festschrift für.<br />
Karlsruhe, p. 9ss, 1972.<br />
23 Já afirmamos que “o direito<br />
penal mínimo, assim entendido<br />
como limite para a imposição<br />
violenta da restrição à liberdade,<br />
é o caminho mais curto no<br />
momento para se construir uma<br />
sociedade pautada no respeito à<br />
dignidade da pessoa humana e<br />
nas demais garantias fundamentais”.<br />
Em: nosso livro, Culpabilidade...,<br />
p. 241.<br />
impulso<br />
89
Decorre, ainda, do princípio de intervenção mínima o caráter<br />
subsidiário do direito penal como o último recurso a ser utilizado,<br />
quando outros de caráter social não surtiram o efeito desejado.<br />
24 Na nossa Constituição, artigo<br />
5º, XXXIX, dispõe: “não há crime<br />
sem lei anterior que o defina,<br />
nem pena sem prévia<br />
cominação legal”.<br />
25 Esclarece SCHÜNEMANN,<br />
Bernd, op. cit., p. 37; “assim, a<br />
opção por um sistema aberto de<br />
Direito penal implica, por um<br />
lado, que o conhecimento existente<br />
se dispõe numa ordem removível<br />
a qualquer momento;<br />
e, por outro lado, que os casos e<br />
problemas não advertidos não<br />
se julgarão sem reparos pelo<br />
mesmo “rasero”, senão que<br />
sempre haverá ocasião para<br />
modificar o sistema dado”.<br />
26 Assim, podemos indicar: artigo<br />
5º, XLV: “nenhuma pena<br />
passará da pessoa do condenado...;<br />
XLVIII – a pena será<br />
cumprida em estabelecimentos<br />
distintos, de acordo com a natureza<br />
do delito, a idade e o sexo<br />
do apenado; XLIX – é assegurado<br />
aos presos o respeito à integridade<br />
física e moral”.<br />
Princípio da legalidade<br />
Também denominado princípio da reserva legal é adotado<br />
como basilar pelo direito penal desde a sistematização, quando<br />
formulado por Feuerbach, na Alemanha. 24 Desde sua adoção<br />
sofreu várias interpretações com base na filosofia e ideologia, que<br />
inspiraram sua compreensão. Desta forma, na atualidade é a<br />
garantia à própria liberdade, enquanto direito fundamental, pois<br />
tem como consequência assegurar um sistema de garantias no<br />
âmbito penal (dos tipos), no da execução (das penas e medidas de<br />
segurança) e no judicial (processo regular).<br />
A primeira garantia de âmbito penal é o consagrado nullum<br />
crimen, nulla poena sine previa lege. Há, portanto, necessidade de<br />
lei anterior, clara e certa, que descreva um tipo penal e impeça a<br />
irretroatividade em prejuízo do agente.<br />
A clareza e a certeza são requisitos inerentes à descrição<br />
típica. A proibição à analogia e à interpretação extensiva obriga o<br />
legislador à formulação típica, dentro de um sistema de proteção ao<br />
bem jurídico. Isto não significa que se deva adotar um sistema com<br />
base metafísica ou ontológica com conceitos prévios, nem mesmo<br />
o axiomático, não realizável, mas um sistema aberto, de forma a<br />
não constituir-se num obstáculo ao desenvolvimento social.<br />
A partir dos conceitos técnico-jurídicos, semanticamente<br />
adequados ao momento social, na definição do bem jurídico há de<br />
se levar em conta o mundo de vida dos partícipes da comunicação,<br />
que orienta a valoração do fato passível de reprovação penal. 25<br />
A outra garantia, que decorre do princípio da legalidade, é o<br />
nulla poena sine previa lege. O ius puniendi terá por base única as<br />
penas cominadas abstratamente pelo legislador, no nosso caso,<br />
entre o mínimo e o máximo para cada tipo penal.<br />
O grande problema na atualidade tem sido a forma de fixação<br />
da pena, para ajustá-la dentro do princípio da culpabilidade a<br />
cada autor. O Direito Penal do resultado foi abandonado, há tempos,<br />
pela doutrina penal moderna, embora ainda entre nós prevaleça<br />
a idéia de retribuição da pena.<br />
Nossa Constituição Federal procurou fundamentar em nível<br />
de garantia constitucional a individualização da pena, apontando-a<br />
em vários incisos do artigo 5º. 26 Ao mesmo tempo garantiu, de<br />
<strong>90</strong> impulso
modo claro e preciso, o cumprimento da pena dentro das previsões<br />
legais, no caso, a lei de execução penal. O cumprimento da pena<br />
deve observar as prescrições das garantias penitenciárias, o que no<br />
momento é uma utopia no sistema penal brasileiro. O castigo,<br />
ainda emoldurando a execução penal brasileira, determina o cumprimento<br />
da pena por uma pequena parcela dos condenados. 27<br />
No Estado Democrático de Direito, com base no princípio da<br />
intervenção mímina, a pena tem por objetivo a prevenção geral e a<br />
prevenção especial, não mais nos moldes clássicos. Aquela serve<br />
de exemplo para que outros não delinqüem, e esta última atua no<br />
próprio condenado, para que atinja a ressocialização ou reinserção<br />
social. Estas teorias já estão superadas e abandonadas pelo direito<br />
penal moderno.<br />
A lei penal sob o prisma da prevenção geral exerce uma função<br />
positiva, motivadora, que estimula a compreensão semântica<br />
dos valores vigentes, garantidos através do bem jurídico protegido,<br />
de modo a atuar como estímulo ao grupo social para evitar a prática<br />
de atos proibidos. Sob o aspecto da prevenção especial, também<br />
positiva, a influência da lei visa a reafirmar no condenado os<br />
conceitos de valores vigentes, de modo a convencê-lo a não praticar<br />
aquelas condutas reprovadas pelo grupo social. Dá-se adeus,<br />
neste aspecto, aos mitos da ressocialização e da reinserção social<br />
tão enaltecidos pelo direito penal clássico.<br />
Deduz-se, portanto, que as bases para a reprovação penal se<br />
estabelecem no sentido da aplicação de uma pena, somente<br />
quando for necessária e indispensável.<br />
Princípio da culpabilidade<br />
O direito penal retributivo tem como seu argumento mais<br />
sólido a possibilidade de livre arbítrio ou, entre nós, o superado<br />
poder atuar de maneira diversa. A base para estas alternativas, no<br />
sentido de justificar-se a punição, é a imagem do homem médio,<br />
que, como o homem das neves, jamais foi definido ou concretizado.<br />
É pura imaginação...<br />
Assim, o conceito clássico de culpabilidade com seu elementos<br />
dolo e culpa já não mais faz parte dos princípios constitucionais.<br />
O fundamento constitucional do princípio da culpabilidade,<br />
que decorre do princípio da legalidade, é o reflexo da dignidade da<br />
pessoa humana, encontrado na totalidade das restrições à intervenção<br />
do Estado na vida privada. 28<br />
27 Há dezenas de milhares de<br />
mandados de prisão a serem<br />
cumpridos em todo o Brasil, o<br />
que revela a falência do sistema<br />
penal, ainda em vigor, apesar<br />
das modificações constitucionais<br />
e da lei de execução penal.<br />
O condenado ainda é visto<br />
como uma mera estatística, e a<br />
construção dos presídios tem<br />
sido a meta dos governantes,<br />
sem atentar para outros problemas<br />
decorrentes da postura rígida<br />
da justiça brasileira, como,<br />
por exemplo, as condenações<br />
arbitrárias e o reinado da reincidência,<br />
que impede qualquer<br />
substitutivo penal. Podemos dizer<br />
que o número de mandados<br />
de prisão supera em muito o dos<br />
condenados, que cumprem pena,<br />
o que significa uma cifra negra<br />
a merecer uma meditação<br />
criminológica séria.<br />
28 Nosso livro: Culpabilidade...,<br />
p. 93.<br />
impulso<br />
91
29 HASSEMER, Winfried, op.<br />
cit., p. 269.<br />
30 Nosso livro: Culpabilidade...,<br />
p. 225.<br />
31 Artigo 59 do Código Penal:<br />
“O juiz, atendendo à culpabilidade,<br />
aos antecedentes, à conduta<br />
social, à personalidade do<br />
agente, aos motivos, às circunstâncias<br />
e consequências do crime,<br />
bem como ao comportamento<br />
da vítima, estabelecerá,<br />
conforme seja necessário e suficiente<br />
para reprovação e prevenção<br />
do crime...”<br />
A concepção moderna da culpabilidade traz em si algumas<br />
regras, que devem ser observadas, impossibilitando a sanção de<br />
um fato. O limite e a individualização da pena são garantias, impedindo<br />
que a mesma exceda a responsabilidade do autor.<br />
Estas exigências se refletem no conteúdo da culpabilidade<br />
material, pois a motivação pela norma, isto é, a consciência da ilicitude,<br />
é indispensável para a existência da culpabilidade e decorrente<br />
punição. Esta motivação atualmente é reconhecida como<br />
uma imputação subjetiva, 29 pois o agente no momento da ação<br />
deve ser capaz de culpabilidade. Além do elemento subjetivo da<br />
ação, há necessidade de ter a capacidade de compreender a ilicitude<br />
do fato e estar em situação de conhecer a proibição.<br />
Este quadro, na atualidade, representa o que denominamos<br />
de capacidade de reprovação, pois a prática do crime é uma situação<br />
de dissenso, na qual o agente, conhecendo a validade da<br />
norma num determinado momento social, procurou modificá-la,<br />
determinando uma condição de sanção ou reprovação. 30<br />
No âmbito de um direito penal do resultado ainda eficaz<br />
entre nós, como já dissemos, este entendimento se torna difícil,<br />
visto que alguns o consideram surrealista, indicando um total desconhecimento<br />
do que ocorre na atualidade.<br />
Não se pode, entretanto, deixar de atender aos dispositivos<br />
constitucionais, esquecendo-se do princípio da culpabilidade no<br />
momento mais importante de todo o fato social, que é a reprovação<br />
através do direito penal. Além de ser uma garantia constitucional<br />
foi consagrado pelo Código Penal de 1984, estando expresso no<br />
seu artigo 59. 31<br />
O mencionado artigo da lei é claro ao estabelecer que a fixação<br />
da pena tem em vista o necessário e o suficiente para a reprovação.<br />
Conseqüência imediata do Estado Democrático de Direito,<br />
os princípios da proporcionalidade e da necessidade são, também,<br />
acolhidos pelo direito penal.<br />
Princípio da proporcionalidade e da necessidade da pena<br />
É o limite do ius puniendi, isto é, a pena deve ser necessária,<br />
não podendo ser superior à intensidade do dano causado ao bem<br />
jurídico protegido. Ao mesmo tempo deve ser adequada à culpabilidade<br />
do agente.<br />
Este princípio não se refere tão somente à quantidade da<br />
pena a ser aplicada, mas leva em consideração a importância<br />
92 impulso
social do fato, bem como as circunstâncias do ato de comunicação<br />
e as características dos partícipes. A prevenção geral neste sentido<br />
não é mais intimidatória, mas motivadora, no sentido de poder<br />
afirmar os valores vigentes naquele momento, sendo, portanto,<br />
uma prevenção geral positiva. Como já afirmamos, a necessidade<br />
da pena será o exame da situação individual de compreensão da<br />
validade da norma e da intenção de causar dano social: a vida cotidiana<br />
é o pressuposto da análise do agente numa tentativa de adequar<br />
o conceito de norma à validade social desta. 32<br />
A necessidade da pena está ligada à humanização, que, hoje,<br />
influencia o direito penal, apesar de algumas tendências em agravar<br />
as punições como meio de diminuir a criminalidade.<br />
No Estado Democrático de Direito a pena deve ser aplicada<br />
somente quando necessária e indispensável à reafirmação dos<br />
valores vigentes. Os fins das penas, que as justificavam, tais como,<br />
ressocialização, reeducação, reintegração social, não mais podem<br />
servir de parâmetro para sua fixação concreta, nem mesmo para<br />
afirmar sua necessidade.<br />
No momento atual, há uma tendência do direito penal à aproximação<br />
da realidade através de um pensamento sistemático, em<br />
substituição ao pensamento-problema adotado a partir do direito<br />
de caso, próprio do pensmaento anglo-saxão. Esta tendência<br />
requer uma especial atenção da política criminal, ao mesmo tempo<br />
em que determina um direito penal aberto, que se socorre de<br />
outras ciências, como um conjunto, para melhor deduzir a sanção<br />
a ser aplicada.<br />
O que é certo, no moderno direito penal, quanto à concreta<br />
aplicação da pena; deve-se prestar atenção à prevenção especial,<br />
que desempenha um papel mais relacionado com o prognóstico,<br />
possibilitando, o quanto possível, a substituição da privativa de<br />
liberdade, de caráter mais grave, dentre as sanções existentes, por<br />
outras de cunho social, como a suspensão condicional, as restritivas<br />
de direito e as pecuniárias.<br />
Esta política criminal não é aquela proposta pelo direito<br />
penal funcional, que nem mesmo se preocupou em investigar suas<br />
conseqüências, mas, dentro de um sistema jurídico-penal, possibilita<br />
ao direito penal cumprir sua restrita e verdadeira missão, a<br />
proteção aos bens jurídicos.<br />
Restringindo o campo do direito penal, somente sancionando-se<br />
aquelas situações de fato, que não podem deixar de ser<br />
reprovadas por ausência de outros meios de controle social, pode-<br />
32 Nosso livro: Culpabilidade...,<br />
p. 224.<br />
impulso<br />
93
mos nos deparar com uma nova ordem de idéias: a criminalidade<br />
organizada, criminalidade econômica, avanços bioéticos, crimes<br />
ecológicos, tráfico de entorpecentes, etc.<br />
Este tipo de fato é a preocupação mais intensa do momento,<br />
pois não se trata de um campo capaz de ser enfrentado pelos princípios<br />
do direito penal vigente. Esta criminalidade, assim denominada<br />
moderna, não é simplesmente um caso de danos materiais,<br />
mas um caso de risco, de perigo. 33 Para esta criminalidade devemos<br />
ter um direito penal diferenciado, que Hassemer 34 a princípio<br />
denomina “Direito de Intervenção”, mas, pela sua complexidade,<br />
será matéria para novas meditações.<br />
33 HASSEMER, Winfried. Três<br />
Temas...., p. 95.<br />
34 HASSEMER, Winfried. Três<br />
Temas...., p. 96.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
CAMARGO, A. L. Chaves. Culpabilidade e reprovação penal. São<br />
Paulo: Sugetões Literárias, 1993.<br />
CUEVA, Lorenzo Morillas. Metodología y ciencia penal. Granada:<br />
Comares.<br />
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. Trad. Flávio<br />
Beno Sibeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.<br />
HASSEMER, Winfried. Fundamientos de Derecho Penal. Trad.<br />
Francisco Munhoz Conde. Barcelona: Bosch, 1984.<br />
HASSEMER, Winfried. Introducción a la criminología e al<br />
Derecho Penal. Valência: Tirant le Blanch, 1989.<br />
HASSEMER, Winfried. Três temas penais. Porto Alegre e São<br />
Paulo: Fundação Escola Superior do Ministério Público, 1993.<br />
JESCHECK, H. H. Tratado de Derecho Penal. Trad. José Luis<br />
Manzanares Samaniego. 4ª ed. Granada: Comares, 1935.<br />
MAIWALD, Manfred. Zum fragmentarischen Charakter des Strafrechts.<br />
Em: Festschrift für. Karlsruhe: R. Maurach, 1972.<br />
MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del Derecho Penal.<br />
Barcelona: Bosch.<br />
SCHÜNEMANN, Bernd. Introducción al razonamento sistemático<br />
en Derecho Penal. Em: El sistema moderno del derecho penal:<br />
cuestiones fundamentales. Trad. Jesús-María Silva Sánchez.<br />
Madrid: Tecnos, 1992,<br />
WELZEL, Hans. Introducción a la filosofía del Derecho. Trad.<br />
Felipe González Vicen. 2ª ed. Madrid: Biblioteca Jurídica<br />
Aguillar, l974.<br />
94 impulso
A RELEVÂNCIA CAUSAL<br />
DA OMISSÃO<br />
EDUARDO SILVEIRA MELO RODRIGUES<br />
– Nós, disse Madame Stäel – só poderemos ser incriminados<br />
pelo que não fizemos.<br />
– Eis o ponto.<br />
Disse Olynthe Rodrigues, logo depois decapitado”.<br />
(Excerto imaginado de um programa ideal de um partido verdadeiramente<br />
revolucionário)<br />
A QUESTÃO DOS CRIMES COMISSIVOS<br />
POR OMISSÃO<br />
Apesar da enorme dificuldade que cerca o tema da relevância<br />
causal da omissão, ou talvez precisamente devido à necessidade de<br />
se buscar a sua clarificação, é que o abordamos neste trabalho.<br />
Trata-se de “um dos temas mais difíceis e uma das questões mais<br />
tormentosas da ciência do Direito Penal”, 1 não acolhido como fórmula<br />
expressa porque entendido desnecessário pelo legislador de<br />
1940, conforme justificativa apresentada à época por um, e talvez<br />
o principal, dos artífices da reforma:<br />
Fez bem a Comissão Revisora em riscar o dispositivo.<br />
Desde que se reconhece, do ângulo de vista lógico<br />
(como já fazia o Projeto Alcântara, que a omissão é<br />
CAUSAL, redunda numa incoerência declarar-se, em<br />
seguida, que a omissão equivale a causa. E inteiramente<br />
ocioso é dizer-se que a omissão só tem relevância penal,<br />
como causa, quando represente o descumprimento de<br />
1 FRAGOSO, Heleno Cláudio.<br />
Comentários, v. I, t. II, n. 12.<br />
impulso<br />
95
um dever jurídico. Ora, também a ação só tem sentido<br />
penal, como causa, quando é contrária ao dever jurídico.<br />
O evento lesivo resultante de uma omissão LÍCITA<br />
não pode entrar na estrutura de um crime: é objetivamente<br />
lícito. 2<br />
Alcançava já, portanto, o renomado Hungria, que a relevância<br />
causal da omissão repousava em muito no caráter de antijuridicidade<br />
da conduta, mas não antevia com o costumeiro acerto o<br />
vazio tipológico, que adviria da falta de disposição a respeito.<br />
Redimindo-se de tal falha, o próprio grande doutrinador acolheu<br />
dispositivo semelhante ao proposto por Alcântara Machado,<br />
assim se justificando:<br />
Importante é o que agora aparece como referência aos<br />
crimes comissivos por omissão. Não se encontram<br />
especificados na lei vigente, nem nos Códigos de sua<br />
época, os pressupostos da conduta típica, dessa categoria<br />
de delitos, defeito que as legislações penais modernas<br />
vêm corrigindo. Como se demonstrou, amplamente,<br />
a ilicitude aqui surge, não porque o agente tenha causado<br />
o resultado, mas porque o não impediu, violando<br />
o seu dever de garantidor. É indispensável fixar na lei<br />
as fontes de tal dever de atuar. 3<br />
2 HUNGRIA, Nelson. Comentários<br />
ao Código Penal, v. I, t.<br />
II, n. 60.<br />
3 Exposição de Motivos. n. 1,<br />
D.O.U. de 21.10.69, n. 9.<br />
Deve-se verificar, portanto, que Hungria ia além da justificativa,<br />
para afirmar, nas entrelinhas, incompleta a proposta Alcântara,<br />
por prever expressamente a hipótese em que a omissão valesse<br />
como causa, mas não frizar as suas fontes de dever jurídico. Tal<br />
não fora, entretanto, e como visto, o motivo da supressão anteriormente<br />
feita.<br />
Sabido, mais, que a reforma que instituiu a nova Parte Geral<br />
do Código Penal (Lei nº 7.209/1984) acolheu dispositivo praticamente<br />
idêntico ao redigido por Hungria (art. 13, § 2º). Nada mais<br />
interessante que analisar o instituto dos crimes comissivos por<br />
omissão também sob a perspectiva histórica positiva, no Brasil,<br />
indagando se a proposta de Alcântara Machado era efetivamente<br />
errônea, ou incompleta; se melhor seria efetivamente a supressão<br />
da previsão legal, como o fez o nosso CP de 1940, deixando à<br />
jurisprudência e à doutrina a sua solução; ou se a fórmula proposta<br />
96 impulso
por Hungria (CP de 1969 e CP vigente) era a mais adequada à<br />
solução do problema. É o que ousadamente passamos a fazer.<br />
A PROPOSTA DE ALCÂNTARA MACHADO<br />
Assim se redigia o aludido dispositivo no Projeto Alcântara<br />
Machado:<br />
Art. 9 – O agente só responderá pelo evento que for<br />
efeito de sua ação ou omissão.<br />
§ 1º – Faltar à obrigação de impedir o evento equivale<br />
a causá-lo.<br />
Se insurgência houve, ainda que morigerada, quanto ao<br />
CAPUT (Costa e Silva, principalmente, discutiu sua necessidade),<br />
muito maior foi a reação ao parágrafo primeiro, na qual se sobressaiu<br />
o próprio Hungria. A previsão, para ele haurida do Códito italiano,<br />
fora reproduzida no uruguaio e era, ao ser ver, incoerente.<br />
De tais críticas procurou defender-se o próprio Alcântara,<br />
com a proverbial clareza de sempre:<br />
Toda a atoarda vem, afinal de contas, de mero equívoco<br />
do censor. O de que trata o dispositivo é, pura e simplesmente,<br />
de afirmar que na espécie há um nexo causal<br />
entre a omissão e o evento. Mas o reconhecimento da<br />
relação de causalidade não importa evidentissimamente,<br />
por si só, no reconhecimento da responsabilidade<br />
criminal do omitente em apreço. De fato, sabe<br />
toda a gente que, além do elemento material ou objetivo,<br />
a responsabilidade pressupõe o elemento subjetivo<br />
ou psicológico, isto é, o dolo ou a culpa. De sorte que se<br />
não houver dolo ou culpa, da parte do omitente, este<br />
não responderá pelo evento. Ainda mais: se o evento<br />
relacionado com a omissão realizar hipótese considerada<br />
pelo legislador sómente quando dolosa, e culposa<br />
for a omissão, não existirá para o omitente responsabilidade<br />
penal, embora exista o nexo de causalidade. 4<br />
O que pretendia o venerando mestre, pois, era demonstrar<br />
que o dispositivo não implicava em estruturar o crime, vale dizer,<br />
que só o reconhecimento do nexo causal com o resultado não<br />
esgotava o delito, da mesma forma quanto aos comissivos puros,<br />
4 MACHADO, Alcântara. O<br />
Projeto do Código perante a<br />
Crítica. Revista da Faculdade<br />
de Direito, v. 35, fasc. 1, jan./<br />
abr. 1939, p. 63-64.<br />
impulso<br />
97
porque havia que se indagar, ainda, do tipo subjetivo, do dolo ou<br />
da culpa. Cabia, assim, a previsão genérica quanto à omissão, porque,<br />
quanto a esta, havia que se estabelecer um nexo normativo,<br />
diferentemente da ação, em que o nexo era naturalmente causal.<br />
Estabeleça-se desde logo: não havia dissidência doutrinária<br />
quanto à causalidade omissiva em si, afirmada por todos, desde<br />
Costa e Silva, resultante do dever jurídico de impedir o evento. O<br />
que se discutia era a necessidade de se estabelecer a equivalência<br />
causal entre a ação e a omissão expressamente, bem como os pressupostos<br />
da conduta típica omissiva.<br />
Se o legislador de 1940 repudiou a fórmula de Alcântara<br />
Machado (que era reconhecidamente colhida na lei italiana), não o<br />
fêz porque a considerasse de pioneirismo temerário. Já a admitiam,<br />
viu-se, os códigos italiano e uruguaio mencionados, o projeto<br />
penal alemão de 1913 (§ 14), e até o Código Penal Chinês de<br />
1935. 5<br />
Alcântara Machado, entretanto, apenas propôs que a relevência<br />
omissiva ficasse consignada, adquirindo base normativa. Não<br />
se propôs a fixar as hipóteses do dever jurídico. Isto foi objeto do<br />
CP de 1969, acolhido pelo legislador de 1984. Como num aliviar<br />
de seu erro, diga-se, Hungria desenvolveu e ampliou a fórmula de<br />
Alcântara, como a afirmar publicamente que errara, mas também<br />
errara o seu criticado.<br />
5 Art. 15 – Where the prevention<br />
of a specified result is an<br />
obligation under the law, the failure<br />
to prevent what is preventable<br />
is equivalente to the active<br />
commission of such a result.<br />
The Criminal Code of Republic<br />
of China. Shangai: Kelly &<br />
Walsh Ltd., 1936.<br />
6 ARAÚJO, Laurentino da Silva,<br />
FAVEIRO, Vitor Antonio<br />
Duarte. Código Penal português<br />
anotado. 4ª ed. Coimbra:<br />
Coimbra Ltda., 1966, p. 11-13.<br />
A RELEVÂNCIA DA OMISSÃO PERANTE<br />
O CÓDIGO PENAL DE 1940<br />
O silêncio do legislador de 1940 suscitou reações doutrinárias<br />
díspares. Àquela altura já se consolidara, mundo afora, a idéia<br />
de que a lei penal procura sempre um fim de tutela para certos<br />
interesses, e que toda e qualquer conduta, desde que resulte em<br />
ofensa ou ameaça a tais interesses, deve ser condenável, “quer<br />
consista num facere ou num omittere”. 6<br />
E a doutrina alienígena, como a nacional, bem estabelecia os<br />
pressupostos do dever de evitar um resultado, como os oriundos da<br />
lei, da ordem de superior hierárquico, de uma situação contratual<br />
ou profissional. A estes, a doutrina portuguesa acrescentaria os<br />
resultantes de uma situação de fato (o que adviria de uma ação<br />
anterior lícita, como o do que promove queimada e tem que impedir<br />
que alastre) ou dos deveres resultantes da moral e dos costumes,<br />
numa ampliação arrojada para a época (exemplificava-se<br />
98 impulso
com o não andar nu pelas ruas, quando, aí, a conduta era nitidamente<br />
comissiva). 7<br />
Em sua obra principal, o mestre Basileu Garcia teceu comentário<br />
bastante sucinto quanto aos próprios delitos comissivos por<br />
omissão, sem qualquer preocupação de detalhamento: “caracteriza-se<br />
a existência da infração quando o sujeito ativo tem o dever<br />
jurídico de praticar o ato de que se abstém”. 8<br />
Calava-se quanto ao tema, seguindo os passos do legislador,<br />
ao tratar da relação causal.<br />
Aníbal Bruno igualmente pouco discorre acerca da matéria,<br />
limitando-se a pouco mais que dizer: “a punibilidade da omissão é<br />
outro problema, cuja solução depende da comprovação de concorrência<br />
de outros elementos do fato punível, a partir da antijuridicidade,<br />
resultante do dever jurídico de agir, que incumbia ao omitente”.<br />
9<br />
Afirma, pois, o grande mestre do Recife, um elemento natural<br />
na ação omissiva (em nota de rodapé inclusive anota a divergência<br />
entre as teorias naturalística e normativa quanto à omissão),<br />
que deveria ser melhor explicitado com a análise da antijuridicidade<br />
da conduta. Assim, resolvida a questão de que se houvesse<br />
a ação omitida o resultado desapareceria (omissão causal, na<br />
CONDITIO SINE QUA NON), haver-se-ia de perquirir o outro elemento<br />
do crime, o antijurídico, verificando se o agente tinha o<br />
dever jurídico de agir. Isto significa que a omissão, revelada causa,<br />
seria típica desde logo, restando a indagar de sua antijuridicidade,<br />
que seria afirmada se o agente tivesse o dever jurídico de evitar o<br />
resultado (cujas bases não vinham afirmadas na lei), e seria arredada<br />
se não tivesse o agente tal dever jurídico (quando, entretanto,<br />
as causas de exclusão de antijuridicidade deviam ser expressas,<br />
como entendido à época).<br />
Magalhães Noronha parece ter sido um dos que mais atento<br />
olhar dirigiu à questão. Admitiu expressamente a omissão sob um<br />
ponto de vista naturalístico, lembrando percuciente indagação de<br />
Masimo Punzo: “se não é exato que as flores secam tanto quando<br />
o jardineiro não as rega, como quando as rega com uma solução<br />
de sublimado”, depois de ter afirmado que “quanto à ação negativa,<br />
ou omissão, entra no conceito de ação (Genus) de que é espécie.<br />
É também um comportamento ou conduta e, consequentemente,<br />
manifestação externa, que, embora não se concretize na<br />
materialidade de um movimento corpóreo – antes é a abstenção<br />
7 ARAÚJO, Laurentino da Silva,<br />
FAVEIRO, Vitor Antonio<br />
Duarte, op. cit.<br />
8 GARCIA, Basileu.<br />
Instituições de Direito Penal. 5ª<br />
ed. Max Limonad, v. 1, t. 1, p.<br />
222.<br />
9 BRUNO, Aníbal. Direito Penal,<br />
Parte Geral. 3ª ed. São<br />
Paulo: Forense, tomo I, 1967, p.<br />
impulso<br />
99
desse movimento –, por nós percebida como REALIDADE, como<br />
SUCEDIDO ou REALIZADO”.<br />
Para o renomado autor, razão se encontra na Teoria Naturalística,<br />
portanto. Mas, nem por isso afasta a necessidade da afirmação<br />
de seu conteúdo antijurídico: “Mas, ao Direito Penal elas só<br />
interessam quando têm relevância, quando importam o descumprimento<br />
de um dever jurídico ou se opõem ao COMANDO da<br />
norma legal, o que lhes dá o conteúdo normativo”. 10<br />
Não se cansa de demonstrar que a omissão é um fato e não<br />
uma abstração:<br />
Ela é tão real como a ação, pois é expressão da vontade<br />
do omitente, porque é reconhecível e verificável no<br />
tempo e no espaço, e porque não é um NÃO-SER,<br />
porém, modo de SER do autor. E, se tem um conteúdo<br />
real, não é um nada, mas alguma coisa suscetível de<br />
determinação e percepção. Como tal, pode dar lugar a<br />
um processo causal. 11<br />
321.<br />
Para arrematar, quanto à nossa indagação primária: “o<br />
Código Penal italiano é expresso: “não impedir um acontecimento<br />
que se tem a obrigação jurídica de evitar equivale a causá-lo”. Tal<br />
dispositivo, entretanto, é superfetação, desde que se declare ser a<br />
omissão causa, como faz o legislador pátrio no art. 11”. 12<br />
Desde então, refutando-o e aos adeptos de tal superfetação,<br />
erguia-se a voz de Paulo José da Costa Jr., de formação nitididamente<br />
clássica italiana: “o Projeto Alcântara Machado, que antecedeu<br />
o Código Penal de 1940, continha dispositivo que a Comissão<br />
Revisora deliberou suprimir”: não poderia o legislador brasileiro<br />
de forma alguma suprimir o dispositivo em questão. Sem ele não<br />
será possível promover a condicionalidade hipotética omissiva à<br />
categoria de causa. Necessário, portanto, o decreto de promoção<br />
normativa. Ausente a ficção legal, a omissão perde sentido. Diluiuse,<br />
desnorteia-se.<br />
Dois, portanto, os pressupostos da causalidade omissiva: “a<br />
conexão condicional hipotética entre conduta e evento; e a violação<br />
de uma obrigação jurídica de intervir”. 13<br />
Vê-se, pois, e claramente, que o ex-Professor Titular de<br />
Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São<br />
Paulo afirmava o que outros apenas intuíam: a falta de tipicidade<br />
dos delitos comissivos por omissão.<br />
100 impulso
Esta, precisamente, a grande crítica que se fazia, e cada vez<br />
mais tomando espaço na doutrina mundial. Se faltava tipicidade<br />
aos denominados delitos omissivos impróprios, faltava-lhes legalidade,<br />
ou seja, constituíam-se em violação do vetusto e básico<br />
Princípio da Legalidade.<br />
O CRIME COMISSIVO POR OMISSÃO E<br />
O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE<br />
O que parece é que o legislador de 1940, e os doutrinadores<br />
que o influenciaram, além de boa parcela dos comentaristas da<br />
época, não se deram conta do grave problema da infringência, que<br />
o tratamento dado à questão representava para o Princípio da<br />
Reserva Legal.<br />
É verdade que Paulo José da Costa Júnior, bem mais tarde,<br />
afirmaria a necessidade da previsão legal dos crimes omissivos<br />
impróprios. Mas afirmaria, também, que “no crime comissivo,<br />
uma única violação se perpetra da norma principal. No crime<br />
comissivo-omissivo, duas: da principal e da acessória, que estabelece<br />
o dever de agir. Consequentemente somente uma parte do tipo<br />
acha-se legalmente descrita. A outra incumbe ao Juiz construir,<br />
complementando o tipo”. 14<br />
Assim o afirmou, quando já aceita a reforma que introduziu<br />
em 1984 o dispositivo acerca da relevância causal da omissão.<br />
Entretanto, vê-se, deixava a solução pela metade, incumbindo ao<br />
Juiz parcela do tipo a realizar, o que significa menos que o arbítrio<br />
tão só pela segura orientação doutrinária a respeito.<br />
Sobre o assunto, discorre Carlos Creus, sendo de se lembrar<br />
que o Código Penal argentino não acolhe a previsão, em tipo próprio<br />
da Parte Geral, da causalidade omissiva:<br />
Sin duda, lo que más preocupa a la doctrina contemporanea<br />
al tractar de los delitos de Comisión por<br />
Omisión, es el hecho de que su reconocimiento puede<br />
colisionar con el principio de legalidad encuanto se<br />
trata de tipos ‘no escritos’ (son ‘tipos de interpretación’,<br />
Schmidthäuser): la ley pune al que mata, peropor un<br />
lado se plantea esa objeción, pero por el otro, dejar de<br />
reconecerlos importaría poner al descubierto un amplio<br />
campo de permisividad al ataque del bien jurídico que<br />
el mismo tipo omisivos improprios aparecerían como el<br />
10 NORONHA, E. Magalhães.<br />
Direito penal. 17ª ed. São Paulo:<br />
impulso<br />
101
agotamiento necesario del contenido prohibitivo del<br />
tipo escrito (Zaffarini).<br />
Elide, entretanto, a suposta agressão ao princípio da legalidade,<br />
da seguinte forma:<br />
Por supuesto que la objeción del principio de legalidad<br />
se rebate cuando la omisión impropria es tractada<br />
legalmente como una extensión del tipo (como lo hizo<br />
nuestro Proyecto de 1960 – Soler, en su art. 10), o<br />
cuando excepcionalmente el legislador lo prevé taxativamente<br />
(entre nosotros ciertos casos de abandono de<br />
personas del art. 106, Cód. Penal). Creemos que la corrección<br />
jurídica de la causalidad permite incluir en ella<br />
toda condición típica de un resultado, sea esta la de<br />
producirlo – cuando no se lo debía producir – o la de no<br />
impedirlo – cuando se lo debía impedir –, por lo cual no<br />
nos parece violatoria del principio de legalidad la consideración<br />
de la comisión por omisión (en un significado<br />
socialmente adecuado de la acción de “matar”,<br />
tanto mata el que quita la vida a otro, como el que permite<br />
que se extinga la vida cuando puede imperdirlo). 15<br />
E prossegue com observação a ser pensada:<br />
Por muchas razones el tema puede parecer sobredimensionado<br />
en la doctrina con abundancia del debate teórico,<br />
sin poner demasiada atención a suas verdaderas<br />
consecuencias prácticas (dogmáticas). 16<br />
Saraiva, v.1, p. 106.<br />
11 NORONHA, E. Magalhães,<br />
op. cit., p. 125-126.<br />
12 NORONHA, E. Magalhães,<br />
A questão, todavia, subsiste. Não ofenderia ao princípio da<br />
legalidade a inexistência de uma norma que expressamente previsse<br />
a extensão ao tipo incriminador? A conduta incriminada só o<br />
poderia ser, se fosse hipótese de adequação típica de subordinação<br />
mediata, como o é a tentativa, ou o são as modalidades culposas,<br />
mas para tanto deveria haver a previsão genérica da relevância<br />
causal da omissão e a específica, a cada tipo penal em que<br />
cabente, como se faz com os delitos culposos.<br />
Ainda em terras argentinas, Ricardo C. Nuñes dá uma solução<br />
simplista ao problema:<br />
102 impulso
Fracasada la tesis de la relación causal física, la atribución<br />
del resultado físico al omitente encontró un<br />
nuevo fundamento en el princípio de la “acción esperada”...<br />
la omisión es causal si el resultado desaprobado<br />
por el ordenamiento jurídico hubiera sido<br />
impedido por la acción que se “esperaba del autor”.<br />
E apressa-se em corrigir a fórmula:<br />
La acción esperada no puede, empero, explicar satisfactoriamente<br />
el fundamento jurídico de la obligación<br />
de actuar para evitar el resultado delectivo en el caso<br />
de ingerencia, esto es, en el caso en que ese deber tiene<br />
como fuente un hecho precedente a la omisión realizada<br />
por el autor. 17<br />
Aponta, a seguir, fórmula simplista ou, pelo menos, insuficiente<br />
para tão magno problema, ao afirmar que a responsabilidade<br />
do omitente por um resultado delitivo é uma questão de tipicidade<br />
inerente aos tipos dos delitos de comissão, que são aqueles<br />
que prevêem um comportamento contrário a uma norma proibitiva.<br />
A infração a tal espécie de norma tanto se dá pela causação física<br />
do resultado como pela omissão, quando se tenha uma situação<br />
jurídica particular, que lhe atribua a responsabilidade.<br />
Com a costumeira clareza inovadora, afirma Welzel:<br />
Si se desea desarrollar los tipos de los delitos de omisión<br />
improprios mediante una conversión de los tipos<br />
de comisión, se evidencia un sensible vacío en la elaboración<br />
de los tipos legales.<br />
El no evitar el resultado típico en el sentido de un delito<br />
de comisión, por una persona con poder para ello,<br />
nunca es suficiente para fundamentar la autoría, en el<br />
sentido de correspondiente delito de omisión improprio.<br />
En estos casos, más bien, la autoria tiene que ser fundada<br />
independientemente, junto a la conducta típica,<br />
op. cit., p. 125-126.<br />
por características especiales de autor: sólo el no evitar<br />
un resultado típico por parte de una determinada persona<br />
con poder para ello, convierte a dicha persona en<br />
autor en el sentido de un delito de omisión impróprio. 18<br />
13 COSTA, Paulo José da. Direito<br />
Penal Objetivo. São Paulo:<br />
Forense Universitária, 1989,<br />
p. 32.<br />
impulso<br />
103
Pretende, portanto, o renomado autor resolver o tema (ou<br />
buscar o seu campo de solução) sob um outro ângulo, o dos crimes<br />
próprios, em que só determinados autores podem fundamentar o<br />
injusto punível. Assim, se um qualquer revela segredo privado<br />
alheio, a conduta é atípica. Se se trata de um sacerdote, entretanto,<br />
há crime. Também só haveria o delito comissivo impróprio para o<br />
autor que tivesse o dever jurídico de impedir o resultado que a<br />
norma pretende evitar.<br />
El no evitar el resultado típico es típico en el sentido de<br />
un delito de omisión improprio sólo para determinadas<br />
personas con poder del hecho, que de antemano estén<br />
en una relación estrecha respecto al bien jurídico. Los<br />
delitos de omisión improprios comparten, por lo tanto,<br />
con los delitos especiales proprios, la particularidad de<br />
carácter típico de que la antijuridicidad de la conducta<br />
del autor sólo se funda mediante la adición de características<br />
objetivas especiales del autor. 19<br />
E conclui, aceitando a exceção ao Princípio da Legalidade:<br />
14 COSTA, Paulo José da, op.<br />
cit.<br />
En los delitos de omisión improprios, el juez mismo<br />
mediante una complementación del tipo, tiene que<br />
encontrar las características objetivas del autor... “El<br />
principio NULLA POENA SINE LEGE experimenta en<br />
estos casos una profunda limitación: sólo la conducta<br />
del autor está ‘legalmente determinada’ y no las características<br />
objetivas de autor. Por esta razón, se han<br />
hecho valer siempre reparos de índole constitucional en<br />
contra de los delitos de omisión improprios. Del vacío<br />
en la descripción legal típica resulta dogmáticamente<br />
la inseguridad para el juez de circunscribir con suficiente<br />
precisión las características típicas no escritas<br />
del autor de la omisión. Esta dificuldad dogmática no<br />
radica en las deficiencias de una ley determinada, sino<br />
en la naturaleza de la cosa. Es imposible, por principio,<br />
circunscribir concreta e exaustivamente en tipos<br />
legales la inmensa variedad de posibles autores de<br />
omisión [grifo nosso]. 20<br />
104 impulso
Se assim o é, como, ao menos, minorar tais defeitos congênitos<br />
da espécie normativa em questão?<br />
Sin embargo, estos deberes señalados expresamente en<br />
la ley, son sólo parte de un círculo de deberes más<br />
amplios que está detrás de ellos. Así, por ejemplo, el<br />
deber de garante jurídico penal de salvar la vida no<br />
debe identificarse con el deber civil de dar alimentos.<br />
Por otra parte, se corre el peligro de que mediante la<br />
‘des-positivation’ de los deberes de acción, se pierda la<br />
linea divisoria entre un deber meramente ético-social y<br />
otro consolidado juridicamente; la antigua fundamentación<br />
formal de los deberes es sustituida en medida creciente<br />
por la figura de la ‘estrecha comunidad de vida’.<br />
Sin embargo, aunque no se pueda volver al primitivo y<br />
restringido punto de partida de un deber jurídico formulado<br />
en la ley, hay que exigir la consolidación jurírica<br />
del deber de garante: esto es, la responsabilidad del<br />
garante, aunque se lea directamente en la ley, tiene que<br />
poder ser confirmada por la ley. 21<br />
Ora, assim, rechaça o mestre de Bonn a fórmula, entre nós<br />
preconizada por vultos da estatura de Alcides Munhoz Netto, da<br />
inclusão, na Parte Geral, de cláusula, pela qual a omissão imprópria<br />
só fosse punida em casos expressos, excepcionais, em que a<br />
conduta constasse do preceito da parte especial, assim como<br />
ocorre com os delitos culposos. 22 Neste mesmo sentido aponta o<br />
preconizado na Segunda Reunião da Comissão Redatora do<br />
Código Penal Tipo para a América Latina. 23<br />
De qualquer modo, vê-se, é eivada de dificuldades a proposta<br />
de uma fórmula genérica com as hipóteses de dever jurídico,<br />
quando o que se tem, antes de tanto, é a figura do devedor jurídico,<br />
imprevisível genericamente. Por outro lado, o nível de detalhamento<br />
por alguns preconizado na Parte Especial seria mais um,<br />
entre tantos outros, imenso óbice ao já abalado dogma do “conhecimento<br />
presumido da lei”, ante a sua extensão e diversidade.<br />
Teria sido, indaque-se, mais feliz o legislador de 1940,<br />
calando-se quanto ao não positivável, que o atual?<br />
Esta era a resposta dada à época por doutrinador do porte de<br />
Luis Jiménes de Asúa, que, após esmiuçar as várias correntes<br />
explicadoras da natureza do delito comissivo por omissão, analisou<br />
15 CREUS, Carlos. Derecho Penal,<br />
Parte General. 3ª ed .<br />
Astrea, p. 181.<br />
16 CREUS, Carlos, op. cit.,<br />
p. 184.<br />
impulso<br />
105
17 NUÑEZ, Ricardo C. Manual<br />
de Derecho Penal, Parte General.<br />
3ª ed. Córdoba: Marcos<br />
Lerner, p. 160.<br />
18 WELZEL, Hans. Derecho<br />
Penal Alemán. 3ª ed. Santiago:<br />
Editorial Jurídica de Chile, p.<br />
286-287.<br />
a oportunidade do art. 40 do Código Penal italiano, onde a proposta<br />
de Alcântara confessadamente abeberou-se, além de trazer à<br />
colação autorizadas vozes do país de Carrara, cada uma a trazer<br />
sua fundação à necessidade do dispositivo, tendo por base sua fundamentação<br />
para a própria natureza da omissão enquanto causa. O<br />
grande mestre não deixou de observar, após demonstrar as muitas<br />
dificuldades, que: “Cuanto antecede es aplicable a los Códigos<br />
Iberoamericanos que han copiado lo dispuesto por el Código de<br />
Italia, y ante las dudas que existen para esclarecerlo, queda justificada<br />
nestra censura a cuantos han transcrito, sin demasiadas preocupaciones,<br />
un precepto que origina tantos debates”. 24<br />
A dificuldade, entretanto, não poderia justificar o gravame<br />
da aceitação da ofensa ao princípio da legalidade. O Código<br />
Penal de 1940, pode-se afirmar hoje sem medo, perdeu excelente<br />
oportunidade de, pela previsão normativa ainda que sumária, iniciar<br />
o grande esforço no sentido de que a tipificação dos delitos<br />
omissivos impróprios não seja aberta, como incrivelmente pregado<br />
por alguns.<br />
“O Direito Penal, todavia, pelo princípio da legalidade e da<br />
tipicidade, não pode abrir mão da exigência de ligar o juízo, de<br />
responsabilidade a uma norma-comando. Por isso, a omissão<br />
juridicamente relevante é a que infringe uma OBRIGAÇÃO<br />
JURÍDICA DE FAZER”. 25<br />
Essa obrigação, a que se refere Nuvolone, pode estar especificamente<br />
prevista pela própria lei, e assim o deve ser, embora<br />
possa estar sancionada por uma norma jurídica diferente: e esta<br />
norma pode, ainda, ser deduzida do sistema. Sem dúvida, entretanto,<br />
a única maneira de cumprir o rigor da reserva legal será a<br />
previsão expressa no próprio texto penal.<br />
É preciso não esquecer a advertência de Zaffaroni, lembrada<br />
por Alcides Munhoz Netto: “e o uso indiscriminado da tipificação<br />
pode redundar num autoritarismo penal muito restritivo do âmbito<br />
ou espaço da liberdade das pessoas e em abertas violações a direitos<br />
fundamentais do homem”. 26<br />
Refere-se, o autor, à necessidade de limitar a faculdade do<br />
legislador na citação de figuras delituosas da espécie, e assim o<br />
deve ser de fato. Todavia, nada impede a previsão genérica e a<br />
sequente especificação, como se tem com os crimes culposos.<br />
Bem por isso afirma o mesmo consagrado estudioso:<br />
106 impulso
Sob outro prisma, para os crimes omissivos impróprios,<br />
enquanto permanecer o critério de não limitar sua punibilidade<br />
na parte especial, nem definir legislativamente<br />
as situações de que surge o dever de evitar o resultado,<br />
tais delitos continuarão previstos em tipos abertos, que<br />
necessitam de complementação judicial, para que neles<br />
possam ser subsumidas determinadas inações.<br />
A segurança do direito impõe que não se deixe ao livre<br />
critério dos Juízes o equiparar a omissão à comissão,<br />
para castigá-la como se também esta fosse causadora<br />
do resultado. Sem limites obrigatórios, quanto ao dever<br />
do omitente em evitar a lesão, e quanto à punibilidade<br />
do comportamento, se enfraquece a garantia do nullum<br />
crimen sine lege, mediante a qual se afirma a função<br />
limitadora do Direito Penal. Importante, pois, o esforço<br />
de condensar, em fórmulas legislativas precisas, as hipóteses<br />
em que alguém possa ser responsabilizado por um<br />
resultado que não causou, mas que poderia e deveria<br />
evitar. Importante, igualmente, estudar a maneira de<br />
criar tipos fechados de crimes omissivos impróprios. 27<br />
Discorria o professor paranaense sobre a matéria às vésperas<br />
da reforma da parte geral do CP, efetivada em 1984. Suas palavras<br />
encontraram eco, sabe-se, mas são de total atualidade:<br />
Enquanto a expressa previsão das hipóteses de evitar o<br />
resultado não for incorporada ao nosso Direito Positivo,<br />
persistirá o problema de compatibilizar os crimes<br />
de omissão imprópria com o princípio da anterioridade<br />
da lei penal. 28 É geral, em conseqüência, o reconhecimento<br />
de que compete à doutrina e à jurisprudência<br />
determinar as posições de garantidor, dos quais se<br />
deduz aquele dever. Com isso, o princípio do nulla<br />
poena sine lege experimenta profunda limitação, já que<br />
a conduta não está inteiramente determinada. A lei só<br />
comina a pena para a produção comissiva do resultado<br />
e estende a mesma responsabilidade a quem não o<br />
evita, sem especificar, contudo, quando ocorre tal<br />
dever de impedi-lo. Assim, só uma parte do tipo está<br />
legalmente descrita; a outra tem que ser construída<br />
pelo Juiz, a quem fica a tarefa de complementá-lo.<br />
19 WELZEL, Hans, op. cit., p.<br />
287.<br />
20 WELZEL, Hans, op. cit., p.<br />
288.<br />
impulso<br />
107
Quanto à segurança do Direito, o atual sistema de disciplina<br />
legislativa dos crimes omissivos impróprios<br />
comporta, destarte, todos os reparos opostos aos tipos<br />
penais abertos. 29<br />
Já advertia Anibal Bruno, que o princípio da legalidade não<br />
se limita à necessidade de previsão penal anterior, mas à exigência<br />
da não formulação de tipos penais abertos.<br />
Everardo da Cunha Luna, por sua vez, aborda especificamente<br />
soluções, para obviar o entrave:<br />
21 WELZEL, Hans, op. cit., p.<br />
293.<br />
Como os crimes comissivos por omissão, regra geral,<br />
não estão explicitados nos tipos penais, surge o problema<br />
da constitucionalidade da punção por omissão<br />
imprópria. Não haveria, na tipificação desses crimes,<br />
considerados implícitos nos tipos penais de resultado,<br />
uma ofensa ao princípio da reserva legal? Tendo como<br />
conteúdo deveres jurídicos emanados de outras fontes,<br />
que não a própria lei penal, não escapariam esses tipos<br />
penais ao controle do salutar princípio da legalidade?<br />
Quanto à implicitude, deve-se lembrar que, em muitos<br />
tipos penais, elementos constitutivos do crime estão<br />
implícitos, exigindo, desse modo, uma investigação<br />
especial. E quanto a outras fontes de deveres jurídicos,<br />
que vão além das palavras descritivas da lei penal, exigindo<br />
juízos de valorização, deve-se lembrar, igualmente,<br />
que existem, em muitos tipos penais, elementos<br />
constitutivos do crime de natureza valorativa. A questão<br />
básica, fundamental, portanto, não está na própria<br />
essência da omissão imprópria, mas no modo como<br />
deve ela ser disciplinada pelo Direito Penal.<br />
A técnica da construção de tipos penais, na Parte Especial,<br />
destinados aos crimes comissivos por omissão,<br />
não pode ser escolhida como a única constitucionalmente<br />
adequada e praticamente eficaz. Dois defeitos<br />
apresenta: ou deixa escapar uma grande quantidade de<br />
fatos que merecem punição, ou procurando abarcá-los<br />
a todos, tarefa tortuosa, peca contra a economia legal.<br />
Tem a virtude, porém, de limitar o número de bens jurídicos<br />
e de agrupar, num tipo omissivo, vários crimes da<br />
mesma natureza. 30<br />
108 impulso
Em nível de proposta, entretanto, não avança mais do que no<br />
postular um aumento de previsões típicas de crimes omissivos,<br />
quer próprios quer impróprios. A questão do dogma da reserva<br />
legal persiste irresolvida; reconhece, apenas acrescentando que se<br />
devam evitar, o quanto possível, os chamados tipos penais abertos.<br />
A FÓRMULA ADOTADA NA REFORMA PENAL DE 1984<br />
O atual dispositivo repete, quase que identicamente, a proposta<br />
de Nelson Hungria, que constituiu o malfadado Código de<br />
1969:<br />
Relação de causalidade<br />
Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do<br />
crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se<br />
a ação ou omissão sem a qual o resutado não<br />
teria ocorrido.<br />
§1º - ..............................................<br />
Relevância da omissão<br />
§2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente<br />
devia e podia agir para evitar o resultado. O<br />
dever incumbe a quem:<br />
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou<br />
vigilância;<br />
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir<br />
o resultado;<br />
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da<br />
ocorrência do resultado.<br />
De início, constata-se a convivência de um critério mecanicista<br />
(caput) e de uma forma normativa (§2º) no preceito, o que é<br />
incongruente, como alertou René Ariel Dotti, lembrado por Damásio.<br />
A explicação para tanto é dada pelo último doutrinador, no<br />
sentido de que “a incongruência do texto atual não se encontra no<br />
Projeto de CP. Deveu-se à Emenda no Congresso Nacional”, 31 não<br />
convence, na medida em que o mesmo defeito ostentava a fórmula<br />
proposta por Hungria em 1963.<br />
A explicação dada por Ricardo Antunes Andreucci e Sérgio<br />
Marcos de Moraes Pitombo, membros da comissão responsável<br />
pela atualização da reforma, é mais convincente:<br />
22 Crimes Omissivos. Revista<br />
da Associação dos Magistrados<br />
do Paraná, Curitiba, v. 326,<br />
jul./dez. 1984.<br />
23 Código Penal Tipo para Latinoamérica.<br />
México: Academia<br />
Mexicana de Ciencias Penales,<br />
1967, p. 84-109 e 493.<br />
(2ª Reunião Plenária)<br />
impulso<br />
109
Volveu-se, neste passo, seguindo a linha dos legisladores<br />
atuais, à fórmula que se continha no Código de<br />
1969, para disciplinar a relevância etiológica da omissão,<br />
estabelecendo-se os destinatários do preceito primário,<br />
para o que se concretizou, em elenco, o prévio<br />
dever de agir. 32<br />
O conteúdo da norma, contudo, não implica a adesão,<br />
pura e simples a um conceito normativo, mesmo porque,<br />
mantida a referência, de origem naturalística, à<br />
omissão no CAPUT, as hipóteses em que se instaura o<br />
dever de agir melhor se ajustam à antijuridicidade do<br />
que ao tipo.<br />
O legislador, nesta matéria, como em outras, não assumiu<br />
compromisso doutrinário que transcendesse a sua<br />
tarefa específica. 33<br />
Já de muito os analistas do Código italiano, entretanto, vislumbram<br />
explicação mais correta:<br />
24 ASÚA, Luis Jiménez de.<br />
Tractado de Derecho Penal. Buenos<br />
Aires: Losada, t. III, 1951,<br />
n. 1154, p. 600.<br />
25 NUVOLONE, Pietro. O sistema<br />
do Direito Penal. São<br />
Paulo: Revista dos Tribunais, v.<br />
1, 1981, p. 198.<br />
26 MUNHOZ, Alcides Netto.<br />
Os crimes omissivos no Brasil.<br />
Ajuris, Porto Alegre, n. 29, ano<br />
10, nov. 1983, p. 35.<br />
Acaso el menos imperfecto de todos os comentarios que<br />
sucita ese inciso segundo el art. 40 del Código italiano,<br />
sea el que hace Francisco Antolisei: el artículo 40, en<br />
su párrafo 1º, afirma el ligamen causal, y en el segundo<br />
se delimita la responsabilidad del que se omite: “Por<br />
efecto de esta disposición quien determina un resultado<br />
mediante una omisión no responde siempre de ella... La<br />
causalidad, pues, no basta: se necesita, además, la<br />
existencia de la obligación, para el sujeto, de ejecutar<br />
una acción dada, y precisamente la acción que habría<br />
impedido la realización del resultado. Tal obligación<br />
debe ser jurídica, es decir, impuesta por el derecho, sin<br />
que la simple violación de un deber moral sea suficiente”.<br />
34<br />
Interessante notar que, sob os aplausos do não menos aplaudido<br />
Jiménez de Asúa, volvia-se à singela explicação prestada pelo<br />
próprio Alcântara Machado, ao início da “atoarda”, como se tem<br />
da referência de nº 04.<br />
E, portanto, definitivamente, incorporava o legislador à lei<br />
penal brasileira o que a grande maioria dos doutrinadores da<br />
época do Código de 1940, e a quase totalidade dos da época atual<br />
110 impulso
o faziam: a relevância jurídica da omissão e os casos de tal<br />
relevância/dever. Para que o princípio da legalidade não sofresse<br />
qualquer esbarrão, só restava, se possível, a explicitação dos tipos<br />
penais, que comportassem a forma omissiva imprópria, o que<br />
ficou para o futuro.<br />
Procedente, como sempre, a observação de Alberto Silva<br />
Franco:<br />
Diante da alternativa ou enumerar, em artigo de lei, as<br />
fontes geradoras do dever de atuar, ou compor, tal<br />
como ocorre com o crime culposo, figuras atípicas de<br />
omissão imprópria, não há dúvida de que a opção que<br />
melhor atende ao direito de liberdade do cidadão é a<br />
segunda. O legislador de 84 preferiu, contudo, definirse<br />
pela primeira, acolhendo, em linhas gerais, no texto<br />
legal, a tipologia clássica das fontes geradoras do<br />
dever de atuar, sem concessão alguma às considerações<br />
da doutrina mais moderna, a respeito de fontes<br />
desse dever, de conotação ética ou moral.<br />
E indaga: “não se ajustaria a tal hipótese o caso do transeunte,<br />
única testemunha do fato, que, sem nenhum esforço maior,<br />
poderia salvar uma criança de tenra idade que caiu numa fonte de<br />
praça pública? (Günter Stratenwerth, ob. cit., p. 302)”. 35<br />
Assim, vê-se, a previsão legal vigente não é satisfatória,<br />
conforme abalizadas vozes, porque incompleto o tipo genérico e<br />
ofensiva ao princípio da reserva legal a inexistência de tipos omissivos<br />
impróprios na parte especial, ao lado dos tipos comissivos,<br />
da mesma forma que ao lado dos tipos dolosos arrolam-se alguns<br />
culposos.<br />
Todavia, e a data venia aqui é irresistível, a verdade é que<br />
doutrinadores como Damásio e Mirabete preferiram o silêncio<br />
quanto a tão importante questão, quem sabe considerando-a, como<br />
a considerou Creus (referência nº 16), tema superdimensionado,<br />
de decorrências mais teóricas que práticas-dogmáticas, com o que<br />
não se pode concordar.<br />
Merece destaque, entretanto, o posicionamento de Francisco<br />
de Assis Toledo, sem dúvida o grande mentor da reforma da Parte<br />
Geral do CP, em 1984:<br />
27 NETTO, Alcides Munhoz,<br />
op. cit., p. 36.<br />
28 NETTO, Alcides Munhoz,<br />
impulso<br />
111
O problema da causalidade nesses delitos comissivos<br />
por omissão tem ensejado inúmeras disputas doutrinárias<br />
que, entre nós, com a reforma penal, perde<br />
relevância. Com efeito, o legislador pátrio estabeleceu<br />
um nexo de causalidade normativo entre a omissão e o<br />
resultado, no art. 13 e parágrafos do Código Penal,<br />
especificando as hipóteses em que esse nexo deva ser<br />
reputado presente, a saber:<br />
A omissão terá o mesmo valor penalístico da ação<br />
quando o omitente se colocar, por força de um dever<br />
jurídico (art. 13, §2º), na posição de garantidor da<br />
não-ocorrência do resultado. 36<br />
Será assim, efetivamente? A posição de garante esgotaria a<br />
questão da tipicidade de tais delitos? A previsão legal é, portanto,<br />
suficiente? Afinal, qual o seu campo de abrangência? O risco pessoal<br />
afasta ou não o dever jurídico? São questões ainda pendentes,<br />
sobre as quais nos debruçamos a seguir.<br />
op. cit., p. 49.<br />
ALGUNS ASPECTOS RELEVANTES<br />
A natureza da omissão imprópria<br />
Após tantos debates doutrinários e propostas legislativas, a<br />
indagação permanece para a perplexidade de muitos ou a adesão,<br />
até hoje, às Teorias Causal e Normativa da omissão.<br />
Valha-nos uma solução. Indubitável é que se encontra superada<br />
a “falsa máxima ‘de nada, nada puede resultar’”, 37 mas não<br />
há negar que persista uma concepção causal para a omissão. Por<br />
outro lado, a ela se antepondo, alguns professam explicação puramente<br />
normativa para a causalidade omissiva.<br />
TEORIA CAUSAL – Para os que ainda acreditam na realidade<br />
da causalidade omissiva, a melhor das explicações é aquela,<br />
que parte de um conceito puramente dinâmico do real, pelo qual<br />
as coisas estão sempre acontecendo num fluir incessante. Não há<br />
para esta concepção atos que rompam a inércia e determinem um<br />
resultado, qualquer que seja. Há, só, atos que impulsionam movimentos<br />
previamente tendentes a um determinado resultado e<br />
outros que vão contra tal movimentação, desviando o fluxo dos<br />
acontecimentos para outro, que não aquele ao qual inicialmente<br />
tendia o ato (deslocar) considerado. O que chamamos causa, portanto,<br />
seria, sempre, concausa ou contracausa, inexistindo causalidade<br />
pura, primária.<br />
112 impulso
A inércia, a omissão, não passam de atos que aceleram a disposição<br />
prévia do movimento. A comissão, ao contrário, é a conduta,<br />
que se antepõe ao resultado a que se dirigia o movimento<br />
fático. Ambos são ação, vê-se, determinando resultados, mas não<br />
ação pura. A omissão é a que apóia o fluxo dos acontecimentos<br />
naturais. A comissão, a que o nega. Assim, Tício, matando Caio a<br />
tiros, impediu a continuidade do movimento vida, em Caio;<br />
enquanto Tício, não socorrendo Caio que caíra numa lagoa, foi<br />
concausa para o resultado morte, que já se desenvolvia naturalmente.<br />
Esta visão, de modo geral, coincide com a de Pietro Nuvolone,<br />
para quem não procede a aparência enigmática do problema<br />
da causalidade omissiva:<br />
Isso significa que a materialidade do fato consiste em<br />
não ter interrompido uma sucessão causal já in itinere,<br />
colocando em ação outra sucessão causal capaz de<br />
interromper a primeira. 38<br />
Seguindo-se tal corrente, sob a idéia motriz de uma sucessão<br />
permanente dos fatos, seria ação a omissão, porque aquela precederia<br />
esta, tanto quanto omissão a ação, porque contrária à ordem<br />
natural das coisas.<br />
Como distinguir, assim, num campo de pura especulação,<br />
ação e omissão? Impossível. Tal só se resolveria no campo ético,<br />
de valores, no qual ação seria contrariar o movimento natural,<br />
enquanto omissão seria apoiá-lo. O movimento natural, contudo,<br />
só importaria ao Direito Penal, enquanto bom, enquanto justo. Terse-ia<br />
a relevância causal resolvida meramente no campo ético, e,<br />
depois, do Direito. Daí que a relevância jurídica, tanto da ação<br />
como da omissão, reside no campo da antijuridicidade, acentuando-se<br />
tal característica na omissão (porque, quanto a esta, só<br />
alguma é considerada, e só o é se antijurídica). Por isso a afirmação<br />
de Andreucci e Pitombo, de que “as hipóteses em que se instaura<br />
o dever de agir melhor se ajustam à antijuridicidade que ao<br />
tipo” (referência nº 30).<br />
Tal posicionamento, vê-se, resumir-se-ia na aceitação da causalidade<br />
omissiva (como relevância no mundo dos fatos) condicionada<br />
à sua antijuridicidade (pertinente à condição de garante), o<br />
que foi, em termos gerais, o posicionamento do legislador de<br />
1984.<br />
29 NETTO, Alcides Munhoz,<br />
op. cit., p. 49.<br />
impulso<br />
113
Com tão pouco de tipicidade, e tanto de antijuridicidade,<br />
fácil de concluir que se ameniza a questão de ofensa ao Princípio<br />
da Reserva Legal.<br />
TEORIA NORMATIVA – Sustenta-se, entretanto e ainda,<br />
uma opção meramente normativa, para fundamentar a conduta<br />
omissiva. Aí se inseriria o pensamento de Max Ernst Mayer, no<br />
sentido de que o descarrilhamento de um trem pode dever-se tanto<br />
à conduta omissiva de um guarda-vias desatento, como à comissiva<br />
do que empreende manobra errada. Para tal escritor, a conduta<br />
omissiva é causação em sentido filosófico. 39<br />
Do mesmo modo Guex, para quem<br />
También los hechos negativos son condiciones. Nosotros<br />
decimos que la causa del incendio por el rayo es la<br />
falta de pararrayos, y la causa de la derrota de Waterloo<br />
ha sido la ausencia de Grouchy. 40<br />
A todos assistiria a “teoria da ação esperada”, de Mezger:<br />
La pregunda decisiva se formula así: Hubiera sido impedido<br />
por la acción ‘esperada’ el resultado que el derecho<br />
desaprueba? Cuando esta pregunta se responde afirmativamente,<br />
la omissión es causal en orden al resultado. 41<br />
Nessa linha, coube a Grispigni, para o esclarecimento do art.<br />
40 do Código Penal italiano, a melhor formulação normativa:<br />
en el párrafo primero – dice – se trata de enunciar en<br />
general la causalidad; y en el segundo se afirma en<br />
punto de vista normativo, que es el único que permite<br />
concebir causalmente da comisión por omisión. 42<br />
30 LUNA, Everardo da Cunha.<br />
O Crime de omissão e a responsabilidade<br />
penal por omissão.<br />
Em: LEGIS, Vox. Ano XV, v.<br />
173, p. 07-08, mai. 1983.<br />
31 JESUS, Damásio E. de.<br />
Direito Penal, Parte Geral. 15ª.<br />
ed. São Paulo: Saraiva, p. 222,<br />
nota 18.<br />
A afirmação supra, para nossas terras transpostas, encontra<br />
perfeito eco na crítica ao dispositivo equivalente de nosso Código.<br />
Porque a omissão é causal, afirma-o o ‘caput’ do art. 13, no sentido<br />
mesmo que estabelece o nexo: não houvesse a omissão, não<br />
se daria o resultado. Mas nem toda omissão é penalmente relevante,<br />
porque só se é punido, por não evitar o que se tem o dever<br />
de evitar, nas hipóteses normativamente alcançadas, que se resolvem<br />
no terreno da antijuridicidade.<br />
114 impulso
A teoria nenhuma unem-se, pois e ao final, ambas as teorias,<br />
em fórmula híbrida, sendo de se aceitar que a omissão é causal,<br />
mas tal não basta para que seja relevante, precisando ser antijurídica.<br />
Daí que a enumeração expressa das hipóteses de dever jurídico<br />
se faz necessária.<br />
O campo de abrangência dos crimes comissivos impróprios<br />
a) SUA GENERALIDADE – Ousamos afirmar, de pronto,<br />
que praticamente todos os delitos comissivos podem vir a ser<br />
cometidos por omissão, daí a dificuldade criada pela ausência da<br />
previsão específica da punibilidade em cada tipo penal. Como<br />
acentua Zaffaroni, até mesmo um estupro, ou um furto, podem ser<br />
cometidos por omissão, figurando-se o primeiro no caso do<br />
médico encarregado da guarda de um manicômio que, enquanto<br />
toma banho de sol, deixa que uma paciente pratique com ele o<br />
coito, sem fazer qualquer movimento; o segundo no caso do<br />
encarregado de vigiar a correia transportadora de jóias de uma<br />
fábrica, que deixa o seu trabalho, levando conscientemente jóia<br />
por acidente caída e enroscada em suas calças. 43<br />
b) CRIMES COMISSIVOS IMPRÓPRIOS CULPOSOS –<br />
Apesar da oposição de notáveis cultores da ciência jurídico-penal,<br />
entendemos que o crime comissivo impróprio possa ser atribuído<br />
ao agente a título também de culpa.<br />
Conforme Heleno Cláudio Fragoso, tanto comete crime<br />
comissivo por omissão o garantidor, que se abstém de evitar o<br />
resultado, por desejar a sua superveniência, quanto o que, embora<br />
não a querendo, aquiesce em seu advento, ou o que simplesmente<br />
omite deveres de cuidado, conhecendo ou podendo conhecer o<br />
resultado que lhe cumpria evitar. 44 Ora, a este o crime será imputado<br />
por culpa.<br />
É que, como assinala H. H. Jescheck, sempre que o correspondente<br />
tipo de comissão admita a forma culposa, os delitos de<br />
omissão imprópria podem ser cometidos com culpa. Trata-se,<br />
como nos crimes comissivos, da inobservância do dever de cuidado.<br />
45<br />
Como resume Delmanto, configurando-se a obrigação de<br />
agir com a possibilidade de agir, “se não agir para evitar o resultado,<br />
poderá ser responsável por este, a título de dolo ou de<br />
culpa”. 46 E o reitera Jescheck:<br />
32 Cf. trabalhos apresentados ao<br />
Colóquio Nacional Preparatório<br />
do 12º. Congresso Internacional<br />
de Direito Penal (In: Revista de<br />
Direito Penal, nº. 33).<br />
33 ANDREUCCI, Ricardo A.,<br />
PITOMBO, Sérgio Marques de<br />
Moraes. Notas ao quadro comparativo<br />
da Lei nº. 7209/1984 e<br />
parte geral do Código Penal.<br />
Apamagis, Nota 7, 1985.<br />
34 ASÚA, Luis Jiménez de, op.<br />
cit., n. 1153.<br />
impulso<br />
115
Los delitos de omisión impropria no regulados en la ley<br />
pueden cometerse por imprudencia siempre que el correspondiente<br />
tipo de comisión considere suficiente la<br />
culpa. 47<br />
Merece verificação, a respeito, a abrangente visão de Nuvolune:<br />
(...) a obrigação de não omitir todas as cautelas necessárias<br />
para evitar que se verifique uma situação perigosa,<br />
da qual surja um evento lesivo, está implícita em<br />
todas as normas sobre culpa (a esse propósito, como se<br />
verá, convém esclarecer que, em muitos casos, os crimes<br />
culposos são crimes cometidos mediante omissão). 48<br />
Ao analisar casos colhidos no Direito positivado, Asúa menciona<br />
um da jurisprudência argentina, de crime comissivo por<br />
omissão culposo, julgado em 1941, no qual um rapaz caíra num<br />
poço de cal, morrendo em conseqüência de queimaduras, e o réu<br />
(o construtor) teria omitido as cautelas indispensáveis:<br />
El hecho debe calificarse de homicidio omisivo por<br />
negligencia, categoria de delito que, al decir de Binding,<br />
‘ha merecido el honor de ser, en la escala de los<br />
delitos, el más pequeño entre los pequenos. 49<br />
c) CRIMES COMISSIVOS IMPRÓPRIOS TENTADOS –<br />
Dúvida não há quanto à figuração da tentativa em tais delitos. Discorre<br />
a respeito, com a normal clareza, Munhoz Netto:<br />
35 FRANCO, Alberto Silva. Código<br />
Penal e sua interpretação<br />
jurisprudencial 4ª ed. São Paulo:<br />
Revista dos Tribunais, p. 74.<br />
Delitos de resultado, os omissivos impróprios sempre<br />
comportam a tentativa. Neles o fazer não importa<br />
necessariamente em consumação. Entre a omissão e o<br />
summatum opus pode surgir circunstância imprevista<br />
que impeça o advento do resultado (ex.: a inesperada<br />
atuação de terceiro impede a morte do filho, não aleitado<br />
pela mãe).<br />
O limite mínimo da tentativa punível não pode, entretanto,<br />
ser fixado pelo começo da execução a que alude<br />
o CP (art. 12, II). No comportamento omissivo não há<br />
nada comparável ao início da comissão ativa. Deve-se<br />
116 impulso
ecorrer, portanto, ao critério da exposição do bem<br />
tutelado a perigo. A tentativa começa no momento em<br />
que a demora da ação salvadora faz surgir ou aumenta<br />
o perigo imediato. 50<br />
d) A PARTICIPAÇÃO POR OMISSÃO – Aqui, deve-se distinguir:<br />
trata-se da participação por omissão em crime comissivo.<br />
A participação é que é omissiva, caracterizando responsabilidade<br />
penal à guiza de crime omissivo impróprio. Da mesma forma é<br />
possível participação omissiva no próprio crime comissivo impróprio.<br />
A respeito, ensina Everardo da Cunha Luna:<br />
É admissível a participação por omissão em crime de<br />
ação ou de omissão. Assim, o vigia de uma casa que,<br />
na ausência dos moradores, assiste, impassível, à<br />
entrada de estranhos na casa, sem o consentimento ou<br />
contra a vontade de quem de direito, participa, por<br />
omissão, da violação de domicílio. Assim também o pai<br />
de uma criança que, impassível, assiste à esposa<br />
matando por inanição o filho comum, participa, por<br />
omissão, do homocídio. 51<br />
A QUESTÃO DA POSSIBILIDADE DE AGIR<br />
Não se caracterizará o delito comissivo por omissão, se não<br />
tiver o sujeito ativo a possibilidade de agir. Isto significa a possibilidade<br />
material, física, no terreno da possibilidade fática, daí resultando<br />
que, se tentando evitar o resultado, não se o consegue,<br />
dando-se o evento lesivo, não se poderá imputar ao agente a responsabilidade<br />
penal, porque não podia o que não pode. Desde que,<br />
é claro, sejam lançadas mãos das possibilidades existentes e conscientizadas.<br />
Porém, significa mais: significa que só há possibilidade de<br />
agir se não houver risco pessoal para o agente. Trata-se, é claro, do<br />
risco ponderável, capaz de expô-lo a lesão tão ou mais grave que<br />
aquela a que já está exposto o bem jurídico em perigo. O Direito<br />
Penal não pode exigir o sacrifício pessoal, contrário à natureza<br />
humana, adstrita ao instinto da sobrevivência.<br />
Neste passo, não nos convence o sempre convincente Mirabete:<br />
36 TOLEDO, Francisco de Assis.<br />
Princípios básicos de Direito<br />
Penal. 4ª ed. São Paulo:<br />
Saraiva, p. 116.<br />
impulso<br />
117
Pode ocorrer que haja risco para aquele que se omite,<br />
indagando-se assim se deve ser responsabilizado pelo<br />
delito caracterizado pela omissão, ou seja, se é responsável<br />
pelo resultado quando se omitiu pelo perigo existente<br />
para um bem jurídico próprio ou alheio que lhe<br />
causaria a ação exigida para evitar o evento. É preciso<br />
verificar se a ação era juridicamente exigida ao omitente.<br />
Embora preveja a lei que o dever de agir só<br />
existe quando o sujeito pode agir, deve ele arrostar o<br />
perigo desde que no caso haja a probabilidade de evitar<br />
o resultado. A conclusão se impõe pelo sistema do<br />
Código. Basta observar que, ao tratar do estado de<br />
necessidade, a lei nega a justificativa àquele que tem o<br />
dever legal de enfrentar o perigo (art. 24, §1º). Se se<br />
adotasse a solução oposta, chegar-se-ia à conclusão de<br />
que a lei contém uma contradição: de um lado permitiria<br />
a justificação pela existência de risco para o omitente<br />
(art. 13, §2º) e de outro excluiria a justificativa do<br />
fato quando houvesse perigo para quem tem o dever de<br />
enfrentá-lo (art. 24, §1º). 52<br />
Ora, não se justificaria, por um lado, que se sacrificasse<br />
direito de qualquer terceiro que, nada tendo com o fato, acabaria<br />
sendo o único lesado, por outro, a ninguém e em nenhuma circunstância<br />
pode o Direito Penal exigir a emulação.<br />
Poucos discorrem a respeito, no Brasil. Delmanto, entretanto,<br />
afirma que “tanto a consciência da obrigação de agir como a possibilidade<br />
real de fazê-lo, sem risco pessoal, devem estar presentes”. 53<br />
Francisco de Assis Toledo contrariamente afirma que “não basta,<br />
pois, o dever de agir. É preciso que, além do dever tivesse a possibilidade<br />
física de agir, ainda que com risco para sua pessoa”. 54<br />
37 ASÚA, Luis Jiménes de, op.<br />
cit., n. 1150.<br />
A situação de fato de que se origina o dever de agir é o<br />
estado de perigo iminente e evitável em que se encontra<br />
o bem jurídico, cuja incolumidade deve ser garantida<br />
pelo autor. 55<br />
Ora, só é evitável o que não implique dano apreciável no<br />
agente, porque não evitar resultado, causando outro tão mais<br />
lesivo, é pior que evitá-lo.<br />
118 impulso
Ainda que seja por evocação de uma causa supra legal de<br />
exclusão da antijuridicidade, não se poderia configurar relevância<br />
omissiva ao agente que esteja obstado de impedir o resultado pelo<br />
grave risco a que fica submetido. (Assim, quem lança alguém em<br />
piscina de águas profundas, sem saber que o ofendido não sabe<br />
nadar está, evidentemente, obrigado a evitar o resultado, se sabe<br />
nadar ele próprio. Se não o sabe, não estará obrigado. Responderá<br />
por homicídio doloso, se não socorrer a vítima, no primeiro caso;<br />
e por culposo no segundo, bastando-se a análise na da sua conduta<br />
comissiva.) É-lhe inexigível conduta diversa.<br />
As incertezas, oriundas da falta de previsão legal a respeito,<br />
estão a reclamar igualmente a prefixação na lei do verdadeiro significado<br />
da expressão: poder evitar o resultado.<br />
38 ASÚA, Luis Jiménes de, op.<br />
cit., p. 198.<br />
CONCLUSÃO<br />
A natureza dos crimes comissivos por omissão, no que tange à<br />
relevância causal, é precipuamente normativa, decorrendo do caráter<br />
de antijuridicidade, da abstenção de atuar, a sua punibilidade.<br />
Assim sendo, é necessário, como o faz o Código atual, que se<br />
determine a sua relevância, ocorrível quando houver o poder e o<br />
dever jurídico de evitar o resultado, sendo que o dever é de três<br />
espécies básicas: o legal; o contratual ou de ‘garante’; o decorrente<br />
da criação da situação de risco.<br />
Mais que isto, entretanto, seria necessário especificar, nos<br />
diversos tipos penais, expressamente, a possibilidade da configuração<br />
omissiva, assim atendendo aos pressupostos do Princípio da<br />
Reserva Legal e ao mesmo tempo imprimindo maior segurança<br />
normativa.<br />
O elemento subjetivo dos crimes omissivos impróprios é o<br />
mesmo dos comissivos: o dolo e a culpa, esta quando prevista no<br />
tipo penal respectivo.<br />
É admissível a tentativa de crime comissivo por omissão,<br />
devendo-se atentar, entretanto, que o início da execução, no sentido<br />
normativo, do delito, dá-se quando o bem jurídico passe à<br />
exposição ao risco pela demora na ação obstadora.<br />
Pode ocorrer participação em crime comissivo por omissão.<br />
É o caso referido do marido que não impede a mulher de não aleitar<br />
o filho comum. Tal não se confunde com a chamada participação<br />
por omissão em crime comissivo próprio, como no caso de<br />
empregada que deixa a porta aberta para a entrada do gatuno.<br />
impulso<br />
119
39 ASÚA, Luis Jiménez de, op.<br />
cit., p. 592.<br />
40 ASÚA, Luis Jiménez de, op.<br />
cit., p. 593.<br />
41 ASÚA, Luis Jiménez de, op.<br />
cit., p. 596.<br />
42 ASÚA, Luis Jiménez de, op.<br />
cit., p. 599.<br />
Só o dever jurídico não basta para a responsabilidade penal<br />
por omissão: é preciso que o agente tenha o domínio fático de<br />
impedir o resultado. Isto significa não só que tenha meios físicos<br />
como também que a atitude salvadora não implique um sacrifício<br />
que se configuraria excludente, ainda que da inexigibilidade da conduta<br />
diversa.<br />
É indubitável a necessidade de que conste do texto legal, ao<br />
menos, a previsão da relevância omissiva, sem o que se operaria<br />
em clara infringência ao Princípio da Legalidade, daí porque correto<br />
o posicionamento adotado no Projeto Alcântara Machado, e<br />
equivocado o do legislador de 1940 em excluí-lo.<br />
Mais que isto, ainda, há de se adotar (como feito em 1984) a<br />
enumeração hipotética dos deveres de agir, bem como, um passo<br />
adiante, a previsão, no próprio tipo penal, da possibilidade omissiva.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ANDREUCCI, Ricardo Antunes et al. Notas ao quadro comparativo<br />
da Lei nº. 7209/1984 e Parte Geral do Código Penal. Apamagis,<br />
1985.<br />
ARAÚJO, Laurentino da Silva, FAVEIRO, Vítor António Duarte.<br />
Código Penal português anotado. 4ª ed. Coimbra: Coimbra<br />
Ltda., 1966.<br />
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Forense, Tomo I, 1967.<br />
COSTA, Paulo José da. Direito Penal Objetivo. São Paulo: Forense<br />
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CREUS, Carlos. Derecho Penal, Parte General. 3ª ed. Astrea.<br />
DELMANTO, Celso. Código Penal comentado. São Paulo:<br />
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FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal. V. I,<br />
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FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, Parte Geral.<br />
4ª ed. São Paulo: Forense.<br />
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GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 5ª ed. Max Limonad,<br />
v. 1, t. 1.<br />
120 impulso
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 2ª ed. São<br />
Paulo: Forense, v. I, t. 2, 1953.<br />
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal, Parte<br />
General. Barcelona: Bosch, 1981.<br />
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Paulo: Saraiva, 1991.<br />
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penal por omissão. Voxlegis, ano 15, v. 173, mai. 1983.<br />
MACHADO, Alcântara. O projeto do código criminal perante a<br />
crítica. Revista da Faculdade de Direito, v. 35, fasc. 1, jan./abr.<br />
1939.<br />
MARQUES, José Frederico. Curso de Direito Penal. São Paulo:<br />
Saraiva, 1954, v. 1.<br />
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, Parte<br />
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Porto Alegre, n. 29, ano 10, nov. 1983.<br />
NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 17ª ed. São Paulo:<br />
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NUÑEZ, Ricardo C. Manual de Derecho Penal, Parte General. 3ª<br />
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NUVOLONE, Pietro. O sistema do Direito Penal. São Paulo:<br />
Revista dos Tribunais, v. 1, 1981.<br />
PITOMBO, Sérgio Marques de Moraes. Notas ao Quadro Comparativo<br />
da Lei nº. 7209/1984 e Parte Geral do Código Penal.<br />
Apamagis, 1985.<br />
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal.<br />
4ª. ed. São Paulo: Saraiva.<br />
WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. 3ª ed. Santiago: Editorial<br />
Jurídica de Chile.<br />
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Trabalho apresentado ao Colóquio<br />
de Direito Penal. Rio de janeiro, 20 a 23/10/82.<br />
Também:<br />
The Criminal Code of the Republic of China. Shangai: Kelly &<br />
Walsh Ltd., 1936.<br />
Código Penal Tipo para Latinoamérica. México: Academia Mexicana<br />
de Ciencias Penales, 1967. (2ª Reunião Plenária)<br />
Exposição de Motivos. n. 1, do CP de 1969, D.O.U. de 21/10/69.<br />
43 ZAFFARONI, Eugênio Raul.<br />
Trabalho apresentado ao Colóquio<br />
de Direito Penal. Rio de<br />
janeiro, 20 a 23/10/82.<br />
44 FRAGOSO, Heleno Cláudio.<br />
Lições de Direito Penal, Parte<br />
Geral. 4ª ed. São Paulo: Forense,<br />
p. 225.<br />
45 JESCHECK, Hans Heinrich.<br />
Tratado de Derecho Penal, Parte<br />
General. Barcelona: Bosch,<br />
1981.<br />
46 DELMANTO, Celso. Código<br />
Penal comentado. São Paulo:<br />
Saraiva, p. 20.<br />
impulso<br />
121
47 JESCHECK, Hans Heinrich,<br />
op. cit., p. 868.<br />
48 JESCHECK, Hans Heinrich,<br />
op. cit., p. 199.<br />
49 ASÚA, Luis Jiménez de, op.<br />
cit., p. 600.<br />
122 impulso
50 NETTO, Alcides Munhoz,<br />
op. cit., p. 58.<br />
51 LUNA, Everardo da Cunha,<br />
op. cit., p. 10.<br />
impulso<br />
123
52 MIRABETE, Julio Fabbrini.<br />
Manual de Direito Penal, Parte<br />
Geral. 7ª ed. São Paulo: Atlas,<br />
p. 104.<br />
53 DELMANTO, Celso, op.<br />
cit., p. 118.<br />
54 DELMANTO, Celso, op.<br />
cit., p. 118.<br />
55 DELMANTO, Celso, op. cit.<br />
124 impulso
LIMITAÇÕES AO PODER<br />
PUNITIVO DO ESTADO<br />
EDSON JOSÉ MENEGHETTI<br />
O homem, em sua história social, sempre demonstrou preocupação<br />
no sentido de conseguir um equilíbrio em suas interrelações<br />
que lhe propiciasse uma paz social duradoura, adequada e<br />
justa. Nessa linha de raciocínio percebe-se um esforço constante<br />
no sentido de se adequar o poder punitivo do Estado, de forma tal<br />
que se possa preservar os valores sociais, sem colocar em risco os<br />
direitos individuais de cada um. Modernamente, o princípio da<br />
culpabilidade, em que pesem os entraves que se apresentam, vem<br />
provocando uma evolução sensível na forma de tratamento dos<br />
fatos afetos ao Direito Penal.<br />
Apesar da dificuldade natural em se fixar um momento preciso<br />
a partir do qual essa idéia se materializou, o certo é que a<br />
Revolução Francesa se constituiu no marco mais evidente do<br />
momento histórico em que o poder do Estado passou a sofrer, por<br />
parte da sociedade, controle e limitação, ao menos em termos teóricos.<br />
A partir dessa época, o Direito Penal passa a ser considerado<br />
instrumento de defesa dos valores fundamentais da sociedade, que<br />
só deve ser empregado contra ataques de real gravidade contra tais<br />
valores, porém, de uma forma controlada e limitada. A evolução<br />
histórica do Direito Penal, passando pelos períodos clássico, positivista,<br />
finalista e chegando até o Direito Penal como Ciência<br />
Social, demonstrou que esse ramo do Direito vem deixando de ser<br />
o aguilhão nas mãos dos poderosos para transformar-se em garantia<br />
das liberdades humanas.<br />
impulso<br />
123
Tal evolução evidentemente não se processa por águas calmas,<br />
sendo que tal estado de coisas sofreu profundas alterações<br />
em Estados, onde foram impostos regimes totalitários, o que acabou<br />
demonstrando o acerto dessa busca de um controle efetivo e<br />
equilibrado do poder de punir do Estado, que tenha em vista o respeito<br />
à dignidade humana, inserto em um verdadeiro ideal de Justiça.<br />
Para tanto tem-se, como princípios limitadores do poder de<br />
punir do Estado, princípios fundamentais, como o princípio de<br />
intervenção mínima, princípio da legalidade ou da reserva legal e<br />
o princípio da culpabilidade, entre outros.<br />
1 HASSEMER, Winfried. ¿Alternativas<br />
al principio de culpabilidad?<br />
Cuadernos de política<br />
criminal, Madrid, n. 18, 2ª p. do<br />
Artigo Editoriales de Derecho<br />
Reunidas, 1982.<br />
2 CAMARGO, Antonio Luís<br />
Chaves. Culpabilidade e reprovação<br />
penal. São Paulo: Sugestões<br />
Literárias, 1994, p. 20.<br />
PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE<br />
O Estado, para se desincumbir do exercício de seu poder de<br />
punir, sempre buscou formas de interferir em relação ao seu componente<br />
humano. Uma dessas formas foi a adoção do princípio da<br />
culpabilidade. É certo que esse princípio permaneceu por muito<br />
tempo sem ser questionado, entretanto, na atualidade, os estudiosos<br />
do Direito Penal têm voltado seus olhos para esse aspecto relevante<br />
desse ramo do Direito. A tendência atual de tratar o Direito<br />
Penal como Ciência Social muito tem colaborado para o desenvolvimento<br />
do princípio da culpabilidade, observando-se em certos<br />
aspectos uma forma de desgaste desse princípio, inclusive por<br />
parte do próprio legislador que, para levar a efeito uma adequada<br />
política criminal, acaba encontrando obstáculos nesse princípio,<br />
buscando contorná-lo, ou até mesmo afastá-lo em parte.<br />
Na Alemanha tem-se outras alternativas para se buscar<br />
soluções para a situação atual, tendo-se em vista a permanência do<br />
sistema do duplo binário, havendo até a possibilidade de que se<br />
aplique, por primeiro, a medida de segurança e, em seguida, a<br />
pena, havendo casos, inclusive, em que é possível ocorrer a total<br />
substituição da pena pela medida de segurança. 1 Ressalte-se, por<br />
oportuno, que o próprio sistema do duplo binário sofre restrições<br />
hodiernamente.<br />
Graças à evolução que tem ocorrido com relação à discussão<br />
sobre os fundamentos da pena, se tem percebido que o princípio da<br />
culpabilidade não se constitui como o único desses fundamentos.<br />
Inclusive, há uma atenuação importante quanto ao poder individual<br />
para atuar de outro modo 2 do agente.<br />
Entretanto, pelo menos em termos atuais, o princípio da<br />
culpabilidade vem apresentando importância crescente. Assim<br />
sendo, não se tem como manter a possibilidade de se ter a imputação<br />
124 impulso
subjetiva, sem que se baseie no princípio da culpabilidade, ou seja,<br />
na possibilidade de se manter o vínculo subjetivo entre o agente e<br />
o ato injusto por ele praticado. Como se poderia manter essa ligação<br />
entre o agente e o fato criminoso sem esse princípio?<br />
Aponta-se, como outra alternativa ao princípio da culpabilidade,<br />
admitir-se a responsabilidade pelo resultado, ou seja, atribuir-se<br />
o fato ao agente pela sorte, ou, digamos assim, pelo azar.<br />
Aqui fica claro o aspecto de responsabilidade objetiva, aspecto<br />
esse, de início, incompatível com o Estado Democrático de Direito<br />
e que vem sendo combatido no Brasil há muito tempo e, por isso,<br />
nem deve ser estudado, a não ser para se demarcar com precisão<br />
os limites entre o caso fortuito e a culpa em sentido estrito decorrente<br />
da imprudência.<br />
Outro aspecto importante do princípio da culpabilidade apresenta-se<br />
na forma ou na possibilidade de se valorar os graus de responsabilidade,<br />
diferenciando-os. Hassemer denomina essas diferenças<br />
como graus de participação interna no sucesso externo. 3<br />
Aqui vamos encontrar uma escala de comportamentos internos e<br />
subjetivos, que vai desde a culpa inconsciente até o cometimento<br />
intencional de uma crime. Cogita-se, nesse passo, de todo o<br />
aspecto subjetivo do crime, ou seja da culpa inconsciente, passando<br />
pela culpa consciente, chegando-se até o dolo.<br />
É de se notar, ainda, que o princípio da culpabilidade propicia<br />
a concretização do princípio da proporcionalidade da pena, do<br />
princípio de proibição de excessos na atribuição da pena e do princípio<br />
de limites de sacrifício. Como diz Hassemer, a intensidade<br />
da participação interna é um critério plausível e decisivo para a<br />
medição de conseqüências jurído-penais proporcionadas. 4<br />
O princípio da culpabilidade, é verdade, sofreu e vem<br />
sofrendo um desgaste que se constitui num verdadeiro burilamento<br />
desse princípio, fazendo com que se afastem os excessos,<br />
para que se tenha a permanência de sua essência, no sentido de<br />
que o Direito Penal realmente, sem perder suas características<br />
essenciais, possa transformar-se numa Ciência Social, que preserve<br />
as garantias individuais segundo os princípios basilares de um<br />
Estado Democrático de Direito, o qual não pode ir além de uma<br />
intervenção mínima na vida de seus cidadãos para garantir-lhes os<br />
bens jurídicos.<br />
3 HASSEMER, Winfried. Fundamentos<br />
del Derecho Penal.<br />
Trad. Muñoz Conde y Luis Arroyo<br />
Zapatero. Barcelona: Boch,<br />
1984, p. 279.<br />
4 HASSEMER, Winfried. ¿Alternativas<br />
al principio de culpabilidad?<br />
op. cit., p. 6.<br />
impulso<br />
125
INTERVENÇÃO MÍNIMA<br />
O Estado deve ter seu jus puniendi delimitado e regulado<br />
também pelo princípio da intervenção mínima. Ou seja, o Direito<br />
Penal só deve intervir nos casos de ataques graves aos bens jurídicos<br />
mais importantes. É de se pensar, por isso, no crime tentado,<br />
se deve e como deve ser punido.<br />
Por outro lado, é de se avaliar se o homicídio culposo deve<br />
ou não ser tratado à luz do Direito Penal, uma vez que o bem jurídico<br />
atingido é de importância indiscutível, entretanto, o ataque<br />
em si considerado pode não ser tido como grave. Não se pode perder<br />
de vista também o princípio da culpabilidade, uma vez que a<br />
morte provocada culposamente pode resultar de uma conduta que<br />
só poderia provocar, quando muito, ferimentos leves e, portanto,<br />
jamais a morte.<br />
Nesse contexto, deixando-se de lado o resultado causado e<br />
levando-se em conta a culpabilidade do agente, pode-se chegar a<br />
um tratamento adequado da situação daquele, de modo a, respeitando<br />
sua dignidade humana, dar-lhe um tratamento consentâneo<br />
com os princípios do Estado Democrático de Direito. É provável<br />
que no futuro tais fatos até mesmo saiam da esfera de aplicação do<br />
Direito Penal e sejam tratados exclusivamente à luz do Direito<br />
Civil. Fica claro que as perturbações leves da ordem jurídica são<br />
objeto de outros ramos do Direito, ou deveriam sê-lo; assim, as<br />
contravenções penais, o crime de adultério, ou mesmo os crimes<br />
contra a honra, ainda que somente os praticados contra particulares.<br />
Nesse aspecto, em se tratando da criminalidade de bagatela,<br />
se pode incluir as ações típicas informadas pela culpabilidade<br />
escassa, ou aquelas onde ocorre a reprovabilidade relativa; também<br />
nos casos em que ocorre a reparação do dano causado. Este<br />
aspecto é que demonstra o caráter subsidiário do Direito Penal<br />
com relação aos outros ramos do Direito. O dano de grande<br />
monta, porém, culposo, dá uma idéia da presente colocação, por<br />
não se constituir ilícito penal.<br />
É de se notar que a subsidiariedade do Direito Penal é também<br />
conhecida como acessoriedade ou secundariedade do Direito<br />
Penal e se constitui em uma conseqüência da aceitação do princípio<br />
da intervenção mínima.<br />
O ordenamento jurídico tem por função a proteção aos bens<br />
jurídicos, cabendo ao Direito Penal uma parte dessa proteção que,<br />
entretanto, deve ser a última; quando todas as demais falharem.<br />
Daí se afirmar o caráter subsidiário do Direito Penal. Esse caráter<br />
do Direito Penal assume vital importância, na medida em que se<br />
propicia a possibilidade dos conflitos de interesses passarem por<br />
126 impulso
vários crivos, antes de chegarem à área de incidência da norma<br />
penal. Somente quando falharem todas as normas de outra natureza,<br />
ou quando faltarem tais normas, é que se poderá buscar o<br />
Direito Penal para solucionar o problema apresentado.<br />
Conforme afirmativa de Beling, o Direito Penal é um ramo<br />
do Direito que se constrói sobre os demais, que se refere a estes e<br />
que somente em relação com estes pode funcionar. 5<br />
Na doutrina italiana, Grispigni afirma que a particularidade,<br />
que caracteriza o Direito Penal no conjunto do ordenamento jurídico<br />
e que determina suas relações com os diversos ramos desse<br />
ordenamento, é o caráter ulteriormente sancionatório que apresenta,<br />
e que deriva do fato de que sua função específica consiste<br />
em reforçar, com sua sanção própria, os preceitos e as sanções dos<br />
outros ramos do Direito. 6<br />
A razão disso encontra-se no fato de que o delito, além de ser<br />
proibido pelo preceito penal, também o é por outra norma não<br />
penal e, de regra, antes mesmo de ser proibido pelo próprio<br />
Direito Penal. Por isso, todas as vezes que a tutela de um bem<br />
pode ser assegurada por meio de uma sanção mais branda em relação<br />
a outra mais grave, deve-se preferir a mais branda, somente se<br />
devendo recorrer à mais grave quando a outra mostrar-se insuficiente.<br />
Por que se processar alguém pela prática de direção perigosa<br />
de veículo, por ter excedido a velocidade com seu conduzido, se a<br />
multa de trânsito resolve o problema?<br />
Carrara afirma ser autônomo o Direito Penal e critica a posição<br />
de Rousseau, quando este afirma que o Direito Penal não é<br />
uma lei autônoma por si mesma, senão a sanção das outras leis.<br />
Com esse entendimento, afirmava o autor italiano, se reduz a<br />
tarefa do Direito Penal ao mero castigo, sem que se tenha em<br />
conta a proibição que é, contudo, parte dele integrante. 7<br />
Fica claro que as duas posições apresentam acertos e erros.<br />
Posição interessante é de Maurach, o qual afirma que, diante<br />
dos demais ramos do Direito, o Direito Penal é independente em<br />
seus efeitos e relativamente dependente em seus pressupostos. 8<br />
De acordo com esse entendimento, os efeitos característicos<br />
ou privativos do Direito Penal são a pena e a medida de segurança.<br />
O uso delas se destina ou deveria se destinar exclusivamente ao<br />
Direito Penal, mesmo nos casos em que possam coexistir com<br />
outras sanções civis ou administrativas. Entretanto, é certo que não<br />
se constata diferença substancial entre esses tipos de sanção.<br />
5 MUÑOZ CONDE, Francisco.<br />
Introducion al Derecho Penal.<br />
Barcelona: Boch, p. 61.<br />
6 MUÑOZ CONDE, Francisco,<br />
op. cit.<br />
7 MUÑOZ CONDE, Francisco,<br />
op. cit., p. 62.<br />
8 MUÑOZ CONDE, Francisco,<br />
op. cit., p. 63.<br />
impulso<br />
127
Por outro lado, é de se verificar que se constitui um perigo<br />
evidente a aplicação de penas administrativas de privação de<br />
liberdade. De lege ferenda seria interessante que se reservasse<br />
exclusivamente ao Direito Penal essa espécie de medida coativa.<br />
O fato de o Direito Penal não ser independente em seus pressupostos<br />
é que demonstra o ponto polêmico referente à subsidiariedade<br />
desse ramo do Direito.<br />
Existem crimes cuja criação é genuinamente penal, como os<br />
crimes contra a vida, contra a liberdade sexual. Por outro lado,<br />
existem crimes, cuja relação com outros ramos do Direito é muito<br />
íntima, a ponto de muitas vezes confundirem-se os delineamentos<br />
penais com os de outros ramos do Direito, como ocorre nos crimes<br />
contra o patrimônio, como a apropriação indébita, o furto e<br />
mesmo os crimes falimentares. Não se pode perder de vista o problema<br />
referente à norma penal em branco, onde, além de depender<br />
de outros ramos do Direito, o Direito Penal fica em íntima relação<br />
de dependência com órgãos administrativos, como ocorre, por<br />
exemplo, com os crimes relativos a entorpecentes, em que são os<br />
órgãos da saúde que determinam quais as substâncias que se irão<br />
constituir no objeto material de um crime tratado como hediondo.<br />
Outras conseqüências decorrem do princípio da intervenção<br />
mínima. A absoluta autonomia do Direito Penal não significa que<br />
suas medidas possam ser empregadas em qualquer quantidade e<br />
qualidade para proteger bens jurídicos, mas, pelo princípio da<br />
intervenção mínima se pretende que os bens jurídicos devem ser<br />
protegidos, não só pelo Direito Penal, como também em face do<br />
Direito Penal. Se medidas de natureza civil ou administrativa<br />
puderem resolver a situação, estas devem ser empregadas antes<br />
das de Direito Penal. Na seleção dos recursos utilizados pelo<br />
Estado, o Direito Penal deve representar a ultima ratio legis, sendo<br />
empregado somente quando se tornar imprescindível para a manutenção<br />
da ordem jurídica, quando não houver outra alternativa.<br />
Dessa forma o princípio da intervenção mínima se constitui<br />
num princípio limitador do poder punitivo do Estado, apresentando<br />
conseqüências não só de ordem quantitativa com também de<br />
ordem qualitativa.<br />
Quantitativamente esse princípio se refere ao número de condutas<br />
puníveis que devem ser criadas pelo legislador e a quantidade<br />
de pena que deve ser imposta ao infrator. Para isso deve<br />
haver um critério rígido, tendo-se em vista que nem todas as ações<br />
que atacam bens jurídicos são proibidas pelo Direito Penal, nem<br />
128 impulso
tampouco todos os bens jurídicos são protegidos por esse ramo do<br />
Direito. Isto porque somente se devem tratar pela ótica penal as<br />
ações mais graves contra os bens jurídicos mais importantes. Daí<br />
o caráter fragmentário do Direito Penal, que não deve ser aplicado<br />
a toda e qualquer lesão a bens jurídicos, mas só aos fragmentos<br />
mais importantes do universo desses bens jurídicos. Aqui também<br />
se deve considerar se o crime tentado deve ser punido e como deve<br />
ser punido.<br />
Qualitativamente tal princípio se refere à gravidade das penas<br />
impostas. A pena é um mal necessário. Portanto, quanto a este<br />
aspecto, o importante é que se deva preferir sempre a sanção mais<br />
leve à mais grave, se com este procedimento se consegue restabelecer<br />
a ordem jurídica perturbada pelo crime. Um exemplo de aplicação<br />
deste princípio é o da retroatividade da lei mais benigna.<br />
São decorrentes desse princípio o princípio da humanidade e<br />
o de proporcionalidade das penas.<br />
O princípio da humanidade interfere tanto no Direito Penal,<br />
como no Direito Processual Penal e na execução da pena,<br />
devendo-se a ele a abolição da tortura, das penas infamantes e da<br />
pena de morte, por exemplo.<br />
O princípio de proporcionalidade determina que a cada um<br />
se deve dar segundo seus merecimentos e que os desiguais devem<br />
ser tratados desigualmente, individualizando-se e adequando-se a<br />
sanção a cada indivíduo que infringiu a lei penal.<br />
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE<br />
O princípio da legalidade, hoje, se constitui numa garantia de<br />
liberdade dos cidadãos, chocando-se frontalmente com a suspeição.<br />
Ou seja, por ser meramente suspeito, ninguém pode sofrer<br />
cerceamento de liberdade, segundo aquele princípio.<br />
Por isso a gravidade dos meios que o Estado emprega na<br />
repressão dos delitos, a drástica intervenção nos direitos elementares<br />
e, assim, fundamentais da pessoa humana, e o caráter de<br />
ultima ratio que tal intervenção apresenta obrigam que se busque<br />
um princípio que controle o poder punitivo estatal e confine sua<br />
aplicação dentro de limites, de modo a excluir toda arbitrariedade<br />
e excesso por parte dos que ostentam ou exercem esse poder<br />
punitivo. Esse princípio conhecido como princípio da legalidade,<br />
ou princípio da reserva legal, estabelece que a intervenção punitiva<br />
do Estado, tanto ao configurar o delito como ao determinar a<br />
impulso<br />
129
aplicação e execução de suas conseqüências, deve estar regida<br />
pelo império da lei.<br />
Tem por escopo o princípio da legalidade, afastar ou evitar o<br />
exercício arbitrário e ilimitado do poder de punir do Estado.<br />
Embora seja considerado como um princípio do Direito Natural,<br />
ou mesmo uma decorrência da inviolabilidade da dignidade da<br />
pessoa humana, seu reconhecimento e desenvolvimento não foi<br />
automático e pacífico, ao contrário, sofreu reveses intoleráveis por<br />
parte do autoritarismo, tanto de direita como de esquerda. Esse<br />
princípio é incompatível com o pensamento de que os fins justificam<br />
os meios, quando se pretende adotar medidas radicais para<br />
acabar com a criminalidade, impondo-se sanções não previstas<br />
nem reguladas em lei em sentido estrito.<br />
O princípio da legalidade provoca para o Direito Penal uma<br />
série de conseqüências, que condicionam todo seu conteúdo e que<br />
o distinguem das demais disciplinas jurídicas, tanto no que tange<br />
às fontes como a sua interpretação e a sua elaboração científica.<br />
Esse princípio apareceu com o Estado de Direito, após longo processo<br />
de elaboração.<br />
Há quem vislumbre seu fulcro no Direito Romano. Entretanto,<br />
costuma-se identificar seus precedentes mais claros na<br />
Magna Carta de 1215 da Inglaterra e no Decreto de Alfonso IX do<br />
Reino de León de 1188. 9<br />
A origem do princípio da legalidade, entretanto, encontra-se<br />
no momento em que o povo deixa de ser instrumento e sujeito passivo<br />
do poder absoluto do Monarca e passa a controlar e participar<br />
desse poder, o que ocorreu com o advento da Revolução Francesa.<br />
O princípio da legalidade apresenta um claro fundamento<br />
político, o do Estado Liberal de Direito, e também fundamentos<br />
jurídicos.<br />
9 NORONHA, Edgard Magalhães.<br />
Direito Penal. 23ª ed. São<br />
Paulo: Saraiva, 1985, v. 1, p. 68;<br />
FRAGOSO, Heleno. Lições de<br />
Direito Penal – a nova parte geral.<br />
12ª ed. Rio de Jneiro: Forense,<br />
19<strong>90</strong>, p. <strong>90</strong>.<br />
ASPECTOS POLÍTICOS DO PRINCÍPIO<br />
DA LEGALIDADE<br />
Politicamente o princípio da legalidade é produto do espírito<br />
liberal, que criou o Estado Liberal de Direito. Tal Estado apresenta<br />
quatro características: o império da lei; a divisão dos poderes; a<br />
legalidade na atuação administrativa; e a garantia dos direitos e<br />
liberdades fundamentais.<br />
1. O império da lei supõe que o detentor do poder estatal não<br />
pode castigar as pessoas arbitrariamente e que seu poder punitivo<br />
está vinculado à lei.<br />
130 impulso
2. A divisão dos poderes garante o princípio da legalidade<br />
penal, repartindo o poder punitivo estatal entre o legislativo – que<br />
se encarrega de determinar os delitos e as penas através de um processo<br />
democrático em que participam os representantes do povo –<br />
e o judiciário – que se encarrega de sua aplicação no caso concreto.<br />
3. Diante do quadro exposto, chega-se à conclusão de que o<br />
poder executivo não tem, ou não deve ter, atuação importante na<br />
elaboração do Direito Penal, por isso o princípio da legalidade<br />
administrativa não afeta tanto o Direito Penal.<br />
4. Em resumo, tem-se que o objetivo fundamental do princípio<br />
da intervenção legalizada é o de garantir os direitos e liberdades<br />
fundamentais das pessoas. Fica evidenciado que a melhor<br />
maneira de protegê-los é concretizá-los e formulá-los em leis e<br />
sancionar com penas sua lesão ou violação.<br />
Na verdade, no Estado em que não vigora o império da lei ou<br />
em que o princípio da divisão dos poderes se constitui em mera<br />
aparência, o princípio da legalidade não passa de mera formalidade<br />
estéril.<br />
Evidentemente o quadro apresentado sofreu ataque frontal de<br />
governos autoritários, cuja vocação é a de não respeitar os direitos<br />
individuais, exacerbando o poder dos que dominam. Isso ocorreu,<br />
por exemplo, na União Soviética e na Alemanha Nazista.<br />
ASPECTOS JURÍDICOS DO PRINCÍPIO<br />
DA LEGALIDADE<br />
Juridicamente também se pode falar em fundamento do princípio<br />
da legalidade. A base jurídica desse princípio nasceu com<br />
Feuerbach na expressão latina nullum crimen, nulla poena sine<br />
lege. É de se verificar, entretanto, que tal princípio constitui-se<br />
numa conseqüência imediata da teoria da pena do citado autor,<br />
entendida como coação psicológica. Para essa teoria, era necessário<br />
que todos conhecessem os crimes e as penas previstas para<br />
quem os cometesse, de forma tal que a pena pudesse exercer uma<br />
coação psicológica, de modo a motivar as pessoas a não cometerem<br />
tais crimes; a rigor, ainda não tinha o escopo de limitar o<br />
poder de punir do Estado.<br />
O princípio da legalidade constitui-se em garantia jurídica<br />
dos cidadãos frente ao poder punitivo do Estado, controlando esse<br />
poder:<br />
a) como garantia criminal, qualificando como crime só o que,<br />
como tal, é previsto em lei;<br />
impulso<br />
131
) como garantia penal, impondo somente a pena fixada em<br />
lei para o crime cometido;<br />
c) como garantia jurisdicional, garantindo que não se poderá<br />
executar pena alguma senão em razão de sentença com trânsito em<br />
julgado; e<br />
d) como garantia de execução, impedindo que se permita a<br />
execução de outra forma que não a descrita em lei e regulamentos,<br />
nem com outras circunstâncias ou acidentes diversos dos expressos<br />
em seu texto.<br />
Conseqüências do princípio da legalidade<br />
A adoção do princípio da legalidade implica uma série de<br />
conseqüências para o Direito Penal. Desta forma se consegue<br />
resumir toda a problemática do delito e da pena ao trazer configurados<br />
estes conceitos pela lei penal, vinculando-se assim o julgador<br />
e o intérprete.<br />
As conseqüências aludidas aparecem principalmente na hora<br />
de se estudar as fontes do Direito Penal, em sua interpretação, na<br />
proibição da retroatividade e na tipificação das condutas proibidas.<br />
Inicialmente parece evidente que, da adoção do princípio da<br />
legalidade decorra o fato de que a única fonte do Direito Penal é a<br />
lei. Entretanto, tal princípio significa que a lei deve ser a fonte criadora<br />
dos delitos, das penas e de suas causas de agravação e das<br />
medidas de segurança. Nestas matérias fica evidente a exclusão da<br />
analogia e dos costumes. Todavia, fora dessa área cessa o<br />
monopólio da lei. Portanto, para atenuar ou excluir a punibilidade<br />
tal monopólio desaparece, admitindo-se a utilização da analogia e<br />
do costume com tal escopo, em determinados casos.<br />
Outra conseqüência do princípio da legalidade é a proibição<br />
da analogia em Direito Penal. Essa proibição fica clara quando se<br />
busca fundamentar a responsabilidade: isto é indiscutível. Intolerável<br />
seria qualquer concessão em sentido inverso.<br />
Quando, entretanto, a analogia é empregada para beneficiar o<br />
violador da lei penal, tem-se posições a favor e contra sua aplicação.<br />
No Brasil, prevalece a possibilidade de aplicação da analogia<br />
in bonam partem.<br />
Um tema que apresenta íntima relação com o princípio da<br />
legalidade é a proibição da retroatividade das leis penais. A proibição<br />
da retroatividade da lei penal é complemento indispensável do<br />
princípio da legalidade que, sem ele, representaria mais uma burla<br />
do que uma garantia dos direitos individuais.<br />
132 impulso
Admite-se, entretanto, a retroatividade benéfica como exceção<br />
ao princípio da irretroatividade da lei penal, até porque seria<br />
insustentável a manutenção de alguém no cárcere pelo cometimento<br />
de um ato que o próprio legislador deixou de considerar<br />
crime. Nesse ponto, fica evidente a necessidade de se discutir a<br />
aplicação do princípio da ultratividade da lei excepcional e da<br />
temporária, à luz da evolução do Direito Penal. Discutível se<br />
torna, inclusive, a existência dessas leis.<br />
Aspecto importante a ser observado é que o princípio da<br />
legalidade é condicionado, na prática, pela técnica legislativa<br />
empregada na descrição das condutas proibidas (condutas típicas)<br />
e na determinação da gravidade das penas.<br />
A forma em que o princípio de intervenção legalizada se realiza<br />
se constitui na descrição das condutas proibidas em tipos<br />
legais, o que vale dizer: é a tipificação das condutas que se pretende<br />
proibir. Neste sentido o tipo cumpre a função de garantia do<br />
princípio de intervenção legalizada.<br />
No sentido de cumprir essa função de garantia, o tipo precisa<br />
estar redigido de tal modo que, através do seu texto se possa<br />
entender com clareza e certeza em que se constitui a conduta proibida,<br />
a matéria de proibição. Para tanto, um dos aspectos mais<br />
importantes que se deve observar é que o legislador descreva os<br />
tipos com uma linguagem clara, concisa e precisa, inteligível pelos<br />
cidadãos de nível cultural médio, valendo-se de termos simples,<br />
que todos possam entender. Nesse sentido, deve-se evitar, quanto<br />
possível, os elementos normativos, que dependem de valoração<br />
para o entendimento do fato e, conseqüentemente, em que consiste<br />
a proibição.<br />
Quanto ao aspecto em estudo, tem-se o problema apresentado<br />
pela necessidade de se encontrar um ponto adequado de equilíbrio<br />
entre o emprego das especificidades e das cláusulas generalizantes.<br />
A especificidade tende a provocar lacunas importantes,<br />
que deixam a descoberto certas lesões mais específicas a bens jurídicos.<br />
Já as cláusulas generalizantes supõem um alto grau de abstração<br />
e quase não apresentam lacunas, porém, apresentam o<br />
perigo da indeterminação, podendo com isso lesar o princípio da<br />
legalidade. Exemplo disso tem-se no período: atingir de qualquer<br />
modo o pudor e os bons costumes.<br />
No que tange à generalização, existem opções por conceitos<br />
indeterminados, como alteração da ordem e dos bons costumes ou<br />
impulso<br />
133
elaxar o sentimento nacional etc., que apresentam dificuldades<br />
importantes com relação à indeterminação.<br />
Deve-se analisar também com atenção o problema relativo à<br />
fixação da pena, tanto no aspecto qualitativo como no aspecto<br />
quantitativo. As penas absolutamente determinadas excluem qualquer<br />
possibilidade de individualização da reprimenda, levando-se<br />
em conta a pessoa do delinqüente. Por outro lado, as penas absolutamente<br />
indeterminadas supõem uma clara infração ao princípio<br />
da intervenção legalizada, pois deixam ao arbítrio do juiz a fixação<br />
de sua duração, natureza, regime de cumprimento de pena, etc.<br />
Neste aspecto, o ideal consiste no sistema das penas relativamente<br />
determinadas. Tais penas têm fixados seus limites máximo<br />
e mínimo de duração, o que permite uma adequação à personalidade<br />
do agente e às distintas circunstâncias que se apresentam<br />
com relação ao crime, ao agente e à própria vítima. Esses limites<br />
devem ser suficientemente precisos no sentido de excluir o<br />
excesso de arbitrariedade judicial e evitar que o juiz se converta<br />
em legislador. Aponta-se, ainda, como solução mais condizente<br />
com o princípio democrático, e com isso se comtempla também o<br />
princípio da culpabilidade, somente a fixação da pena máxima,<br />
deixando-se a mínima ao prudente arbítrio do julgador diante do<br />
caso concreto.<br />
Como se verifica, existe uma preocupação constante em se<br />
buscar formas adequadas e convenientes para o convívio social, de<br />
tal forma que se permita a interação tranqüila e pacífica dos componentes<br />
de uma coletividade. Entretanto, em face da natureza<br />
humana, fica evidente a possibilidade da existência de conflitos de<br />
interesses, que acabam desaguando na violação de bens jurídicos,<br />
até porque não existe uniformidade acerca da valoração dos bens<br />
jurídicos, por parte dos grupos sociais que convivem em determinado<br />
espaço físico. Tais violações podem apresentar importância<br />
tal, que não possam passar em branco, sem que se tomem medidas<br />
no sentido de repará-las e de evitar que venham a ocorrer novamente.<br />
Um dos meios que se tem para se conseguir esse escopo é<br />
o emprego do Direito Penal. Entretanto, a utilização desse ramo do<br />
Direito não pode ser levada a efeito sem que se tomem medidas<br />
acauteladoras, uma vez que o direito de punir do Estado interfere<br />
de forma incisiva em direitos elementares da pessoa humana,<br />
como a liberdade, a pretexto de proteger bens jurídicos, influindo<br />
sobre aqueles direitos. Portanto, é necessário se defender a dignidade<br />
humana até contra o Estado e aqueles que o representam na<br />
134 impulso
função de exercer seu poder de punir. Por isso existe uma necessidade<br />
indeclinável do Estado Democrático de Direito de instituir<br />
limitações ao Poder de punir do Estado, no sentido de se preservar<br />
o respeito à dignidade da pessoa humana.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
Texto básico: MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdución al Derecho<br />
Penal (principios limitadores del poder de punir del Estado).<br />
Barcelona: Boch.<br />
BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1967.<br />
CAMARGO, A.L. Chaves. Culpabilidade e reprovação penal. São<br />
Paulo: Sugestões Literárias, 1994.<br />
CAMARGO, A.L. Chaves. Tipo penal e linguagem. Rio de<br />
Janeiro: Forense, 1982.<br />
FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições de Direito Penal – a nova<br />
parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 19<strong>90</strong>.<br />
GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. São Paulo: Max<br />
Limonad, 1954.<br />
HASSEMER, Winfried. ¿Alternativas al principio de culpabilidad?<br />
Cuadernos de política criminal, Madrid, n. 18, 2ª p. do Artigo<br />
Editoriales de Dercho Reunidas, 1982.<br />
HASSEMER, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal. Trad.<br />
Muñoz Conde y Luis Arroyo Zapatero. Barcelona: Boch,<br />
1984.<br />
HASSEMER, Winfried. Três temas de Direito Penal. Porto Alegre:<br />
Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul,<br />
1993.<br />
NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. São Paulo: Saraiva,<br />
v. 1, 1985.<br />
impulso<br />
135
136 impulso
SISTEMAS DE TRANSMISSÃO DO<br />
<strong>DIREITO</strong> DE PROPRIEDADE:<br />
UM ESTUDO NO <strong>DIREITO</strong> ALEMÃO<br />
VICTOR HUGO TEJERINA VELÁZQUEZ<br />
Avaliar o sistema de transferência de domínio no direito alemão<br />
pode ser mais pedagógico, se feito a partir do Registro imobiliário,<br />
1 considerado o melhor elaborado e firme entre os registros<br />
do mundo.<br />
Contudo, deve-se dizer que no Direito alemão, o Código civil<br />
(BGB) dedicou o Livro III aos Bens, e embora não exista uma<br />
rigorosa diferença entre bens móveis e imóveis, o que deve destacar-se,<br />
quanto aos bens imóveis, é que para a modificação jurídico-real,<br />
funciona o Livro Fundiário (Registro Imobiliário) que<br />
cumpre funções de registro e de publicidade. Nada parecido há<br />
previsto para bens móveis, sendo que o princípio da inscrição é<br />
substituído pelo princípio da tradição, em virtude do qual a transferência<br />
da propriedade e a criação de um direito real sobre bens<br />
móveis, exige, em geral, a entrega da coisa. 2 A tradição também<br />
cumpre aqui o papel de publicidade: o princípio da inscrição é<br />
substituído pelo princípio da tradição.<br />
Certos direitos sobre imóveis são juridicamente assimiláveis<br />
aos imóveis. O caso mais característico é o direito de superfície<br />
(Erbbaurecht), para o qual se aplicam todas as regras referentes a<br />
bens imóveis, a não ser que exista uma restrição específica da lei,<br />
já que é um direito cessível e transmissível, e sujeito a gravames<br />
de todos os direitos reais limitados, mesmo que se trate de uma<br />
servidão fundiária ou de um ônus imobiliário.<br />
1 No contexto do § 873 do<br />
BGB, a dupla exigência ali descrita<br />
(Einigung – convênio e<br />
Eintragung – inscrição) afeta a<br />
transmissão da propriedade, a<br />
oneração de um prédio com um<br />
direito, a transmissão de um tal<br />
direito e ao gravame do mesmo<br />
direito. Ao processo de inscrição<br />
no Registro (da transferência)<br />
do tráfico jurídico de<br />
imóveis, denomina-se o Sistema<br />
do Registro Imobiliário<br />
(Grundbuchsystem). V. HEDE-<br />
MANN, J.W. Tratado de Derecho<br />
Civil. Madrid: Revista de<br />
Derecho Privado, v. 2, 1955,<br />
versão espanhola de José Luis<br />
Díez Pastor e Manuel Gonzáles<br />
Enríquez, p. 117.<br />
2 V. FROMONT, Michel, RIEG,<br />
Alfred e outros. Introduction au<br />
Droit Allemand. République<br />
Fédérale, Paris, t. 3, Droit Privé,<br />
Éditions Cujas, Paris, 1991, p.<br />
134-135.<br />
impulso<br />
137
3 Sobre a história do Direito de<br />
Superfície e proposta de instituição<br />
na legislação brasileira<br />
V. TEIXEIRA, José Guilherme<br />
Braga. O Direito Real de Superfície,<br />
Edit. Revista dos Tribunais,<br />
São Paulo, 1993, págs. 45-<br />
49 e 117-121.<br />
4 V. FROMONT, Michel, RIEG,<br />
Alfred e outros, op. cit., p. 136.<br />
Hans Stoll, professor na Universidade<br />
de Fribourg-Brisgau,<br />
é o autor do capítulo sobre<br />
bens.<br />
No Direito Pátrio, a Clovis Beviláqua, quando da apresentação<br />
do “Projecto de Codigo Civil Brazileiro”, lhe pareceu ociosa a<br />
inclusão do direito de superfície, dizendo que no Direito Alemão se<br />
reduziu a um direito cessível e transmissível, como se acaba de descrever.<br />
O Projeto nº 634 B, aprovado pela Câmara dos Deputados e<br />
em tramitação no Senado Federal sob o nº 118/84, inclui entre os<br />
direito reais o direito de superfície (art. 1226). É caracterizado<br />
como um direito cessível e temporário de construir ou de plantar, a<br />
título gratuito ou oneroso, trasmissível a terceiro, inter vivos, ou<br />
mortis causa, aos herdeiros, constituído através de escritura pública<br />
inscrita no Registro de Imóveis (V. arts. 1368-1375). 3<br />
Por determinação legal, aeronaves e navios, bens móveis por<br />
natureza, não são assimiláveis aos bens imóveis, mas em função<br />
do valor que representam como investimento de uma empresa,<br />
junto com as construções navais (em fase de construção), têm<br />
regras especiais calcadas sobre as dos direitos imobiliários. Navios<br />
e aeronaves são objeto de registro especial. Por outro lado, se<br />
admite que navios, aeronaves e construções navais não terminadas<br />
sejam objeto de hipotecas, direitos que, normalmente, só são possíveis<br />
de serem constituídos para os direitos imobiliários.<br />
Há de destacar-se também que a influência do Direito<br />
público sobre os direitos reais, uma parte do direito privado, se dá,<br />
especialmente, em forma de restrições sobre o poder jurídico que<br />
o titular tem sobre a coisa. Hans Stoll 4 explica que, se bem o<br />
direito dado ao proprietário fundiário de construir sobre seu terreno<br />
é direito resultante da liberdade do proprietário (§ <strong>90</strong>3 do<br />
BGB), não pode ser exercido senão nas condições previstas pelo<br />
direito urbanístico, especialmente, pela lei federal sobre urbanismo<br />
com redação dada em 08 de dezembro de 1986, (Baugesetzbuch),<br />
como pelas leis complementares dos Länder. A venda,<br />
continua Stoll, de uma propriedade utilizada para uma exploração<br />
agrícola ou florestal precisa, em princípio, do acordo da autoridade<br />
competente, segundo as modalidades previstas pela lei de 1961<br />
sobre as modificações fundiárias (Grundstückverkehrsgesetz). É<br />
dificil, em matéria de direitos reais e de toda a disciplina sobre<br />
bens, traçar uma linha divisória, entre direito público e direito privado,<br />
em parte porque é diferente, por exemplo, de outros direitos,<br />
como o francês, por exemplo.<br />
138 impulso
HISTÓRIA 5<br />
1. A princípio, a entrega dos imóveis operava-se atendendo a<br />
forma solene e perante testemunhas (é o testemunho judicial medieval<br />
alemão), era a Auflassung. 6<br />
2. Mais tarde, o ato solene transferiu-se 7 à presença do Tribunal<br />
ou do Município das cidades em formação, e começou-se a<br />
apresentar documentos entregues às partes, dotados de enorme<br />
força probatória.<br />
3. No século 12, os negócios sobre imóveis começaram a ser<br />
assentados em repertórios oficiais, que depois passaram a ser<br />
livros permanentes (os livros de Colônia se conservam em seu<br />
texto original de 1135 a 1142).<br />
4. Paulatinamente, a inscrição caminha em direção de uma<br />
categoria mais elevada, tornando-se ato criador de direitos. Enneccerus<br />
dirá: “la inscripción en el registro, en sus orígenes medio<br />
probatorio de la modificación jurídica realizada se convirtió en<br />
parte del supuesto de hecho constitutivo de la modificación jurídica”.<br />
8 O princípio da inscrição não nasce de repente, seguramente,<br />
mas no início de um longo processo, não se tem a consciência<br />
que uma transmissão sem o registro não é completa. Só mais<br />
tarde se elabora a idéia jurídica que só a alteração ou modificação<br />
das relações jurídicas sobre o imóvel se verifica a partir da inscrição<br />
mesma. Nasceu assim o princípio da inscrição, o que significa que<br />
não há aquisição sem inscrição. Melhor ainda é o princípio da eficácia<br />
jurídica formal do registro imobiliário. 9 Para haver modificação<br />
na situação jurídica de um imóvel, no último período desta evolução,<br />
houve necessidade de cumprir dois requisitos: Auflassung, ou<br />
acordo de vontades e a inscrição no livro (princípio do consentimento<br />
material para Enneccerus), já que são elementos constitutivos.<br />
Sem eles ou sem um deles não há aquisição.<br />
A Auflassung 10 deve criar relações claras e definitivas, não se<br />
admitindo fazer sob condições ou prazos (V. infra: Reserva de<br />
domínio). É normalmente emitida como consequência de relação<br />
causal básica (ex.: contrato de compra e venda). A relação obrigatória<br />
é definida pelo BGB (§ 241) como uma relação jurídica onde<br />
“está o credor autorizado a exigir do devedor uma prestação”.<br />
A “Recepção” do direito romano (ou ítalo-romano como<br />
alguns autores entendem), na Alemanha, como se sabe, exerceu<br />
forte influência no desenvolvimento do direito privado e até no<br />
BGB, o que deu lugar a múltiplas discussões e explicações, no<br />
século XIX, sobre as razões de tal recepção. Segundo Michel<br />
5 V. HEDEMANN, J.W., op.<br />
cit., p. 76ss. V. ENNECCERUS,<br />
KIPP, WOLFF. Tratado de Derecho<br />
Civil. Barcelona: Bosch,<br />
t. 1, v. 3, 1935, p. 133ss.<br />
6 V. Código Civil Alemão<br />
(BGB) § 925. Trad. Souza Diniz.<br />
Rio de Janeiro: Record,<br />
1960, p. 154. Segundo EN-<br />
NECCERUS, KIPP, WOLFF,<br />
op. cit., p. 124, nas suas origens<br />
a palavra Auflassung significava<br />
“deixação” (corporal) unilateral<br />
da posse. Mas sobretudo significava<br />
a declaração do alienante<br />
mais a aceitação da mesma pelo<br />
adquirente. Finalmente (depois<br />
da extinção da Gewere ideal)<br />
chegou a significar já o acordo<br />
das partes com relação à transmissão<br />
da propriedade, baseada<br />
em dito acordo e na inscrição<br />
no Registro imobiliário.<br />
7 V. ENNECCERUS, KIPP,<br />
WOLFF, op. cit., p. 133.<br />
8 V. ENNECCERUS, KIPP,<br />
WOLFF, op. cit., p. 135.<br />
9 V. ENNECCERUS, KIPP,<br />
WOLFF, op. cit., p. 136; v.<br />
HEDEMANN, J.W., op. cit., p.<br />
77, denominava-o princípio da<br />
inscrição.<br />
10 Na alienação da propriedade<br />
agrícola ou florestal ou na imposição<br />
de ônus reais como o<br />
usufruto, precisa-se para expedir<br />
a Auflassung de autorização<br />
da autoridade alemã competente.<br />
V. HEDEMANN, J.W., op.<br />
cit., p. 165.<br />
impulso<br />
139
Fromont e Alfred Rieg, a influência do Direito romano no Ocidente<br />
ficou latente do século VII ao XI. Por causa da descoberta<br />
em Pisa, na segunda metade do século XI, de um manuscrito do<br />
século VI ou VII contendo o texto original do Digesto, voltou<br />
renovado. Seguiu-se um trabalho científico considerável, obra, primeiro,<br />
dos glosadores, na escola de direito de Bolonha, entre o<br />
século XI e meados do XIII e dos posglosadores, depois. Durante<br />
esse período se redige abundantes notas, as glossæ sobre o texto<br />
do Corpus juris, primeiro, e dos posglosadores, mais tarde. O<br />
resultado desse trabalho metódico é a glossæ ordinariae de Acúrsio,<br />
verdadeira súmula de todas as glosas de seus predecessores.<br />
Mas como ainda faltava o caráter sistemático, os posglosadores<br />
entre 1250 e 1500 vão se dedicar a esta tarefa. Um novo direito<br />
apareceu graças aos esforços de homens eminentes como Bártolo<br />
(1314-1357) e Baldo (1327-1400).<br />
As causas da penetração do Direito romano, segundo estes<br />
autores, não deve ser procurada na inadaptação do Direito germânico<br />
à situação econômica, no final da Idade Média, pois, as cidades<br />
pelo comércio florescente tinham, desde o século XIV, elaborado<br />
um direito comercial perfeitamente adaptado às mudanças<br />
econômicas da época, o que favoreceu em grande parte à recepção<br />
do Direito romano. Deve, pelo contrário, encontrar-se em razões<br />
de ordem intelectual que explicam, se não exclusivamente, o fenômeno<br />
da recepção. Deve lembrar-se, dizem, que o Império alemão<br />
era o Império Romano e que os imperadores alemães se consideravam<br />
os sucessores dos imperadores romanos. De outro lado,<br />
numerosos foram os alemães que atravessando os Alpes, desde o<br />
século XII foram estudar nas escolas e universidades italianas o<br />
direito canônico e sobretudo o “novo direito romano”. Com a fundação<br />
das primeiras universidades alemãs no século XIV (Universidade<br />
de Praga em 1348; Viena, 1365; Heidelberg, 1386; Colônia,<br />
1388; Erfurt, 1392, Leipzig, 1409, onde primeiro começou-se ensinando<br />
direito dos cânones, e mais tarde, a partir do século XV, se<br />
ensina Direito romano como matéria autônoma) e, com a influência<br />
dos professores conhecedores do direito estrangeiro, rapidamente<br />
se vê nascer uma classe de “juristas sabedores (sábios)” (gelehrter<br />
Juristenstand) – cuja influência na administração e na justiça se<br />
faz cada vez mais notória – é que a recepção tem operado. Embora<br />
não seja o objeto deste trabalho discutir as causas e a verdadeira<br />
influência que teve a chamada recepção do Direito romano na Alemanha,<br />
parece pertinente lembrar a quase nenhuma influência no<br />
140 impulso
Direito público, pela dificuldade de adaptação das normas romanas<br />
às germânicas. Assim em matéria penal a influência deve ter<br />
sido bastante restrita, levando em conta que Carlos V tinha sancionado<br />
a sua famosa Ordenança Criminal de 1532. Mesmo em<br />
matéria civil teria sido irregular, no direito das obrigações e das<br />
coisas muito forte e, menos no direito das pessoas e da família, 11<br />
porém, “estorvou temporariamente” 12 a evolução dos registros e a<br />
posterior difusão do sistema do Registro Imobiliário.<br />
Afirma Enneccerus que o princípio romano segundo o qual a<br />
transmissão e o gravame dos imóveis se efetuam do mesmo modo<br />
que para os móveis e o de que a transmissão podia ser feita por<br />
tradição, fazendo-se o ônus tacitamente, passaram a constituir<br />
direito comum.<br />
Para melhor compreender o sistema dos direitos reais no<br />
direito alemão, deve-se levar em conta que, designa-se sob o nome<br />
de direito de bens, no sentido objetivo (Sachenrecht), ao conjunto de<br />
normas que se referem ao poder de fato (tatsächliche Herrschaft)<br />
que se tem sobre as coisas – a posse (Besitz) –, assim como, aos<br />
direitos reais, no sentido subjetivo, ou seja, aos direitos subjetivos<br />
sobre as coisas. 13<br />
Segue o BGB o sistema da tradição 14 sob a forma original<br />
do direito romano, que entrou na Alemanha, como foi dito pela<br />
chamada “Recepção”: traditionibus et usucapionibus dominia<br />
rerum non nudis pactis transferuntur.<br />
Isto quer dizer que a modificação das relações jurídicas sobre<br />
um bem imóvel não se verifica senão por força da inscrição<br />
mesma: é o princípio da inscrição, “o que está no registro é exato,<br />
porque o registro o diz”. 15<br />
A elaboração do BGB uniformizou o direito imobiliário<br />
material do Reich, bem como, um ano mais tarde, adotou idêntica<br />
posição em matéria instrumental (GBO – 1897 ou Ordenança do<br />
Registro Imobiliário), que fora objeto de inúmeras críticas. Só em<br />
1935, quando da redação da nova GBO, conseguiu-se total unificação,<br />
já que, até então, a redação dos “formulários”, por ex., era<br />
facultativa dos Estados).<br />
DO REGISTRO IMOBILIÁRIO 16<br />
O registro (da jurisdição voluntária) compete ao Cartório de<br />
Registro, que se subordina ao Tribunal distrital, e está na dependência<br />
de um juiz. A função prática do agrimensor é também fundamental,<br />
pesando responsabilidades sobre este e outros funcionários,<br />
11 FROMONT, Michel e RI-<br />
EG, Alfred, op. cit., Tome I, Les<br />
Fondements, págs. 57-64.<br />
12 V. ENNECCERUS, KIPP,<br />
WOLFF, op. cit., p. 135; v. HE-<br />
DEMANN, J.W., op. cit., p. 78,<br />
considerava que a “Recepção”<br />
prejudicou o posterior desenvolvimento<br />
e a difusão do sistema<br />
do Registro imobiliário, já<br />
que tais aparatos registrais eram<br />
alheios à concepção jurídica<br />
dos romanos. Por outro lado, o<br />
pensamento jurídico romano<br />
afinou a lógica jurídica germânica,<br />
se entendida como uma<br />
recepção de “métodos e de<br />
compreensão, de noções jurídicas,<br />
de categorias legais, mais<br />
do que regras de fundo...” (V.<br />
também, FROMONT, Michel e<br />
RIEG, Alfred, op cit., o § 3., sobre<br />
os limites da recepção).<br />
13 V. FROMONT, Michel, RI-<br />
EG, Alfred et al., op. cit., p. 133.<br />
14 Para os imóveis, ocorre a<br />
inscrição no livro Fundiário<br />
(§ 873) e, para os móveis (V.<br />
§ 929) a transferência se dá<br />
com a entrega (tradição), salvo<br />
o constitutum possessorium em<br />
que é suficiente o acordo translativo<br />
(§ 930).<br />
15 V. ENNECCERUS, KIPP,<br />
WOLFF, op. cit., p. 136.<br />
16 V. HEDEMANN, J.W., op.<br />
cit., p. 75ss; ENNECCERUS,<br />
KIPP, WOLFF, op. cit., p. 138ss.<br />
impulso<br />
141
17 ENNECCERUS, KIPP,<br />
WOLFF, op. cit., p. 147-148.<br />
18 V. HEDEMANN, J.W., op.<br />
cit., p. 135-136.<br />
19 Com o princípio de abstração,<br />
o Direito alemão formula uma<br />
regra diversa de outros direitos,<br />
como o francês, por exemplo, e<br />
se distancia deles. O “princípio<br />
de abstração” significa que os<br />
contratos, obrigacional ou casual<br />
e real, são, por princípio, independentes<br />
um do outro; cada um<br />
existe “abstração feita” do outro,<br />
dissociado do outro. Uma função<br />
essencial do princípio de<br />
abstração está em limitar às partes<br />
interessadas das conseqüências<br />
viciosas que maculam a<br />
conclusão do contrato criador de<br />
obrigações e de evitar que os terceiros<br />
fiquem prejudicados. O<br />
caráter abstrato do negócio jurídico<br />
real precisa de um elemento<br />
objetivo, o acordo das partes<br />
sobre a modificação jurídica do<br />
direito real (e até de uma declaração<br />
unilateral) onde o acordo<br />
obrigacional, causal, não figura,<br />
quer dizer, não consta, por não<br />
ser necessário para que o acordo<br />
real produza efeitos e, claro, da<br />
inscrição no Registro imobiliário<br />
ou entrega da coisa, se móvel.<br />
Nesse sentido, V. FROMONT,<br />
Michel, RIEG, Alfred, op. cit.,<br />
p. 70 e 138-139.<br />
20 V. ENNECCERUS, KIPP,<br />
WOLFF, op. cit., p. 165.<br />
já que o registro obedece ao princípio de exatidão, tanto na identidade<br />
das pessoas, como nas operações matemáticas que o registro<br />
demanda. Exatidão que é base de toda transação imobiliária e, que<br />
se completa com o princípio da publicidade do registro. Mesmo<br />
público o registro, o acesso a ele é limitado: só quem tiver interesse<br />
jurídico justificado poderá ter acesso aos registros, é o caso<br />
de um titular de direitos reais ou de quem deseja adquirir um prédio.<br />
Considera-se que o “interesse justificado” seja um conceito<br />
mais amplo que o “interesse jurídico”. 17 O Registro alemão reflete<br />
a situação jurídico-real do imóvel.<br />
Para Hedemann, 18 há cinco princípios que inspiram o Registro:<br />
1) o princípio do sistema imobiliário onde constam todas as<br />
relações jurídicas referentes ao imóvel; 2) o princípio da inscrição,<br />
entendendo-se que todas as relações jurídicas, enquanto direitos<br />
reais procedem do tráfico dos negócios jurídicos, nascem só a partir<br />
da sua inscrição no Registro; 3) o princípio do consentimento,<br />
pelo qual basta a declaração abstrata 19 de vontade dirigida a obter<br />
a modificação jurídica em si mesma, deixando fora de cogitação a<br />
“legalidade” do negócio causal obrigacional; 4) o princípio da prioridade,<br />
o que significa que os diversos direitos, que possam existir<br />
sobre um imóvel, não estão entre si num mesmo plano de igualdade,<br />
mas que se ordenam por estratos, segundo um sistema visível<br />
no Registro (sistema do lugar e sistema da data); 5) o princípio de<br />
publicidade, segundo o qual o Registro há de formar a base de toda<br />
a transferência sobre imóveis e por isso é acessível ao público. Em<br />
sentido mais estrito, trata-se implicitamente de confirmação gerada<br />
pelo Registro, pela sua exatidão, embutida no princípio.<br />
Os elementos materiais necessários para modificar uma relação<br />
jurídica real no registro são: a solicitação da inscrição, Antrag<br />
(ato de mera forma processual) e o consentimento translativo<br />
(princípio do consentimento formal) indispensável para consumar<br />
a transmissão do direito de propriedade, Einigung (fato modificador<br />
do direito no ordenamento jurídico substantivo), e que é o consentimento<br />
bilateral de inscrição feita em termo ou instrumento<br />
público. A natureza do consentimento de inscrição, sendo uma<br />
declaração de vontade, para Enneccerus, 20 constitui parte de um<br />
negócio de disposição, embora Von Thur apenas a considere como<br />
preparo da mesma.<br />
O Registro obedece a uma cadeia de transmissões não interrompida,<br />
o que sugere a necessidade de inscrição prévia de quem<br />
outorgou permissão para o novo registro.<br />
142 impulso
A categoria dos direitos no Registro se organiza conforme o<br />
lugar (ordenação pelo lugar – Locussystem) que ocupa nos livros,<br />
se os direitos inscritos na mesma secção, ou pela data, se os direitos<br />
forem inscritos em secções distintas. A prioridade no registro<br />
determina, em caso de execução, o não pagamento proporcional,<br />
se vários forem os credores colocados em diversas categorias, e<br />
sim pagamento integral dos primeiros até onde alcançar o valor<br />
garantido, sendo que o lugar que se ocupa no registro (categoria) é<br />
adjunto e independente, todavia é possível trocar essa posição,<br />
mas não podem afetar direitos intermédios.<br />
Por outro lado, a solicitação, como o ato bilateral modificador,<br />
deve ser objeto de prévia qualificação do Juiz Registrador,<br />
embora os limites de tal qualificação devam estar definidos pela lei<br />
(princípio de legalidade).<br />
O princípio do consentimento fundamenta-se numa abstração,<br />
ou seja, separa a vontade modificadora jurídico-real do outro,<br />
o acordo voluntário causal. Mas o princípio de legalidade obriga o<br />
Registrador a comprovar a legalidade do processo como um todo,<br />
inclusive, a validade jurídica do negócio jurídico-causal (obrigacional),<br />
porém bastam para o registro as declarações abstratas e formais<br />
feitas.<br />
Na ausência do acordo bilateral abstrato e havendo uma<br />
pretensão pessoal (obrigacional), pode exigir-se uma prenotação<br />
(Vormerkung) por exemplo, o comprador tem o contrato de compra<br />
e venda com efeitos puramente obrigacionais, com pretensões<br />
para extinguir ou ceder um direito. Não outorga a seu titular direito<br />
real e não impede ao anotado (prejudicado) de sua capacidade de<br />
alienação; claro que estes atos posteriores à anotação preventiva,<br />
serão ineficazes na medida em que representam um prejuízo (óbice)<br />
à pretensão previamente anotada (§ 883), assegurando preferência<br />
na sua classe (categoria) ao direito em questão, se constituído definitivamente.<br />
Este deve ser o único caso em que a responsabilidade limitada<br />
do herdeiro (intra vires hereditatis) não poderia ser oposta ao titular<br />
da prenotação (§ 884).<br />
A prenotação é resultado de pretensão pessoal, e não passa<br />
de obrigacional em relação ao direito real. Na terminologia do<br />
direito romano, seria um ius ad rem. O crédito anotado é parecido,<br />
por conseguinte, com a figura do direito à coisa. 21<br />
Para eventuais inexatidões 22 do Registro, quase impossível<br />
de acontecer, há remédios como:<br />
21 In Otto v. Gierke, Dt. Priv.-<br />
R, II, p. 336ss, cit. por HEDE-<br />
MANN, J.W., op. cit., p. 106.<br />
22 Hedemann relata as seguintes:<br />
a) tem-se inscrito um direito<br />
não existente;<br />
b) tem-se deixado de inscrever<br />
um direito existente;<br />
c) cancelamento indevido de<br />
um direito existente, inscrito;<br />
d) expressado equivocadamente<br />
o conteúdo de um direito.<br />
impulso<br />
143
23 ENNECCERUS, op. cit.,<br />
p. 156.<br />
24 HEDEMANN, J.W., op. cit.,<br />
p. 113-115.<br />
25 HEDEMANN, J.W., op. cit.,<br />
p. 101.<br />
I) A retificação de ofício: há dois requisitos:<br />
a) a denominada retificação obrigatória (requerer ao herdeiro,<br />
atual proprietário, fornecer documentos para atualizar o Registro);<br />
o cancelamento de inscrições antiquadas e confusão nas relações de<br />
prioridade, praticando-se de ofício esclarecimento e nova inscrição;<br />
b) por faltas cometidas pelo Registro, como inscrições defeituosas<br />
e inscrições improcedentes.<br />
II) A retificação também pode ser pedida pelo prejudicado<br />
(§ 894), pretensão que pode ser dirigida contra o próprio Ofício do<br />
Registro ou contra o que foi falsamente inscrito, exigindo dele<br />
assentimento e demais atos de cooperação (§ 894 última parte), e<br />
não é suscetível de prescrever (§ 898). Uma vez obtida a retificação,<br />
retroage à data da inexatidão do registro, diverso, portanto, da<br />
prenotação.<br />
Resumindo, no registro imobiliário, fora das indicações de<br />
fato, que servem para individualização do bem, só podem ser inscritos<br />
os direitos reais sobre o bem ou sobre um direito imobiliário<br />
inscrivível (como também pode inscrever-se o direito de garantia<br />
sobre direito inscrito do herdeiro fideicomissário, ou o direito de<br />
garantia sobre a quota de um co-herdeiro), as limitações de dispor<br />
que existem a favor de determinadas pessoas (como por exemplo<br />
o resultado de concurso, administração de herença, herança fideicomissária,<br />
nomeação de testamenteiro etc.), as anotações preventivas<br />
e os assentos de contradição. 23 [A contradição (§ 899) se edifica<br />
sobre o fundamento de uma inexatidão registral diversa da<br />
prenotação, portanto, funda sua pretensão em direito real todavia<br />
não existente 24 ].<br />
Com a inscrição fica definitivamente concluída a modificação<br />
jurídico-real, mas não só isso, fica invariável. 25<br />
Nos cancelamentos (extinção total ou parcial de um assento<br />
anterior ou não existência de uma relação jurídica) são sublinhados<br />
com traço vermelho, além de praticar-se assento especial em<br />
que conste o cancelamento.<br />
As inscrições, de um modo geral, só cobrem inscrições de<br />
direitos, mas não de fatos, embora constem do registro para fins de<br />
individualização, como situação do bem, exploração econômica,<br />
edifícios existentes, preço de aquisição, etc.<br />
As inscrições podem ser de caráter constitutivo (é o caso da<br />
transmissão do direito de propriedade, ou de garantia gravados<br />
com uma hipoteca), ou também meramente declarativas (que<br />
retroagem ao momento em que ocorreu a inexatidão), destinadas a<br />
144 impulso
eliminar uma dissensão entre a situação jurídica inscrita e a real,<br />
ou por haver inscrições equivocadas, que provocam inexatidão no<br />
registro.<br />
As inscrições feitas não se extinguem pela confusão (reunião<br />
numa mesma pessoa de direito e obrigação), ao contrário, se consolida<br />
(§ 889). Esta subsistência da inscrição tem importância prática<br />
na denominada hipoteca de proprietário.<br />
Como já foi descrito, há, além das inscrições, os cancelamentos,<br />
que não se praticam inutilizando os registros, mas sublinhando-os<br />
com traço encarnado, além de constar inscrição especial<br />
a respeito. Nas prenotações 26 (Vormerkung do § 883 ao § 888 do<br />
BGB) (ver supra) o suposto de fato material é a existência de uma<br />
pretensão pessoal (quase sempre obrigacional) para exigir uma inscrição<br />
determinada, seja porque é permitido ao prejudicado (pactuado),<br />
ou por providência provisional de um Tribunal. Mas os efeitos<br />
destes são relativos (eficácia relativa), já que se trata de uma<br />
inscrição provisória. Simetricamente, por outro lado, os atos produzidos<br />
após a prenotação estão sujeitos a uma ineficácia relativa, 27<br />
mesmo em se tratando de disposições de caráter forçoso ou, em<br />
outras situações, porque assegura a preferência na sua classe ao<br />
direito pretendido, ou porque o herdeiro não pode opor ao titular da<br />
prenotação a sua responsabilidade limitada (supra § 884).<br />
TRADIÇÃO E BENS MÓVEIS<br />
O Direito alemão faz distinção entre “ato criador de obrigações”<br />
(Verpflichtungsgeschäft) e “ato de disposição” (Verfügungsgeschäft),<br />
sendo este último de domínio dos Direitos Reais.<br />
Quanto à aquisição da propriedade mobiliária, o BGB (§ 929<br />
a § 931) considera vários casos. O primeiro deles, aquisição por<br />
transmissão, é o mais importante. 28 Aqui nos interessa porque,<br />
entre os processos de aquisição, se inclui a traditio como um meio<br />
de transmissão [os outros dois são a) a compra e venda (§ 433 e<br />
ss.), contrato puramente obrigacional, pelo qual, como já mencionado,<br />
não é suficiente para transmitir o direito de propriedade,<br />
com ela só se cria um vínculo pessoal e a sua função, na transmissão<br />
do direito real é apenas servir de fundamento, de “causa” (à<br />
modificação da relação real), é a “relação causal” e b) o “convênio”<br />
ou o acordo translativo (V. § 929), que é uma “figura dificilmente<br />
intelegible para los juristas”, 29 diverso, portanto, da compra<br />
e venda (abstração causal)].<br />
26 Sobre a natureza da prenotação<br />
o § 883 prescreve:<br />
“Para garantia da pretensão à<br />
constituição ou extinção de um<br />
direito sobre um prédio, ou sobre<br />
um direito onerando um<br />
prédio, ou a modificação do<br />
conteúdo ou da ordem (de inscrição)<br />
de um tal direito... ou<br />
para garantia de uma pretensão<br />
futura ou condicional” (§ 883).<br />
Versão Souza Diniz do BGB,<br />
Edit. Record, Rio, 1960, p. 148.<br />
27 O § 883, II, 1ª parte, prescreve:<br />
“Uma disposição que, depois<br />
da inscrição da prenotação, for<br />
tomado sobre o prédio ou o direito,<br />
é ineficaz desde que venha<br />
a frustrar ou prejudicar a<br />
pretensão”.<br />
28 Os outros são:<br />
a) aquisição por usucapião;<br />
b) aquisição por adjunção,<br />
comistão e especificação;<br />
c) aquisição dos frutos e demais<br />
partes da coisa;<br />
d) aquisição por ocupação;<br />
e) aquisição por invenção e<br />
outros alheios ao Direito das<br />
Coisas como a sucessão hereditária,<br />
a desapropriação, etc.<br />
29 HEDEMANN, op. cit. p. 170.<br />
impulso<br />
145
Isto quer dizer que a entrega (traditio) e, portanto, a posse<br />
aparece aqui como modo de transmissão. Embora criticado o<br />
denominado sistema (da Traditionssystem) da tradição, no caso<br />
alemão, vigora o princípio romano (Codex 2.3.20 do Traditionibus...),<br />
que na visão de Hedemann respondia, nesse período histórico<br />
a realidades vitais urgentes mas que, entre nós, apenas se tornou<br />
uma construção doutrinária, encartilhada no princípio de<br />
“publicidade”, aplicável para todos os processos do Direito das<br />
coisas, que devem ser, de algum modo, “publicados”. A entrega<br />
corporal serviu para essa finalidade, esquecendo que, como o princípio<br />
não fora levado às suas últimas consequências, junto a um<br />
processo paralelo, de espiritualização da traditio, estava-se perdendo,<br />
na verdade, a essência mesma da “publicidade”, ou seja, o<br />
elemento corporal perceptível da entrega. Embora criticada esta<br />
posição de Hedemann pelos seus tradutores, por mesclar duas<br />
questões diferentes, possibilidade de eliminar o requisito e possibilidade<br />
de substituir a tradição real pela forma espiritualizada, a crítica<br />
não nos parece pertinente, já que o autor apenas levanta as<br />
inconsequências a que foi levado o princípio da tradição, tudo<br />
imposto pela realidade.<br />
O § 929 (BGB), ao tratar da transmissão dos direitos de propriedade<br />
de bens móveis, considera, além do acordo de transmissão,<br />
a entrega corporal, salvo se o adquirente estiver na posse imediata<br />
da coisa, em que bastará apenas o acordo para a transferência<br />
da propriedade.<br />
O acordo translativo, nos termos do § 929 do BGB, não é o<br />
negócio causal puramente obrigacional, mas um acordo que,<br />
fazendo abstração da causa, representa um novo ato de vontade, de<br />
ambas as partes. Faltando o acordo, não há transferência da propriedade.<br />
Significa que, em matéria de móveis, não basta a entrega da<br />
coisa, mas é necessário o acordo translativo, embora não haja necessidade<br />
de que se verifique a presença simultânea das partes;<br />
podendo cumprir-se pelo mero silêncio. Isto quer dizer que não se<br />
verifica a transferência quando, por exemplo, se paga o preço.<br />
Importa sobretudo cumprir com as exigências da entrega do acordo<br />
de transmissão, nos termos do artigo antes citado, para haver alienação<br />
(§ 929), sendo indiferente o momento em que se pagou.<br />
A transferência da coisa não se opera na data da entrega<br />
(traditio), e sim na data em que se verifica o acordo translativo. O<br />
clássico exemplo de Hedemann ilustra a respeito: o Sr. A encarregou<br />
em 03 de maio para o alfaiate B um terno sob medida<br />
146 impulso
(contrato de obra). Em 11 de maio é entregue o terno a domicílio,<br />
mas como A está viajando, a empregada – servidora da posse –<br />
o recebe. Nos termos do § 929, a entrega se consumou mas faltou<br />
o acordo translativo, que só aconteceu em 14 de maio, quando A<br />
regressou à sua casa, tendo visto o terno, não dizendo nada. Com<br />
o isto deu a sua aprovação. 30 Assim a transferência se deu só em<br />
14 de maio, e não na data da entrega.<br />
O sistema alemão admite a aquisição de bens móveis a non<br />
domino, desde que cumpridas as condições estabelecidas pelos<br />
§§ 929 a 931 BGB, e desde que haja entrega do bem, suposta a<br />
boa-fé do adquirente (§ 932 I e II BGB). As disposições referentes<br />
à aquisição de boa-fé supõem que o proprietário tenha livremente<br />
abandonado o controle direto do bem (quer dizer, que estava na<br />
posse direta e a perdeu contra a sua vontade) e que tenha aceitado<br />
o risco de um terceiro dispor sem sua autorização. Daí que estão<br />
excluídas, em princípio, aquisições de uma pessoa que não é titular<br />
de direitos sobre o bem, ou daqueles que tenham sido roubados,<br />
ou tenham sido perdidos ou até entregues a um terceiro por<br />
outra causa.<br />
O BGB prevê uma hipótese excepcional (§ 934, I), havendo<br />
boa-fé, em que seria possível a aquisição de um bem não perdido,<br />
mesmo sem tradição, se quem tiver o bem, não sendo titular do<br />
direito, é um possuidor indireto e transfere essa posse ao adquirente<br />
por cessão de um direito de pretensão (de agir em restituição).<br />
A segunda parte dessa norma, determina que, em caso contrário,<br />
só se tornará proprietário quando obtiver a posse da coisa,<br />
do terceiro, a não ser que no tempo da cessão ou da aquisição da<br />
posse não estivesse de boa-fé (§ 934, II). (V. infra, cessão de pretensão<br />
reivindicatória).<br />
Diferentemente, o sistema brasileiro, em função de disposição<br />
expressa de nosso Código Civil (art. 622), “não adotou o princípio<br />
da validade das aquisições a non domino com base na posse<br />
e na boa-fé do adquirente. Seguiu neste passo a posição firmada<br />
pelo direito romano que, em face do conflito entre os interesses<br />
preponderantes do verdadeiro proprietário e os do adquirente de<br />
boa fé protegidos pelo tráfico jurídico, pendeu em favor daqueles,<br />
em atenção ao princípio Nemo plus juris ad alium transferre<br />
potest quam ipse haberet, estabelecendo que o adquirente se beneficiaria<br />
com a posse apta para o usucapião (Hedemann, op. cit.,<br />
Derechos Reales, v. II, p. 182, § 212, e Dernburg, Dirritti Reali, v.<br />
I, Parte II, p. 158, § 212).” Conclui-se que no sistema pátrio “a tra-<br />
30 HEDEMANN, J.W., op. cit.,<br />
p. 170-171.<br />
impulso<br />
147
31 MAGALHÃES, Vilobaldo<br />
Bastos de. Compra e Venda e<br />
Sistemas de Transmissão da<br />
Propriedade, Edit. Forense, Rio<br />
de Janeiro, 1981, ps. 68-73.<br />
dição feita pelo não dono não produz a transferência da propriedade<br />
em favor do adquirente de boa-fé... admitindo, no art. 521, a<br />
reivindicação das coisas perdidas ou furtadas.” 31<br />
Quando o convênio (acordo translativo) é claro, não haveria<br />
dificuldade e/ou necessidade de interpretação da vontade das partes<br />
para saber se houve ou não o acordo abstrato de transmissão.<br />
Nos casos duvidosos em que se exige interpretação da vontade das<br />
partes, está por exemplo a do penhor. Se entregou a coisa a título<br />
de penhor e, portanto, conservando a propriedade? Ou se fez uma<br />
transmissão em garantia? (V. infra: Transmissão em Garantia). A<br />
hipótese exige examinar, em cada caso, a natureza de tal convenção.<br />
Nos arrendamentos em que há objetos constantes de um<br />
inventário pelo valor da estimativa e obrigação de restituí-los, (§<br />
587) nos termos dos §§ 588 e 589, como seguramente acontece<br />
com freqüência com utensílios da lavoura, inventariados no arrendamento<br />
da propriedade rural: o arrendatário os toma a título de<br />
compra e venda e os retrovende ao arrendador assim que expirar o<br />
prazo? Se trata aqui de um arrendamento em que se transmite o<br />
risco de eventuais perdas dos objetos do inventário ao arrendatário<br />
(§ 588), mas com a promessa de devolvê-los ao arrendador,<br />
porém, sem que este último suporte os riscos de perecimento<br />
casual, já que aquele tem obrigação de devolver o inventário, de<br />
conformidade com uma exploração regular, nas condições em que<br />
lhe foi entregue, e, as partes por ele fornecidas tornam-se, com a<br />
incorporação ao inventário, propriedade do arrendador (§ 588,<br />
última parte). E se houver um prazo muito longo, em que aconteceram<br />
alterações monetárias profundas e há desvalorização da<br />
moeda e, correlativamente, aumenta o valor desses bens móveis?<br />
Embora o Código não responda a esta hipótese, evidentemente, há<br />
um paradoxo: se atribui ao arrendatário aumento do valor do<br />
inventário (§ 589, última parte), mas se declara que o arrendador<br />
sempre foi proprietário, aliás conserva a propriedade dos objetos<br />
do inventário (§ 588, segunda parte).<br />
As denominadas formas supletórias da tradição, segundo<br />
Hedemann (op.cit. p. 175) previstas no BGB são:<br />
a) Brevi manu traditio, prevista pelo § 929, 2, na suposição de<br />
que a coisa já está, antecipadamente, em poder do adquirente, sendo<br />
que careceria de objeto voltar a entregar-se-lhe (algo que já exista<br />
em mãos do novo proprietário e que exigiria prévia devolução ao<br />
transmitente). Aqui basta o convênio ou acordo transmissivo.<br />
148 impulso
) Constitutum possessorium (§ 930 BGB), pelo qual se<br />
troca o conceito de posse, caso em que o alienante conserva provisioriamente<br />
a coisa, mas entendendo-se que é propriedade do<br />
adquirente, de tal sorte que, daí em diante, não a guarda mais para<br />
si e sim para o adquirente. Há de convir-se que, neste caso, há<br />
uma quebra do princípio de publicidade que cumpre a tradição.<br />
Hedemann, assegura que o BGB encontrou uma solução, denominada,<br />
construtiva, restringindo este meio de transmissão do direito<br />
de propriedade a casos em que “sobreviene entre el adquirente y el<br />
enajenante una súbita disgregación de las relaciones posesorias en<br />
cuanto el enajenante conserva la posesión ‘inmediata’, mientras<br />
que transmite la posesión ‘mediata’ o superior al adquirente” (op.<br />
cit. págs. 175-176), mas não basta esta mera desagregação do<br />
estado possessório, é necessário, “que se estipule una relación<br />
jurídica”, em virtude da qual, tal desagregação se efetua. Para<br />
compreendê-lo, há que fazer referência a uma antiga controvérsia<br />
da época do Direito comum. Já nessa época se tentava evitar um<br />
desbordamento do constitutum possessorium, diferenciando-o da<br />
chamada forma abstrata de estabelecê-lo, de uma maneira indeterminada,<br />
de outra, adotada pelo código, individualizada. A esta<br />
última forma se refere o BGB quando exige uma relação jurídica,<br />
arrendamento, depósito, aluguel, etc. Reconhece, por outra<br />
parte, que há inúmeros problemas com esta solução, especialmente<br />
no caso do depósito.<br />
Ainda existe uma outra forma de transmissão que deve ser<br />
estudada, embora pertença ao Direito Comercial. Trata-se da aquisição<br />
de títulos-valores, mediante tradição. Trata-se, na verdade,<br />
de mercadorias que estão sendo transportadas ou depositadas em<br />
determinados armazéns. O documento expedido toma diversos<br />
nomes, carta de conhecimento no transporte marítimo, carta de<br />
porte no terrestre e de warrants quando depositados em armazéns.<br />
É possível transmitir através de endosso ao próprio comprador das<br />
mercadorias e este a um terceiro; tal documento e esta tradição<br />
têm o efeito não só de representar a entrega corporal, mas e sobretudo<br />
de transmitir o direito de propriedade (§ 424, 450, 647 HGB);<br />
por outras palavras, significa que por este modo se transmite a<br />
posse mediata dos bens e também a propriedade através da traditio<br />
simbolica, na suposição de que medeia o acordo transmissivo<br />
(Einigung), necessário conforme exigência do Direito civil.<br />
impulso<br />
149
32 SERICK, Rolf. Garantías<br />
Mobiliarias en Derecho Alemán,<br />
Edit Tecnos, trad. de Angel<br />
Carrasco Perera, Madrid, 19<strong>90</strong>,<br />
p. 105-106, v. tb. p. 80-81.<br />
33 A obra de SERICK. Garantias<br />
Mobiliárias en Derecho Alemán,<br />
Edit. Tecnos, traduc. de<br />
Angel Carrasco Perera, Madrid,<br />
19<strong>90</strong>, é a base de nossos argumentos.<br />
Por esta razão, diz, Hedemann, se chama a estes documentos<br />
“títulos traditórios” (Traditionspapiere e também títulos reais ou<br />
títulos de disposição: Waren-oder Dispositionspapiere) (op. cit., p.<br />
179).<br />
Serick, 32 referindo-se às garantias mobiliárias “made in Germany”,<br />
assinala que faltam normas específicas que se ocupem das<br />
questões fundamentais, dos requisitos e da configuração da transmissão<br />
em garantia, e em especial da questão de se uma transmissão<br />
desse tipo (transmissão, não da propriedade plena, mas só da<br />
titularidade fiduciária) é admissível através do acordo sobre a<br />
transmissão da propriedade e o convênio de uma relação jurídica<br />
de mediação possessória (segundo o § 930 BGB), permanecendo<br />
o constituinte da garantia como possuidor imediato, mesmo depois<br />
da tramissão. Este problema, para ele, levantou uma discussão<br />
(que mais tarde se teria tornado obsoleta), sobre a opinião de que<br />
na transmissão em garantia oculta, por meio do constituto possessório<br />
(§ 930 BGB) estávamos diante de uma forma de fraude à lei,<br />
já que o BGB, tinha disposto normas relativas ao penhor mobiliário<br />
como sendo o caminho adequado para afetar um bem móvel<br />
em garantia de um crédito, sendo que estas normas estão governadas<br />
pelo princípio da publicidade.<br />
Há de entender-se que o constitutum possessorium não é<br />
forma admitida para a pignoração, embora seja perfeitamente<br />
admissível, desde o ponto de vista teórico, que alguém possa propor<br />
dar em penhor uma ou várias coisas, mas que a causa do tipo<br />
de trabalho do devedor, as precise diariamente, e por isso quer<br />
conservar (de acordo com o § 868 BGB) a posse imediata delas,<br />
transmitindo para o credor a posse mediata, sendo o próprio devedor,<br />
o mediador possessório. Mas, a lei não permite esta forma de<br />
negócio. Daí que, por via indireta, é só possível através da transmissão<br />
em garantia (V. infra).<br />
c) Cessão da pretensão reivindicatória, chamada também,<br />
cessio vindicationis (§ 931 BGB). Esta é a terceira forma supletória,<br />
assinalada por Hedemann, que consiste em que o alienante<br />
não tem em seu poder a coisa mesma, mas que se encontra em<br />
mãos de um terceiro, a título de empréstimo, ou por outra razão,<br />
um roubo, por exemplo. Como não pode entregá-la, mas como<br />
tem uma pretensão contra esse terceiro para que lhe devolva a<br />
coisa, (obrigacional ou real ou ambas de vez), cede esta pretensão,<br />
quer dizer, transmite ao adquirente uma pretensão.<br />
150 impulso
TRANSMISSÃO EM GARANTIA 33<br />
O BGB (§ 1204 e ss.) prevê transmissão de bens para garantir<br />
um crédito. É o caso do penhor, em que se exige que a coisa seja<br />
entregue (posse imediata) ao credor pignoratício (§ 1205, 1ª parte).<br />
Trata-se de uma garantia possessória, não sempre conveniente,<br />
quando o devedor precisa da coisa para trabalhar (maquinário,<br />
equipamento), transformar (matéria prima) ou, alienar (mercadorias).<br />
O penhor funciona sim, no Direito alemão como no Direito<br />
brasileiro, para pequenos empréstimos de dinheiro com garantia<br />
de objetos preciosos (jóias, por exemplo).<br />
Há poucos casos em que o sistema exige, em matéria de<br />
penhor, a inscrição em um registro especial em lugar da tradição<br />
do bem: cabos submarinos, (L. de 25 de março de 1925, RGBl. I,<br />
p. 37) e aeronaves (L. de 25 de fevereiro de 1959, Gezetz über<br />
Rechte an Luftfahrzeungen, BGBl. I, p. 57). Também é possível,<br />
dar em penhor, sem deslocamento do bem, no penhor agrícola, se<br />
feito por escrito e depositado no Tribunal Cantonal (L. de 5 de<br />
agosto de 1951 sobre a organização de arrendamentos agrícolas,<br />
Pachtkreditgesetz, BGBl. I, p. 494). O direito de penhor pode se<br />
dar sem desposse, como é o caso do penhor legal atribuído ao<br />
locador de um prédio sobre os bens móveis introduzidos pelo<br />
locatário (§§ 559 a 561 BGB) 34 .<br />
Entende Hedemann que no Direito alemão está excluída a<br />
utilização do constitutum possessorium para a pignoração,<br />
devendo dar-se um rodeio, utilizando-se de uma via quase clandestina<br />
para chegarmos à transmissão em garantia. 35<br />
A transmissão em garantia no Direito alemão (não penhor)<br />
de coisas móveis, se faz valer hoje graças ao direito consuetudinário,<br />
já que no BGB não há previsão a respeito. 36<br />
De um modo geral, o estudo da transmissão de bens móveis,<br />
créditos ou direitos, quando se trata de negócios de garantia, é<br />
assunto complexo, já que nas garantias mobiliárias, há, de parte do<br />
adquirente, uma retenção não definitiva, e mesmo que seu titular o<br />
seja de um direito pleno, conserva a propriedade só de um modo<br />
temporário (em fidúcia) para a segurança de um crédito.<br />
Nos empréstimos (mútuo, especialmente) é comum este tipo<br />
de garantia (os bancos são exemplo disto) com a diferença do tratamento<br />
dado pelos administradores de bens que utilizam da<br />
reserva de domínio como garantia.<br />
No Direito alemão, tecnicamente é possível transmitir em<br />
garantia não só bens móveis como imóveis, mas, parece que neste<br />
34 FROMONT, Michel et RIEG,<br />
Alfred, op. cit. Tome III Droit<br />
Privé, p. 185.<br />
35 HEDEMANN, J. W. op. cit.<br />
p. 178.<br />
36 A base estaria no art. 2º da<br />
Lei de Introdução ao Código<br />
Civil (BGB) no entendimento<br />
de que “lei” é toda norma jurídica<br />
escrita ou não. Nesse sentido<br />
V. SERICK, Rolf, op. cit.,<br />
p. 26-27.<br />
impulso<br />
151
último caso, seria mais efetivo impor um ônus hipotecário, por<br />
exemplo, do que fazer um ato translativo do bem em garantia, quer<br />
por resultar custosa a documentação, quer por razões fiscais (dupla<br />
tributação).<br />
Quanto à cessão de créditos ou de direitos em garantia, há no<br />
BGB regulação sobre sua penhora, mas nada sobre transmissão<br />
em garantia de créditos ou direitos. A origem é consuetudinária no<br />
sentido já expressado.<br />
O Supremo Tribunal Federal (em sentença proferida em 24-<br />
10-79) entendeu que propriedade em garantia, não é um domínio<br />
pleno: o objeto desta propriedade é garantir satisfação plena de um<br />
crédito, permancendo o devedor, no uso e exploração da coisa. 37<br />
Prevê o § 930 do BGB transmissão em garantia através do<br />
constituto possessório, quando por exemplo o concedente da garantia<br />
continua na posse (imediata) do bem não como proprietário mas<br />
como depositário (§ 868) e o adquirente fica com a posse mediata.<br />
37 SERICK, op. cit., p. 33.<br />
38 SERICK, op. cit., p. 101.<br />
RESERVA DE DOMÍNIO<br />
O BGB prescreve que, se o vendedor de uma coisa móvel<br />
tem-se reservado a propriedade até o pagamento do preço, deve<br />
entender-se que a transmissão de propriedade está sujeita à condição<br />
suspensiva do pagamento completo do preço (§ 455). Quer<br />
dizer que o negócio obrigacional não está submetido à condição,<br />
ele é puro e simples; o negócio de cumprimento é que está sujeito<br />
à condição. A regra é apenas válida para bens móveis. Não acontece<br />
isto com a transmissão da propriedade de bens imóveis por<br />
expressa proibição do § 925 concordante com o § 873: o entendimento<br />
é que o negócio obrigacional (Auflassung) não pode nem<br />
deve ser submetido à condição.<br />
Serick, 38 chama a atenção para o fato de que a reserva de<br />
domínio e a transmissão em garantia têm tido um desenvolvimento<br />
com assombrosa vida própria fora do direito escrito desde a<br />
entrada em vigor do BGB em 1<strong>90</strong>0 até nossos dias, sendo que o §<br />
455 previu a forma básica da reserva de domínio. Sem embargo,<br />
esta forma básica tem derivado em direção de uma obra de arte<br />
juridicamente mais perfeita, devido sobretudo às técnicas de prolongação<br />
e ampliação da reserva de domínio e ao direito de expectativa<br />
do comprador sob reserva. Adverte também que faltam<br />
regras sobre a transmissão em garantia, – quer dizer, sobre a transmissão<br />
em garantia de bens móveis, a cessão em garantia de cré-<br />
152 impulso
ditos e direitos –, e que só aparece aludida no § 223 do BGB, relativo<br />
à prescrição.<br />
Nos bens móveis, o contrato de compra e venda, sujeito ao<br />
Direito obrigacional, é a causa da transmissão da propriedade, e<br />
não só causa como razão que dá fundamento ao comprador para<br />
permanecer com a coisa. Mas não é suficiente, há necessidade de<br />
um segundo ato, o acordo transmissivo. Pode ser que a causa seja<br />
considerada ineficaz e o acordo transmissivo eficaz, isto graças ao<br />
princípio de abstração do Direito alemão.<br />
Portanto, como já lembrado por Hedemann, a transmissão do<br />
direito da propriedade se dá por acordo e entrega da coisa (§ 925),<br />
ou pelas formas subrogadas dos § 930 (constituto possessório) e §<br />
931 (cessão da pretensão à devolução).<br />
Daí que, o acordo transmissivo é um convênio abstrato, independe<br />
da causa, quer dizer, do acordo obrigacional, que pode até<br />
ser, em princípio, nulo e que daria lugar a que haja enriquecimento<br />
ilícito, caso em que deveria seguir-se o caminho inverso (§ 929).<br />
Nesse contexto a compra e venda com reserva de domínio é<br />
uma venda, que no acordo obrigacional em nada se diferencia do<br />
negócio puro e simples de compra e venda de bens móveis; diferencia-se<br />
sim, na transmissão, que a lei supõe, sujeita à condição<br />
suspensiva. O vendedor permanece como proprietário pleno pendente<br />
conditione, mas por outro lado, cumprida a condição, o direito<br />
de propriedade passa automaticamente ao comprador (§ 158).<br />
Como Serick, 39 entendemos que neste caso, reserva de domínio, há<br />
uma quebra do princípio de abstração, pelo qual a condição faz o<br />
papel de nó que une ambos negócios, o obrigacional com o real.<br />
Segundo Rodríguez-Cano, 40 foi tese de Blomeyer (1939) a<br />
que equipara a reserva de domínio à constituição de um direito de<br />
penhor sobre a coisa vendida na compra-venda a prazos das coisas<br />
móveis. Posição que sofreu muitas críticas; segundo as quais, esta<br />
doutrina,<br />
“presupone, someter la tradición, del vendedor al comprador,<br />
a una condición resolutoria, (puesto que al<br />
acreedor prendario, es decir, al vendedor, se le transmite,<br />
la propriedad de la prenda bajo la condición suspensiva<br />
del impago del precio) y ello es claramente<br />
contradictorio con el § 455 del BGB que construye la<br />
reserva de dominio como un sometimiento a condición<br />
suspensiva de la mencionada tradición”.<br />
39 SERICK, op. cit. p. 46.<br />
40 BERCOVITZ, RODRÍGUEZ-<br />
CANO, Rodrigo. La Cláusula<br />
de Reserva de Dominio. Estudio<br />
sobre su naturaleza jurídica en<br />
la compraventa a plazos de bienes<br />
muebles, Edit. Moneda y<br />
Crédito, Madrid, 1971, p. 15-17.<br />
impulso<br />
153
41 Faz-se referência à nomeação<br />
pelo Conselho Federal em junho<br />
de 1874 de uma “Primeira<br />
Comissão” (Erste Kommision)<br />
de 11 membros, entre altos funcionários<br />
do MInistério da Justiça,<br />
magistrados e de dois<br />
professores universitários, entre<br />
os quais o célebre romanista<br />
WINDSCHEID; este “Primeiro<br />
Projeto” (I. Entwurf, E I), publicado<br />
em 1888, acompanhado de<br />
uma Exposição de Motivos<br />
(Motive) de 5 volumes, recebeu<br />
vivas críticas pelo seu caráter<br />
doutrinário e extremamente técnico,<br />
ininteligível para a grande<br />
massa alemã e muito pesado<br />
para os próprios juristas e, da<br />
nomeação de uma “Segunda<br />
Comissão” (Zweite Kommission)<br />
feita pelo mesmo Conselho em<br />
dezembro de 18<strong>90</strong> formada de<br />
11 membros permanentes e 12<br />
não permanentes, cujo projeto, o<br />
“Segundo Projeto” (Zweiter Entwurf,<br />
E II), com algumas<br />
modificações de importância<br />
variável foi submetido pelo<br />
Conselho Federal ao Reichstag<br />
em 1º de julho de 1896 sob a<br />
denominação de “Terceiro Projeto”<br />
(Dritter Entwurf, E III). Ver<br />
nesse sentido, FROMONT, Michel<br />
e RIEG, Alfred (et alii), op.<br />
cit., Tome I Les Fondements, págs.<br />
70-75.<br />
Sobre a cláusula de reserva de domínio e o tipo de condição<br />
a que estaria submetido o negócio, deve lembrar-se que quando da<br />
redação do Código Civil alemão, as duas comissões 41 designadas<br />
tinham pareceres contraditórios a respeito. Enquanto a primeira<br />
delas assegurava que a venda com reserva de domínio estava submetida<br />
a uma condição resolutiva, a segunda afirmava estar submetida<br />
a condição suspensiva, critério que prevaleceu no § 455 do<br />
BGB. Segundo a doutrina da condição resolutiva, não é verdade<br />
que seja a vontade das partes a vinculação da transmissão da posse<br />
com a tradição, e que a solução dada pelo BGB é duplamente chocante,<br />
porque contradizia múltiplas legislações particulares (o<br />
Código Civil de Saxônia equipara a reserva de domínio ao direito<br />
de penhor ou ao de hipoteca, quando tem por finalidade garantir<br />
um direito de crédito).<br />
A conseqüência lógica, segundo Rodríguez-Cano, de ver na<br />
reserva de domínio um direito de penhor seria, na realidade, seu<br />
efeito principal: que o vendedor poderá dar lugar a uma alienação<br />
da coisa sobre a que constitui a garantia, cobrando seu preço sobre<br />
o preço conseguido, mas em momento algum, poderá apropriar-se<br />
diretamente da coisa.<br />
Pergunta Rodríguez-Cano, por que Blomeyer não se acolhe a<br />
uma solução tão simples e totalmente compaginada com a sua<br />
tese? Uma razão, diz, há de ser as conseqüências práticas que a<br />
doutrina alemã atribui à reserva de domínio. A outra razão, deve<br />
ser o fato de que Blomeyer<br />
“apuntaba que la especialidad que presenta (de acuerdo<br />
com la doctrina alemana), la reserva de dominio como<br />
derecho de prenda en cuanto a sua ejecución, se debía<br />
a que dicha reserva de dominio no solo garantizaba el<br />
pago del precio, sino también la recuperación de la<br />
cosa por el vendedor en cualquier supuesto de ineficacia<br />
originaria o sobrevenida de la compra venta. Y es<br />
que frente al principio de la abstracción, vigente en<br />
Alemania para las transmisiones patrimoniales, la<br />
cláusula de reserva de dominio da lugar a una conexión<br />
de la tradición (causalización del negocio dispositivo)<br />
con el negocio obligacional de compra venta, en<br />
tanto en cuanto su eficacia definitiva depende de la<br />
vigencia y cumplimiento de éste. Es, pues, esta segunda<br />
función de la reserva de dominio la que obliga a man-<br />
154 impulso
tener esa eficacia, aunque se pudiese afirmar también<br />
en Alemania que dicha reserva implica una condición<br />
resolutoria, impuesta al negocio dispositivo”. 42<br />
Concluindo, para Rodríguez-Cano, seria um desastre permitir<br />
que na reserva de domínio se garanta diretamente ao vendedor com<br />
a propriedade da coisa. Seria a via para defraudar a proibição do<br />
pacto comissório, o que reforça a idéia de que a reserva de domínio<br />
submete o negócio dispositivo a uma condição suspensiva<br />
Esta posição, submetimento à condição suspensiva, foi,<br />
segundo Rodríguez-Cano, a mantida por Candil, em 1915, na sua<br />
monografia sobre o “Pactum reservati dominii”, o primeiro a estudar<br />
no ordenamento espanhol esta figura, o que a torna de obrigatória<br />
referência, segundo este autor, sendo que só Oertmann em<br />
1930 publicou um artigo na Revista de Direito Privado.<br />
Candil considera que no Direito romano a transmissão da<br />
propriedade não se produzia, apesar da entrega da coisa, até o<br />
pagamento do preço desta. Comenta ainda que essa norma não é<br />
senão uma acertadíssima interpretação da vontade das partes; daí<br />
que essa suposta vontade pudesse modificar-se por outra contrária<br />
expressada por elas mesmas: quando se oferecia uma garantia real<br />
ou pessoal para o pagamento do preço ou quando o vendedor se<br />
fiava simplesmente do comprador (o que se entendia sempre que<br />
se assinalava um prazo para a paga do preço). De acordo com esta<br />
intepretação do Direito romano, parece lógico admitir, nele, a validade<br />
do pactum reservati dominii, embora se conceda crédito (adiantamento<br />
do pago do preço) ao comprador: posto que com a vontade<br />
das partes se pode evitar a aplicação da regra geral, (precisamente<br />
por que esta é interpretação da vontade normal das mesmas),<br />
lógico é que essa mesma vontade, devidamente expressa,<br />
possa produzir o efeito de voltar a essa regra geral. 43<br />
A diferença entre a propriedade sujeita a garantia fiduciária e<br />
a propriedade reservada está na função que cumpre a garantia nestas<br />
duas formas de propriedade. Aparece com maior nitidez no<br />
concurso de credores.<br />
Na propriedade em garantia, decorrente de um convênio (de<br />
garantia), em que há apenas uma pretensão obrigacional de restituição,<br />
se satisfeito o crédito, o credor tem um direito de preferência<br />
para ser pago sobre uma coisa que é da massa. Na propriedade<br />
reservada, que é um domínio ordinário, o pretendente tem direito<br />
42 BERCOVITZ, RODRÍGUEZ-<br />
CANO, Rodrigo, op. cit. p. 93-<br />
94. V. também, pp. 73-94 em<br />
que trata da Reserva de domínio<br />
e a classe de condição a que se<br />
submete a tradição.<br />
43 BERCOVITZ, RODRÍGUEZ-<br />
CANO, Rodrigo, op. cit. p. 75-<br />
78.<br />
impulso<br />
155
44 De conformidade com os §§<br />
48 e 43 KO (Ordenança Concursal<br />
de 10-02-1977), no primeiro<br />
caso apenas há direito a<br />
exigir preferência sobre a coisa<br />
para satisfazer o crédito; já no<br />
segundo, trata-se de um proprietário<br />
pleno com direito a separação.<br />
Nesse sentido V. SERICK,<br />
op. cit. p. 43 e 120 a 122.<br />
45 SERICK, op. cit. p. 45.<br />
46 SERICK, op. cit. p. 44.<br />
a exigir separação da massa, já que se trata de propriedade separada<br />
e distinta daquela. 44<br />
Diferentemente do entendimento doutrinário e jurisprudencial<br />
alemão, na alienação fiduciária em garantia, o Tribunal pátrio<br />
entendeu que a propriedade é do credor, dizendo que o bem é impenhorável,<br />
distinto da massa. “Ademais, o bem disputado é de exclusiva<br />
propriedade do credor, por se tratar de contrato com cláusula de<br />
alienação fiduciária (D.L. 911/69, art.. 1º), não podendo, destarte,<br />
haver arrecadação em favor da massa no processo de insolvência<br />
(CPC art. 776). É que apenas os bens penhoráveis serão objeto de<br />
arrecadação (art. 775), e entre eles não se inclui o entregue ao devedor<br />
mediante garantia fiduciária”. “Na alienação em garantia não<br />
há dupla propriedade. Há propriedade única e exclusiva do credor<br />
fiduciário, que se extingue com o pagamento da dívida, quando se<br />
transfere automaticamente ao devedor. Este, antes do pagamento, é<br />
mero depositário, não podendo por isso incidir penhora sobre o<br />
bem alienado, para garantir crédito de outros credores” (RT 450/<br />
270, 504/150 e 531/235”. “Tem-se decidido, aliás, que, “em caso<br />
de falência do devedor, o proprietário da coisa alienada, conforme<br />
o D.L. 911/69, pode pleitear a restituição do objeto da alienação<br />
fiduciária (RT 440/118, 453/175, 478/73, 507/185, 534/67, 551/77 e<br />
599/249)”. [V. RT 629/408 (RHC 65.748-6-SP 1ª turma J. 12-02-88,<br />
relator M. O Correia DJU 11-03-88)].<br />
Como lembrado, o vendedor com reserva de domínio sujeito<br />
a condição resolutiva (desde o ponto de vista do vendedor), ou<br />
melhor, cuja obrigação de entrega está sujeita a condição suspensiva<br />
do pagamento total do preço, conserva esta posição até dar-se<br />
situação de condição cumprida. O comprador tem, por sua vez,<br />
certeza de que adquirirá a propriedade assim que terminar de<br />
pagar o preço: ele tem uma expectativa de direito. O Supremo Tribunal<br />
Federal alemão [in BGH de 20-02-84, ZIP, 1984, pp. 420 e<br />
ss. (primer grado de la propiedad)] 45 tem declarado que “o direito<br />
de expectativa é um primeiro grau (Vorstufe) da propriedade”.<br />
Esta expectativa representa, pois, um valor patrimonial, capaz<br />
de ser transmitido em garantia para obtenção de um crédito<br />
(transmissível a um credor do comprador nos termos dos §§ 929,<br />
930 BGB). [BGH de 24-10-1979 (Az VIII, ZR 289/78), BGHZ, 75,<br />
pp. 221, 227], 46 mas deve advertir-se, imediatamente, que esta<br />
transmissão pode resultar ineficaz se a expectativa decorrente de<br />
contrato obrigacional resulta nula, ou melhor, resulta diminuída na<br />
156 impulso
sua eficácia real, por ser dependente de um negócio obrigacional<br />
causal.<br />
Assim, acordo e tradição (ou às vezes só acordo, nos termos<br />
dos §§ 929 e 930 BGB) passam ao segundo adquirente (o credor<br />
em garantia de um direito de expectativa) com esta limitação.<br />
A transmissão de um direito de expectativa está sujeita, como<br />
deve ter sido advertido, a uma condição resolutiva, na medida em<br />
que o devedor, ao pagar o débito, recupera a propriedade automaticamente.<br />
O direito de expectativa, não regulado pelo Código Civil, mas<br />
reconhecido pela doutrina e pela jurispendência, é de natureza<br />
híbrida, já que participa do Direito das Obrigações e do Direito das<br />
Coisas. Precisa, para nascer, de sua causa jurídica: o contrato de<br />
venda com reserva de domínio, de inteiro domínio do Direito obrigacional.<br />
Porém, seus efeitos, se cumprida a condição, são reais.<br />
Com efeito, Serick entende que este “direito de expectativa”<br />
(Antwartschaftrecht) tem uma dupla natureza obrigacional-real, e<br />
afirma que o Supremo Tribunal Federal tem subscrito esta posição,<br />
refirindo-se<br />
à transmissão em garantia do direito de expectativa e à<br />
situação do segundo adquirente a respeito da relação<br />
vendedor-comprador sustenta que: na primeira relação<br />
jurídica, não existe nehum direito de expectativa quando<br />
o contrato obrigacional não existe, ou o resultado é nulo<br />
ou ineficaz; nestas condicções resulta excluída a possibilidade<br />
de uma aquisição a non dominio do direito de<br />
expectativa, pois, não resulta protegida a errônea<br />
crença sobre a existência do crédito sobre o preço de<br />
venda. 47 Igualmente, extingue-se automaticamente o<br />
direito de expectativa do segundo adquirente do mesmo<br />
quando o vendedor, titular da reserva rescinde o contrato<br />
por mora do comprador (BGHZ – Repertório de<br />
Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal alemão –<br />
35, 85, 94) ou quando o contrato é impugnado. O direito<br />
de expectativa, um primeiro grau da propriedade<br />
(BGHZ, 28,16,27) resulta diminuído na sua eficácia<br />
própria do direito real como conseqüência de sua<br />
dependência com o negócio obrigacional causal. 48<br />
A exigência de um ato de entrega, no penhor, regulado pelos<br />
§§ 1204 a 1258 BGB, única forma de garantia para um empréstimo<br />
47 RAISER, op. cit., p. 38;<br />
SERICK, op. cit., p. 271.<br />
48 SERICK, op. cit., p. 45.<br />
impulso<br />
157
com feição de coisa móvel, deriva do princípio da publicidade.<br />
Cumpre a entrega função de exteriozação, concordante com o<br />
§ 929 relativa à transmissão de uma coisa móvel. Para ambas, a<br />
situação de entrega em garantia ou transmissão da propriedade<br />
modificadora da situação jurídica se exterioriza através da entrega.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
BERCOVITZ RODRÍGUEZ-CANO, Rodrigo. La Cláusula de<br />
Reserva de Dominio. Estudio sobre su naturaleza jurídica en la<br />
compra y venta a plazos de bienes muebles, Madrid: Edit.<br />
Moneda y Crédito, 1971.<br />
Código Civil Alemão (BGB) §925. Trad. Souza Diniz. Rio de<br />
Janeiro: Record, 1960.<br />
ENNECCERUS, KIPP, WOLFF. Tratado de Derecho Civil. Barcelona:<br />
Bosch, 1935.<br />
FROMONT, Michel, RIEG, Alfred e outros. Introduction au Droit<br />
Allemand. République Fédérale. Paris: Éditions Cujas, Droit<br />
Privé, 1991.<br />
HEDEMANN, J.W. Tratado de Derecho Civil. Madrid: Revista de<br />
Derecho Privado, 1955.<br />
MAGALHÃES, Vilobaldo Bastos de. Compra e Venda e Sistemas<br />
de Transmissão da Propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 1981.<br />
SERICK, Rolf. Garantias mobiliarias en Derecho Alemán. Trad.<br />
Angel Carrasco Perera. Madrid: Tecnos, 19<strong>90</strong>.<br />
TEIXEIRA, José Guilherme Braga. O Direito Real de Superfície.<br />
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.<br />
Abreviações<br />
BGB Bügerliches Gesetzbuch (Código Civil)<br />
BGBI Bundesgesetzblatt (Diário Oficial)<br />
BGHZ Entscheidungen des Budesgerichtshofs in Zivilsachen<br />
(Acórdãos do Supremo Tribunal Federal em matéria civil)<br />
CPC Código do Processo Civil<br />
D.L. Decreto Lei<br />
GBO Ordenança do Registro Imobiliário<br />
HGB Haldelsgesetzbuch (Código do Comércio)<br />
RHC Recurso de Habeas Corpus<br />
RT Revista dos Tribunais (Jurisprudência)<br />
158 impulso
ZIP<br />
Zeitschrift für Wirtschaftsrecht und Insolvenzpraxis,<br />
1980 ss. (desde 1983: Zeitschrift für Wirtschaftsrecht.<br />
impulso<br />
159
UNIÃO ESTÁVEL:<br />
ANTIGA FORMA DE CASAMENTO DE FATO<br />
ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO<br />
Foi aprovado, na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº<br />
1.888, de 1991, de autoria da Deputada Beth Azize, em que figurou<br />
como Relator o Deputado Edesio Passos, fundamentado parcialmente<br />
no Esboço de Anteprojeto de lei, às páginas 280 a 283, de<br />
meu livro “Do concubinato ao casamento de fato” (2ª ed. Belém:<br />
Cejup, 1987. 306 p.).<br />
Atualmente, esse mesmo Projeto de Lei encaminhou-se ao<br />
Senado Federal, tomando o nº 84, de 1994, tendo como relator o<br />
senador Wilson Martins. Este projeto, mais completo, resgatou<br />
artigos do meu aludido Esboço, que tinham sido retirados do Projeto<br />
originário, da Câmara dos Deputados. Tudo para que seja<br />
regulamentada a União Estável, prevista no parágrafo 3º do artigo<br />
226 da Constituição Federal, como uma das formas de instituição<br />
da família brasileira.<br />
BREVES ASPECTOS HISTÓRICOS<br />
Na antigüidade a família era em geral constituída por meio<br />
de celebrações religiosas ou por meio de simples convivência. No<br />
Direito Romano a mulher passava a integrar a família de seu<br />
marido, pela conventio in manum, sujeitando-se à manus, que era<br />
o poder marital, por uma das seguintes formas de constituição<br />
familiar: a) pela confarreatio, que consistia em uma cerimônia<br />
religiosa, reservada ao patriciado, com excessivas formalidades,<br />
com a oferta a Júpiter de um pão de farinha (panis farreum), que<br />
impulso<br />
159
os nubentes comiam, juntos, realizada perante dez testemunhas e<br />
perante o Sacerdote de Júpiter (flamen Dialis); b) pela coemptio,<br />
casamento privativo dos plebeus, que implicava a venda simbólica<br />
da mulher ao marido, assemelhando-se pela forma à mancipatio; e<br />
c) pelo usus, que era o casamento pela convivência ininterrupta do<br />
homem e da mulher, por um ano, em estado possessório, que automaticamente<br />
fazia nascer o poder marital, a não ser que, em cada<br />
período de um ano, a mulher passasse três noites fora do lar conjugal<br />
(trinoctii usurpatio).<br />
Além dessas formas de casamento, existiu o concubinato em<br />
Roma, regulamentado de modo indireto à época do Imperador<br />
Augusto pelas Lex Iulia e Papia Poppaea de maritandis ordinibus.<br />
Embora tendo reprovado o concubinato, como forma de<br />
constituição de família, a Igreja Católica tolerou-o, quando não se<br />
cuidasse de união comprometedora do casamento ou quando<br />
incestuosa, até sua proibição pelo Concílio de Trento, em 1563.<br />
Ressalte-se em verdade que a existência do casamento nos<br />
moldes de antigamente, sem os formalismos exagerados de hoje,<br />
não possibilitava, praticamente, a formação familiar sob o modo<br />
concubinário.<br />
Realmente, bastava que um homem convivesse com uma<br />
mulher, por algum tempo, como se casados, com ou sem celebração<br />
religiosa, para que se considerassem sob casamento. Isto, porque,<br />
nessa época, o concubinato puro, não adulterino nem incestuoso,<br />
que é utilizado hoje como modo de constituição de família,<br />
era o casamento de fato, provado por escritura pública ou por duas<br />
testemunhas.<br />
Esse o casamento de fato, que, sob a singela forma de convivência<br />
no lar, selava a união dos cônjuges, sob o pálio do Direito<br />
Natural.<br />
O concubinato, portanto, existia, somente, adulterino, como<br />
concorrente e paralelamente ao casamento, de modo excepcional e<br />
desabonador da família.<br />
Todavia, desrespeitando essa lei natural e simples, entendeu<br />
o legislador de criar formalismos ao casamento, criando-o de<br />
modo artificial, na lei, quando em verdade ele é um fato social,<br />
que a legislação deve regular somente no tocante a seus efeitos,<br />
para impedir violações de direitos.<br />
Assim, editou-se no Brasil o Decreto nº 181, de 24 de janeiro<br />
de 18<strong>90</strong>, que secularizou o casamento. A partir dele, o formalismo<br />
160 impulso
tomou conta da legislação brasileira, em matéria de casamento,<br />
reeditando-se o sistema no Código Civil.<br />
Com isso, deixou o Estado brasileiro não só de considerar o<br />
casamento de fato (por mera convivência duradoura dos cônjuges),<br />
bem como o casamento religioso, que, hoje, por si só, sem o posterior<br />
registro civil, é considerado concubinato. Não tem ele existência<br />
autônoma, independente, como antes desse Decreto de 18<strong>90</strong>.<br />
CAUSAS DO CONCUBINATO<br />
A par desse sistema formal, com muitos óbices à separação,<br />
e a par das dificuldades ao registro do casamento religioso, surgiu<br />
paralelamente uma nova tendência de constituição de família, pelo<br />
concubinato, que existe com grande intensidade nos países latinoamericanos.<br />
Ressalte-se, como visto, e mais uma vez que, entre nós, a<br />
falta de registro civil do casamento religioso, base secular de constituição<br />
de família, importa concubinato.<br />
É certo ainda que, com o advento do progresso e a agitação<br />
nos centros urbanos, diminuiu sobremaneira e paulatinamente a<br />
tolerância e a compreensão dos problemas aflitivos dos casais,<br />
levando esse estado de coisas aos desquites (hoje, separações judiciais).<br />
Como crescesse o número de desquites, era preciso que se<br />
possibilitasse a existência do divórcio pela reforma constitucional,<br />
que só ocorreu em meados de 1977.<br />
Embora a sociedade brasileira reprovasse o concubinato,<br />
também como forma de constituição familiar, no começo do<br />
século, o certo é que, com esse número crescente de desquitados,<br />
impossibilitados de se casarem, eles constituíram suas novas famílias<br />
à margem da proteção legal, cumprindo o desígnio da lei natural<br />
de que o homem é animal gregário e necessita dessa convivência<br />
no lar.<br />
Quando surgiu a lei do divórcio, a par de nova filosofia liberal<br />
do povo, já a sociedade acostumara-se à família concubinária,<br />
que preenche atualmente grande espaço de nossa sociedade, com<br />
problemas seríssimos que necessitam de cuidados legislativos.<br />
CONCEITO E ESPÉCIES DE CONCUBINATO<br />
Todavia, neste passo é indispensável que se conceitue o concubinato<br />
por suas espécies, para diferenciá-las devidamente.<br />
Em sentido etimológico, concubinatus, do verbo concumbere ou<br />
impulso<br />
161
concubare (derivado do grego), significava, então, mancebia, abarregamento,<br />
amasiamento.<br />
Apresenta-se esse vocábulo atualmente com dois sentidos:<br />
amplo e estrito. Pelo sentido amplo ou “lato”, significa todo e<br />
qualquer relacionamento sexual livre; pelo sentido estrito, é a<br />
união duradoura, constituindo a sociedade familiar de fato, com<br />
affectio societatis, respeito e lealdade recíprocos.<br />
Como se pode aquilatar, esse sentido amplo compreende<br />
inclusive a concubinagem, com relacionamentos reprováveis, tal,<br />
por exemplo, o adulterino, que leva uma pessoa casada a conviver,<br />
concubinariamente, em concorrência com sua vida conjugal.<br />
Daí a necessidade de fixar-se o conceito de concubinato em<br />
sua significação estrita, com fundamento no artigo 1.363 do<br />
Código Civil, onde se assegura que a sociedade de fato nasce do<br />
somatório recíproco de esforços, pessoais ou materiais, para a<br />
obtenção de fins comuns.<br />
À falta de outro dispositivo legal mais específico, é nesse que<br />
se encontra a base da constituição da família de fato, que se mostra<br />
pela coabitação dos concubinos, como se casados fossem, presos<br />
pela affectio societatis, com a responsabilidade de provisão do lar<br />
pelo concubino, com o auxílio de sua mulher, cuidando ambos de<br />
sua prole. Por isso que nenhuma sociedade pode existir sem a<br />
colaboração e a lealdade dos sócios.<br />
Com esses dados e elementos é possível agora conceituar o<br />
concubinato, abrangendo todas as suas espécies, como a união<br />
estável, duradoura, pública e contínua, de um homem e de uma<br />
mulher, não ligados por vínculo matrimonial ou concubinário, mas<br />
convivendo como se casados, sob o mesmo teto ou não, constituindo,<br />
assim, sua família de fato.<br />
Desses elementos surgem as espécies de concubinato: puro e<br />
impuro. É puro o concubinato, quando se constitui a família de<br />
fato, sem qualquer detrimento da família legítima ou de outra<br />
família de fato (este poderá rotular-se, também, de concubinato<br />
leal). Assim, ocorre, por exemplo, quando coabitam solteiros,<br />
viúvos e separados judicialmente, sob essa forma familiar.<br />
Impuro é o concubinato, se for adulterino, incestuoso ou desleal,<br />
como, respectivamente, o de um homem casado, que mantenha,<br />
paralelamente a seu lar, outro de fato; o de um pai com sua<br />
filha; e o de um concubino formando um outro concubinato.<br />
Ressalte-se, neste passo, que, segundo meu entendimento, se<br />
o concubinato for adulterino ou desleal, mas o concubino faltoso<br />
162 impulso
estiver separado de fato de seu cônjuge ou de seu concubino anterior,<br />
cessará a adulterinidade ou a deslealdade, tornando-se puro<br />
seu concubinato.<br />
Entendo que o concubinato puro ou concubinato simplesmente,<br />
ou união estável, na expressão atual de nossa Constituição,<br />
deve merecer por parte dos Poderes Públicos completa proteção;<br />
diferentemente do que deve suceder com o concubinato impuro ou<br />
concubinagem. Aduz-se que deste último não devem em geral ser<br />
protegidos seus efeitos, a não ser no concubinato de boa fé, como<br />
acontece analogamente com o casamento putativo, e para evitar<br />
locupletamento indevido, quando a concubina, mesmo em adultério,<br />
aumenta o patrimônio do concubino casado.<br />
CONCUBINATO E SOCIEDADE DE FATO<br />
Nossas Doutrina e Jurisprudência têm diferenciado a situação<br />
concubinária da sociedade de fato.<br />
Realmente, a par do concubinato, vislumbrado em conceito<br />
já expendido, a comprovação da existência de sociedade de fato,<br />
patrimonial, entre os concubinos, é exigida pelo Supremo Tribunal<br />
Federal, pelo princípio sumulado sob nº 380, para que se possibilite<br />
a dissolução judicial societária, com a partilha dos bens adquiridos<br />
pelo esforço comum.<br />
Em apoio a essa súmula, têm entendido nossos Tribunais que<br />
o simples concubinato não gera direitos ao patrimônio do companheiro,<br />
sendo indispensável a prova para formação da sociedade<br />
de fato, com a efetiva colaboração econômica ou financeira dos<br />
concubinos, a realização de seu patrimônio comum.<br />
Em que pese esse posicionamento de torrencial jurisprudência,<br />
entendo que, sendo o concubinato puro, união estável,<br />
basta a convivência concubinária, para que seja de admitir-se o<br />
condomínio. Neste caso, deve presumir-se o esforço comum dos<br />
concubinos, pois não se uniram eles sob mera sociedade de fato,<br />
em qualquer empresa em que se vislumbre interesse meramente<br />
econômico, mas com o propósito de constituírem sua família.<br />
Esta última posição encontra respaldo em alguns acórdãos de<br />
nossos Tribunais.<br />
Mas esse apoio à relação concubinária pura, que pretendo,<br />
deve ser retirado quanto ao concubinato impuro ou desleal; nesse<br />
caso deve ser exigida prova da aquisição patrimonial.<br />
Entretanto, a atual súmula 380, citada, não diferencia entre as<br />
espécies de concubinato, exigindo essa participação comum, na<br />
impulso<br />
163
aquisição proprietária, tanto numa quanto noutra espécie de concubinato.<br />
E, exigindo essa participação efetiva, de cunho econômico,<br />
a mesma súmula iguala a sociedade concubinária com outra<br />
qualquer, alheia aos desígnios familiares, negando o cunho de<br />
contribuição espiritual, que existe no lar.<br />
REGULAMENTAÇÃO DO CONCUBINATO<br />
É certo que a família de fato vive em maior clima de liberdade,<br />
do que a família de direito.<br />
Todavia, a excessiva liberdade, em Direito, é muito perigosa,<br />
pois acaba por escravizar o mais fraco. Tudo porque essa liberdade<br />
não pode ser totalmente desapegada de regulamentação, há<br />
que ser condicionada, pois ela termina, onde outra começa.<br />
Assim, o Estado tem interesse em proteger as pessoas, evitando<br />
lesões de direito.<br />
No fundo, o amor que liga os conviventes, ao primeiro<br />
impacto da união, é como a afeição dos sócios em uma empresa<br />
qualquer: pode acabar. Entretanto, quando uma sociedade civil ou<br />
comercial termina, não é o mesmo que o findar de uma sociedade<br />
de família. Esta é mais apegada a regras morais e religiosas, ao<br />
Direito Natural, devendo ter uma proteção maior, no âmbito do<br />
Direito de Família, para que se respeite a célula, onde, no mais das<br />
vezes, com o nascimento de filhos, grava-se a natureza pela descendência,<br />
contrariando qualquer reprovação, que possa existir<br />
contra essa situação fática.<br />
Na sociedade familiar de fato, como na de direito, os interesses<br />
são, preponderantemente, de cunho pessoal e imaterial. Isto,<br />
sem se cogitar do interesse maior do Estado, em preservar sua própria<br />
existência, mantendo no lar, as famílias, em relativo estado de<br />
felicidade e de segurança financeira.<br />
Porém, ao lado dessa liberdade convivencial, impõe-se a responsabilidade,<br />
para que, em nome daquela não cresça demais o<br />
direito de um concubino, a ponto de lesar o do outro.<br />
A família de fato não pode viver sob um clima de liberdade<br />
sem responsabilidade, tanto que, mesmo sem estar regulamentada,<br />
legalmente, em um só todo, já algumas normas existem a seu respeito,<br />
talhadas na lei, na jurisprudência e na doutrina.<br />
Não se pode em sã consciência admitir que o regramento de<br />
conduta, na família de fato, seja inibidora da liberdade, porque, em<br />
Direito, cuida-se da liberdade jurídica, que vive no complexo do<br />
relacionamento humano, com as limitações necessárias.<br />
164 impulso
Realmente, se é licito que duas pessoas vivam como marido<br />
e mulher, sem serem casadas, não há que admitir-se que, em caso<br />
de abandono ou de falecimento, bens fiquem em nome de uma<br />
delas, embora, por justiça, pertençam a ambos. Essa liberdade seria<br />
escravizante a possibilitar lesão, enriquecimento ilícito, o que é<br />
incompatível com o pensamento jurídico. O Estado há que intervir<br />
nessas situações, sendo melhor que o faça antes, regulamentando a<br />
matéria relativa à família de fato. Essa regulamentação, pelo Estatuto<br />
da União Estável, que venho propondo, deve mantê-la em sua<br />
forma natural, preservando-se a liberdade dos conviventes, mas<br />
sob clima de responsabilidade, para que exista segurança, em caso<br />
de lesão. Esta deve ser, sempre, prevista, para ser repelida.<br />
Esse é o meu lema, para a regulamentação da união estável:<br />
Liberdade com Responsabilidade.<br />
CONSTITUIÇÃO DE 1988<br />
A Constituição de 1988, pelo parágrafo 3º de seu artigo 226,<br />
reconheceu o concubinato puro, não adulterino nem incestuoso,<br />
como forma de constituição de família, como instituto, portanto,<br />
de Direito de Família.<br />
Houve, por bem, ainda, o legislador constituinte substituir a<br />
palavra concubinato, pela expressão união estável, para inaugurar<br />
nova era de compreensão aos conviventes, respeitando seus direitos<br />
e sua sociedade de fato, que sempre existiu, antes do Decreto<br />
nº 181, de 18<strong>90</strong>, sob forma de casamento de fato ou presumido.<br />
Por outro lado, entretanto, não estendeu essa mesma<br />
Constituição ao casamento religioso, como entendo correto, os<br />
efeitos do casamento civil, para recuperar sua antiga dignidade,<br />
ante o Estado. Limita-se ela, por seu artigo 226, parágrafo 2º, a<br />
dizer, do mesmo modo que a anterior, que “O casamento religioso<br />
tem efeito civil, nos termos da lei”. Esta, entretanto (Lei nº 1.110,<br />
de 23 de maio de 1950), só admite tal efeito quando pré ou pósexiste<br />
a habilitação para o casamento civil.<br />
Assim, tanto o casamento civil, como o religioso, com suas<br />
formalidades próprias, devem existir, no meu entender, automática<br />
e independentemente.<br />
A união estável precisa ser regulamentada, para que não existam<br />
abusos entre os conviventes, que devem ser livres na convivência,<br />
mas responsáveis.<br />
impulso<br />
165
CASAMENTO DE FATO E UNIÃO ESTÁVEL<br />
Como visto, tanto a união estável como o antigo casamento<br />
de fato nascem espontânea e naturalmente na sociedade, isentos de<br />
formalismos. Em verdade, a união estável de hoje, nada mais é, na<br />
sua aparência, do que o antigo casamento de fato ou presumido.<br />
Entretanto, no casamento de fato os conviventes sentem-se<br />
casados, como esposos, porque são casados, tal como no casamento<br />
da common law, que existe hoje em alguns Estados americanos,<br />
assim como por comportamento do Estado de Tamaulipas,<br />
no México, no da Escócia e no casamento de fato ou clandestino<br />
admitido pelas Ordenações Filipinas, até o advento do aludido<br />
Decreto nº 181, de 18<strong>90</strong>, que instituiu entre nós o casamento civil.<br />
Desse modo, pelo casamento de fato, desde o início da convivência,<br />
sem quaisquer formalidades de celebração, ainda que<br />
religiosa, existe o casamento presumido.<br />
Na união estável a liberdade dos conviventes é maior porque<br />
vivem como se fossem marido e mulher, mas sem o serem em verdade.<br />
Não existe o estado conjugal, mas, meramente, o convivencial<br />
ou concubinário.<br />
Por outro lado, destaque-se que, sob o prisma psicológico,<br />
atualmente, as pessoas casadas só religiosamente, sem que tenha<br />
existido registro de seu casamento, embora se sintam casadas,<br />
vivem sob o regime da união estável.<br />
LEI 8.971, DE 29.12.1994<br />
Com a edição da Lei nº 8.971, de 29/12/1994, regulou-se o<br />
“direito dos companheiros a alimentos e à sucessão”.<br />
O art. 1º, dessa lei, concede à companheira ou ao companheiro,<br />
na união estável (concubinato puro), após a convivência de<br />
cinco anos ou a existência de prole, o direito de alimentos, nos<br />
moldes da Lei nº 5.478, de 25/07/1968, “enquanto não constituir<br />
nova união e desde que prove a necessidade”.<br />
Confesso que, em princípio e pelo meu Esboço de Anteprojeto<br />
de “Estatuto dos Concubinos”, não fui favorável à concessão<br />
de direito a alimentos entre conviventes, a não ser quando contratados,<br />
por escrito.<br />
Acontece que já existia uma tendência jurisprudencial à concessão<br />
desses alimentos, após a edição da Constituição de 1988;<br />
166 impulso
talvez por esta, em seu art. 226, § 3º, recomendar que a lei facilite<br />
a conversão da união estável em casamento.<br />
Desse modo, concedendo direito alimentar aos conviventes,<br />
reconhece a lei sob cogitação os mesmos direitos e deveres existentes<br />
entre cônjuges, constantes da aludida Lei de Alimentos, nº<br />
5.478, de 1968.<br />
Todavia, entre os conviventes esse direito-dever alimentar<br />
surge tão somente após o decurso do prazo de cinco anos ou o nascimento<br />
de filho. O dispositivo sob análise estabelece que o postulante<br />
de alimentos comprove a necessidade destes; não sendo,<br />
portanto, automática a aquisição desse direito alimentar. Estabelece,<br />
ainda, causa de cessação desse pensionamento, com a constituição,<br />
pelo alimentando, de nova união, seja concubinária ou<br />
matrimonial.<br />
Porém, esse art. 1º não menciona a hipótese de mau comportamento<br />
do convivente alimentando, que é prevista, corretamente,<br />
pela Jurisprudência, como causa de perda da pensão alimentícia.<br />
Não é correto que o convivente se entregue a maus costumes,<br />
como a prostituição, por exemplo, e continue a receber alimentos<br />
de seu companheiro.<br />
Também não entendo que seja justo que o convivente culpado<br />
da rescisão do contrato concubinário, seja escrito ou não,<br />
possa pleitear alimentos do inocente.<br />
Por seu turno, o art. 2º da lei sob comentário cuida do direito<br />
sucessório dos conviventes, nos parâmetros mencionados em seus<br />
três incisos. Os dois primeiros reeditam o preceituado no parágrafo<br />
1º do art. 1.611 do Código Civil, que trata de iguais direitos,<br />
mas do cônjuge viúvo, que era casado sob regime de bens diverso<br />
do da comunhão universal (usufruto vidual).<br />
Entendo não conveniente essa reafirmação, para os conviventes,<br />
do aludido direito a usufruto, pois na prática ele estorva o<br />
direito dos herdeiros. Melhor seria tornar o convivente sobrevivo<br />
herdeiro, adquirindo sua parte na herança concorrendo com os aludidos<br />
filhos loco filiae ou loco filii, conforme o caso (como filha<br />
ou filho). Assim, por exemplo, a (o) sobrevivente, concorrendo<br />
com dois filhos, receberia cota da herança correspondente a um<br />
terço, ficando cada qual com o seu, sem o atrapalho do usufruto,<br />
gravando direito dos filhos herdeiros.<br />
impulso<br />
167
MEU ENTENDIMENTO<br />
Entendo que deveria voltar a existir o casamento religioso,<br />
só com celebração religiosa, ao lado do casamento civil, com os<br />
formalismos abrandados, inclusive no tocante à separação e ao<br />
divórcio.<br />
Assim, com maior ou menor liberdade, teríamos o casamento<br />
sob todos os seus aspectos histórico-existenciais mais importantes.<br />
A sociedade moderna está repelindo os excessos de formalismo<br />
com uma tendência ao casamento simples, do passado. É<br />
certo, pois os rigores de forma, hoje existentes no Brasil, datam do<br />
Decreto nº 181, de 18<strong>90</strong>, que instituiu somente há pouco mais de<br />
cem anos entre nós o casamento civil. Antes, tudo era natural em<br />
matéria de casamento, como sempre foi no passado.<br />
Todavia, ainda que existam as aludidas modalidades matrimoniais,<br />
preferindo a sociedade constituir família sob a forma de<br />
união estável, não pode o Estado impedi-lo por qualquer de seus<br />
Poderes. O Poder maior e do povo. O Estado deve regulamentar o<br />
que existe, impedindo lesões de direito.<br />
Mas, mesmo assim, é preciso que exista a possibilidade de<br />
considerar a união estável como uma espécie nova de casamento<br />
de fato, que proponho.<br />
Assim, para mim, já com esse espírito de iure constituendo,<br />
casamento de fato ou união estável e a convivência não adulterina<br />
nem incestuosa, duradoura, pública e contínua, de um homem e<br />
de uma mulher, sem vínculo matrimonial, convivendo como se<br />
casados, sob o mesmo teto ou não, constituem, assim, a família<br />
de fato.<br />
168 impulso
R E S E N H A S<br />
O <strong>DIREITO</strong> À VIDA<br />
Resenhas de<br />
NIÑO, Luis Fernando. Eutanasia, morir con dignidad, consecuencias<br />
jurídico-penales. Buenos Aires: Editorial Universidad, 1994.<br />
MARTÍNEZ, Stella Maris. Manipulación genética y Derecho Penal.<br />
Buenos Aires: Editorial Universidad, 1994.<br />
JOSÉ RENATO SCHMAEDECKE<br />
Eutanasia, morir con dignidad é um trabalho extraordinário<br />
do autor que é Juiz e Professor de Direito Penal da Universidade<br />
de Buenos Aires.<br />
Tudo o que se refere à eutanásia sugere mudanças e pronunciamentos,<br />
que precisam ser comentados. “Dar morte suavemente”<br />
provoca avalanche de problemas doutrinários tão<br />
complexos quanto apaixonantes.<br />
Não adianta ficar de fora, pretendendo chegar ao atalho do<br />
reducionismo ou deslocar problemas morais para esta espécie de<br />
religião do cientificismo neutro.<br />
É oportuno lembrar o caso da atriz polonesa Stansilawa<br />
Uminska. O namorado, Juan Zinowsky, acometido de câncer e<br />
tuberculose, sofrendo dores terríveis conseguiu que ela voltasse a<br />
seu lado. Encerrada em sua rígida angústia, ela sofre uma intensa<br />
comoção ante as dores atrozes que o afligem e, embora recusandose<br />
no início, o sofrimento do seu amado dobra a sua vontade, e ela<br />
acaba cedendo a seus desesperados pedidos: a 15/07/1924,<br />
enquanto ele dorme sob o efeito da morfina, ela descarrega sobre<br />
ele o seu revólver!<br />
impulso<br />
169
Impossível não recordar também o José<br />
Ingenieros da “piedade homicida”: Um<br />
pobre esfarrapado, de 40 anos, tartamudo,<br />
com câncer na garganta, não pode mais<br />
engolir nada, não lhe restando senão morrer<br />
ou de fome, ou do câncer. Vendeu tudo e<br />
ficou na miséria total. No desespero da dor,<br />
pediu a seu melhor amigo, que o estrangulasse.<br />
Agarrou as mãos do amigo e as levou<br />
ao pescoço... Mais tarde este amigo diria ao<br />
comissário: “O infeliz ficou tranqüilo, com<br />
se eu lhe tivesse feito o maior benefício!...”<br />
Outro caso famoso foi o de um jovem<br />
inglês, Richard Corbett, que matou a mãe<br />
que sofria de dores atrozes de um câncer,<br />
tendo declarado no tribunal: “Fiz uso de um<br />
direito humanitário: não teria sido necessário<br />
se o Estado tivesse leis que permitam aos<br />
médicos acabar com o sofrimento de um<br />
paciente incurável”. Foi absolvido sob<br />
aplausos do público!...<br />
Cadetes chilenos, viajando em trem<br />
para Buenos Aires, sofreram um acidente<br />
fatal, no qual um deles teve as duas pernas<br />
decepadas num choque frontal. Sem recursos<br />
médicos por perto, com dores insuportáveis,<br />
ele estava morrendo lentamente.<br />
Movido pela comiseração, um soldado descarregou<br />
o fuzil e acabou com o sofrimento<br />
do coleta.<br />
Seguiam-se exemplos diários semelhantes,<br />
e a lei silenciando, minorando sanções,<br />
ou sugerindo formas inovadoras e<br />
compreensivas...<br />
É conhecido o caso da Karen Quinlan,<br />
que, levando vida vegetativa, levou os pais a<br />
pedirem à Suprema Corte de New Jersey<br />
para que fossem desligados os aparelhos, no<br />
que foram atendidos, não sem antes ouvirem<br />
o comitê de ética médica, e os médicos, é<br />
claro.<br />
Pelo contrário, quando Nancy Cruzan,<br />
de 32 anos, teve um acidente de carro, e<br />
ficou três semanas em coma, sem funções do<br />
coração e dos pulmões, os pais pediram à<br />
Corte de Missouri para que fossem desligados<br />
os tubos que a mantinham em vida. A<br />
corte negou, dizendo que os pais não tinham<br />
o direito de fazer esse pedido. Mas assim<br />
mesmo a corte admitiu que a Constituição<br />
dos EE.UU. não proíbe pedir evidência do<br />
desejo de um doente incapacitado a manifestar-se.<br />
E em minoria, o juiz Brennan afirmou:<br />
“A paciente tem direito fundamental de<br />
ver-se livre dos tubos... e tem direito de<br />
escolher e morrer com dignidade”.<br />
O problema é complexo e polêmico,<br />
devido a fatores religiosos, éticos, médicos,<br />
biogenéticos, e muitos outros.<br />
O livro tenta apresentar sérias respostas<br />
a grandes perguntas sobre o direito de morrer<br />
com dignidade. O autor optou por reduzir<br />
a análise da eutanásia à ação médica que,<br />
ademais, está em consonância com as escassas<br />
legislações contemporâneas que abordam<br />
a questão.<br />
A matéria ultrapassa o mundo jurídico<br />
e social, e alcança a problemática dos médicos,<br />
que costumam adotar uma atitude inalterável,<br />
levados pelo princípio de que,<br />
“enquanto há vida, há esperança”, mas que,<br />
no fundo, reconhecem que é preciso acabar<br />
com sofrimentos dilacerantes que torturam o<br />
paciente, os familiares e os amigos.<br />
No capítulo I Niño aborda algumas<br />
concessões religiosas a respeito de certas<br />
ações homicidas e a ocultação da morte em<br />
sistemas sociais contemporâneos conformativos<br />
do marco em que cabe situar historicamente<br />
o tema.<br />
No capítulo II ele se aprofunda em<br />
redefinir os limites da vida segundo as ciên-<br />
170 impulso
cias especializadas e reordenar as diversas<br />
hipóteses da eutanásia.<br />
O II capítulo se baseia nos assinalamentos<br />
jurídicos, sociológicos e culturais<br />
que emergem do capítulo anterior. Niño procura<br />
nova visão e síntese do problema, agrupando<br />
em dois tipos os casos mais<br />
necessitados de tratamento legal:<br />
1) a retirada dos meios artificiais de<br />
reanimação desproporcionais ao caso;<br />
2) a eutanásia passiva: abstenção ou<br />
retirada de medidas e meios terapêuticos que<br />
levam de modo paralelo e conexo à abreviação<br />
do curso vital.<br />
Há fortes referências a objeções de<br />
consciência, além de uma atualização<br />
panorâmica da eutanásia no Direito Comparado,<br />
e uma proposta de reforma legal que<br />
significam uma resposta aos problemas tratados<br />
neste livro.<br />
Quanto ao livro Manipulación genética<br />
y Derecho Penal, hoje existe no mundo um<br />
temor onipresente quando se percebe que,<br />
mediante a ciência, o homem pode chegar a<br />
auto-reproduzir-se. Esse temor resulta do<br />
fato extremo a que se pode chegar, que é a<br />
manipulação dos genes.<br />
Será que o homem pretende alterar a<br />
essência e a transcendência da vida? Ou simplesmente<br />
se trata de dar vida e felicidade a<br />
quem não pode obtê-la, porque a natureza<br />
decretou a deserção da semente procriativa?<br />
A engenharia genética realiza grandes<br />
avanços e novos campos vêm surgindo a<br />
cada dia. Nesta obra, Stella Maris Martínez,<br />
Professora de Direito Penal na Universidade<br />
de Buenos Aires, traz noções básicas que<br />
devem servir para nos orientar nesta problemática,<br />
apresentando postulados éticos<br />
impressionantes que devem reger a matéria.<br />
O grande mérito da autora é de abordar<br />
um tema inédito, vasto e complexo, onde<br />
estão em jogo dados e elementos de suma<br />
importância para o futuro da humanidade<br />
toda. A Bioética é a ciência auxiliar que nos<br />
ajudará a encontrar rumos seguros nesta difícil<br />
caminhada.<br />
Chama-se a atenção para uma oportuna,<br />
mas feliz constante nessa investigação.<br />
trata-se da efetiva necessidade de normas<br />
claras e diretivas, assim como o âmbito em<br />
que devem reger, descartando expressamente<br />
a auto-regulação como exclusiva pauta de<br />
controle.<br />
Martínez analisa a função da Ética a<br />
precisar o seu conteúdo essencial: a dicotomia<br />
homem-natureza, e o respeito que este<br />
homem deve, tanto a sua própria substância<br />
humana como a seu contorno, à luz da dignidade<br />
essencial que o distingue do resto das<br />
espécies.<br />
Ao descrever as descobertas da Bioética,<br />
a autora se pronuncia pela necessidade<br />
de um “minimum” de ética obrigatória,<br />
segundo Jellinek, para fundamentar o papel<br />
da obrigatoriedade do direito no âmbito da<br />
investigação e manipulação genética.<br />
No Capítulo III se define o fruto da<br />
concepção em suas diferentes etapas e se<br />
determina o seu “status” jurídico. Aí está a<br />
mola mestra do pensamento de Martínez,<br />
que caracteriza toda a sua tese: embora não<br />
considere o pré-embrião como vida humana,<br />
e sim, um ser de valor insubstituível para a<br />
humanidade, e por isso, necessitado de<br />
proteção jurídico-penal. Ela afirma que a<br />
única e grande dona deste bem é a própria<br />
humanidade.<br />
Assim se pode responder a um dos<br />
mais agudos interrogativos dos cientistas do<br />
futuro: “É legítimo fazer experimentos com<br />
impulso<br />
171
embriões humanos?” A resposta a que chega<br />
é afirmativa. Mas só depois de muito analisar<br />
a totalidade dos valiosos bens em jogo.<br />
Nesta ótica, aborda a árdua questão das<br />
técnicas de engenharia genética, para saber<br />
como e quando podem lesar ou pôr em<br />
perigo o embrião, já caracterizado como um<br />
bem jurídico, ou a vida humana que ele precede,<br />
atingindo as diferentes etapas do<br />
desenvolvimento uterino do nascituro. Elogia<br />
o papel do experimento definindo a sua<br />
necessidade, mas também sem esquecer suas<br />
eventuais limitações.<br />
Quando se refere à parte jurídica,<br />
cita exemplos de leis e documentos de<br />
outros países, já que a investigação genética<br />
não pode prescindir a contribuição do<br />
que pode vir de além das fronteiras nacionais.<br />
É necessário levar em consideração<br />
substanciais decisões internacionais sobre<br />
a matéria.<br />
São estudados cuidadosamente os<br />
motivos de manipulação sob a ótica da<br />
incidência sobre o patrimônio genético da<br />
Humanidade, insistindo na diversidade de<br />
técnicas e em suas eventuais conseqüências<br />
à luz de concepções básicas da política criminal.<br />
Vem destacada a importância da<br />
intangibilidade do patrimônio hereditário, e<br />
do grave risco do surgimento de teorias<br />
extremas de genética criminal.<br />
Merecem especial atenção a necessidade<br />
e as funções dos bancos genéticos, as<br />
técnicas de identificação pessoal por meio do<br />
ADN, do diagnóstico pré-natal, e os recentes<br />
avanços na investigação histórico-genética.<br />
Assunto sério é o que se refere à avaliação<br />
das possibilidades eugenésicas mediante<br />
novas tecnologias, que levam a<br />
Humanidade outra vez a um ponto temível: a<br />
tentação de modificar o gênero humano!<br />
Extremos como a “Rocca Tarpea” e a abominável<br />
loucura hitleriana.<br />
Modificar ou tentar modificar a composição<br />
do gênero humano implica a destruição<br />
do que se conceitua como seres defeituosos.<br />
E agora os riscos seriam muito maiores, pois<br />
é cientificamente possível, como se acredita,<br />
erradicar definitivamente o gene do patrimônio<br />
da espécie. Seria algo de terrível o resultado<br />
de tal loucura humana e social.<br />
O trabalho culmina com um projeto de<br />
legislação que postula a penalização de<br />
quem faz experimentos com pré-embriões<br />
ou os gera em laboratório com um fim que<br />
não seja o de conseguir o seu desenvolvimento<br />
no útero da gestante. Fica incorporada<br />
uma cláusula de justificativa para quem realize<br />
tais atividades com uma autorização prévia<br />
para uma investigação que beneficie de<br />
modo direto a sobrevivência da Humanidade<br />
ou uma eficiente melhora da chamada qualidade<br />
de vida.<br />
A obra nos parece excelente e de<br />
grande ajuda para os profissionais do Direito<br />
e Legislação.<br />
172 impulso
RESUMOS<br />
Abstracts<br />
REFORMA CURRICULAR:<br />
PERFUMARIAS FUNDAMENTAIS<br />
CURRICULAR REFORM:<br />
FUNDAMENTAL PERFUMERIES<br />
Aloysio Ferraz Pereira<br />
Ex-professor associado da Faculdade de Direito da USP<br />
e ex-professor do Programa de Pós-Graduação<br />
em Direito da UNIMEP<br />
RESUMO: Não há um único perfil de jurista ou do jurista,<br />
como frequentemente se supõe ou se propõe. Os Romanos<br />
tinham perfeita noção de que havia, entre eles, pelo menos, dois<br />
perfis ou duas faces diferentes de jurista: o perfil do advogado e<br />
o do jurisprudente. Uma Faculdade de Direito deve ter em mira<br />
uma série aberta de paradigmas ou perfis: juiz e legislador,<br />
assessores e auxiliares de um e de outro, delegados de polícia,<br />
com seus escrivães e funcionários, advogados das mais variadas<br />
especialidades e funções. Apegar-se ou impor um só perfil de<br />
jurista na universidade seria dirigismo totalitário, como ao<br />
tempo de Stalin e de Hitler. O texto apresenta um caminho para<br />
libertar o nosso Direito do empirismo, da improvisação, do imobilismo,<br />
da ignorância e dos interesses criados em benefício das<br />
elites retrógradas, com sua tradicional clientela de bacharéis.<br />
Palavras-chaves: ENSINO DE <strong>DIREITO</strong> – FACULDADES DE<br />
<strong>DIREITO</strong><br />
ABSTRACT: There is not a single profile of a Jurist or of the<br />
Jurist, as is frequently supposed or proposed. The Romans had<br />
a perfect notion that there were, amongst them, at least two<br />
profiles or two different faces of the Jurist: the profile of the<br />
Advocate and of the Jurisprudent. A Faculty of Law should<br />
have in view an open series of paradigms or profiles: judge and<br />
legislator, assessors and auxiliaries of one and of the other,<br />
police delegates, with their scribes and workers, advocates of<br />
the most varied specialities and functions. Attach oneself to, or<br />
impulso<br />
173
impose only one profile of the jurist at the university would be<br />
totalitarian control, as in the time of Stalin and Hitler. The text<br />
presents a way of liberating our Law from empirism, improvisation,<br />
immobilism, ignorance and from the interests created<br />
to benefit the retrograde elite, with their traditional clientele of<br />
Bachelors.<br />
Keywords: FACULTIS OF LAW – TEACHING OF LAW<br />
LEITURAS E DEBATES EM<br />
TORNO DA INTERPRETAÇÃO NO <strong>DIREITO</strong><br />
CONSTITUCIONAL <strong>NOS</strong> A<strong>NOS</strong> <strong>90</strong><br />
Readings and Debates Concerning Interpretation In<br />
Constutional Law During The 19<strong>90</strong>s.<br />
José Ribas Vieira<br />
Professor titular da Faculdade de Direito da UUFF –<br />
Doutor em Direito<br />
RESUMO: Uma reflexão a respeito da temática de interpretação<br />
constitucional. Na sociedade brasileira, é fácil constatar a<br />
presença, em todos os níveis de nossa vida social, da<br />
“jurisdização do discurso político”. As atuais posições assumidas<br />
pelo Direito e o papel do juiz podem acarretar uma perigosa<br />
substituição do jurídico pela ordem democrática.<br />
Segundo o autor, a saída é, por conseqüência, a reflexão de<br />
mecanismos de equilíbrio para a função de prestação jurisdicional,<br />
o que assegura a manutenção não só das garantias constitucionais<br />
de fortalecimento da cidadania, como, também, e<br />
principalmente, do jogo democrático.<br />
Palavras-chaves: CIDADANIA – CONSTITUIÇÃO BRASI-<br />
LEIRA – ESTADO DE <strong>DIREITO</strong> – <strong>DIREITO</strong> CONSTITU-<br />
CIONAL<br />
ABSTRACT: A reflection with respect to the theme of constitutional<br />
interpretation. In Brazilian society, it is easy to find the<br />
presence, at all levels of our social life, of jurisdiction of the<br />
political discourse. The current positions assumed by the Law<br />
and the role of judge may carry a dangerous substitution of the<br />
legal by the democratic order. According to the author, the way<br />
out, consequently, is a re-election of the mechanisms of equilibrium<br />
for the function of jurisdictional service, which would<br />
174 impulso
assure the maintenance not only of constitutional warranties<br />
for strengthening citizenship, but also, and mainly, the democratic<br />
game.<br />
Keywords: BRAZILIAN LAW – CITZENSHIP – CONSTITU-<br />
TIONAL LAW – DEMOCRATIC STATE OF LAW<br />
DO PROCESSO LEGISLATIVO:<br />
BREVES CONSIDERAÇÕES<br />
From The Legislative Process: Brief Considerations<br />
João Miguel da Luz Rivero<br />
Professor do curso de Direito da UNIMEP –<br />
mestrando em Direito<br />
RESUMO: O autor nos mostra um estudo sobre a função legislativa.<br />
O processo legislativo, por suas peculiaridades, deve<br />
garantir em todo o seu procedimento um mínimo de legitimidade,<br />
para eliminar as distorções existentes, como, por exemplo,<br />
o exercício da função legislativa pelo Executivo que, quando<br />
permitido através do art. 62, transforma a Constituição do país,<br />
que deve ser um instrumento estável e garantidor dos direitos e<br />
garantias e limitador do poder, em um documento frágil e praticamente<br />
comparado a um programa de governo, que pode ser<br />
alterado a cada mandato presidencial e a qualquer tempo,<br />
gerando, dessa forma, instabilidade e insegurança aos seus destinatários.<br />
Palavras-chaves: CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA – <strong>DIREITO</strong><br />
CONSTICIONAL – DEMOCRATIC STATE OF LAW –<br />
PODER LEGISLATIVO<br />
ABSTRACT: The author shows us a study about the legislative<br />
function. The legislative process, for all it peculiarities, in its<br />
entire procedure should warrant a minimum of legitimacy to<br />
eliminate the existing distortions, such as for example, the exercise<br />
of the legislative function by the Executive, which, when<br />
permitted by means of Art. 62, transforms the Constitution of<br />
the country, which should be a stable instrument and warrant of<br />
rights and warranties and limiter of power, into a fragile document<br />
and practically compared to a government program,<br />
which may be altered during each presidential mandate at any<br />
impulso<br />
175
time, thus generating instability and insecurity to those for<br />
whom it is destined.<br />
Keywords: BRAZILIAN LAW – CONSTITUTIONAL LAW<br />
– DEMOCRATIC STATE OF LAW – LEGISLATIVE<br />
FUNCTION<br />
FILOSOFIA DO <strong>DIREITO</strong> EM HABERMAS<br />
Philosophy of Law In Habermas<br />
João Bosco da Encarnação<br />
Promotor de Justiça do Estado de São Paulo<br />
RESUMO: O presente estudo tem por escopo entender o conceito<br />
de Direito em Jürgen Habermas, o que contribui para a<br />
identificação da crise do Direito. Partindo da “curiosidade”<br />
científica acerca do que poderia ser o Direito na época “pósmoderna”,<br />
o autor examina a visão desse filósofo<br />
contemporâneo, para ver nela, quem sabe, uma identidade. Sua<br />
trajetória parte de uma orientação inicialmente situada na chamada<br />
“teoria crítica” da Escola de Frankfurt, mas logo envereda<br />
por caminhos próprios, que são, na verdade, um feixe eclético<br />
de doutrinas de várias linhas. Trazem consigo, no entanto, algo<br />
em comum: certo positivismo. Há que entender isso, sob pena<br />
de não termos um parâmetro de verdade e justiça e acabarmos<br />
fomentando uma ideologia!<br />
Palavras-chaves: FILOSOFIA DO <strong>DIREITO</strong> – HABERMAS,<br />
JÜRGEN<br />
ABSTRACT: The scope of the present study is to understand the<br />
concept of Law in Jürgen Habermas, which contributes to the<br />
identification of the Crisis of Law. Starting from the scientific<br />
curiosity around what could be Law in the post modern era, the<br />
author examines the vision of this contemporary philospher, to<br />
find in it, perhaps, an identity. Its trajectory starts with guidance<br />
initially situated in the so called critical theory of the Frankfurt<br />
School, but soon goes its own ways, which are, in truth, an eclectic<br />
bundle of doctrines of various lines. They bring with them,<br />
however, something in common: a certain positivism. This<br />
should be understood, on pain of not having a parameter of truth<br />
and justice, and we end up fomenting an ideology!<br />
Keywords: HABERMAS, JÜRGEN – PHILOSOPHY OF LAW<br />
176 impulso
A TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS E<br />
ALGUMAS DIFICULDADES: UMA LEITURA<br />
John Rawlss Theory of Justice and<br />
Some Difficulties: A Reading<br />
Jorge Atílio Silva Lulianelli<br />
Professor das Faculdades Integradas Bennett<br />
e do Seminário Diocesano<br />
RESUMO: A abordagem que Rawls faz da justiça é apresentada<br />
não como uma teoria moral, mas como uma teoria da justiça<br />
stricto sensu. Ele pretende discutir quais princípios devem<br />
orientar a ação justa dos indivíduos e da sociedade, mas não pretende<br />
abordar o conjunto de normas que deve reger a vida dos<br />
indivíduos. Para Rawls, o mundo social hipotético é apenas um<br />
pressuposto suficiente para estabelecer o esforço em vista de<br />
uma concepção de justiça como eqüidade. Em síntese, a comunidade<br />
ética, como suposta por Rawls, não é suficiente e necessária<br />
para o estabelecimento da justiça como modus vivendi,<br />
ainda que pudesse ser assumido como modus operandi, ao<br />
menos por quem assume o normo-utilitarismo como orientador<br />
ético.<br />
Palavras-chaves: FILOSOFIA DO <strong>DIREITO</strong> – RAWLS, JOHN<br />
– TEORIA DA JUSTIÇA<br />
ABSTRACT: The approach Rawls makes to justice is presented<br />
not as a moral theory, but as a theory of justice stricto sensu. He<br />
intends to discuss which principles should guide just action of<br />
individuals and of society, but does not intends to approach the<br />
set of norms which should rule the life of individuals. For<br />
Rawls, the hypothetical social world is only a pre-supposition<br />
sufficient for establishing the effort in view of a concept of justice<br />
as equity. In synthesis, the ethical community, as supposed<br />
by Rawls, is not sufficient and necessary for the establishment<br />
of justice as a modus vivendi, even though it could be assumed<br />
as modus operandi, at least by whom the ultilitarism-norm is<br />
assumed as ethical guide.<br />
Keywords: PHILOSOPHY OF LAW – RAWLS, JOHN –<br />
THEORY OF JUSTICE<br />
impulso<br />
177
O MÉTODO DO <strong>DIREITO</strong>:<br />
QUESTÕES DE LÓGICA JURÍDICA<br />
The Method of Law: Questions of Judicial Logic<br />
ERCÍLIO A. DENNY<br />
Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito e<br />
do Curso de Direito da UNIMEP – doutor em Direito<br />
RESUMO: Existem duas formas de se conceituar o Direito: a<br />
primeira compreende-o como um “conjunto de normas”. A<br />
segunda maneira é o de percebê-lo como “o justo” (tó díkaion).<br />
Hoje, a humanidade está longe do regime de produção do<br />
Direito que existia na Roma clássica. Longe porque a educação<br />
hodierna condicionou o homem a crer que o Direito é o produto<br />
do espírito do legislador. Há uma crença que Direito é o Direito<br />
positivo estabelecido nos códigos e demais dispositivos legais.<br />
Existe na produção do Direito uma parte que é viva e imprevisível.<br />
É ilusório querer construir uma Ciência do Direito totalmente<br />
axiomática. Um sistema coerente de regras, dentro de<br />
uma ordem jurídica, pode ser admirado como obra-prima de<br />
lógica formal, entretanto, ele está fora da realidade do Direito. O<br />
Direito, que deseja ser uma ciência, não pode jamais atender ao<br />
estatuto de uma ciência estável e rigorosa.<br />
Palavras-chaves: – <strong>DIREITO</strong> COMO CIÊNCIA – FILOSOFIA<br />
DO <strong>DIREITO</strong> – LóGICA JURÍDICA<br />
ABSTRACT: There are two forms in which the Law may be<br />
conceived: the first understands it as a set of norms. The second<br />
is that of perceiving it as the just (tó díkaion). Today, humanity<br />
is far from the regime of the production of Law which existed in<br />
classical Rome. It is far from it because Hodiern education conditioned<br />
man to believe that the Law is a product of the legislator<br />
mind. There is a belief that Law is the positive Law established<br />
in the codes and other legal devices. There is a part in the<br />
production of the Law which is alive and unpredictable. It is<br />
illusory to wish to construct a totally axiomatic Science of Law.<br />
A coherent system of rules within a judicial order may be admired<br />
as a masterpiece of formal logic, however, it is outside the<br />
reality of the Law. Law, which desires to be a science, could<br />
never meet the statute of a stable and rigorous science.<br />
Keywords: – LAW AS SCIENCE – JUDICIAL LOGIC – PHI-<br />
LOSOPHY OF LAW<br />
178 impulso
SEGURANÇA PÚBLICA E<br />
GARANTIAS INDIVIDUAIS SOB A<br />
AMEAÇA DA CRIMINALIDADE COMUM<br />
E ORGANIZADA, NA VISÃO DE<br />
WINFRIED HASSEMER<br />
Public Safety and Individual Warranties:<br />
the Threat of Common Criminality and Organized<br />
Criminality, the View of Winfried Hassemer<br />
Samuel Zem<br />
Advogado – OAB – Secção de São Paulo –<br />
mestre em Direito<br />
RESUMO: As questões levantadas por Hassemer estão na<br />
ordem do dia em todos os países em que o Estado Democrático<br />
de Direito impera, e que adotam em suas constituições os princípios<br />
da dignidade humana, da liberdade, do respeito à privacidade,<br />
à intimidade, à segurança, à livre disposição dos bens, etc.<br />
Exatamente por isto é que o debate se inflama. A questão é<br />
como conciliar estes direitos conquistados, com o combate à criminalidade,<br />
se o crime se acoberta atrás desses. Para o autor, a<br />
atual política neo-liberal, que predomina, começa a preocupar,<br />
pois não tem dado resultados satisfatórios porque não privilegia<br />
um adequado modo para enfrentar a criminalidade. Falta-lhe criatividade<br />
nos meios de intervenção.<br />
Palavras-chaves: ESTADO DE <strong>DIREITO</strong> – HASSEMER,<br />
WINFRIED – SEGURANÇA PÚBLICA<br />
ABSTRACT: The questions raised by Hassemer are in todays<br />
agenda in all the countries in which the Democratic State of<br />
Law reigns, and which adopt in their constitutions the principles<br />
of human dignity, liberty, respect for privacy, for intimacy and<br />
the safety and free disposal of assets, etc. Exactly for this reason<br />
the debate becomes inflamed. The question is how to conciliate<br />
these conquered rights with the combat of criminality, if crime<br />
takes shelter behind this. For the author, the current neo-liberal<br />
policy, which predominates, begins to cause concern for it has<br />
not given satisfactory results because it does not privelige an<br />
adequate manner to face criminality, it lacks creativity in the<br />
means of intervention.<br />
Keywords: DEMOCRATIC STATE OF LAW – HASSEMER,<br />
WINFRIED – PUBLIC SAFETY<br />
impulso<br />
179
BASES DO <strong>DIREITO</strong> PENAL NO ESTADO<br />
DEMOCRÁTICO DE <strong>DIREITO</strong><br />
Bases of Penal Law In the Democratic State of Law<br />
A. L. CHAVES CAMARGO<br />
Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito e<br />
do Curso de Direito da UNIMEP – Doutor em Direito<br />
RESUMO: Os direitos fundamentais, em geral, são objeto de<br />
sérios conflitos no âmbito do Direito Penal, diante do significado<br />
ambivalente, que ainda pauta nossa sistemática. Busca-se<br />
um meio para prevenir a delinqüência, ao mesmo tempo em que<br />
a intervenção indiscriminada do Estado colide com os princípios<br />
básicos do Direito Penal, no Estado Democrático de Direito.<br />
Neste estudo, o autor nos mostra que a pretensão de avanço das<br />
idéias penais esbarra num reflexo, ainda patente, de um longo<br />
período autoritário, onde a intervenção do Estado não tinha limites,<br />
justificada pelo aumento da criminalidade e paralela repressão<br />
punitiva, com penas exacerbadas e argumentos de caráter<br />
moral, já afastados do Direito Penal moderno.<br />
Palavras-chaves: ESTADO DE <strong>DIREITO</strong> – <strong>DIREITO</strong> PENAL<br />
ABSTRACT: Fundamental rights, in general, are the object of<br />
serious conflicts in the ambit of Penal Law, in the face of significant<br />
ambivalence, which still features in our system. Means are<br />
sought for preventing delinquency, at the same time in which<br />
indiscriminate State intervention collides with the basic principles<br />
of Penal Law, in the Democratic State of Law. In this study<br />
the author shows us that the pretension of the advance of penal<br />
ideas clashes in a reflection, still patent, of a long authoritarian<br />
period, where the intervention of the State did not have limits,<br />
justified by the increase in criminality and parallel punitive<br />
repression, with exacerbated punishment and arguments of<br />
moral character, already removed from modern Penal Law.<br />
Keywords: DEMOCRATIC STATE OF LAW – PENAL LAW<br />
A RELEVÂNCIA CAUSAL DA OMISSÃO<br />
The Causal Relevance of Omission<br />
Eduardo Silveira Melo Rodrigues<br />
Ex-Professor do Curso de Direito da UNIMEP e<br />
Promotor de Justiça do Estado de São Paulo<br />
RESUMO: A natureza dos crimes comissivos por omissão, no<br />
que tange à relevância causal, é precipuamente normativa,<br />
180 impulso
decorrendo do caráter de antijuridicidade, da abstenção de atuar,<br />
a sua punibilidade. É necessário, como o faz o Código atual, que<br />
se determine a sua relevância, ocorrível quando houver o poder<br />
e o dever jurídico de evitar o resultado, sendo que o dever é de<br />
três espécies básicas: o legal, o contratual ou de “garante” e o<br />
decorrente da criação da situação de risco. O elemento subjetivo<br />
dos crimes omissivos impróprios é o mesmo dos comissivos: o<br />
dolo e a culpa. Neste texto, o autor chama a atenção para o fato<br />
de que só o dever jurídico não basta para a responsabilidade<br />
penal por omissão: é preciso que o agente tenha o domínio<br />
fático de impedir o resultado.<br />
Palavras-chaves: <strong>DIREITO</strong> PENAL – OMISSÃO<br />
ABSTRACT: The nature of crimes committed by omission,<br />
with regard to causal relevance, is mainly normative, arising<br />
from the anti-jurisdictive character of the abstention from acting,<br />
to its punishability. It is necessary, as the current Code does, to<br />
determine its relevance, which occurs where there is the power<br />
and the judicial duty to avoid the result, the duty being of three<br />
basic kinds: the legal, the contractual or guarantee and that arising<br />
from the creation of a risk situation. The subjective element<br />
of improper omissive crimes is the same as those of comissive<br />
ones: the fraud and the blame. In this text, the authors draws<br />
attention to the fact that only judicial duty is not sufficient for<br />
the penal responsibility by omission: it is neceesary for the agent<br />
to have effective dominion to impede the result.<br />
Keywords: OMISSION – PENAL LAW<br />
LIMITAÇÕES AO PODER PUNITIVO<br />
DO ESTADO<br />
Limitations to the Punitive Power of the State<br />
Edson José Meneghetti<br />
Professor do Curso de Direito da UNIMEP –<br />
Mestrando em Direito<br />
RESUMO: O homem, em sua história social, sempre demonstrou<br />
preocupação no sentido de conseguir um equilíbrio em suas<br />
interrelações, que lhe propiciasse uma paz social duradoura,<br />
adequada e justa. Como se verifica, existe uma preocupação<br />
constante em se buscar formas adequadas e convenientes para o<br />
convívio social. Para tanto, é necessário se defender a dignidade<br />
impulso<br />
181
humana até contra o Estado e aqueles que o representam na função<br />
de exercer seu poder de punir. Por isso, existe uma necessidade<br />
indeclinável, do Estado Democrático de Direito, de instituir<br />
limitações ao Poder de punir do Estado, no sentido de se<br />
preservar o respeito à dignidade da pessoa humana.<br />
Palavras-chaves: ESTADO DE <strong>DIREITO</strong> – LEI PENAL<br />
ABSTRACT: Man, in his social history has always demonstrated<br />
concern in the sense of achieving equilibrium in his interrelations<br />
which would propitiate to him lasting, adequate and just<br />
social peace. As can be seen, there is a constant concern for<br />
seeking adequate and convenient forms of social intercourse.<br />
Thus it is necessary to defend human dignity even against the<br />
State and those who represent it in the function of exercising its<br />
power to punish. For this, there is an indeclinable necessity for<br />
the Democratic State of Law to institute limitations to the States<br />
Power to punish, in the sense of preserving respect for the dignity<br />
of the human person.<br />
Keywords: DEMOCRATIC STATE OF LAW – PENAL LAW<br />
SISTEMAS DE TRANSMISSÃO<br />
DO <strong>DIREITO</strong> DE PROPRIEDADE:<br />
UM ESTUDO NO <strong>DIREITO</strong> ALEMÃO<br />
Systems of Transferring the Right to Property:<br />
A Study In German Law<br />
Victor Hugo Tejerina Velázquez<br />
Professor do Curso de Direito da UNIMEP –<br />
Mestre e doutorando em Direito<br />
RESUMO: O texto se propõe a avaliar o sistema de transferência<br />
de domínio no Direito alemão a partir do Registro imobiliário,<br />
considerado o melhor elaborado e firme entre os registros do<br />
mundo. De acordo com o autor, a transmissão de um direito de<br />
expectativa está sujeita a uma condição resolutiva, na medida<br />
em que o devedor, ao pagar o débito, recupera a propriedade<br />
automaticamente.<br />
Palavras-chaves: <strong>DIREITO</strong> ALEMÃO – <strong>DIREITO</strong> COMPA-<br />
RADO – <strong>DIREITO</strong> IMOBILIÁRIO – <strong>DIREITO</strong> DE PROPRIE-<br />
DADE<br />
182 impulso
ABSTRACT: The text proposes to evaluate the system of transference<br />
of dominion under German Law from the real estate<br />
register, considered the best elaborated and firm among those<br />
registers in the world. According to the author, transfer of a right<br />
of expectation is subject to a resolutive condition, as the debtor,<br />
in paying the debt, recovers the property automatically.<br />
Keywords: COMPARATIVE LAW – GERMAN LAW – PRO-<br />
PERTY LAW – REAL ESTATE LAW<br />
UNIÃO ESTÁVEL:<br />
ANTIGA FORMA DE CASAMENTO DE FATO<br />
Stable Union: Ancient Form of de Facto Marriage<br />
Álvaro Villaça Azevedo<br />
Professor do Programa de Pós-Graduação em<br />
Direito da USP e da Universidade Mackenzie e<br />
professor titular da Faculdade de Direito da USP e<br />
da Universidade Mackenzie – Doutor em Direito<br />
RESUMO: Na antigüidade, a família era, em geral, constituída<br />
por meio de celebrações religiosas ou por meio de simples convivência.<br />
De acordo com o autor, deveria voltar a existir o casamento<br />
religioso, só com celebração religiosa, ao lado do casamento<br />
civil, com os formalismos abrandados, inclusive no<br />
tocante a separação e ao divórcio. Assim, com maior ou menor<br />
liberdade, teríamos o casamento sob todos os seus aspectos histórico-existenciais<br />
mais importantes. Ele propõe que se considere<br />
a união estável como uma espécie nova de casamento de fato.<br />
Assim, casamento de fato ou união estável e a convivência não<br />
adulterina nem incestuosa, duradoura, pública e contínua, de um<br />
homem e de uma mulher, sem vínculo matrimonial, convivendo<br />
como se casados, sob o mesmo teto ou não, constitui uma família<br />
de fato.<br />
Palavras-chaves: CASAMENTO – <strong>DIREITO</strong> CIVIL –<br />
<strong>DIREITO</strong> DE FAMÍLIA<br />
ABSTRACT: In ancient times, the family was, in general, constited<br />
by means of religous celebrations or by means of simple<br />
living together. According to the author, religious marriage<br />
should come back into existence, only with religious celebration,<br />
alongside of civil marriage, with its milder formalisms, as<br />
well as with religeous celebration, alongside of civil marriage,<br />
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with its milder formalisms, as well as with regard to separation<br />
and divorce. Thus, with greater or less liberty, we would have<br />
marriage under all of its most important historical-existential<br />
aspects. He proposes to consider a stable union as a new kind of<br />
de facto marriage. Thus a de facto marriage or stable union and<br />
a non adulterous nor incestuous living together, lasting, public<br />
and continuous, of a man and a woman, without matrimonal<br />
ties, living as though they were married, under the same roof or<br />
not, constitutes a de facto family.<br />
Keywords: CIVIL LAW – FAMILY LAW – MARRIAGE<br />
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