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O DIREITO NOS ANOS 90 - Unimep

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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA<br />

VOLUME 9 • 1996 • ISSN 0103-7676<br />

Revista de Ciências Sociais<br />

O <strong>DIREITO</strong><br />

<strong>NOS</strong> A<strong>NOS</strong> <strong>90</strong><br />

20<br />

impulso<br />

ISSN 0103-7676 PIRACICABA/SP VOLUME 9 Nº 20 P 1-184 1997


UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA<br />

Reitor<br />

ALMIR DE SOUZA MAIA<br />

Vice-Reitor Acadêmico<br />

ELY ESER BARRETO CÉSAR<br />

Vice-Reitor Administrativo<br />

GUSTAVO JACQUES DIAS ALVIM<br />

impulso<br />

REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS<br />

da Universidade Metodista de Piracicaba<br />

Volume 9 1996 Número 20<br />

COMISSÃO EDITORIAL<br />

Elias Boaventura (presidente)<br />

Elizabeth Maria Alcântara<br />

Marcelo Fabri<br />

Maria Thereza Miguel Peres<br />

Valdemar Sguissardi<br />

EDITORA UNIMEP<br />

CONSELHO DE POLÍTICA EDITORIAL<br />

Almir de Souza Maia (presidente)<br />

Antonio Roque Dechen<br />

Casimiro Cabrera Peralta<br />

Davi Ferreira Barros<br />

Elias Boaventura<br />

Ely Eser Barreto César (vice-presidente)<br />

Francisco Cock Fontanella<br />

Gislene Garcia Franco do Nascimento<br />

José Antonio Arantes Salles<br />

José Ranali<br />

EDITOR<br />

Heitor Amílcar da Silveira Neto (MTb 13.787)<br />

A revista IMPULSO é uma publicação quadrimestral<br />

da Universidade Metodista de Piracicaba, produzida pela<br />

Editora UNIMEP.<br />

As opiniões expressas nos artigos, tanto os encomendados<br />

como os enviados espontaneamente, são de responsabilidade<br />

dos seus autores.<br />

ASSINATURAS, REDAÇÃO E<br />

ADMINISTRAÇÃO<br />

Rodovia do Açúcar, km 156<br />

13400-<strong>90</strong>1 – PIRACICABA (SP)<br />

Telefone: (019) 422-1515 (ramal 134)<br />

Fax: (019) 422-2500<br />

E-mail: editora@unimep.br<br />

HOME PAGE UNIMEP<br />

http://www.unimep.br<br />

Impulso is a journal focused on social sciences published three<br />

times a year by Universidade Metodista de Piracicaba (São Paulo<br />

– Brazil). It contains papers on scientific and technological<br />

issues. See abstracts in the end of this journal. Editorial norms<br />

for submission of articles can be requested to the Editor.<br />

Impulso é indexada por – Impulso is indexed by<br />

Base de Dados do IBGE; Bibliografia Bíblica Latino-<br />

Americana; Índice Bibliográfico Clase (UNAM);<br />

Sumários Correntes em Educação.<br />

EQUIPE TÉCNICA<br />

Edição executiva: Heitor Amílcar da Silveira Neto e Israel Belo<br />

de Azevedo<br />

Assistência editorial: Francisco Cock Fontanella<br />

Secretaria editorial: Geci Souza Silva<br />

Capa: Genival Cardoso<br />

Imagem: Stock Photos<br />

Impressão da capa: Gráfica Editora Camargo Soares<br />

Supervisão gráfica: Carlos Terra<br />

DTP e produção: Gráfica <strong>Unimep</strong><br />

Impressa em Duplicadora Digital Xerox Docutech 135<br />

EDITADA EM SETEMBRO /1997


O Direito nos Anos <strong>90</strong><br />

O Direito dos anos <strong>90</strong> nos deixa uma dúvida e nos impõe uma dificuldade. O jurista<br />

brasileiro, adepto de um formalismo exacerbado, preso ao positivismo jurídico, não<br />

parou para avaliar as conseqüências sociais desta limitação e insiste em tratar o Estado<br />

Democrático de Direito brasileiro com instrumentos inadequados.<br />

No momento de romper com as ilusões do Direito clássico, alguns poucos se sujeitam<br />

a deixar o ontologismo, mas o fazem com restrições, temerosos que venha a lume<br />

uma crise que persegue nosso Direito e, com instrumentos puramente pragmáticos, tentam<br />

criar espantalhos revestidos de ideologias superadas para aparentar harmonia,<br />

onde só existe confrontação.<br />

De um lado, há o recurso aos princípios do processo, como forma de acelerar a<br />

aplicação da justiça, numa tentativa de torná-la acessível a todos, e diante da crise de<br />

legitimação, procuram justificar a ampliação da máquina Estatal. Este caminho, paliativo,<br />

se mostra saturado em pouco tempo. Faltam fundamentos e propostas sérias para<br />

serem enfrentados os problemas de uma sociedade complexa e mutante, que não mais<br />

admite a universalidade imperativa dos preceitos normativos.<br />

A dignidade da pessoa humana não tem conceitos absolutos, apriorísticos, que possam<br />

ser impostos como o caminho real e concreto para os objetivos do homem. Há um<br />

consenso entre os homens, que decorre da consciência do seu papel na construção desta<br />

sociedade, presente e futura, o da necessidade de reconhecimento de seus direitos humanos<br />

por órgãos legítimos e confiáveis.<br />

A base de toda esta reestruturação, o mínimo exigido para que possamos enfrentar<br />

os novos tempos, está na Universidade. A reformulação do ensino, com novas metodologias,<br />

novas visões críticas que nos permitam compreender o Direito e adequá-lo à vida<br />

social moderna.<br />

As publicações científicas, como esta, possibilitarão amplos debates sobre os rumos<br />

do Direito, num compasso uniforme, ou bem próximo do contexto social.<br />

Do contrário, continuaremos mantendo a aparência de legitimidade e de justiça,<br />

fundada num pseudo saber atual, produto das migalhas que recebemos do continente<br />

europeu.<br />

A. L. CHAVES CAMARGO


SUMÁRIO<br />

O <strong>DIREITO</strong> <strong>NOS</strong> A<strong>NOS</strong> <strong>90</strong><br />

7 Reforma curricular:<br />

perfumarias fundamentais<br />

ALOYSIO FERRAZ PEREIRA<br />

15 Leituras e debates em torno da<br />

interpretação no Direito Constitucional<br />

nos anos <strong>90</strong><br />

JOSÉ RIBAS VIEIRA<br />

21 Do processo legislativo:<br />

breves considerações<br />

JOÃO MIGUEL DA LUZ RIVERO<br />

31 Filosofia do Direito em Habermas<br />

JOÃO BOSCO DA ENCARNAÇÃO<br />

39 A teoria da Justiça de<br />

John Rawls e algumas dificuldades:<br />

uma leitura<br />

JORGE ATÍLIO SILVA IULIANELLI<br />

57 O método do Direito:<br />

questões de lógica jurídica<br />

ERCÍLIO A. DENNY<br />

67 Segurança pública e garantias individuais<br />

sob a ameaça da criminalidade comum e<br />

organizada, na visão de Winfried Hassemer<br />

SAMUEL ZEM


81 Bases do Direito Penal no<br />

Estado Democrático de Direito<br />

A. L. CHAVES CAMARGO<br />

95 A relevância causal da omissão<br />

EDUARDO SILVEIRA MELO RODRIGUES<br />

123 Limitações ao poder punitivo do Estado<br />

EDSON JOSÉ MENEGHETTI<br />

137 Sistemas de transmissão<br />

do Direito de Propriedade:<br />

um estudo no Direito Alemão<br />

VICTOR HUGO TEJERINA VELÁSQUEZ<br />

159 União estável:<br />

antiga forma de casamento de fato<br />

ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO<br />

RESENHAS<br />

169 O direito à vida<br />

JOSÉ RENATO SCHMAEDECKE<br />

RESUMOS/ABSTRACTS<br />

173 Resumos/abstracts


REFORMA CURRICULAR:<br />

PERFUMARIAS FUNDAMENTAIS<br />

ALOYSIO FERRAZ PEREIRA<br />

O Ministério da Educação baixou, a 30 de dezembro de<br />

1994, a portaria nº 1886, que “fixa as diretrizes curriculares e o<br />

conteúdo do curso jurídico” no Brasil em nível de graduação.<br />

No artigo 6º classifica e enumera, sob a denominação de<br />

“matérias fundamentais”, as seguintes: Introdução ao Direito,<br />

Filosofia (Geral e Jurídica; Ética Geral e Profissional), Sociologia<br />

(Geral e Jurídica), Economia e Ciência Política (com Teoria do<br />

Estado).<br />

Ao lado dessas, a Portaria refere outra classe de matérias, as<br />

“profissionalizantes”, tradicionalmente chamadas “jurídicas”. Com<br />

exceção de Introdução ao Direito, as primeiras não podem, a rigor,<br />

ser qualificadas de jurídicas e passam, portanto, agora a ser legalmente<br />

consideradas fundamentais ao ensino dos cursos jurídicos.<br />

São profissionalizantes, segundo a nova norma, os Direitos<br />

Constitucional, Civil, Administrativo, Tributário, Penal, Processual<br />

Civil, Processual Penal, do Trabalho, Comercial e Internacional.<br />

Além disso, a portaria modifica substancialmente o sistema<br />

de avaliação do trabalho discente ao estabelecer no artigo 9º: “Para<br />

conclusão do curso, será obrigatória apresentação e defesa de<br />

monografia final, perante banca examinadora, com tema e orientador<br />

escolhidos pelo aluno”.<br />

Essas “diretrizes curriculares” (art. 16) “são obrigatórias aos<br />

novos alunos matriculados a partir de 1996 nos cursos jurídicos que,<br />

no exercício de sua autonomia, podem aplicá-los imediatamente”.<br />

Outras modificações foram igualmente introduzidas pela norma.<br />

impulso<br />

7


O curso jurídico de graduação se completará “em pelo menos<br />

cinco e no máximo oito anos letivos”. A função prática do ensino<br />

mereceu, na lei, cuidadosa regulamentação referente ao estágio<br />

supervisionado. O texto legal informa também que o seu teor se<br />

apoia no “que foi recomendado nos Seminários Regionais e Nacional<br />

dos Cursos Jurídicos, e pela Comissão de Especialistas de<br />

Ensino de Direito, da SESU-MEC”. Neste artigo, porém, se há de<br />

focalizar tão somente a transformação legal no que toca às duas<br />

grandes classes das matérias a serem ensinadas em graduação.<br />

PRIMEIRA REAÇÃO<br />

Na primeira reação à portaria ministerial se constata já, em<br />

algumas universidades, no terreno do imediatismo corporativo,<br />

sob a forma de disputa em torno da questão de se saber se as disciplinas<br />

não-jurídicas – filosofia geral e jurídica, ética geral e profissional,<br />

economia e ciência política (com teoria do Estado) –<br />

devam ser ensinadas por professores juristas ou por não-juristas,<br />

que as lecionam em outras unidades destinadas propriamente ao<br />

seu cultivo. Assim, por exemplo, na Universidade de São Paulo,<br />

filosofia, ética e sociologia gerais, ciência política (com teoria do<br />

Estado) e economia deveriam ser confiadas a docentes que as professam<br />

na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, e a<br />

última, na de Economia e Administração.<br />

Observe-se que, na Faculdade de Direito da USP, a sociologia<br />

geral já é ensinada por professor indicado pela Faculdade de<br />

Filosofia, Letras e Ciências Humanas, mas a filosofia do direito foi<br />

sempre entregue a professores da casa, desde a sua fundação, há<br />

168 anos. Parece-me correto confiar as disciplinas não-jurídicas a<br />

professores das áreas que propriamente as incluem: filosofia geral,<br />

sociologia geral, ética geral, economia e ciência política, deixando-se<br />

ao curso jurídico: filosofia do direito, sociologia jurídica,<br />

ética profissional e teoria do Estado. Embora a filosofia do direito<br />

e a sociologia do direito não sejam, a rigor, jurídicas – pois são<br />

apenas a filosofia e a sociologia tout court enquanto se voltam para<br />

os fenômenos jurídicos, tomando-os como objeto de sua preocupação<br />

e exame, segundo a abordagem que lhes é peculiar –, é prudente<br />

serem ensinadas por juristas que tenham também formação<br />

ou estudos aprofundados de filosofia e sociologia. A ética geral,<br />

matéria filosófica entre as que mais o são, segue o destino de sua<br />

matriz, a filosofia, mas a profissional deve atribuir-se a jurista, pois<br />

supõe-se que este domine nos detalhes, as suas regras, implicações<br />

8 impulso


e natureza, cujos problemas pedem vivência na prática operativa<br />

do direito.<br />

A filosofia do direito é bom, seja mesmo confiada a juristafilósofo,<br />

isto é, jurista que medita e pensa o direito criticamente<br />

como filósofo. Isto não quer dizer que não possa este assunto ser<br />

professado por filósofo-jurista, como disto a história dá testemunho<br />

nos casos de Aristóteles, Tomás de Aquino, Hobbes, Rousseau,<br />

Kant, Hegel, Marx e outros, que influíram profundamente no<br />

direito, embora não militassem em profissão jurídica nem lecionassem<br />

direito. De resto, o desamor que o jurista médio, em sua<br />

maioria, manifesta à filosofia, aconselha preferir a sua atribuição<br />

ao filósofo, sobretudo se se tem em conta a inexistência de filosofia<br />

no curso de humanidades.<br />

A ciência política e a economia, como é óbvio, são matérias<br />

intimamente ligadas ao direito enquanto fenômeno e como conhecimento<br />

prático ou teórico. A respeito, temos o exemplo do que, há<br />

décadas, acontece na Europa, onde várias faculdades de direito são,<br />

ao mesmo tempo, de ciências políticas ou econômicas ou sociais.<br />

Têm então, em sua própria estrutura pedagógica e em seus quadros,<br />

os recursos necessários a se proverem de docentes em política,<br />

economia e sociologia. Quanto à “teoria do Estado” (entende-se:<br />

teoria geral do Estado é disciplina que, nas escolas de direito, tem<br />

sido sucedânea à da ciência política, incluindo esta última ao lado<br />

de outras como filosofia e sociologia políticas, história institucional,<br />

áreas comuns ao direito, etc. A sua adoção como obrigatória na<br />

quase unanimidade dos currículos, entre nós, constitui prova do<br />

reconhecimento da relação congênita que interliga política e<br />

direito; sem falar da história dos cursos jurídicos no Brasil, onde as<br />

academias de Recife e São Paulo sempre manifestaram fortíssima<br />

vocação política, pelo menos enquanto não existiram universidades<br />

ou escolas destinadas especificamente aos estudos políticos e<br />

sociais. Mas deixemos aí essa questão entregue à rixa entre os interessados<br />

em melhorar o próprio salário ou currículo.<br />

SEGUNDA REAÇÃO<br />

Outra reação à portaria ministerial nº 18.886 parte, para usar<br />

termo simplificador, do técnico do direito. O espectro de suas<br />

modalidades vai do rábula portador de diploma ao legista travestido<br />

de kelseniano. De um lado, a técnica tem seu lugar próprio na<br />

atividade jurídica, mas sua função é subordinada ou preordenada<br />

aos fins a que tem de servir. De outro lado a técnica resulta de<br />

impulso<br />

9


1 Dom Casmurro, cap. XVII.<br />

2 LESSA, Pedro. Estudos de filosofia<br />

do Direito. São Paulo, 1916.<br />

3 KELSEN. Teoria pura da direita.<br />

Prefácio à 2ª ed. e início<br />

do cap. I.<br />

condições e causas que a abrangem e ultrapassam, de princípios<br />

que estão fora do seu campo visual. Contentar-se com ser técnico<br />

em direito significa limitar-se ao empírico utilitário, renunciar à<br />

racionalidade científica e à lúcida compreensão do direito em seu<br />

contexto social, existencial e ontológico. Esta compreensão<br />

revela-se indispensável ao próprio exercício das profissões jurídicas.<br />

Limitar-se à técnica seria resignar-se a agir e trabalhar como disse<br />

fazê-lo aquele inseto que Machado de Assis imaginou interpelar:<br />

“Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos<br />

absolutamente nada dos textos que roemos, nem amamos ou<br />

detestamos o que roemos: nós roemos”. 1<br />

Os que se autodenominam técnicos ainda demonstram algum<br />

espírito crítico. Mas, os que pretendem o título de professor,<br />

quando, na realidade jurássica não passam de técnicos da espécie<br />

normativista, estes só podem mesmo espantar-se diante da portaria<br />

inovadora e combatê-la e rejeitá-la. Estes são os costumeiros adversários<br />

de filósofos e sociólogos, a manifestarem agora, no limiar<br />

desta reforma do ensino jurídico, a mesma incompreensão que,<br />

quinhentos anos antes de Cristo, Heráclito de Éfeso agredia, no seu<br />

obscuro estilo: “os cães ladram contra os que não conhecem”.<br />

Mas é tempo de mostrar aos tecno-juristas, ou “juristas”,<br />

que houve um juiz mineiro, ministro do Supremo Tribunal Federal,<br />

professor de filosofia na Faculdade do Largo de São Francisco,<br />

chamado Pedro Lessa, que afirmou, e conseguiu demonstrá-lo<br />

com facilidade, que o direito só será ciência quando sua<br />

elaboração e aplicação resultarem do trabalho científico da sociologia<br />

(em sentido amplo) e da reflexão crítica da filosofia. 2 Não<br />

se diga que Lessa é antigo e Kelsen, atual. A primeira edição dos<br />

Estudos é de 1911, mas a segunda foi revista e veio à luz em<br />

1916. Abrindo o prefácio à primeira edição de sua Teoria pura<br />

(1934), Kelsen informava: “Há mais de duas décadas empreendi<br />

desenvolver uma teoria jurídica pura”. Isto equivale a dizer que a<br />

teoria pura data da mesmíssima época em que Pedro Lessa publicava<br />

a sua obra principal...<br />

Os tecno-juristas definem-se como aqueles operadores e teóricos<br />

que reduzem a disciplina direito “à análise do Direito positivo<br />

como sendo a realidade jurídica”. 3 Circunscrevem-na à dogmática<br />

jurídica que, como “o indica a própria expressão, tem por objeto o<br />

dogma do direito, (...) isto é, as leis (no sentido técnico, especial,<br />

do termo)”, “normas para fins práticos, que se impõem à vontade.<br />

10 impulso


Não se confundem com as afirmações científicas, que se dirigem à<br />

inteligência”. 4<br />

O direito positivo (um código, uma lei extravagante, etc.)<br />

encerra um conjunto de preceitos ou regras, “imposto à atividade<br />

voluntária do homem”, pelos quais “se ordena que se faça, ou<br />

deixe de fazer, alguma coisa”. A dogmática jurídica, enquanto<br />

explanação da arte do direito positivo e a “teoria pura”, como<br />

exposição da “análise” do mesmo direito, constituem, no mínimo,<br />

uma tecnologia e, no máximo, uma dialética do tipo retórico tradicional.<br />

Confundi-las com a ciência é, para usar a expressão de<br />

Lessa, “desconhecer um dos mais vulgares elementos da lógica”. 5<br />

Todavia, as leis, as “normas de conduta, os preceitos artísticos,<br />

não podem deixar de ter por base verdades científicas”. “Aqui<br />

passamos para o domínio da ciência”. Resumindo Pedro Lessa: 6 as<br />

leis jurídicas estão sujeitas a leis “no sentido em que o termo é<br />

empregado pelos cultores de todas as ciências”. 7 Também nós juristas<br />

podemos, ao fazer as leis jurídicas, “observar os fatos sociais e<br />

formular as leis a que estão subordinados, determinar o que há de<br />

constante e necessário na sua produção”. 8<br />

Assim, na perspectiva de Lessa, o que hoje predominantemente<br />

se ensina como direito (disciplina escolar teórico-prática)<br />

nos cursos jurídicos do Brasil (como também em outros países) e<br />

o que ainda agora se publica como tal, não constituem ciência, já<br />

no sentido em que a entendia o jurista-filósofo brasileiro.<br />

As “leis devem ser formuladas de acordo com a teoria científica<br />

do direito. À consagração em disposições legais preexistem<br />

lógicamente os direitos, estudados e reconhecidos pela ciência<br />

jurídica”. 9 E Pedro Lessa conclui: “a filosofia do direito é a síntese<br />

final dessa ciência”.<br />

Dir-se-ia que a portaria ministerial de 30 de dezembro de<br />

1994 tem por objetivo, no essencial, realizar, com um atraso de 79<br />

anos, o projeto de Pedro Lessa: conduzir o ensino à concepção<br />

teórica e à atividade prática de uma verdadeira ciência do direito.<br />

E, para alcançar esse fim, elegeu os meios: as disciplinas que<br />

donomina fundamentais, entre as quais inclui – fato inédito na<br />

legislação federal – filosofia, sociologia, ética e ciência política.<br />

Sob reserva de um reforço de subsídios, também atuais e<br />

variados (incabíveis neste espaço), já é possível afirmar, sem exagero<br />

ou contundência, que se vai tornando irresponsável, quando<br />

não hilariante, o desespero dos defensores do positivismo tecnojurídico,<br />

ao apostrofar as “perfumarias jurídicas”.<br />

4 LESSA, Pedro, op. cit., p. 66.<br />

5 LESSA, Pedro, op. cit.<br />

6 LESSA, Pedro, op. cit., p. 77<br />

7 LESSA, Pedro, op. cit.<br />

8 LESSA, Pedro, op. cit.<br />

9 LESSA, Pedro, op. cit., p. 86.<br />

impulso<br />

11


Instalados com segurança na civilização do capital e do consumo,<br />

os tecno-burocratas do direito exigem a manutenção do establishment<br />

jurídico, a perpetuação do status quo no seu aparelho<br />

ideológico universitário e a conservação do Estado burguês de<br />

direito. Ao seu olfato, as perfumarias, tornadas obrigatórias pela<br />

portaria, ameaçam o ensino do direito com uma perigosa exalação<br />

do veneno crítico, componente necessário da filosofia, da livre pesquisa<br />

e da reflexão científica. A tecno-burocracia, no ramo da pedagogia<br />

jurídica, quer cumprir a sua sagrada missão de reproduzir a<br />

ordem lógico-teológica, aquela imutável estrutura piramidal que,<br />

assentada na base sobre as sentenças judiciais, é aureolada, no vértice,<br />

por um único mandamento “divino”: pacta sunt servanda.<br />

Percebendo que se movem na direção da história, os técnojuristas<br />

se agitam contra legem, contra o estatuto científico do seu<br />

mester, enfim contra a filosofia, esse cavalo de Tróia que a portaria<br />

vem de introduzir dentro dos muros da cidadania neo-liberal, para<br />

dispersar o seu devaneio social-democrático.<br />

E até um professor de escatologia, que outrora viemos a<br />

conhecer, apostaria hoje em que a reforma ministerial será revogada,<br />

por razões contrárias às dos tecno-juristas, aflitos por abolir<br />

as perfumarias. O nosso escatologista diria que todos nós, homens<br />

comuns, sociólogos, filósofos, juristas, professores, sendo apenas<br />

seres-humanos, seguimos fatalmente para o nada, aonde nos leva<br />

este caminho errado chamado história, processo inelutável do niilismo,<br />

destino da civilização tecno-cristã. Ele diria ainda que continuamos<br />

em perigo e que não há sinal de salvação. A portaria, lei<br />

precária humana, deve pois cair sob o rolo compressor da técnica<br />

e, se vingar, terá a aplicação disfigurada, quiçá oposta às intenções<br />

transformadoras que lhe deram origem e sentido.<br />

10 Existindo no espaço, na luz e<br />

no tempo, a estátua contém uma<br />

infinidade de perfis ou de faces.<br />

TERCEIRA REAÇÃO (CONCLUSIVA)<br />

E eis que aí uma terceira reação à portaria ministerial nos<br />

pareceu observável, na qual convergem, de uma parte, juristas de<br />

atualizada formação humanística e larga experiência profissional<br />

e, de outra, sociólogos, filósofos e historiadores, atentos aos desenvolvimentos<br />

do direito e do seu ensino, capazes de penetrante<br />

compreensão da sua significação e papel. Com as opiniões e reflexões<br />

que externaram, interpretando a portaria, é possível, quem<br />

sabe? modelar representativamente uma figura escultural 10 do<br />

jurista, para servir de paradigma aos professores de direito, por definição<br />

dedicados a formar e instruir conscienciosamente os alunos.<br />

12 impulso


Quer dizer: formar juristas cientes da situação profissional e política<br />

em que se encontram, conscientes do dever moral ou religioso<br />

que assumem, preocupadamente cônscios de que, no âmbito que a<br />

liberdade concede a cada um, avançam abertos à realização da verdade,<br />

disponíveis para o seu destino.<br />

A partir dessa metáfora plástica, cabe observar que não há<br />

um único perfil de jurista ou do jurista, como frequentemente se<br />

supõe ou se propõe. Os Romanos tinham perfeita noção de que<br />

havia, entre eles, pelo menos, dois perfis ou duas faces diferentes<br />

de jurista: o perfil do advogado e o do jurisprudente: Cícero e Hortênsio,<br />

por exemplo, realizavam o primeiro perfil, Labeão e Papiniano,<br />

entre outros, respondiam ao perfil de jurisprudente. Uma<br />

faculdade de direito deve pois ter em mira uma série aberta de<br />

paradigmas ou perfis: juiz e legislador, assessores e auxiliares de<br />

um e de outro, delegados de polícia, com seus escrivães e funcionários,<br />

advogados das mais variadas especialidades e funções... A<br />

luz gira e circula sobre a efígie do jurista: seu perfil muda no passar<br />

do tempo, no deslocar-se do observador à sua roda. Deixemos<br />

também à espontaneidade, à vocação e à liberdade dos alunos a<br />

escolha do perfil que projetam. Apegar-se ou impor um só perfil<br />

de jurista na universidade seria dirigismo totalitário, como ao<br />

tempo de Stalin e de Hitler.<br />

Mas é tempo de parar aqui estas considerações, para voltar<br />

nosso enfoque à portaria em questão. Com ela, depois dela, “cessa<br />

tudo quanto a antiga musa canta”: legem habemus. Só nos restava,<br />

antes de cumprí-la, interpretá-la. Questão de hermenêutica, só...<br />

A portaria tem por fim, evidentemente, operar profunda<br />

transformação no ensino do direito e na formação dos seus operadores,<br />

noutras palavras, dos juristas. Este fim pedagógico preordena-se,<br />

como meio, a objetivo de valor social, político e humano<br />

superior: a transformação do próprio direito, como instrumento de<br />

mudança e atualização de toda a sociedade brasileira e da nação,<br />

que têm necessidade de justiça. Ora, para alcançar esses objetivos,<br />

tão desejados por todo o povo brasileiro, é necessário elaborar e<br />

manter um direito dinâmico, o mais possível adequado à realidade<br />

econômica, social e política. Para isso é indispensável a ação<br />

incessante das ciências sociais, postas a serviço da criação de um<br />

direito justo e da manutenção de um aparelho judicial lúcido e atualizado.<br />

E é indispensável também, e principalmente, o exercício –<br />

a nível do ensino jurídico universitário – da crítica filosófica livre<br />

e permanente. Tais desideratos só se atingem, a nível universitário,<br />

impulso<br />

13


pela conexão entre as ciências sociais e o conhecimento jurídico,<br />

em seus aspectos teórico e prático. Cabe à filosofia o papel de<br />

coordenar e julgar, dialética e criticamente, as interrelações entre<br />

aquelas ciências e o direito, entre as suas visões do real, preparando-se<br />

o terreno a opções e projetos coletivos, inclusive os planos<br />

econômicos e políticos. Tal é o sentido profundo e determinante<br />

da portaria em exame. Se os fins são esses, os principais<br />

meios consistem: 1º no ensino desenvolvido das denominadas<br />

“disciplinas fundamentais”, ao lado das “profissionalizantes”; 2º<br />

na implementação da estrutura de preparação e realização da<br />

prova monográfica; e 3º na instauração do estágio prático supervisionado.<br />

Eis aí o caminho que sabiamente a portaria elegeu para libertar<br />

o nosso direito do empirismo, da improvisação, do imobilismo,<br />

da ignorância e dos interesses criados em benefício das elites retrógradas,<br />

com sua tradicional clientela de bacharéis. Essa lei é uma<br />

rara oportunidade de contribuir para superar a trágica e histórica<br />

inércia de uma “sociedade nacional” de desigualdades e injustiça.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

LESSA, Pedro. Estudos de filosofia do Direito. São Paulo, 1916.<br />

KELSEN, H. Teoria pura do direito. Coimbra: Martins Fontes.<br />

Prefácio à 2ª ed. e início do cap. I.<br />

14 impulso


LEITURAS E DEBATES EM<br />

TORNO DA INTERPRETAÇÃO<br />

NO <strong>DIREITO</strong> CONSTITUCIONAL<br />

<strong>NOS</strong> A<strong>NOS</strong> <strong>90</strong> *<br />

JOSÉ RIBAS VIEIRA<br />

Uma reflexão a respeito da temática de interpretação constitucional<br />

vem sendo suscitada, nos últimos tempos, por algumas<br />

dinâmicas importantes.<br />

Podemos, por exemplo, compreendê-la pelo novo papel<br />

advindo com a presença do Judiciário na atual crise do Estado e da<br />

própria ordem política. Assiste-se, assim, a um processo de jurisdicização<br />

de todo o discurso político. Lembra Antoine Garapon, 1<br />

por exemplo, como as reivindicações políticas estão materializadas,<br />

hoje, numa mensagem nitidamente jurídica de luta por direitos<br />

individuais e coletivos. Seguindo ainda a lição do referido<br />

autor francês quanto ao fenômeno da jurisdicização do discurso<br />

político, encontramos como no nosso quotidiano social são incorporadas<br />

categorias próprias do universo do Direito, a saber: imparcialidade,<br />

transparência, contraditória, argumentação, etc.<br />

Acresce a esse contexto da presença do Judiciário o fato de<br />

que vivenciamos uma ordem internacional articulada a uma força<br />

de integração econômica e política a qual jamais foi presenciada.<br />

Nesse quadro integracionista, pode ser visualizado o que ocorre na<br />

União Européia com a existência de um Direito Comunitário em<br />

cujo âmbito institucional a ordem estatal fica enfraquecida. Quanto<br />

a esse caso específico, mais uma vez, o Direito e o Judiciário<br />

* Palestra proferida no Programa<br />

de Pós-Graduação de Direito<br />

UNIMEP, em 29 de maio de<br />

1996.<br />

1 GARAPON, Antoine. Le Gardien<br />

des promesses. Justice et<br />

Démocratie. Paris: Odile Jacob,<br />

1996, p. 41.<br />

impulso<br />

15


2 V. a obra de HESSE Konrad.<br />

Derecho Constitucional y Derecho<br />

Privado. Madrid: Civitas<br />

S.A., 1995; na qual esse constitucionalista<br />

alemão discute, por<br />

exemplo, a invasão dos parâmetros<br />

do texto constitucional<br />

no campo do Direito Privado.<br />

Assim, ele aponta alguns critérios<br />

para diferenciar a ordem jurídica<br />

privada do Direito Constitucional.<br />

3 V. GARAPON, Antoine, op.<br />

cit.<br />

(o Juiz Nacional) passam a ser mecanismos necessários de articulação<br />

entre o Estado e a ordem jurídica supra-nacional (no caso<br />

a União Européia). Garapon na sua obra citada observa, também,<br />

que o impulso integracionista via Direito Comunitário tem servido<br />

como elemento para estabelecer, pela primeira vez, uma comunicação<br />

e transmigração de institutos e experiências jurídicas de<br />

caráter inédito.<br />

Na sociedade brasileira, é fácil constatar também a presença<br />

em todos os níveis de nossa vida social dessa jurisdização do discurso<br />

político. Convivemos também, tanto pela força da vigência<br />

da própria Constituição Federal de 1988, quanto dos resultados de<br />

um processo de profunda integração econômica em escala mundial<br />

(globalização), com fenômeno da recepção e interrelacionamento<br />

de novos institutos jurídicos.<br />

Não precisaríamos aprofundar mais a nossa análise para indicar<br />

que se depara, atualmente, com uma nova forma de dizer o<br />

direito. Este surge com toda a pujança não de uma estrutura codificada,<br />

mas sim de uma perspectiva, cada vez maior, de sentido<br />

jurisprudencial. Sem dúvida nenhuma, nesse quadro de valorização<br />

de papel do juiz há um fortalecimento da força dos instrumentos<br />

interpretativos.<br />

Dentro desse retorno da importância jurídica, temos de reconhecer<br />

a posição de destaque que ocupa o Direito Constitucional.<br />

Essa presença central desse campo de conhecimento deve-se, entre<br />

outros fatores, à relevância assumida pelos textos constitucionais<br />

como elementos irradiadores de toda a vida social. 2 Não podemos<br />

esquecer, também, que determinados institutos ou princípios constitucionais<br />

passaram a ser norteadores para a própria resolução de<br />

conflitos. É o caso, por exemplo, da posição de grandeza como<br />

assume o princípio da proporcionalidade para dirimir e limitar as<br />

diferenças de aplicações normativas.<br />

Em conseqüência do espaço ocupado pelo Direito Constitucional<br />

dentro desse universo social crescente de jurisdicização, a<br />

metodologia da interpretação constitucional vem merecendo um<br />

maior destaque de atenção. Tal fato materializa-se na importância<br />

assumida pela jurisdição constitucional via modelo concentrado de<br />

controle de constitucionalidade dos Tribunais Constitucionais.<br />

Vale sublinhar que o fenômeno social da jurisdicização e o<br />

alargamento da presença do Direito levam Antoine Garapon 3 a<br />

manifestar a sua preocupação quanto a um paradoxo. Neste<br />

momento, as ordens jurídicas articuladas com um de seus operadores<br />

16 impulso


principais, que é o juiz, desempenham uma função essencial de<br />

assegurar o processo democrático, ao reconhecer direitos individuais<br />

ou coletivos pleiteados pelos cidadãos. Entretanto, há um risco<br />

sério, no sentido da continuidade dessa autonomização do direito e<br />

do avanço da prestação jurisdicional em todos os níveis da sociedade,<br />

de virmos a assistir a substituição do jogo democrático pelo<br />

império da estrutura jurídica. Devemos acrescentar as ponderações<br />

de Garapon à indagação de como poderemos equilibrar o mundo<br />

legal para evitar o enfraquecimento do quadro democrático.<br />

Sem dúvida nenhuma, a interpretação constitucional através<br />

de sua jurisdição própria é um exemplo concreto da validade da<br />

reflexão levantada pelo mencionado estudioso francês. 4 Assim,<br />

privilegiaremos os métodos interpretativos constitucionais para<br />

responder a esse nosso questionamento.<br />

Com esse intuito é que nós pretendemos discutir as próximas<br />

etapas de nossa análise, direcionando o problema da interpretação<br />

constitucional sob duas perspectivas:<br />

• a sua finalidade; e<br />

• a delimitação de seus limites e atores.<br />

A FINALIDADE DA INTERPRETAÇÃO<br />

CONSTITUCIONAL<br />

Numa postura tradicional e de fundamentos dentro de uma<br />

roupagem de liberalismo, a interpretação constitucional foi sempre<br />

enquadrada no sentido de estabelecer uma adequação da lei ou do<br />

ato administrativo ao texto constitucional. Nessa linha de raciocínio,<br />

esse entendimento reduzia a metodologia interpretativa constitucional<br />

e o seu instrumento de viabilização (Jurisdição Constitucional)<br />

a um mero exame da noção de supremacia da norma constitucional<br />

dentro da ordem jurídica. 5<br />

Entretanto, em razão do caráter mais arrojado da jurisdição<br />

constitucional em nossos dias e de uma definição mais ampla do<br />

sentido do Texto Constitucional, 6 a interpretação constitucional<br />

passou a assumir um aspecto teleológico dentro da estrutura normativa<br />

de sua dinamização e de adequação constante com a própria<br />

realidade social. Daí, é pertinente lembrar, agora, das inquietudes<br />

levantadas por Antoine Garapon de contarmos com um<br />

Direito e um de seus operadores (no caso o Juiz Constitucional)<br />

que passariam a substituir, perigosamente, o próprio sistema<br />

democrático.<br />

4 LARENZ, Kark. Metodologia<br />

da Ciência do Direito. 2ª ed.<br />

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenksian,<br />

1989. Kark Larenz<br />

lembra que, de um lado, a interpretação<br />

constitucional não sediferencia<br />

em substância dos<br />

outros critérios de interpretação,<br />

mas, de outro lado, aquela forma<br />

interpretativa apresenta uma repercursão<br />

diferente de metodologias<br />

de compreensão de outras<br />

disciplinas do direito.<br />

5 Cabe observar que o nosso<br />

Supremo Tribunal Constitucional,<br />

mesmo após a ampliação<br />

de suas competências de contrato<br />

da constitucionalidade, a<br />

partir da Constituição Federal<br />

de 1988, está adstrito, ainda, a<br />

essa posição clássica da prevalência<br />

pura e simples do Texto<br />

Constitucional.<br />

6 Vide SCHNEIDER, Hans Peter.<br />

Democracia y Constitución.<br />

Madrid: Centro de Estudios<br />

Constitucionales, 1991. Aqui, o<br />

autor define a Constituição através<br />

de três estruturas: a pro-dinâmica<br />

(que tem de estar adaptada<br />

à realidade social); a programática<br />

(estabelecendo uma<br />

utopia social); e a fragamentária<br />

(na qual, ao estar aberta à sociedade,<br />

cabe à jurisdição constitucional<br />

compatibilizar seus princípios,<br />

lacunas e conflitos normativos<br />

constitucionais).<br />

impulso<br />

17


7 ELY, J.H. Democracy and<br />

Distrust; a theory of Judicial<br />

Review. Cambridge: Harvard<br />

University Press, 1980.<br />

8 DWORKIN, Ronald. Freedoms<br />

Law: the moral reading<br />

of the American Constitution.<br />

Cambridge: Harvard University<br />

Press, 1996.<br />

9 HÄBERLE, Peter. Le libertá<br />

fondamentali nello Stato Constituzionale.<br />

Roma: La Nuova<br />

Italia Cientifica, 1993. Nessa<br />

obra, é óbvio que Häberle discute<br />

a sua teoria institucional<br />

dos Direitos Fundamentais para<br />

culminar com a defesa de uma<br />

abertura da interpretação constitucional.<br />

LIMITES E ATORES DA INTERPRETAÇÃO<br />

CONSTITUCIONAL<br />

Dentro de uma perspectiva de mapeamento das leituras e dos<br />

debates da metodologia interpretativa constitucional, podemos<br />

visualizar que há dois conjuntos teóricos para a análise de suas<br />

contribuições: o de base norte-americana e o de origem alemã.<br />

Todos esses dois sistemas interpretativos postam-se diante de<br />

uma reflexão com o objetivo de perquirir quais seriam as delimitações<br />

possíveis da função interpretativa em relação à norma constitucional.<br />

Na lição de J. H. Ely, 7 teríamos nos Estados duas correntes:<br />

uma de caráter interpretativista, de não só adotar os métodos<br />

clássicos de interpretação, como também, de procurar respeitar ao<br />

máximo os parâmetros da norma constitucional; a outra de um<br />

perfil não interpretativista estando voltada para buscar uma compreensão<br />

da norma constitucional além de suas fronteiras. Nessa<br />

linha não interpretativista, por exemplo, está Ronald Dworkin, 8 o<br />

qual defende uma adequação do texto constitucional norte-americano<br />

a padrões morais dentro do que esse estudioso denomina do<br />

conjunto amplo do Bill of Rights. Na teoria alemã, essa delimitação<br />

de interpretativista e não interpretativista aparece em relação<br />

àqueles constitucionalistas que estariam mais vinculados a uma<br />

visão tradicional de metodologia interpretativa na esteira de<br />

Savigny, ou aqueles que estariam mais abertos à sociedade através<br />

das posições do jurista alemão Smend, defendidas na República de<br />

Weimar nos anos 20.<br />

Contudo, não se trata apenas de apontar esses marcos restritivos<br />

da interpretação constitucional, é necessário, ainda, delimitar<br />

quem são os seus reais participantes. Dentro desse raciocínio, teremos<br />

os questionamentos se a metodologia de entendimento da<br />

norma constitucional deva estar meramente resumida aos contornos<br />

institucionais da jurisdição constitucional. Dworkin defende<br />

que a postura de um juiz constitucional poderia estar aberta aos<br />

padrões morais do que ele denomina de comunidade, como consta<br />

da sua última obra já referida por nós. O constitucionalista alemão,<br />

Peter Häberle, 9 já apresenta uma postura mais radical no sentido<br />

de que a sociedade estabelece um consenso inspirado para uma<br />

abertura do Tribunal Constitucional se fundamentar. É importante<br />

registrar que, apesar de posições semelhantes de abertura para<br />

sociedade, assumida por esses dois autores, cremos existirem algumas<br />

diferenças de graus entre eles. Ronald Dworkin caracteriza-se<br />

para nós mais numa direção valorativa e moral. E em relação a<br />

18 impulso


Peter Häberle, seu pensamento sobre o papel da interpretação<br />

constitucional traduz-se numa defesa mais arraigada de um compromisso<br />

democrático para a jurisdição constitucional.<br />

É nessas posições mais radicais a respeito da função dos<br />

instrumentos interpretativos que vale sublinhar as observações<br />

ponderadas de um antigo integrante do Tribunal Constitucional<br />

alemão, que é Ernst Wolfgang Böckenford. 10 Lembra esse jurista<br />

alemão que a metodologia interpretativa não pode assumir uma<br />

postura dissolvedora ou destruidora da própria norma constitucional.<br />

CRITÉRIOS E MARCOS PARA A INTERPRETAÇÃO<br />

CONSTITUCIONAL<br />

Nessa parte do nosso estudo, é importante para nós aprofundar<br />

o pensamento de Böckenford. O jurista alemão está consciente<br />

de estabelecer critérios para demarcar a função interpretativa constitucional.<br />

Lembra o autor de Escritos sobre Derechos Constitucionales<br />

que não importa que o método de interpretação seja de um<br />

Ernst Forstroff (respeitando a norma constitucional através de elementos<br />

interpretativos tradicionais), ou de um Peter Häberle (tratando-se,<br />

como já vimos, de uma perspectiva tópica a respeito dos<br />

dispositivos constitucionais abertos à sociedade), ou então a figura<br />

de um Rudolf Smend, preocupado com o papel integrador da<br />

constituição, ou a presença de Konrad Hesse, direcionado para o<br />

problema da concretização normativa ou, ainda, a noção da norma<br />

tratada através de um programa estruturante de interpretação 11<br />

onde, com maior ou menor diferença, o sentido da norma constitucional<br />

através desses métodos interpretativos seria atingido.<br />

Defende Böckenford uma posição de que o único meio de evitar<br />

esse problema, é do intérprete por meio de sua metodologia estabelecer<br />

o seu entendimento prévio a respeito da função do texto<br />

constitucional 12 e da sua jurisdição. Esse pensador alemão reitera<br />

que tem de haver, por exemplo, por parte do intérprete constitucional<br />

uma postura mais moderada em relação à constituição e aos<br />

instrumentos de controle de constitucionalidade. Exemplificando,<br />

Böckenford sustenta que a jurisdição constitucional não pode ser<br />

um espaço substitutivo de órgãos judiciários, ao transformar-se,<br />

automaticamente, em mecanismo de revisão de todas as decisões<br />

judiciais, ao exercer a sua competência de controle de constitucionalidade.<br />

10 BÖCKENFORD, Ernst-Wolfgang.<br />

Escritos sobre Derechos<br />

Constitucionales. Baden-Baden:<br />

Nomos Verlagsgesellchaft,<br />

1993.<br />

11 V. MÜLLER, Friedrich. Discours<br />

de la méthode juridique.<br />

Paris: PUF, 1996.<br />

12 Por exemplo, SCHNEIDER,<br />

Hans Peter, op. cit., tem uma<br />

posição bastante instrumental<br />

da Constituição.<br />

impulso<br />

19


CONCLUSÃO<br />

Acreditamos, assim, que essa advertência e critério apontados<br />

por Böckenford, respondem claramente, à preocupação indicada<br />

por Garapon. 13 Isto é, de que as atuais posições assumidas<br />

pelo direito e o papel do juiz podem acarretar uma perigosa substituição<br />

do jurídico pela ordem democrática. A saída é, por conseqüência,<br />

na direção de refletirmos mecanismos de equilíbrio para<br />

a função de prestação jurisdicional, mas, ao mesmo tempo, que<br />

assegure a manutenção não só das garantias constitucionais de fortalecimento<br />

da cidadania, como também, e principalmente, do<br />

jogo democrático.<br />

13 VIEIRA, José Ribas. A Perspectiva<br />

do espaço público na<br />

compreensão democrática do<br />

Direito. Direito, Estado e Sociedade,<br />

Rio de Janeiro, n. 7, jul./<br />

dez. p. 59-72, 1995. Neste artigo,<br />

já advertíamos as dificuldades<br />

do direito de trabalhar com a<br />

democracia. Assim, na mesma<br />

linha de raciocínio de Garapon,<br />

mostrávamos como a excessiva<br />

institucionalização materializada<br />

pelo jurídico estereliza qualquer<br />

pretensão democrática através<br />

(por exemplo) das demandas<br />

dos movimentos sociais.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BÖCKENFORD, Ernst-Wolfgang. Escritos sobre Derechos Constitucionales.<br />

Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellchaft, 1993.<br />

DWORKIN, Ronald. Freedoms law: the moral reading of the<br />

American Constitution. Cambridge: Harvard University Press,<br />

1996.<br />

ELY, J.H. Democracy and Distrust; a theory of Judicial Review.<br />

Cambridge: Harvard University Press, 1980.<br />

GARAPON, Antoine. Le gardien des promesses. Justice et<br />

démocratie. Paris: Odile Jacob, 1996.<br />

HÄBERLE, Peter. Le libertá fondamentali nello Stato Constituzionale.<br />

Roma: La Nuova Italia Cientifica, 1993.<br />

HESSE, Konrad. Derecho Constitucional y Derecho Privado.<br />

Madrid: Civitas, 1995.<br />

LARENZ, Kark. Metodologia da Ciência do Direito. 2ª ed. Lisboa:<br />

Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.<br />

MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Paris:<br />

PUF, 1996.<br />

SCHNEIDER, Hans Peter. Democracia y Constitución. Madrid:<br />

Centro de Estudios Constitucionales, 1991.<br />

VIEIRA, José Ribas. A Perspectiva do espaço público na compreensão<br />

Democrática do Direito. Direito, Estado e Sociedade,<br />

Rio de Janeiro, n. 7, jul./dez. 1995.<br />

20 impulso


DO PROCESSO LEGISLATIVO:<br />

BREVES CONSIDERAÇÕES<br />

JOÃO MIGUEL DA LUZ RIVERO<br />

Para fazermos algumas considerações sobre o processo legislativo,<br />

faz-se necessário destacar que estaremos a estudar sobre a<br />

função legislativa, que tem sua origem no Poder Legislativo de<br />

acordo com a doutrina clássica, segundo ensina Montesquieu, em<br />

sua obra célebre O Espírito das Leis e sua evolução até este final<br />

de século.<br />

Diz Montesquieu:<br />

A liberdade política em um cidadão é aquela<br />

tranqüilidade de espírito que provém da convicção que<br />

cada um tem da sua segurança. Para ter-se essa liberdade,<br />

precisa que o Governo seja tal que cada cidadão<br />

não possa temer outro.<br />

Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de<br />

Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo,<br />

não há liberdade. Porque pode temer-se que o<br />

mesmo Monarca ou o mesmo Senado faça leis tirânicas<br />

para executá-las tiranicamente.<br />

Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não<br />

estiver separado do Executivo e do Legislativo. Se estivesse<br />

junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a<br />

liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz<br />

seria Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o<br />

Juiz poderia ter a força de opressor.<br />

impulso<br />

21


Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um<br />

mesmo corpo de principais ou de nobres, ou de Povo,<br />

exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de<br />

executar resoluções públicas; e o de julgar os crimes<br />

ou as demandas dos particulares. 1<br />

1 MONTESQUIEU, Charles de,<br />

SECONDAT, Baron de. (1689-<br />

1755.) O espírito das leis.<br />

Introdução, tradução e notas de<br />

Pedro Vieira Mota. 3ª ed. aum.<br />

São Paulo: Saraiva, 1994,<br />

p. 165.<br />

Destaca ainda Montesquieu que o Poder Executivo deve ter<br />

sua participação no processo legislativo limitada à faculdade de<br />

impedir (o que hoje conhecemos como veto), sendo a ele vedada a<br />

faculdade de estatuir, da mesma forma como o Poder Legislativo<br />

não deverá executar.<br />

Lembrando ainda que o processo legislativo estará a completar-se<br />

pela participação do Poder Legislativo no exercício da sua<br />

faculdade nata de estatuir e pelo Poder Executivo no exercício de<br />

sua faculdade de impedir. Desta forma podemos dizer que da integração<br />

harmônica, como preconiza Montesquieu, teremos poderes<br />

que, por um movimento necessário, serão compelidos a caminhar<br />

em concerto.<br />

Montesquieu e Locke elaboraram idéias opostas ao poder<br />

soberano dos reis, assim colocando em xeque a teoria do absolutismo<br />

(todo poder emana de Deus; o rei o exerce em nome de<br />

Deus) objetivando controlar o poder soberano em nome de Deus,<br />

através das leis e da divisão dos poderes. Ambos convergem na<br />

assertiva de que o Poder Legislativo é que deve elaborar as leis, o<br />

Poder Executivo deve cuidar da execução das leis e o Poder Judiciário<br />

somente estaria a administrar a execução da lei em situação<br />

de conflito.<br />

Segundo nos orienta Sampaio (1967), o processo legislativo<br />

pode ser entendido também em um sentido sociológico, que seria<br />

o conjunto de fatores reais ou fáticos que põem em movimento os<br />

legisladores e o modo como eles costumam proceder ao realizar a<br />

tarefa legislativa. Neste momento nos referimos às influências que<br />

o processo legislativo sofre através da opinião pública, das crises<br />

sociais, das pressões de grupos organizados, lobbying, dos acordos<br />

de partidos, das compensações políticas, da composição partidária<br />

ou social da assembléia, da troca de votos (logrolling) entre os<br />

parlamentares, etc.<br />

Sampaio (1967), destaca que, ao observarmos o processo<br />

legislativo em sentido sociológico, na verdade estamos a analisar a<br />

conduta ou comportamento legislativo, e assim, conclui que o<br />

mais recomendável é reservar a expressão processo legislativo<br />

22 impulso


para a linguagem jurídica, pois de outra forma estaremos apenas a<br />

demonstrar os resultados das relações entre as condições sociais e<br />

o processo legislativo para o jurista, o político e o legislador, com<br />

a finalidade de melhor ajustá-lo às necessidades políticas.<br />

Ferdinand Lassalle entende que a Constituição de um país é<br />

em essência, a soma dos fatores reais do poder, que regem nesse<br />

país, sendo esta a Constituição real e efetiva, não passando a<br />

Constituição escrita de uma folha de papel 2 (Constituição em sentido<br />

sociológico).<br />

Carl Schmitt considera a Constituição como uma decisão fundamental,<br />

decisão concreta de conjunto sobre o modo e a forma de<br />

existência da unidade política, fazendo distinção entre Constituição<br />

e leis constitucionais 3 (Constituição em sentido político).<br />

Para Hans Kelsen a Constituição é norma pura, puro deverser,<br />

sem qualquer pretensão a fundamentação sociológica, política<br />

ou filosófica 4 (Constituição em sentido jurídico).<br />

A partir destas reflexões iniciais, tentaremos apresentar, preliminarmente,<br />

algumas breves considerações sobre o processo<br />

legislativo em seu significado jurídico, sendo que por ele o direito<br />

revela a sua própria criação, a produção, e criação, a modificação<br />

ou revogação de normas gerais ou individualizadas e diz quem<br />

participa e como deve participar.<br />

Estaremos ainda engajados na tarefa de mostrar como o processo<br />

legislativo evoluiu em nosso direito interno durante os 173<br />

anos do Brasil como nação independente.<br />

(BREVE) HISTÓRICO DO PROCESSO<br />

LEGISLATIVO NA BRASIL<br />

Com o fim da fase colonial, (época em que o processo legislativo<br />

era marcadamente autocrático) e com o surgimento do Brasil<br />

independente tivemos, a partir de 7 de setembro de 1822, a<br />

regra do processo representativo, sendo apenas interrompido pelo<br />

processo autocrático, nos interregnos de governos de fato:<br />

• De 7/9/1822 (data da proclamação da Independência do<br />

Brasil) a 3/5/1823 (data da instalação da Assembléia Geral Constituinte<br />

e Legislativa do Império do Brasil);<br />

• De 12/11/1823 (Dissolução da Constituinte) a 6/5/1826<br />

(Instalação da 1ª Legislatura Monárquica);<br />

• De 15/11/1889 (data da Proclamação da República) a 24/<br />

02/1891 (data da Promulgação da 1ª Constituição Republicana);<br />

2 APEED, José Afonso da Silva.<br />

Curso de Direito Constitucional<br />

Positivo. 9ª ed. rev. e ampl. São<br />

Paulo: Malheiros, 1992, p. 40.<br />

3 APEED, José Afonso da Silva,<br />

op. cit.<br />

4 APEED, José Afonso da Silva,<br />

op. cit.<br />

impulso<br />

23


5 CAMPANHOLE, Adriano,<br />

CAMPANHOLE, Hilton Lobo.<br />

Constituições do Brasil. compil.<br />

e atual. dos textos, notas revisão<br />

e índices. 11ª ed. São Paulo:<br />

Atlas, 1994, p. 775-776.<br />

• De 24/10/1930 (Revolução de 1930) a 16/7/1934<br />

(Constituição da Revolução de 1930);<br />

• De 10/11/1937 (Outorga da Constituição do Estado Novo)<br />

a 18/9/1946 (Promulgação da Constituição Liberal).<br />

• De 9/4/1964 a 27/10/65 (Período em que não se baixou<br />

decreto-lei e se teve a curiosa coexistência do processo autocrático<br />

e do representativo).<br />

• De 27/10/1965 (Ato Institucional nº 2) a 15/03/67 (Posse<br />

do Pres. Costa e Silva)<br />

Até a Carta de 1934 mantivemo-nos sob a orientação da doutrina<br />

clássica da separação dos poderes, mesmo durante a fase<br />

imperial e a existência do Poder Moderador.<br />

Apesar da Constituição de 1824 ter sido outorgada pelo Imperador,<br />

destacamos a inteligência do art. 178, que diz: É só constitucional<br />

o que diz respeito aos limites, e atribuições respectivas dos<br />

poderes políticos, e aos direitos políticos, e individuais dos cidadãos.<br />

Tudo, o que não é constitucional, pode ser alterado sem as<br />

formalidades referidas, pelas legislaturas ordinárias. 5 Desta forma<br />

tivemos uma Constituição semi – rígida, que em parte, dependendo<br />

da matéria, poderia ser alterada pelo procedimento padrão.<br />

Em seu art. 174 encontramos a limitação temporal para<br />

reforma, de 4 anos após ter sido jurada a Constituição<br />

Na Constituição de 1824 (do Império), art. 52 ao 70; a<br />

Constituição de 1891 (da República), art. 36 ao 40; a Constituição<br />

de 1934 (da Revolução de 1930) em seus artigos 41 ao 49 observamos<br />

a existência de emendas à Constituição e leis ordinárias,<br />

sendo que nas duas Constituições republicanas citadas incluem-se<br />

as resoluções.<br />

É em 1937, na Constituição do Estado Novo, outorgada por<br />

Getúlio Vargas, que localizamos a maior diversidade de atos legislativos,<br />

sendo um constitucional (emenda à Constituição) e doze<br />

ordinários, que elencamos a seguir:<br />

1) lei comum, votada pelo Parlamento (Câmara dos Deputados<br />

e Conselho Federal);<br />

2) lei votada apenas pelo Conselho Federal, para o Distrito<br />

Federal e os Territórios (art. 53);<br />

3) atos normativos do Conselho da Economia Nacional<br />

sobre as matérias das letras b e c do art. 61, sujeitos a veto absoluto<br />

implícito do Presidente da República (art. 62);<br />

4) legislação baixada pelo Conselho de Economia Nacional,<br />

autorizada por plebiscito da iniciativa do Chefe de Estado (art. 63);<br />

24 impulso


5) decretos-leis presidenciais até que se reunisse o Parlamento<br />

(art. 180);<br />

6) decretos-leis baixados pelo Presidente da República, por<br />

delegação do Parlamento (art. 12);<br />

7) decretos-leis do Presidente da República para atender às<br />

necessidades do Estado, durante o recesso ou dissolução do Parlamento<br />

(art. 13);<br />

8) decretos-leis expedidos livremente pelo Presidente da<br />

República sobre as matérias especificadas no art. 14;<br />

9) decretos-leis modificativos do Orçamento, por proposta fundamentada<br />

do Departamento Administrativo (art. 69, parágrafo 2º);<br />

10) atos do Presidente da República, determinando a execução<br />

provisória de tratados ou convenções internacionais (que,<br />

materialmente, podem ser de natureza legislativa, nos termos do<br />

art. 74, n);<br />

11) decretos legislativos, ou que outro nome tivessem, para o<br />

referendum do Parlamento aos tratados e à celebração da paz, bem<br />

como para autorização de declaração de guerra ou a passagem de<br />

forças estrangeiras pelo território nacional, pois seria absurdo concluir,<br />

do silêncio da Constituição, que tais atos (art. 74, d, g, h e i)<br />

ficassem sujeitos a sanção presidencial;<br />

12) resoluções de cada ramo do Parlamento, que só podia<br />

funcionar separadamente (art. 40). 6<br />

Notadamente foi a Carta constitucional que maior número de<br />

atos legislativos abrigou, da mesma forma como se demonstram<br />

terem sido desnecessários na medida em que a maioria da legislação<br />

ordinária veio sob a forma de decreto-lei, conforme previa o<br />

art. 180. Registre-se ainda que o número de decretos-leis alcançou<br />

a marca histórica de 9.<strong>90</strong>8 nesse período, incluindo-se entre eles a<br />

maioria dos Códigos vigentes como por exemplo: Código Penal,<br />

Código Penal Militar, Código de Propriedade Industrial, Código<br />

de Processo Penal, C.L.T. (Consolidação das Leis do Trabalho).<br />

Não podemos esquecer o momento político representado<br />

pelo regime de exceção que caracterizou a era Vargas, daí termos<br />

um processo legislativo tão esdrúxulo quanto compreensível.<br />

Em 1946, a Constituição (Liberal para uns e Conservadora<br />

para outros) recupera a doutrina clássica da divisão dos poderes,<br />

consagrando em seu art. 36, parágrafo 2º a indelegabilidade de<br />

atribuições entre os poderes da União.<br />

É em 1956, no Governo de Juscelino Kubitschek, que surge a<br />

idéia de Revisão do Processo Legislativo, de autoria da Comissão<br />

6 SAMPAIO, Nelson de Souza.<br />

O processo legislativo. São Paulo:<br />

Saraiva, 1967.<br />

impulso<br />

25


de Juristas que apresenta anteprojeto de forma cautelosa, a fim de<br />

aconselhar a delegação legislativa a comissões de qualquer das<br />

casas do Congresso; a autorização do Executivo para elaborar projeto<br />

de lei; a fixação de prazo para a apreciação dos projetos de<br />

iniciativa presidencial bem como, qualquer que fosse a iniciativa,<br />

para a revisão do projeto pela Câmara, sob pena de serem considerados<br />

aprovados, entre outras disposições.<br />

É neste período que começamos a antever o fracasso do processo<br />

de democratização que deveria consolidar-se à luz da<br />

Constituição de 1946.<br />

A proposta de Revisão do Processo Legislativo nos mostra a<br />

intenção do fortalecimento do Executivo em detrimento do Poder<br />

Legislativo como expressão máxima da democracia e com atribuição<br />

exclusiva sobre o processo de elaboração das leis.<br />

Com a eleição e renúncia do então Presidente Jânio Quadros<br />

chega-se ao auge de uma crise institucional, ratificada com os<br />

esforços que visavam ao impedimento do Vice-Presidente João<br />

Goulart em assumir a Presidência.<br />

Tal crise teve como desdobramento a Emenda Constitucional<br />

nº 4, de 2 de setembro de 1961, que adotou o parlamentarismo,<br />

consagrou a delegação legislativa e a categoria de lei complementar<br />

(art. 22).<br />

Com este cenário político e com a vigência da Emenda nº 4,<br />

caminhamos a passos largos para o movimento de 1964 (Golpe<br />

militar), que culminara com o Ato Institucional nº 1, de 9 de abril<br />

de 1964 e a instalação do primeiro Governo Militar, tendo como<br />

Presidente H. Castelo Branco.<br />

A Emenda nº 4, de 1964 traz inovações que irão vigorar até<br />

31 de janeiro de 1966, quais sejam: direito de iniciativa do Executivo<br />

para Reforma Constitucional, marcando prazo para sua tramitação<br />

no Congresso; limite de tempo para deliberação dos projetos<br />

presidenciais pelo Legislativo, os quais seriam considerados aprovados<br />

pelo esgotamento do prazo; inclusão dos projetos de criação<br />

ou aumento de despesa na iniciativa do Presidente da República,<br />

proibidas emendas que elevassem as despesas propostas.<br />

Com os ideais liberais somados aos governos da década de<br />

60, calcados em justificativas como a procrastinação legislativa e a<br />

necessidade de modernizar o processo legislativo com vista à<br />

necessidade de obter-se uma celeridade legislativa necessária ao<br />

novo regime político e modelo econômico adotado, parte-se para<br />

uma reforma do processo legislativo através da Constituição de 24<br />

26 impulso


de janeiro de 1967, que fixa o processo legislativo através de seu<br />

art. 49, onde lê-se: O processo legislativo compreende a elaboração<br />

de: I – Emendas à Constituição; II – Leis Complementares da<br />

Constituição; III – Leis Ordinárias; IV – Lei Delegadas; V –<br />

Decretos-Leis; VI – Decretos Legislativos; VII- Resoluções. 7<br />

Desta forma a Constituição do Regime autoritário de 1967<br />

estabelece uma clara ruptura com a ordem constitucional anterior<br />

no momento em que propõe, através de novas orientações, uma<br />

quebra com a doutrina clássica da separação dos poderes pela<br />

indelegabilidade do poder legislativo. Assim sendo, passa o Poder<br />

Executivo a participar efetivamente do processo legislativo e já<br />

não mais se limitando, juridicamente, à iniciativa do veto.<br />

Com o aumento da tensão social e a intensificação dos conflitos<br />

ideológicos inaugura-se, no Brasil, sob o comando do Presidente<br />

A. Costa e Silva, a chamada democracia excludente, especialmente<br />

pela edição do ato institucional nº 5, de 13/12/68, que<br />

reveste o Executivo de verdadeiro poder imperial.<br />

Em 17/10/69, os Ministros Militares, no uso de suas atribuições<br />

conferidas pelo art. 3º, do A. I. nº 10, de 14/10/69, combinado<br />

com o parágrafo 1º, do art. 2º, do A. I. nº 5, de 13/12/68 e considerando<br />

o fechamento do Congresso Nacional através do Ato<br />

Complementar nº 38, de 13/12/68, dão ao Brasil a Emenda Constitucional<br />

nº 1, com 217 artigos que, em seu art. 46, repete a redação<br />

do art. 49 da Constituição de 1967. Porém vale destacar a<br />

ampliação material que o Decreto-Lei recebe através do art. 55, da<br />

Emenda nº 1, que diz:<br />

O Presidente da República, em casos de urgência ou de<br />

interesse público relevante, e desde que não haja<br />

aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis sobre<br />

as seguintes matérias:<br />

I – Segurança nacional;<br />

II – finanças públicas, inclusive normas tributárias; e<br />

III – criação de cargos públicos e fixação de vencimentos. 8<br />

Neste contexto o país atravessa a década de 70; em seu final,<br />

com o General Ernesto Geisel, inicia-se o processo de abertura<br />

política e anistia, processo este que teve sua continuidade garantida<br />

durante o Governo do General João Batista Figueiredo. Neste<br />

momento histórico os reclamos dos diversos segmentos da sociedade<br />

civil não deixaram dúvida de que o momento seguinte, já na<br />

7 Constituição do Brasil, promulgada<br />

em 24 de janeiro de<br />

1967. Em: CAMPANHOLE,<br />

Adriano, CAMPANHOLE, Hilton<br />

Lobo. op. cit., p. 343.<br />

8 Constituição da República<br />

Federativa do Brasil, com redação<br />

dada pela Emenda Constitucional<br />

nº 1/1969. Em: CAMPA-<br />

NHOLE, Adriano, CAMPA-<br />

NHOLE, Hilton Lobo, op. cit.,<br />

p. 224.<br />

impulso<br />

27


década de 80, deveria ser o da efetiva democratização do país,<br />

onde já não havia mais terreno fértil para a Ordem Constitucional<br />

vigente, que ruía junto com o Regime Militar, portanto, o Brasil<br />

passava a viver a chamada Situação Constituinte, 9 conforme intitula<br />

o Senador Severo Gomes, o momento político-social vivido<br />

pelos brasileiros.<br />

Para a sucessão do Presidente João B. Figueiredo o Brasil se<br />

mobiliza para a aprovação da Emenda Dante de Oliveira que previa<br />

eleições diretas para presidente, não sendo aprovada pelo Congresso<br />

Nacional. Desta forma a eleição ocorre através do Colégio<br />

Eleitoral, tendo como resultado, a eleição de Tancredo Neves<br />

como Presidente e José Sarney como Vice – Presidente.<br />

Por uma fatalidade histórica Tancredo Neves é impedido, por<br />

sua morte, de assumir a Presidência da República, que é assumida<br />

por José Sarney para o cumprimento do mandato que, em cumprimento<br />

às promessas eleitorais de Tancredo de instalar uma Assembléia<br />

Nacional Constituinte e consequentemente dar uma nova<br />

Constituição ao Brasil, convoca a Assembléia Nacional Constituinte<br />

através da Emenda nº 26, de 27 de novembro de 1985.<br />

A Constituição de 1988, cognominada de Constituição<br />

Cidadã, por Ulisses Guimarães, na verdade traz em si uma das<br />

maiores e mais graves contradições. Isto é facilmente observado<br />

nos artigo 59 e seguintes que tratam do Processo Legislativo.<br />

A alteração mais significativa é a eliminação do Decreto-Lei,<br />

que naquele contexto significava o maior entulho do regime autoritário<br />

de 1964, porém ao apagar das luzes dos trabalhos constituintes,<br />

são engendradas no texto constitucional as chamadas Medidas<br />

Provisórias (art. 59 e 62 da Constituição Federal de 1988).<br />

Os atos legislativos estão elencados atualmente em nosso<br />

direito positivo no art. 59, onde se lê:<br />

9 GOMES, Sen. Severo. Situação<br />

constituinte. Em: ABRA-<br />

MO, Claudio, ROSSI, Clóvis,<br />

DALLARI, Dalmo de Abreu<br />

(org.). Constituinte e democracia<br />

no Brasil hoje. São Paulo:<br />

Brasiliense, 1985, p. 81-84.<br />

10 Constituição da República<br />

Federativa do Brasil: promulgada<br />

em 5 de outubro de 1988.<br />

Em: CAMPANHOLE, Adriano,<br />

CAMPANHOLE, Hilton<br />

Lobo, op. cit., p. 44.<br />

O processo legislativo compreende a elaboração de:<br />

I – emendas à Constituição;<br />

II – leis complementares;<br />

III – leis ordinárias;<br />

IV – leis delegadas;<br />

V – medidas provisórias;<br />

VI – decretos legislativos;<br />

VII – resoluções. 10<br />

28 impulso


Os atuais atos legislativos elencados no art. 59 estão divididos<br />

em duas categorias: 1º) Atos jurídicos de força constitucional:<br />

emendas à Constituição; 2º) Atos Infraconstitucionais: leis complementares,<br />

leis ordinárias, leis delegadas, decretos legislativos, resoluções<br />

e extraordinariamente medidas provisórias que deverão ser<br />

convertidas em lei pelo Congresso Nacional, num prazo de 30 dias.<br />

O processo legislativo padrão se abre por uma fase introdutória,<br />

a iniciativa (art. 61) passa por uma fase constitutiva, que compreende<br />

a deliberação (arts. 64, parágrafo 1º, 65) e a sanção (art.<br />

66) e uma fase complementar, (art. 66, parágrafo 5º e 7º) e também<br />

a publicação (art. 1º, da Lei 4657/42 – L.I.C.C. e art. 84, IV).<br />

CONCLUSÃO<br />

Consideramos que o processo legislativo, como se mostra na<br />

atual Constituição, extrapola a intenção de modernizar o Estado no<br />

que tange ao processo de elaboração das leis, ferindo, desta forma,<br />

a consolidação do Estado Democrático de Direito, na medida em<br />

que se mostra apenas e tão somente com vocação de estabelecer<br />

um fortalecimento do Executivo e um conseqüente desequilíbrio<br />

entre os Poderes, não desejado e nem tão pouco recomendado pela<br />

doutrina constitucional.<br />

A Constituição, como lei fundamental da nação (escrita ou<br />

costumeira), deve considerar que, anteriormente, a sociedade já se<br />

mostrava constituída naturalmente com um ordenamento prévio a<br />

que, todos os indivíduos se submetem e reconhecem, de forma<br />

legítima, e de modo mais involuntário que voluntário.<br />

O objetivo da Constituição é substituir o governo dos reis<br />

pelo governo das leis, observando que o legislador não elabora ou<br />

cria, mas revela a lei natural de forma racional.<br />

Assim, concluímos que o processo legislativo, por suas peculiaridades,<br />

deve garantir em todo o seu procedimento, um mínimo<br />

de legitimidade eliminando, ao máximo, as distorções existentes<br />

como, por exemplo, o exercício da função legislativa pelo Executivo<br />

que, quando permitido através do art. 62, transforma a<br />

Constituição do país, que deve ser um instrumento estável e garantidor<br />

dos direitos e limitador do poder, em um documento frágil e<br />

praticamente comparado a um programa de governo, que pode ser<br />

alterado a cada mandato presidencial e a qualquer tempo, gerando,<br />

dessa forma, instabilidade e insegurança aos seus destinatários.<br />

impulso<br />

29


REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS<br />

ABRAMO, Claudio, ROSSI, Clóvis, DALLARI, Dalmo de Abreu<br />

(org.). Constituinte e democracia no Brasil hoje. São Paulo:<br />

Brasiliense, 1985.<br />

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 16ª ed.<br />

ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 1994.<br />

CAMPANHOLE, Adriano, CAMPANHOLE, Hilton Lobo.<br />

Constituições do Brasil. Compilação e atualização dos textos,<br />

notas, revisão e índices. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 1994.<br />

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL:<br />

promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização dos textos,<br />

notas remissivas e índices por Juarez de Oliveira. 11ª ed. atual. e<br />

ampl. São Paulo: Saraiva, 1995. (Coleção Saraiva de legislação)<br />

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à<br />

Constituição brasileira de 1988. v. 2, São Paulo: Saraiva,<br />

1992.<br />

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional.<br />

18ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 19<strong>90</strong>.<br />

MONTESQUIEU, Charles de, SECONDAT, Baron de. (1689-<br />

1755). O espírito das leis. Introdução, tradução e notas de<br />

Pedro Vieira Mota. 3ª ed. aum. São Paulo: Saraiva, 1994.<br />

SAMPAIO, Nelson de Souza. O Processo Legislativo. São Paulo:<br />

Saraiva, 1967.<br />

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.<br />

9ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1992.<br />

30 impulso


FILOSOFIA DO <strong>DIREITO</strong><br />

EM HABERMAS<br />

JOÃO BOSCO DA ENCARNAÇÃO<br />

O presente estudo tem por escopo entender o conceito de<br />

Direito em Jürgen Habermas contribuindo para a identificação da<br />

crise do Direito.<br />

Partindo da “curiosidade” científica acerca do que poderia ser<br />

o Direito na época “pós-moderna”, examinamos a visão desse filósofo<br />

contemporâneo, para ver nela, quem sabe, uma identidade.<br />

Sua trajetória parte de uma orientação inicialmente situada<br />

na chamada “teoria crítica” da Escola de Frankfurt, mas logo<br />

envereda por caminhos próprios, que são, na verdade, um feixe<br />

eclético de doutrinas de várias linhas. Trazem consigo, no entanto,<br />

algo em comum: certo positivismo.<br />

Não é de admirar que Habermas, que começa com a crítica<br />

ao positivismo, venha a desembocar num rigor tão grande contra<br />

esse mesmo positivismo, que acaba dogmatizando seus princípios,<br />

para depurá-los de quaisquer influências ou interesses que possam<br />

“perturbar” a comunicação, cujo modelo ideal vem perseguindo.<br />

Em Conhecimento e interesse, Habermas ainda dizia que o<br />

positivismo é a negação da reflexão, 1 entendendo que a “neutralidade<br />

axiológica”, que o caracteriza, devia ser criticada, inclusive<br />

no pensamento de Max Weber, cujo “neokantismo” 2 constitui<br />

uma forma de positivismo, particularmente cínica da consciência<br />

burguesa”. 3<br />

Depois, no entanto, entendeu que o positivismo jurídico seria<br />

útil como instrumento de “integração social”, 4 inobstante o formalismo<br />

burocrático de Weber tenha provocado um empobrecimento<br />

1 Erkenntnis und Interesse, p. 3.<br />

2 Zur Logik der Sozialwissenschaften,<br />

p. 96.<br />

3 Zur Reconstruktion des Historischen<br />

Materialismus, p. 12.<br />

4 Zur Reconstruktion des Historischen<br />

Materialismus, p. 42<br />

e 144.<br />

impulso<br />

31


5 RH, p. 369 a 376.<br />

6 Der Philosophische Diskurs<br />

der Moderne, p. 331.<br />

7 Der Philosophische Diskurs<br />

der Moderne, p. 272.<br />

8 Zur Logik der Sozialwissenschaften,<br />

p. 96.<br />

9 Strukturwandel der Öffentlichkeit,<br />

p. 109.<br />

10 Strukturwandel der Öffentlichkeit,<br />

212.<br />

11 Cf. SANTOS, Juarez Cirino<br />

dos. Direito Penal: a nova parte<br />

geral. Rio de Janeiro: Forense,<br />

1985.<br />

do direito como instrumento organizativo, 5 criticando ainda a<br />

expansão da burocracia jurídica, 6 pois, como alertou Foucault, a<br />

expansão do direito acaba sendo um risco para os seus supostos<br />

beneficiários. 7 Isso, no entanto, não o impediu de ser reconhecido<br />

como um “positivista”, aliás, de um “positivismo vulgar”, como<br />

ele próprio refere 8 e acaba assumindo a adoção do “dogmatismo”<br />

na sua última obra, como instrumento de preservação da vontade<br />

pública.<br />

É essa mesma vontade pública que, no início, ao atribuí-la à<br />

“esfera pública burguesa”, julgava ser “dominadora”, 9 pois o<br />

público não participa da formação da vontade, mas apenas aclama<br />

o resultado do processo político. 10<br />

Habermas negou a “pretensão de universalidade da Hermenêutica”,<br />

mas cai no equívoco de universalizar a comunicação<br />

lingüística, como se tudo se resumisse no problema da linguagem.<br />

E mais que isso, fica na utopia da “situação ideal de fala”, que<br />

jamais ocorrerá.<br />

Isso é coerente com o “funcionalismo”, o “estruturalismo” e<br />

o “sistemismo”, próprios do positivismo sociológico-jurídico ou<br />

sociologismo jurídico, que, reagindo ao dogmatismo, numa “volta<br />

aos fatos”, apresenta, nas palavras de Juarez Cirino dos Santos, 11<br />

a visão de uma falsa unidade social (negando a existência das classes<br />

e a luta das classes) para propor, em síntese, mais integração e<br />

maior comunicação como formas de solução de conflitos sociais<br />

ou de superação da anomia.<br />

Enquanto isso, vamos nos arranjando como podemos! Marx<br />

não gostava dos “socialistas utópicos”, querendo logo partir para<br />

uma práxis dentro do que havia de real. Habermas, no entanto,<br />

pretende cumprir o testamento de Marx com uma figura ideal que,<br />

se ocorrer, tornará desnecessária a sua própria teoria. Habermas<br />

busca em Marx o Marx sociólogo, em detrimento do Marx economista,<br />

certamente em razão da sua procedência da sociologia. De<br />

outro lado, pode-se observar também, que sua teoria supõe uma<br />

sociedade organizada de maneira tal que dificilmente encontraria<br />

um Lebenswelt maduro para sua aplicação.<br />

A discussão com Luhmann, que não nos interessou em primeiro<br />

plano, pode acabar inócua, uma vez que o “purismo” da<br />

Teoria do Agir Comunicativo acaba minando-a justamente por não<br />

querer tomar partido, por temer o papel de ideologia. Se não o<br />

assume, entretanto, acaba sendo ideologia assim mesmo. A<br />

“Razão Comunicativa” é um canal vazio, onde se pode colocar<br />

32 impulso


qualquer líquido. Mais que isso, porém, uma forma vazia e elástica,<br />

que se amolda procedimentalmente conforme o seu conteúdo.<br />

E isso, paradoxalmente, é devido à sua rigidez dogmática, bastante<br />

visível. Embora a partir de princípios alocados topicamente, e<br />

visando um fim, não se impede que passe a ser, daí por diante,<br />

uma “ética de princípios”, mormente quando esse fim pragmaticamente<br />

colocado, é apenas e puramente o da comunicação ideal,<br />

quando interesse e razão coicidem, quando o interesse que guia o<br />

conhecimento é o interesse na emancipação.<br />

Como distinguiu O. Höffe, Habermas trabalha com algo abstrato,<br />

uma analogia, que é a linguagem, enquanto há toda uma realidade<br />

a sua volta. 12<br />

Se a sua filosofia, pretensamente “pós-moderna”, por “desfundamentalizar”<br />

a razão, junta Marx com Kant, através das diversas<br />

linhas filosóficas, do Pragmatismo, que entende uma filosofia<br />

prática, ao Estruturalismo Genético, que entende um modelo de<br />

diagnóstico crítico que pode ser transplantado para a crítica da<br />

sociedade, de modo “reconstrutivo”, não consegue escapar por<br />

isso dos modernos que pretende aperfeiçoar. É certo que o Estruturalismo<br />

pode se coadunar com o pensamento oriundo do Marxismo.<br />

Marx mesmo utilizou esse termo “estrutura” para se referir<br />

às ideologias sociais de modo geral. E não é contraditório também<br />

que Habermas junte Kant com Darwin, ainda nos moldes do velho<br />

positivismo comteano, pois o “Estruturalismo” tem a ver com a<br />

Biologia de Spencer, ao que Habermas junta o Pragmatismo, que<br />

se alia à Fenomenologia, segundo os princípios kantianos. 13<br />

Em suma, Kant com Marx, ou um Kant marxista e um Marx<br />

kantianizado, ambos “desfundamentalizados”, resulta num Habermas.<br />

Mas vai perdendo Marx de vista. Na área particular da filosofia<br />

do direito, Habermas é um Savigny com Kelsen.<br />

A diferença da sua teoria para o Direito Natural Moderno é<br />

que este se fundava na lei como “declaração” de direitos (direitos<br />

naturais) e para ele a lei também é uma declaração, mas não passa<br />

de uma declaração de vontades estabelecidas pelo consenso.<br />

O relativismo de Habermas, que ele tenta consertar com uma<br />

dose excessiva de dogmatismo, é mais grave do que o da Teoria do<br />

Conhecimento. Kant ainda conciliava “Razão Pura” e ”Razão Prática”,<br />

deixando um lugar para o que a razão não era capaz: a religião.<br />

Talvez o seu fundamentalismo permitisse isso. No caso de<br />

Habermas, entrentanto, o sonho de criar algo sutil como a Razão<br />

Comunicativa, que paira num abstrato sem ligação alguma com<br />

12 HÖFFE, Otfried, p. 14.<br />

13 Cf. História do pensamento.<br />

São Paulo: Nova Cultural, v. IV,<br />

p. 705; e também BONOMI,<br />

Andrea. Fenomenologia e estruturalismo.<br />

São Paulo: Perspectiva,<br />

1974.<br />

impulso<br />

33


14 Cf. ND, p. 9.<br />

15 Nachmetaphysisches Denken,<br />

p. 25.<br />

16 Nachmetaphysisches Denken,<br />

p. 62; cf. p. 186.<br />

17 Nachmetaphysisches Denken,<br />

p. 186.<br />

qualquer tipo de fundamentação (diga-se aliás, fundação, o que<br />

subentende tradição), acabou ironizado por ele mesmo. Após analisar<br />

a recente tentativa de volta à metafísica, 14 diz que para o europeu<br />

o termo “metafísica” lembra religião, ou seja, a história da<br />

salvação judaico-cristã. 15 Inobstante, incluiu entre os “metafísicos”<br />

Kant, Fichte e Hegel, de cujos pensamentos não consegue escapar.<br />

Por fim, confessa que um cotidiano totalmente profanizado não é<br />

possível: a religião é insubstituível e o pensamento pós-metafísico<br />

coexiste com uma práxis religiosa, pois a filosofia, em sua forma<br />

pós-metafísica, não pode substituí-la e nem eliminá-la. 16 A pretensa<br />

indiferença positivista para com a metafísica só mostra o<br />

receio do confronto. Ainda aqui acaba seguindo uma tradição:<br />

aquela que separa fé e razão.<br />

Trata-se, com efeito, de uma “esperança desesperada” de<br />

quem está por um fio. O próprio Habermas responde às críticas: A<br />

Razão Comunicativa é certamente uma tábua insegura e vacilante,<br />

mas não se afunda no mar das contingências, ainda quando tal<br />

estremecimento em alto mar seja o único modo como pode “dominar”<br />

as contingências. 17 Ou seja, sobrevive do não confronto, do<br />

conformar-se de uma tábua que não enfrenta, mas que se mantém<br />

sempre ao sabor das ondas. Um caniço que não racha porque se<br />

curva na direção do vento. Parece que não se trata de uma dialética,<br />

mas de uma aceitação. A luta contra a tradição, tão propugnada<br />

pelo Iluminismo, se mantém com as mesmas armas do<br />

adversário.<br />

Habermas quer ser crítico, mas se insere como nenhum<br />

outro, no seio de uma tradição.<br />

Seu conceito de Direito segue essa filosofia. O Direito como<br />

instrumento, compondo normas de segundo grau, sugere questões<br />

interessantes. A denúncia de uma tendência à burocratização e à<br />

expansão do Direito como meio de controle estatal, por exemplo,<br />

faz sentido. Contra isso é o princípio do “Direito Mínimo” que, é<br />

um princípio do Liberalismo, seguindo a idéia de que o Estado é<br />

um mal necessário e, pois quanto menos melhor. Revela-se, portanto,<br />

e ainda, um liberal, e, por mais que procure inaugurar um<br />

“pós-modernismo”, não se desprende das raízes modernas.<br />

Revela-se, no entanto, um arauto do governo das leis, as mesmas<br />

que sugeriu não estarem cumprindo a função de garantir a liberdade,<br />

mas pesando como definidora de deveres. Ao mesmo tempo<br />

sustenta que só o dogmatismo pode garantir a liberdade!<br />

34 impulso


Se olharmos por dentro de um “tridimensionalismo” fragmentado,<br />

que considera “fato”, “valor” e “norma” isoladamente,<br />

sendo “fato” relacionado com o sociologismo jurídico, “valor”<br />

com um certo direito natural ou a preocupação pelo justo, e<br />

“norma” como dogmatismo do positivismo jurídico, a crítica de<br />

Habermas se situa claramente contra “valor” e “norma”, privilegiando<br />

a ocorrência sociológica (fato), o que não impedirá de cair<br />

também num dogmatismo de ordem sociológica. É por isso que<br />

dizíamos anteriormente que o verdadeiro embate se dá contra a<br />

Ontologia, de modo especial contra a Hermenêutica Filosófica e<br />

contra as perspectivas de um certo Direito Natural. 18<br />

Na sua última obra, “Faktizität und Geltung...”, absorve-se<br />

no estudo mais direto da filosofia do direito e ali demonstra que<br />

“fato” e “norma”, ou seja, “eficácia” e “vigência”, são os dois elementos<br />

consideráveis do Direito. Entretanto, quando se fala de<br />

norma, supõe-se valorações de condutas e, pois, uma ideologia.<br />

Se concordarmos com o diagnóstico de Habermas, não aceitamos<br />

a colocação do Direito em si como instrumento meramente<br />

comunicativo, produto ainda da mera comunicação, na forma de<br />

um culturalismo ou, como o quer Habermas, de uma “razão comunicacional<br />

pura”.<br />

Em primeiro lugar, devemos nos perguntar se a vontade geral<br />

é possível. Aristóteles 19 já havia alertado para a possibilidade da<br />

“democracia”, ou seja, para um governo pela vontade popular, pois<br />

esta é vulnerável à “demagogia”, à ação dos condutores do povo,<br />

que são exatamente os líderes políticos que deverão representar o<br />

povo e discutir sua vontade no parlamento, como asseveram clássicos<br />

como Rousseau ou mesmo Savigny. Isso é válido para sociedades<br />

mal organizadas ou para sociedades altamente organizadas,<br />

embora nos meios menos estruturados, como são países como o<br />

Brasil, fique mais fácil entender a insuficiência dessa teoria.<br />

O próprio Habermas, no início, ao apontar para a circunstância<br />

de que a vontade popular, fruto do consenso, é na verdade provocada<br />

pela propaganda, que domestica, 20 responde negativamente<br />

a essa questão. Mas posteriormente, acabou entendendo que<br />

“compreender” é “concordar”, 21 acreditando numa “ética do discurso”,<br />

que implica não em valores, mas apenas numa validez<br />

deôntica. 22 É a conexão essencial entre “eficácia” e “vigência”,<br />

tema de sua última obra, “Faktizität und Geltung...”<br />

Por outro lado, subtraindo-se a verdade à Ontologia, deixando-a<br />

ao sabor da vontade popular, se é que essa vontade sem<br />

18 Há muitos conceitos de Direito<br />

Natural. Sobre Direito Natural,<br />

o pensamento de Heidegger<br />

e a Hermenêutica, cf. a obra do<br />

prof. Aloysio Ferraz Pereira, segundo<br />

o qual nos orientamos e<br />

que está relacionada na Bibliografia.<br />

19 Política, Capítulo IV.<br />

20 Strukturwandel der Öffentlichkeit,<br />

p. 229.<br />

21 Vorstudien und Ergänzungen<br />

Zur Theorie des Komunicativen<br />

Handelns, p. 704 a 707.<br />

22 MH, p. 126.<br />

impulso<br />

35


23 FG, 11.<br />

24 Ética a Nicômaco, Livro V.<br />

25 MAXIMILIANO, Carlos.<br />

“Hermenêntica e aplicação do<br />

direito.”,op. cit., p. 33.<br />

26 Cf. GILISSEN, John. Introdução<br />

histórica ao Direito.<br />

Trad. A.M. Hespanha e L.M.<br />

Macaísta Malheiros. Lisboa:<br />

Fundação C. Gulbenkian, 1988.<br />

No âmbito específico do Direito<br />

Penal e da aplicação da pena,<br />

cf. o clássico estudo de SALEI-<br />

LLES, R. L'individualisation<br />

de la peine. 2ª ed. Paris: Felix<br />

Alcan, 1<strong>90</strong>9.<br />

condução é possível, caímos num relativismo e não temos parâmetros.<br />

O período do Nazismo, por exemplo, que Habermas cita<br />

como um período de “distorção” do Direito, demonstra a ele<br />

mesmo que o Direito como mera expressão da vontade, pelo<br />

Estado, corre esse tipo de risco. Uma comoção popular, um povo<br />

comovido, um povo conduzido, uma vontade entusiasmada... Um<br />

grande perigo.<br />

Finalmente, em relação às conseqüências hermenêuticas da<br />

teoria habermasiana, basta dizer que ele mesmo confessou-se<br />

inapto para a discussão de caráter jurídico. 23<br />

Realmente, falta-lhe a experiência do aplicador do Direito. A<br />

lei, por ser genérica, contém, na sua própria essência, a lacuna da<br />

generalidade. O momento e a ocasião da feitura da norma são<br />

necessariamente diversos do momento e ocasião da sua aplicação,<br />

seja pelo dinamismo da vida social, seja pela individualidade de<br />

cada um.<br />

Aristóteles 24 já ensinava que a eqüidade é necessária para corrigir<br />

o erro da lei, feita não pela inspiração do justo, mas do conveniente.<br />

Sua generalidade compõe seu erro e na prática da sua aplicação,<br />

quando esta se realiza, faz-se mister torná-la equitativa, justa.<br />

Habermas acredita que a interpretação hermenêutica só é<br />

necessária diante do “entendimento perturbado”, encarando a hermenêutica<br />

como mero “procedimento” que não pode interferir<br />

materialmente para não comprometer a vontade popular já formalizada<br />

na norma. É por isso que assevera que a “ética do discurso”<br />

não abstrai conteúdos, ou seja, assegura-se conteúdos (eficácia)<br />

pela validez (vigência) da norma.<br />

Entretanto, a não interpretação, como ponderou Carlos Maximiliano,<br />

25 é impossível. A intransigência do “Code de Napoleón”<br />

não durou muito e logo se teve que facilitar a individualização da<br />

aplicação da lei, inclusive da lei penal, com sua então rígica legalidade.<br />

26<br />

A proibição de interpretar só faz mascarar a ideologia do<br />

aplicador e a “corrupção” da ordem legal. Afinal a lei tem uma<br />

razão primeira, um fim último, e para seu cumprimento é que deve<br />

ser adaptada a cada instante da sua “realização”. A lei é instrumento<br />

e não fim em si mesmo: visa prevalecer a harmonia do<br />

justo, da conduta segundo a verdade. O Direito em si é que não<br />

pode ser instrumento, pois deve ser o arcabouço da verdade em si<br />

mesma, privilegiando a sua realização prática como justo.<br />

36 impulso


Se a questão é “verdade” ou “método”, Habermas opta pelo<br />

método, querendo um paradigma procedimental para o Direito, o<br />

que não é novo na História do pensamento.<br />

A semelhança de Habermas com Tobias Barreto não fica só<br />

no fato de ambos acharem difícil a prática do pensar num país<br />

como o Brasil.<br />

Para Tobias Barreto, que seguia o pensamento alemão do seu<br />

tempo bem de perto e, portanto, a mesma tradição de Habermas, o<br />

Direito não é revelado e nem descoberto (abandona os conceitos<br />

de Direito Natural Clássico e Moderno), mas é produzido pelo<br />

grupamento humano e suas condições concretas de estruturação e<br />

reprodução. 27 Tobias era um positivista de primeira geração.<br />

Evidentemente, para um pensamento oriundo da Sociologia,<br />

interessa (e aqui entra o interesse que guia o conhecimento) o estabelecimento<br />

de uma prática social. Esse cotidiano social, a realidade<br />

em que o Direito se encontra, não pode ser ignorada. O crescimento<br />

do Direito positivo como forma de controle da vida social<br />

evidentemente também é um “uso” do Direito. Mas isso diagnosticado,<br />

não permite um empirismo tal, ainda que revestido de uma<br />

“Razão Comunicacional”, que faça das combinações tópicas um<br />

determinante para o conceito de justiça.<br />

Há que entender isso, sob pena de não termos um parâmetro<br />

de verdade e justiça e acabarmos fomentando uma ideologia!<br />

Nesse ponto ao menos concordamos com Ricoeur: Uma busca da<br />

verdade, sem crítica da própria busca, torna-se uma ideologia, assim<br />

como é ideologia uma crítica tal que não permita a busca. E acrescentamos:<br />

a crítica diagnostica, mas não cura. Para a solução do<br />

problema diagnosticado, o método não basta. É preciso corrigir a<br />

cada instante a generalidade do comando legal, ainda que obediente<br />

a um procedimento constitucional, convertendo-o topicamente<br />

naquilo para o que foi predestinado: instrumento de aplicação da<br />

justiça. Ao contrário do que pretende Habermas, como solução, a<br />

lei é meio e o Direito é fim, pois o Justo independe da vontade e é<br />

a aplicação de um princípio teórico de Verdade, a Igualdade. Eqüidade,<br />

mais que a mera busca da solução quando não há lei, é a<br />

manutenção ou resgate da Igualdade, no cumprimento da finalidade<br />

da lei como instrumento, que é a realização do Direito. Para<br />

isso, não há método eficaz, pois como sabiamente ponderou Gadamer,<br />

o homem experiente sabe da fragilidade de todos os planos e<br />

é, assim, um decepcionado, na medida em que não pode determi-<br />

27 Introdução ao Estudo do Direito.<br />

Estudos de Direito. Rio de<br />

Janeiro: Laemmert, 1892, p. 36;<br />

cf. BATISTA, Nilo. Introdução<br />

crítica ao Direito Penal brasileiro.<br />

Rio de Janeiro: Revan,<br />

19<strong>90</strong>, p. 18.<br />

impulso<br />

37


nar a realidade conforme a sua vontade num arremedo de ontologia<br />

que é o dogmatismo. Ao contrário, a verdade vem por si só.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro.<br />

Rio de Janeiro: Revan, 19<strong>90</strong>.<br />

BONOMI, Andrea. Fenomenologia e estruturalismo. São Paulo:<br />

Perspectiva, 1974.<br />

GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Trad. A.M.<br />

Hespanha e L.M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação C.<br />

Gulbenkian, 1988.<br />

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito.<br />

10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988.<br />

PEREIRA, Aloysio Ferraz. Estado e direito na perspectiva da libertação.<br />

São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.<br />

PEREIRA, Aloysio Ferraz. O direito como ciência. São Paulo:<br />

Revista dos Tribunais, 1980.<br />

PEREIRA, Aloysio Ferraz. História da filosofia do direito. São<br />

Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.<br />

SALEILLES, R. L'individualisation de la peine. 2ª ed. Paris: Felix<br />

Alcan, 1<strong>90</strong>9.<br />

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: a nova parte geral.<br />

Rio de Janeiro: Forense, 1985.<br />

38 impulso


A TEORIA DA JUSTIÇA<br />

DE JOHN RAWLS E<br />

ALGUMAS DIFICULDADES:<br />

UMA LEITURA<br />

JORGE ATÍLIO SILVA IULIANELLI<br />

A abordagem que Rawls faz da justiça é apresentada não<br />

como uma teoria moral, mas como uma teoria da justiça stricto<br />

sensu. 1 Ele, portanto, pretende discutir quais princípios devem<br />

orientar a ação justa dos indivíduos e da sociedade, mas não pretende<br />

abordar o conjunto de normas que deve reger a vida dos<br />

indivíduos. Por outro lado, como seria impossível travar tal discussão<br />

sem reconhecer-se comprometido com a lguma teoria moral,<br />

ele assume estar falando desde uma perspectiva que chama de kantiana.<br />

2 Assim, sua postura moral é deontológica e não teleológica:<br />

a conduta seria orientada por valores subjetivamente assumidos,<br />

autonomamente, e não em vista a alcançar algum bem. Assim, uma<br />

das teorias da justiça que assume como concorrente é o utilitarismo,<br />

na medida em que esse possui o princípio da benevolência 3<br />

(alcançar o maior bem possível com a ação moral).<br />

A teoria da justiça construída por Rawls possui alguns conceitos<br />

básicos, quais sejam, posição original, véu da ignorância,<br />

equilíbrio reflexivo ou ponderação racional, sujeito racional, princípio<br />

da igualdade democrática e da diferença, justiça processual ou<br />

procedural. Esses conceitos querem expressar primeiramente, que<br />

o sujeito da justiça é a estrutura básica da sociedade e, por conseguinte,<br />

a justiça é estabelecida contratualmente. A estrutura básica<br />

1 RAWLS, John. Uma teoria da<br />

justiça. Trad. Vamireh Chacon.<br />

Brasília: UNB, 1981, p. 37.<br />

2 RAWLS, John, loc. cit., p. 22.<br />

Falando de seus propósitos com<br />

Uma teoria da justiça, afirma:<br />

“A teoria resultante é muito<br />

próxima da de Kant”.<br />

3 FRANKENA, W. Ética. São<br />

Paulo: Zahar, 1981, p. 59.<br />

impulso<br />

39


4 RAWLS, John, op. cit., p. 27.<br />

5 RAWLS, John, op. cit.,<br />

p. 57ss. (par. 9)<br />

6 TUGENDHAT, E. Problemas<br />

de la ética. México, 1983,<br />

p. 15-38.<br />

7 Estou pensando efetivamente<br />

em duas possibilidades de sentido<br />

para comunidade ética.<br />

Uma é tomista, como expressa,<br />

por exemplo, Marcelo Perine<br />

(PERINE, M. Precisamos de<br />

uma nova moral? Impulso, Piracicaba,<br />

v. 14, n. 7, p. 92,<br />

1994.): “A tradição tomista<br />

cristã permite, por exemplo,<br />

uma compreensão da sociedade<br />

humana como comunidade ética.<br />

Por comunidade ética entende-se<br />

aqui um 'modo de vida<br />

em sociedade no qual as relações<br />

intersubjetivas são regradas<br />

por leis concebidas como<br />

leis públicas'”. A outra concepção<br />

nos é oferecida por Habermas<br />

ao compreender a comunidade<br />

lingüística como comunidade<br />

regulativa (HABERMAS,<br />

J. Justification and application.<br />

Cambridge: MIT Press, 1993,<br />

p. 40.), conforme ao falar de<br />

proibições, obrigações e sentimentos<br />

morais, afirma: “Eles<br />

todos pertencem a uma comunidade<br />

na qual relações interpessoais<br />

e ações são reguladas<br />

por normas de interação e podem<br />

ser julgadas à luz dessas<br />

normas como justificáveis ou<br />

injustificáveis”.<br />

é composta pelo conjunto dos indivíduos de uma dada sociedade.<br />

Isso implica numa atitude procedural da justiça. Assim, a justiça<br />

possibilita a ação justa e não, necessariamente, a boa ação. Embora<br />

entre o bem e a justiça exista uma relação de proximidade e semelhança,<br />

eles não se confundem, nem a justiça esgota a moralidade<br />

da ação.<br />

A visão contratualista da teoria da justiça Rawls remonta a<br />

Locke, Rousseau e Kant. Sua intenção é, a partir dessas teorias,<br />

apresentar uma da justiça capaz de, em disputa com o utilitarismo<br />

e o intuicionismo, estabelecer uma concepção de justiça orientada<br />

por princípios e orientadora da ação que possa ultrapassar os limites<br />

da ação dirigida para a consecução do maior bem possível,<br />

apenas, ou guiada pelo sentimento ou emoção. “A linha mestra é a<br />

produção de uma teoria de justiça que seja uma alternativa viável<br />

a estas doutrinas, que têm dominado por muito tempo nossas tradições<br />

filosóficas”. 4<br />

A proposta de nossa reflexão é identificar os principais passos<br />

na construção da teoria da justiça de Rawls, identificando suas<br />

contribuições, especialmente no que tange à discussão do equilíbrio<br />

reflexivo. 5 Em seguida, discutirei as críticas metodológicas<br />

apresentadas por Tugendhat. 6 Finalmente, procurarei expor brevemente<br />

algumas considerações sobre o seguinte problema: é possível<br />

considerar a estrutura básica da sociedade como uma comunidade<br />

ética? 7 Em outros termos, a apresentação de uma posição original,<br />

que seria um acordo entre os membros de uma dada sociedade<br />

constitui uma comunidade ética?<br />

A TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS:<br />

O EQUILÍBRIO REFLEXIVO<br />

O equilíbrio reflexivo, como metodologia, oferece um grave<br />

problema quanto a sua exeqüibilidade. Rawls propõe-se discutir<br />

infindavelmente sua concepção de justiça (interessam apenas as<br />

dele e as do leitor), de modo a dirimir as dúvidas. Trata-se de um<br />

conjunto de ponderações: parte-se das afirmações do senso comum<br />

sobre justiça, investiga-se sua plausibilidade e procede-se de forma<br />

a questionar-lhes as pretensões ou antepondo dúvidas possíveis.<br />

Verificado erro nas concepções, procede-se à verificação de sua<br />

extensão. Nesse sentido, o recurso a outras teorias concorrentes é<br />

tão legítimo como o recurso a exemplos de fatos de justiça tomados<br />

do cotidiano, que, no entanto, são preferíveis àquelas.<br />

40 impulso


Por outro lado, dado o caráter primitivo das abordagens sobre<br />

a teoria da justiça, o recurso à teoria do contrato fica legitimado. 8<br />

Uma das mais interessantes afirmações sobre a noção de equilíbrio<br />

reflexivo refere-se ao papel temporário ou transitório das definições,<br />

elas não estão num primeiro plano, mas sim à possibilidade<br />

do questionamento enquanto permanecer alguma dúvida<br />

possível:<br />

do ponto de vista da filosofia moral, o melhor apanhado<br />

do sentido de justiça de uma pessoa, não é o que<br />

se adaptava anteriormente a seus julgamentos no exame<br />

de qualquer conceito de justiça, mas será o que confronta<br />

seus julgamentos em equilíbrio reflexivo. 9<br />

A primeira idéia realmente importante na concepção de<br />

Rawls é que justiça possui um papel fundamental na regulamentação<br />

das instituições e da vida das sociedades, isso porque “justiça<br />

é a primeira virtude para as instituições sociais como a verdade<br />

para o pensamento” (§ 1). Assim sendo, é necessário considerar<br />

como a justiça pode ordenar as instituições ou a ordem na sociedade,<br />

assim como a verdade pode ser orientadora do pensamento.<br />

Ou seja, é necessário verificar a afirmação da prioridade da virtude<br />

da justiça. Há três ordens de problemas para o estabelecimento da<br />

justiça como capaz de desempenhar o papel de instituir a boa<br />

ordem na sociedade: é necessário que haja algum entendimento<br />

sobre o que é justiça; em segundo lugar, é necessário que exista<br />

uma compreensão desse conceito que seja eficaz, i.e., capaz de<br />

estabelecer a boa ordem; finalmente, é necessário que a justiça<br />

estabeleça efeitos desejáveis, que seja estabilizadora das relações.<br />

Rawls afirma que essas suas idéias, expostas no primeiro<br />

parágrafo da primeira parte, guardam o básico de sua teoria da justiça.<br />

Isso significa ao menos três coisas: justiça é um acordo da<br />

estrutura básica da sociedade; tal acordo, necessariamente conduz à<br />

boa ordem, à estabilidade-equilíbrio; o sujeito da justiça é a estrutura<br />

básica da sociedade – as instituições sociais. Assim a principal<br />

idéia de justiça (§ 3) é a do estabelecimento de um contrato social<br />

que, acima de ser um acordo capaz de erigir a sociedade ou seu<br />

governo, deve ser compreendido como o acordo original, numa<br />

posição original de igualdade entre todas as partes, reunidas pelos<br />

mesmos interesses, elegendo princípios orientadores (reguladores)<br />

8 Este recurso à teoria do contrato<br />

é tão legítimo como o seria<br />

qualquer outro, apesar das imprecações<br />

de Rawls contra o intuicionismo<br />

e o perfeccionismo.<br />

No entanto, isso não afeta o fundamental<br />

da noção de equilíbrio<br />

reflexivo, muito embora não<br />

apresente nenhum argumento<br />

em favor de sua exeqüibilidade,<br />

a não ser no sentido de tratar-se<br />

de uma tentativa filosófica infindável.<br />

9 RAWLS, John, op. cit., p. 59.<br />

impulso<br />

41


10 RAWLS, John, op. cit., p.<br />

119.<br />

de entendimentos e cooperações sociais. “A esta maneira de ver os<br />

princípios de justiça chamaremos de eqüidade” (p. 33).<br />

O mais complicado desse acordo na posição original é que<br />

ele é celebrado entre seres racionais. Nesse ponto, Rawls está<br />

assumindo uma das complexas opções da ética kantiana, qual<br />

seja, a proposição de que a razão é o móvel da lei moral, e,<br />

portanto, a obrigação moral, a responsabilidade moral, que é a<br />

outra face da obrigação, são frutos de uma decisão racional, um<br />

juízo racional construído autonomamente pelo sujeito da ação.<br />

Assim, a moralidade do ato não se encontra na relação exclusiva<br />

com o bem, mas, principalmente, na consciência moral do agente<br />

(Cf. CrPr I, I). A máxima se erige em lei universal porque é uma<br />

decisão racional, aplicável, pois, a todos os seres de razão.<br />

Frankena, por exemplo, apresenta como dificuldade a isso o fato<br />

de nem toda máxima, racional, desejável, poder ser erigida como<br />

lei universal. (Ver FRANKENA, W. op. cit. p. 48) Mas as questões<br />

emergentes dessa opção kantiana são ainda maiores quando<br />

consideramos o problema da racionalidade: por que considerar<br />

que os homens, como agentes morais, identificam-se como seres<br />

de razão? Qual a legitimidade da afirmação da moralidade ser<br />

regida por uma razão, ainda que prática? Não obstante concordar<br />

com as afirmações questionadas, é necessário advertir que aí se<br />

trata de uma opção complexa.<br />

Esse conceito de racionalidade não está explicado, mas<br />

Rawls fala em “juízos racionais”, que elegem uma compreensão<br />

de bem; fala, também, em “metas racionais” no sentido de objetivos.<br />

Isso, a racionalidade do acordo e a igualdade dos contraentes,<br />

estabelece a justiça como eqüidade.<br />

A posição original é fundamental para o estabelecimento da<br />

justiça. Ela corresponde ao estado de natureza no contrato social.<br />

Nela os contratantes encontram-se todos numa situação de ignorância<br />

sobre a própria situação social (status), posição de classe ou<br />

quanto cabe a cada um na distribuição de bens ou capacidades naturais,<br />

como inteligência, força e outras. Eles também desconhecem<br />

conceitos de bem ou propensões psicológicas específicas. Para que<br />

a justiça como eqüidade possa ser estabelecida, é necessário supor<br />

um acordo fundamentado nessa mútua ignorância, nessa condição<br />

de igualdade, na qual ninguém leva vantagem ou é prejudicado. A<br />

esse “desconhecimento” Rawls chama “véu da ignorância”. 10<br />

Mas, esse “véu da ignorância”, que promove a igualdade<br />

fundamental da posição original, supõe alguns conhecimentos:<br />

42 impulso


“sua sociedade está sujeita às circunstâncias da justiça e do que<br />

isto implica”, “entendem os assuntos políticos e os princípios da<br />

teoria econômica; sabem a base da organização social e as leis da<br />

psicologia humana”. Isso é assim por um motivo simples, no<br />

entanto, não evidente: os princípios de justiça que regulam a boa<br />

ordem “precisam se adaptar às características do sistema de cooperação<br />

social, às quais devem regular, e não há razão para excluir<br />

esses fatos”. Há duas possibilidades de explicação do véu da<br />

ignorância, uma mais próxima à teoria kantiana, outra mais pragmática.<br />

Tomaremos a possibilidade kantiana adiante ao falarmos<br />

da racionalidade pressuposta.<br />

O véu da ignorância o que é? Trata-se de uma defesa da eqüidade,<br />

para que possa ser escolhida uma concepção de justiça que<br />

afete a todos sem o comprometimento das diferenças naturais. Isto<br />

é, o véu da ignorância permite uma decisão unânime sobre a concepção<br />

de justiça. Isso porque, se tal desconhecimento está estabelecido,<br />

ninguém vai negociar melhores favorecimentos que outros.<br />

Além disso, qualquer um poderá participar da posição original em<br />

qualquer momento. Mesmo as gerações futuras ficam garantidas<br />

pela concepção de justiça estabelecida nessa posição original, na<br />

medida em que não há ponderações sobre a necessidade de poupar<br />

ou não, de reagir ou não às soluções de justiça que a história já<br />

ofereceu. Não há concepção de justiça existente na posição original;<br />

apenas existe uma situação de igualdade fundamental, que<br />

permite a ereção de uma concepção de justiça: “cada um está forçado<br />

a escolher por todos”.<br />

Dessa forma, a concepção de justiça nasce com dois princípios<br />

fundamentais, necessariamente: o princípio da igualdade<br />

democrática e o da diferença distributiva. Pois, se na posição original<br />

há uma igualdade fundamental, o princípio da igualdade democrática<br />

como que decorre dela; e, por outro lado, como ninguém<br />

deseja tirar vantagens da situação do outro, a justiça distributiva é<br />

eqüitativa. Na verdade, Rawls afirma que estes dois princípios são<br />

aqueles possíveis de “serem escolhidos na posição inicial” (§ 11,<br />

p. 67). Esses princípios devem ser compreendidos de forma serial,<br />

isto é, a igualdade democrática deve preceder à diferença distributiva.<br />

No entanto, de forma alguma Rawls está afirmando que a justiça<br />

é conduzida apenas por estes princípios, mas sim que estes são<br />

fundamentais e que quaisquer outros a eles estão subordinados.<br />

É na descrição desses princípios que se dará a afirmação de<br />

uma teoria da justiça que seja uma “alternativa viável”. Todo o<br />

impulso<br />

43


11 Os princípios da igualdade<br />

democrática e da diferença distributiva<br />

referem-se às<br />

instituições sociais. Rawls adverte<br />

que apenas na segunda<br />

parte discute qual dos princípios<br />

deve ser adotado (Ver RAWLS,<br />

John, op. cit., p. 63.). Os princípios<br />

dão sustentabilidade a idéia<br />

de justiça processual, que será<br />

explicada adiante.<br />

12 Entende-se por instituições<br />

“um sistema público de regras<br />

que determina ocupações e posições<br />

acompanhadas por seus<br />

respectivos direitos e deveres,<br />

poderes, imunidades e semelhantes”.<br />

Cf. RAWLS, John,<br />

op. cit., p. 63.<br />

13 Os parágrafos 10-17, assim<br />

como toda a segunda parte, tratam<br />

das instituições. Os parágrafos<br />

18-19 e 51-52, embora<br />

existam outros dispersos (66-<br />

67; 78 e 82), dizem respeito aos<br />

princípios orientadores dos<br />

indivíduos e serão abordados<br />

adiante.<br />

14 RAWLS, John, op. cit., p.<br />

66-67.<br />

capítulo 2 da primeira parte (§§ 10-19), bem como a segunda parte<br />

(§§ 31-50), especialmente), explicam os dois princípios e suas<br />

decorrências, assim como os princípios auxiliares, por assim dizer. 11<br />

A noção dos princípios ficará, para Rawls, vinculada à racionalidade<br />

da Teoria da Justiça. Mas, de certa forma, a descrição dos<br />

princípios independe dessa racionalidade pretendida. Eles estão<br />

ordenados em acordo com o “bom senso” (senso comum). A obrigatoriedade<br />

que pretendem também advém da força do contrato.<br />

Há duas ordens de princípios de justiça: os que se aplicam às<br />

instituições 12 e os que se aplicam aos indivíduos. 13 Estas ordens<br />

não devem ser confundidas, pois se aplicam a sujeitos diferentes.<br />

Para o que interessa inicialmente, a saber, a análise da opção por<br />

princípios na posição original, é necessário conceber a estrutura<br />

básica da sociedade como constituída por instituições e essas submetidas<br />

a uma concepção comum de justiça, sem o que seria<br />

impossível escolher princípios que pudessem torná-la exeqüível.<br />

Sem dúvida, há vários problemas sobre esse ponto de partida<br />

que Rawls adota, e ele os reconhece e procura refutá-los. Basicamente<br />

podem ser resumidos em dois: as instituições podem ser<br />

injustas? Ou, elas não podem estar inseridas em um sistema social<br />

injusto apesar de serem justas? Ao que ele responde o óbvio: é evidente<br />

que as instituições não estão isentas da possibilidade da<br />

injustiça delas mesmas ou do sistema social efetivamente.<br />

No entanto, “a justiça formal, ou a justiça como método,<br />

exclui tipos significativos de justiça. Supondo-se que as instituições<br />

sejam razoavelmente justas, então será de grande importância que<br />

as autoridades sejam imparciais e não influenciáveis por pessoas,<br />

dinheiro, ou outras considerações irrelevantes, quando tratando de<br />

casos particulares”. Por outro lado, “a força das reivindicações de<br />

justiça formal, de obediência ao sistema, depende claramente da<br />

justiça real ou substantiva das instituições e da possibilidade de<br />

reformulá-los”. 14 Há uma relação entre justiça formal e justiça<br />

substantiva que é de dependência dessa última com relação à construção<br />

de seus argumentos: ela não pode reivindicar o impossível.<br />

A justiça substantiva, de certo modo, é o limite da justiça formal.<br />

Portanto, não é uma questão simples. As instituições são consideradas<br />

por Rawls, não apenas formalmente, mas efetivamente.<br />

A efetividade das instituições, levando-se em consideração uma<br />

concepção comum de justiça, pode ser injusta, assim como a do<br />

sistema social onde elas estão envolvidas, sendo possível mesmo a<br />

hipótese de um sistema injusto apesar da justeza de todas as suas<br />

44 impulso


instituições. Todavia, o objeto da reflexão é a possibilidade de,<br />

numa situação de posição original, na qual os indivíduos assumem<br />

o véu da ignorância, para si e para as instituições, optar-se por<br />

princípios constituintes de uma concepção de justiça válida igualmente<br />

para todos. Isso não está impedido. Fica mesmo afirmada a<br />

possibilidade de erigir-se uma concepção procedural de justiça, i.e,<br />

uma concepção formal de justiça que sirva como método.<br />

Quais princípios de justiça são possíveis serem adotados na<br />

posição original? Já dissemos anteriormente: igualdade democrática<br />

e diferença distributiva. Resta, porém, apresentar porque<br />

motivo 15 esses dois princípios podem ser adotados na posição<br />

original. Tal possibilidade está vinculada a uma concepção mais<br />

ampla de justiça, expressa da seguinte forma:<br />

Todos os valores sociais – liberdade, oportunidade,<br />

rendas, bens e as bases do respeito próprio – deveriam<br />

ser distribuídas igualmente, a menos que uma distribuição<br />

desigual de um desses valores, ou de todos,<br />

viesse a trazer vantagens para alguns. A injustiça não é<br />

apenas a desigualdade que não traz benefícios para<br />

todos. 16<br />

No que diz respeito à fundamentação dos princípios, Rawls<br />

apresenta as teses da necessidade de publicidade e finalidade para<br />

a eleição dos princípios de justiça, coerentes com a concepção de<br />

justiça como eqüidade. Antes de mais nada, parece ser significativo<br />

destacar que, para Rawls, a concepção de justiça assenta-se em<br />

uma compreensão das instituições sociais básicas como mutantes,<br />

portanto, a ordem social é mutante e a escolha de princípios de justiça,<br />

que são princípios racionais, podem modificar-se de acordo<br />

com a maior ou menor racionalidade que a sociedade tenha. 17 Os<br />

princípios de justiça devem estar fundamentados na contratualidade.<br />

Isto quer dizer que eles devem ser os mais públicos e publicizáveis<br />

e atender o mais possível à finalidade do contrato – e a<br />

finalidade dos contraentes (referência ao reino dos fins, de Kant).<br />

A argumentação de Rawls na defesa dessas duas características<br />

motivacionais dos princípios de liberdade democrática e diferença<br />

distributiva é bastante truncada. Ele faz, primeiramente, com<br />

que a idéia de publicidade esteja vinculada à necessidade de limitar<br />

as diferenças injustas, ou seja, vincula-se a capacidade de produzir<br />

um bem maior para a própria sociedade. Ele atribui isso ao<br />

15 RAWLS, John, op. cit. No último<br />

parágrafo, ele explica o<br />

porquê da prioridade do princípio<br />

da liberdade na ordenação<br />

léxica ou serial dos princípios.<br />

16 RAWLS, John, op. cit., p.<br />

68-69. Ele termina dizendo: “É<br />

óbvio que esta concepção é extremamente<br />

vaga e necessita de<br />

interpretação”.<br />

17 RAWLS, John, op. cit., p.<br />

398.<br />

impulso<br />

45


18 Toda essa argumentação é altamente<br />

utilitarista; o que ele<br />

não quer. Porém, ele afirma não<br />

o ser na medida em que afirma a<br />

noção de sacrifício: as pessoas,<br />

em vista do bem de todos, aceitariam<br />

o sacrifício, na medida<br />

em que isso implicasse também<br />

em vantagens para elas mesmas,<br />

desde que movidas por sentimentos<br />

morais, tais como o de<br />

auto-respeito. Os sacrifícios,<br />

por outro lado, são demandados<br />

pela estrutura básica da sociedade,<br />

como uma questão de<br />

justiça. Cf. RAWLS, John, op.<br />

cit., p. 146.<br />

19 RAWLS, John, op. cit., p.<br />

147-148.<br />

20 Estado de Direito é compreendido<br />

no estilo do Estado Constitucional<br />

dos Estados Unidos<br />

da América.<br />

efeito psicológico das pessoas se amarem, desejarem seu próprio<br />

bem. E é público que uma ordem justa pode conduzir a isso.<br />

Assim, os princípios de liberdade e diferença conduziriam ao<br />

auto-respeito, a afirmação de mútua cooperação entre as partes, e,<br />

portanto, de vantagens para todos. 18<br />

Mais truncado ainda é seu empenho em fazer reconhecer que<br />

o contrato efetivado na posição original seja conseqüência da finalidade<br />

do ser humano. Assim, numa leitura de Kant, afirma que por<br />

ser o homem um fim e não um meio, os princípios de justiça se<br />

impõem por garantir que sacrifícios possam ser feitos, num acordo<br />

de que o que se perde não contribui em nada para as expectativas<br />

representativas. 19 Ele considera que a cooperação social fica fortalecida<br />

com essa noção de ser humano como fim. Assim, a finalidade<br />

do auto-respeito permite o mútuo respeito, conforme Rawls.<br />

A discussão seguinte, com referência às motivações, diz respeito<br />

à prioridade da liberdade. Ele argumenta que o princípio da<br />

liberdade é regulador do princípio da diferença. Isso significa que<br />

a concepção de bondade, enquanto racionalidade, permite admitir<br />

que, em vista da excelência e fins a que as pessoas são atraídas, a<br />

liberdade é o principal interesse regulador, pois senão as pessoas<br />

estariam arbitrariamente discriminadas em conformidade às diferenças<br />

de posição social ou diferenças naturais. Ele supõe, ainda,<br />

que essa afirmação da prioridade da liberdade é mais possível em<br />

uma sociedade “bem estruturada”, i.e., regulada pelo Estado de<br />

Direito. 20<br />

O primeiro princípio, da liberdade democrática, expõe que a<br />

extensão da liberdade deve ser a maior possível e igual para todos<br />

(“compatível e similar com a liberdade de outros indivíduos”,<br />

§ 11). Os dois princípios são seriais, segundo Rawls, o primeiro<br />

princípio antecedendo ao outro, não apenas logicamente, mas efetivamente.<br />

Ele não apresenta muita dificuldade de compreensão<br />

para esse primeiro princípio. Na verdade, nem o discute muito.<br />

Como que supõe que a justiça, para ser efetivada, dependa do exercício<br />

mais pleno possível de uma igualdade democrática, o que significa<br />

o exercício das, assim chamadas, liberdades civis burguesas,<br />

que possuem duas expressões básicas: liberdade política ou civil<br />

(eleitoral, expressão e pensar, reunião e associação) e liberdade<br />

pessoal (associada ao direito à propriedade). Na verdade, a igual-<br />

46 impulso


dade democrática, de acordo com Rawls, está assentada nos direitos<br />

à propriedade e à organização (divergência) política.<br />

O segundo princípio, porém, é bastante mais complexo e a<br />

ele Rawls vai dedicar muito mais atenção. 21 Ele se expressa, de<br />

forma geral, do modo seguinte: as desigualdades econômicas e<br />

sociais devem ser distribuídas de forma que (a) tragam vantagens<br />

para todos e (b) “que sejam ligados a posições e a órgãos abertos<br />

para todos”. Rawls afirmara que o véu da ignorância supunha<br />

todos esquecerem seu status e condição social, assim como quaisquer<br />

diferenças naturais (tais como inteligência, força, etc.), a fim<br />

de que a concepção de justiça partilhada não fosse fruto da barganha<br />

ou dos jogos de interesse particulares, mas que a concepção<br />

de justiça fosse a mais equânime possível. Ora, esse princípio da<br />

desigualdade distributiva aparentemente contrapõe-se a essa orientação.<br />

Contudo, não é isso que ele conclui.<br />

Ele propõe uma explicação do segundo princípio – supondo<br />

um sentido único para o primeiro – que o combina ao princípio da<br />

eficiência (que não tinha aparecido até aqui, e que não é um dos<br />

princípios fundamentais da concepção de justiça que ele está apresentando).<br />

Resumirei a explicação, afirmando o seguinte: o princípio<br />

da eficiência garante a exeqüibilidade da distribuição desigual de<br />

modo que ninguém possa ser prejudicado, mas que as vantagens<br />

possam ser distintas conforme as capacidades. Isto é, supõe-se a<br />

diferença dos indivíduos (e das instituições) em base às eficiências<br />

comparadas: um é mais eficiente que outro. Ora, se as vantagens são<br />

possíveis a todos (a), de acordo com a posição de cada um (b), isso<br />

significa que ninguém é ludibriado nesse sistema de distribuição e<br />

aos menos providos de capacidade ficam garantidas as vantagens<br />

possíveis de tal distribuição. Ou seja, a distribuição é diferenciada,<br />

uns têm mais vantagens que outros, mas todos têm vantagens. 22<br />

A segunda parte de Teoria da Justiça debruça-se sobre os dois<br />

princípios, sobre as possibilidades de aplicabilidade, discorrendo<br />

ainda sobre os princípios de justiça atinentes às instituições. Em<br />

princípio, é formulada uma teoria dos quatro estágios 23 da posição<br />

original, procurando tornar mais compreensível a aplicação dos<br />

princípios. O primeiro estágio é o véu da ignorância, a posição original<br />

propriamente dita, na qual as orientações são dadas apenas<br />

pelos conhecimentos decorrentes da justiça. O consenso firmado<br />

nesse estágio é produzido em torno dos princípios coerentes com a<br />

concepção de justiça como eqüidade. Em seguida, o segundo estágio,<br />

corresponde à etapa constituinte. Isso por que a justiça é con-<br />

21 Muito embora estes princípios,<br />

por serem derivados da estrutura<br />

básica da sociedade,<br />

apresentarem suas raízes nos<br />

valores sociais como expostos<br />

acima (nota 12), eles encontram<br />

uma centralidade, na exposição<br />

de Rawls, no valor “liberdade”.<br />

Apesar desse valor constituir<br />

muito mais ao primeiro princípio<br />

que ao segundo, ele não deixa<br />

de participar também deste.<br />

Na verdade, o segundo princípio<br />

será mais importante para a<br />

concepção de justiça eqüitativa<br />

que o anterior. Sem o anterior<br />

seria impossível propor uma regulação<br />

eqüitativa, pois faltaria<br />

o acesso aos bens. Mas, sem o<br />

segundo, o equilíbrio diferenciado<br />

da vida social seria inaccessível.<br />

Resta verificar o quanto<br />

essa noção de boa ordem é meramente<br />

ideológica.<br />

22 RAWLS, John, op. cit., p.<br />

72s. Isso só pode ser assim considerado,<br />

segundo Rawls, se ao<br />

princípio da eficiência for<br />

acrescido o princípio da diferença,<br />

que garante, segundo ele,<br />

que se, corretamente, os melhores<br />

posicionados têm melhores<br />

vantagens, fica assegurado ao<br />

menos afortunados serem beneficiados<br />

com isso, graças à reação<br />

em cadeia provocada por<br />

esse outro princípio.<br />

23 RAWLS, John, op. cit., p.<br />

159-162.<br />

impulso<br />

47


24 Mais adiante abordaremos a<br />

proximidade entre Rawls e Kant<br />

ao tratarmos do tema da racionalidade.<br />

siderada a partir da estrutura básica da sociedade, e, por conseguinte,<br />

em conformidade com o estabelecimento do Estado de<br />

Direito, supondo-se que ele seja a melhor forma possível de estrutura<br />

social. Nesse estágio, o conhecimento das estruturas econômicas,<br />

políticas, sociais e culturais da sociedade é suposto, pois o que<br />

está sendo estabelecido é o pacto constituinte, orientado pelos dois<br />

princípios de justiça. O terceiro estágio, pois, é o momento legislativo,<br />

no qual se estabelecem as regulamentações da vivência dos<br />

princípios. O quarto e último estágio é o da aplicabilidade dessas<br />

regulamentações. Os outros parágrafos (§ 32-40) desse capítulo,<br />

que se intitula liberdade igual, tratam da liberdade de consciência<br />

e expressão e da liberdade política – além de uma consideração<br />

sobre o tema da eqüidade em Kant. 24<br />

Na verdade, o próprio Rawls considera que essas observações<br />

dizem respeito propriamente a uma filosofia política. Não<br />

obstante, cabe ressaltar três questões. Primeiramente, há uma<br />

lacuna que precisa ser notada. Quanto ao princípio da igualdade<br />

democrática, uma das liberdades constituintes era a liberdade do<br />

direito de propriedade. Esse direito não é abordado nesse momento,<br />

mas, indiretamente, no próximo capítulo, quando será tratado o<br />

princípio da diferença distributiva. A segunda questão diz respeito<br />

ao princípio de tolerância. A liberdade de consciência e expressão,<br />

numa sociedade ordenada pelos princípios de justiça, que constitui<br />

um Estado de Direito, deve ter espaço para os intolerantes? Sim,<br />

com reservas. Ou seja, deve haver limites para a intolerância, seu<br />

limite é positivamente a liberdade de expressão e consciência dos<br />

outros grupos (religiosos ou políticos). A tolerância está subordinada<br />

ao interesse comum. A outra questão diz respeito ao direito<br />

de participação política. A liberdade política deve ser a mais<br />

extensa possível. Em geral se admite nos Estados de Direitos a<br />

relação 1 cidadão = 1 voto. Mas, há exceções: crianças, idosos,<br />

incapazes...<br />

Enfim, há limites também para a participação. O princípio de<br />

liberdade conduz ao princípio de responsabilidade. Os limites à<br />

liberdade são encontrados no princípio de responsabilidade. Os<br />

limites à liberdade são conseqüência da responsabilidade pela<br />

constituição/manutenção do Estado de Direito.<br />

O segundo princípio de justiça, o da diferença distributiva,<br />

orienta principalmente à vida econômica da sociedade. Uma teoria<br />

da justiça, um princípio de justiça em relação à economia, tem a<br />

função de orientar os cidadãos na busca de algum critério para a<br />

48 impulso


justa distribuição das vantagens sociais. E aí repousa a questão:<br />

como pode, diante de interesses socialmente estabelecidos, imporse<br />

algum princípio de justiça, numa concepção de justiça como<br />

eqüidade? A solução proposta por Rawls consiste em fazer decorrer<br />

os princípios de justiça não de alguma concepção ideal, ou a<br />

priori, mas da concepção de uma estrutura social básica que seja<br />

justa, ou que tenda à justiça, e na qual fossem valorizados não<br />

todos os interesses, mas alguns interesses/desejos básicos, os quais<br />

sejam comuns. (§ 41) A conseqüência disso não é o estabelecimento<br />

de um nível geral/comum de pobreza, mas é, por um lado,<br />

a proteção dos desafortunados com os níveis de elevação da<br />

riqueza (por meio da tributação); por outro, até que a sociedade<br />

chegue a um estágio no qual a poupança seja desnecessária, é justo<br />

que se preveja o suficiente para que as gerações futuras possam<br />

chegar até este justo estágio, visto que é justo cada um fazer sua<br />

parte no processo de desenvolvimento das sociedades (isto deve<br />

ser feito por meio da poupança justa).<br />

Duas observações a respeito do papel do mercado nesse princípio<br />

regulativo: (1) Para Rawls, o sistema de mercado é mais<br />

compatível com liberdades iguais e justa igualdade de oportunidade<br />

(diferentemente distribuída); (2) o mercado deve ser regulado<br />

pelo Estado (por meio da tributação, fazendo com que ele esteja<br />

voltado para o bem comum), porém, o mercado é orientado,<br />

necessariamente pelo princípio do benefício e não pelo princípio<br />

da justiça. Portanto, ficam reconhecidas prioridades na condução<br />

da vida econômica e política: prioridade da liberdade e prioridade<br />

da justiça sobre o bem-estar e a eficiência.<br />

Caberia considerar agora os princípios orientadores dos<br />

indivíduos. Rawls considera que há uma hierarquia na adoção dos<br />

princípios, que ele adota em sua exposição. Tal hierarquia confere<br />

prioridade aos princípios orientadores das instituições básicas da<br />

sociedade, em especial considerando-se a efetividade de uma posição<br />

original. Em seguida adviriam os princípios orientadores dos<br />

indivíduos, que vivem em sociedade, e supõe-se uma boa ordem,<br />

qual seja uma sociedade justa ou tão justa como razoavelmente<br />

pode sê-lo. Ainda se apresentaria, numa consideração sobre os<br />

princípios de justiça, o direito internacional.<br />

Eles são apresentados como sendo apenas dois: a eqüidade e<br />

o dever natural. Na verdade, o princípio de eqüidade é suposto<br />

como a concepção de justiça comum, ou seja, aquela decorrente<br />

da aplicação dos dois princípios das instituições, os da liberdade<br />

impulso<br />

49


democrática e da diferenciação distributiva. A eqüidade deve<br />

orientar o indivíduo nas suas relações com os outros indivíduos<br />

favorecendo a perceber suas obrigações, no sentido de tarefas.<br />

Nesse sentido há dois tipos de obrigações, distintos e complementares:<br />

a obrigação política e a pública. A primeira refere-se<br />

especialmente aos cidadãos que ocupam cargos públicos; estes<br />

devem cumprir as tarefas que lhes cabem, sem querer avantajar-se<br />

com isso, em vista do bem comum, por obrigação do cargo.<br />

A outra, a obrigação pública, diz respeito a todos. Ou seja, pelo<br />

princípio de eqüidade cada um deve ocupar o papel social que lhe<br />

cabe, visto que se supõe uma boa ordem, como expresso acima.<br />

O princípio do dever natural pode ser considerado positiva e<br />

negativamente, como aqueles deveres relacionados à mútua cooperação<br />

entre os indivíduos. Entre os deveres naturais se destaca o<br />

dever de justiça, a saber, o de ajustar-se, adequar-se à ordem estabelecida,<br />

cooperando para que ela possa atingir sua própria justiça.<br />

Disso decorre que, ao avaliar dessa forma a obrigação e o dever<br />

natural, Rawls faz algumas considerações a respeito da desobediência<br />

civil e da recusa por motivos de consciência.<br />

O mais importante, parece-me, é a constatação de que apenas<br />

em alguns casos são justificáveis essas atitudes num Estado de<br />

Direito, a saber, naquelas em que grupos minoritários, ou indivíduos,<br />

sentindo-se injustiçados, não participem das orientações<br />

legais, supostamente justas para a maioria, sem prejudicar ao conjunto<br />

intencionalmente, além do descumprimento da lei.<br />

Até esse momento, optamos por apresentar as idéias de Rawls<br />

sem o recurso às suas justificativas propriamente racionais e suas<br />

discussões sobre a razão prática. Propositalmente procuramos perceber<br />

como a Teoria da Justiça, como eqüidade, e suas idéias mais<br />

importantes, do ponto de vista da própria teoria e de uma filosofia<br />

política, estão como que, por assim dizer, absolutamente apresentadas.<br />

Terminando a exposição das idéias que considerei serem as<br />

mais importantes em Teoria da Justiça, discutiremos a concepção<br />

de sujeito racional e a relação dessa concepção estabelecida, por<br />

Rawls, com uma possível teoria de Kant sobre a eqüidade.<br />

Primeiramente, deve-se estabelecer o que é compreendido<br />

por racionalidade. Racionalidade é a capacidade de se decidir por<br />

uma meta e planejar os meios para sua execução. Assim, considera-se<br />

que, na situação original, seres racionais estabelecem um<br />

pacto (contrato) para construírem uma concepção de justiça.<br />

A racionalidade desses sujeitos possibilita que eles escolham entre<br />

50 impulso


as diversas concepções de justiça aquela que mais se aproxima da<br />

eqüidade e possam optar pelos princípios orientadores das<br />

instituições (liberdade democrática e diferença distributiva) e dos<br />

indivíduos (eqüidade e dever natural). Essa decisão racional tem<br />

uma meta, a de constituir uma concepção de justiça o mais próximo<br />

possível da justiça substantiva; assim, esse ser racional é<br />

extremamente autônomo, pois, na situação original está livre de<br />

qualquer limite obsessor de sua decisão.<br />

Ora, essa concepção de racionalidade e sujeito racional é<br />

propriamente retirada de Kant. A consideração da situação original<br />

é, assim, numa versão kantiana,<br />

o ponto de vista, a partir do qual os noumenos olham o<br />

mundo. (...) Devem, então decidir quais princípios<br />

quando seguidos e acompanhados conscienciosamente<br />

na vida cotidiana, manifestarão essa liberdade na sua<br />

comunidade, revelarão mais plenamente sua independência<br />

diante das contingências naturais e do acidente<br />

social. 25<br />

Os princípios são vistos como imperativos categóricos, os<br />

contratantes como noumenos, e a posição original como uma<br />

interpretação processual da autonomia. Assim, ele mantém, dessa<br />

forma sua proximidade a Kant, por meio da teoria do contrato e<br />

por uma concepção de razão prática não comunicável com a razão<br />

teórica.<br />

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE<br />

A TEORIA DA JUSTIÇA<br />

Uma observação que Tugendhat faz e parece-me extremamente<br />

pertinente é sobre a postura teórica de Rawls. John Rawls<br />

afirma-se próximo a Kant, mas pelo modo com que organiza sua<br />

teoria parece muito mais próximo dos normo-utilitaristas. Senão,<br />

vejamos. Ele orienta a escolha dos princípios fundamentais não a<br />

partir da racionalidade de um ponto de vista moral qualquer, mas<br />

pela regulação dos jogos de interesse numa dada estrutura social.<br />

A suposição básica é que ninguém queira ser prejudicado, e não<br />

apenas que todos queiram igualdade de acesso às vantagens possíveis.<br />

Ora, esse princípio é orientado por uma vantagem, ou seja,<br />

uma finalidade e ações com vista a um fim são teleológicas e<br />

deontológicas (orientadas racionalmente).<br />

25 RAWLS, John, op. cit., p.<br />

200.<br />

26 BLOOM, A. Declínio da<br />

cultura ocidental. São Paulo:<br />

Nova Cultural & Best Sellers,<br />

1989, p. 35-36.<br />

impulso<br />

51


Uma outra observação que me parece pertinente é feita por<br />

Bloom, 26 que nota em Rawls uma atitude de defesa da ordem estabelecida<br />

estado-unidense, acima de tudo das atitudes não discriminatórias.<br />

“A indiscriminabilidade, portanto, é um imperativo moral,<br />

porque o seu antônimo é a discriminação”. É claro que isso é uma<br />

caricatura de Rawls, mas segundo Bloom, isso é um processo no<br />

qual a sociedade estado-unidense sempre esteve: manutenção das<br />

igualdades civis. Como ele diz, “a igualdade perante a lei não protege<br />

o ser humano judeu, italiano ou negro do menosprezo e do<br />

ódio”. Poder-se-ia contra-argumentar dizendo que Rawls não está<br />

propondo uma concepção de justiça substancial, mas uma concepção<br />

formal, que seja procedural: que indique possibilidades de<br />

procedimento. Mas, também é verdade que Rawls procurou tratar o<br />

mais próximo possível de uma concepção substancial de justiça,<br />

chegando mesmo a avaliar determinados sentimentos morais, como<br />

a vergonha ou a tolerância. Mas, não indicou nenhuma possibilidade<br />

de reverter sentimentos de intolerância agressivos...<br />

Queria considerar o modo com o qual a idéia de estrutura<br />

básica da sociedade é trabalhado. Ele tem a ver com duas funções<br />

básicas do Estado de Direito: manutenção dos direitos políticos e<br />

do direito à propriedade. Ora, isso significa depreender das estruturas<br />

do Estado Constitucional e do Mercado os princípios de justiça.<br />

O que significa, por sua vez, considerar que as estruturas do<br />

Estado Constitucional e do Mercado sejam justas. E, ainda, uma<br />

pressuposição anterior, como o Estado é o responsável por regular<br />

as liberdades, supõe-se que ele esteja subordinado às regras do<br />

Mercado. Antes que eu seja acusado de fazer afirmações indevidas,<br />

não nos esqueçamos das considerações de Rawls acerca do Mercado<br />

como instituição. Tanto é assim que Rawls procura estabelecer<br />

como prioritárias a liberdade e a justiça em relação ao bem-estar e<br />

à eficiência. Se é necessário estabelecer tais prioridades, é porque<br />

o natural seria que elas não existissem. Elas são fruto de um<br />

acordo para regular o Mercado.<br />

Uma última observação diz respeito à disparidade entre as<br />

teorias contratualista e racional da justiça. A teoria contratualista<br />

não depende, necessariamente, das considerações da moral como<br />

conduzida pela razão prática. Nesse sentido, como já assinalei<br />

anteriormente, Rawls é muito mais um normo-utilitarista que kantiano.<br />

Mesmo a afirmação de que o contrato é celebrado entre<br />

seres racionais está subordinada a um mundo social, das<br />

instituições básicas, que constroem princípios aos quais os princí-<br />

52 impulso


pios também devem estar subordinados, em vista de uma concepção<br />

de justiça como eqüidade. A postura de Rawls é antes a de<br />

alguém que procura justificar o Estado Constitucional, como é<br />

conhecido nos Estados Unidos da América, do que de alguém procurando<br />

uma concepção de justiça como eqüidade, que seja<br />

generalizável e universal, conceitos, como admitido por Rawls,<br />

insuficientes do ponto de vista epistemológico, mas necessários.<br />

CRÍTICA DE TUGENDHAT À TEORIA DA JUSTIÇA<br />

A tese de Tugendhat é a seguinte: Rawls não consegue apresentar<br />

uma teoria da justiça substantiva por não se dar conta da<br />

insuficiência de seu método proposto (equilíbrio reflexivo) em<br />

relação a iniciar sua análise a partir do ponto de vista moral. Para<br />

ele, Rawls incorre em um equívoco metodológico que implica em<br />

imprecisões graves na teoria. Ele não propõe o abandono da teoria<br />

do contrato como possibilidade de expressar uma teoria da justiça<br />

próxima à justiça substantiva, mas avalia que, perseguindo os pressupostos<br />

de Rawls, a saber, o método do equilíbrio reflexivo e a<br />

não discussão do ponto zero na constituição da posição inicial,<br />

esse intento é infundado.<br />

Sua argumentação procede em duas etapas. Primeiramente,<br />

observando a questão metodológica, adverte que a premissa de<br />

que o estabelecimento de um equilíbrio reflexivo, que permita<br />

atingir por ponderação racional uma concepção de justiça que seja<br />

adequada moralmente, é insuficientemente argumentada. Segundo<br />

ele, o primeiro equívoco consiste em procurar estabelecer uma<br />

teoria da justiça em primeira e segunda pessoa e não em terceira.<br />

Essa opção, que não permite a visão do observador, é, em si, problemática.<br />

E, apresenta-se problemática na teoria por propor assertoricamente<br />

crenças morais/crenças de justiça. O que justifica a<br />

opção pelos princípios de justiça propostos? Não há uma fundamentação<br />

suficiente, na medida que simplesmente depreende-se<br />

que seriam os melhores princípios em vista da construção da justiça<br />

como eqüidade. Isto é apresentado como um argumento ad<br />

hominem, considera apenas as improváveis teses do utilitarismo.<br />

Na segunda etapa, avalia o que decorrera, segundo ele, do<br />

engano cometido. Nesse sentido, questiona o fato de Rawls optar<br />

por uma posição original ao invés de ter como ponto de partida um<br />

ponto de vista moral. Mais: afirma que Rawls, propondo que a<br />

posição original fosse compreendida de forma processual em quatro<br />

estágios, não reconhece um estágio anterior, estágio zero, no<br />

impulso<br />

53


qual ele optou por determinado conjunto de valores como imparcialidade,<br />

racionalidade dos agentes, justiça processual construída<br />

contratualmente. Critica a inadequação de levantar-se completamente<br />

o véu da ignorância no quarto estágio, fazendo com que não<br />

haja mais nada que contenha o instinto de competição; assim, a<br />

imparcialidade na execução da justiça fica comprometida.<br />

Segundo Tugendhat, isso criaria um argumento ad hominem contra<br />

Rawls e sequer poderia serem sustentados os princípios de justiça,<br />

no quarto estágio, diante dos juízos morais ponderados frutos<br />

do equilíbrio reflexivo.<br />

A impressão é que as críticas de Tugenhadt a Rawls são fruto<br />

de uma incompreensão das intenções expressas por ele. O equilíbrio<br />

reflexivo como método não quer abandonar a hipótese de uma teoria<br />

da justiça em terceira pessoa, apenas quer dedicar-se a explorar a<br />

possibilidade de construção de uma teoria da justiça mais próxima<br />

da vida cotidiana. Isso garante que uma teoria em terceira pessoa<br />

não permitiria uma teoria substantiva? Por que deixar de partir das<br />

definições seria garantia maior de imparcialidade na construção de<br />

uma teoria da justiça? Na verdade, uma teoria em terceira pessoa<br />

necessariamente é mais distante do modo como as experiências cotidianas<br />

e intersubjetivas são vividas. Ademais, a teoria em primeira e<br />

segunda pessoa é mais adequada a uma proposta contratualista.<br />

Mas, realmente, não creio que o fato da teoria não ser elaborada em<br />

terceira pessoa garanta maior imparcialidade a ela.<br />

A crítica à inexistência do nível zero procede. Há um conjunto<br />

de pressupostos que não estão apresentados na proposta de<br />

Rawls. Ele não explica porque supõe a racionalidade dos sujeitos,<br />

a não ser no parágrafo 40, no qual afirma estar assumindo a leitura<br />

que Kant faz da autonomia. Mesmo assim, a consideração de seres<br />

racionais, iguais e livres não é apresentada como pressuposto para<br />

a existência da posição original. Também a imparcialidade, assumida<br />

como uma postura adequada para assumir-se a concepção<br />

comum de justiça como eqüidade, fica pressuposta, sem ser explicitada.<br />

Enfim, a posição original é um artifício necessário para o<br />

estabelecimento de uma teoria contratualista da justiça como eqüidade,<br />

mas seus pressupostos não foram justificados.<br />

27 PERINE, M., op. cit.; HA-<br />

BERMAS, J., op. cit.<br />

A PRETENSÃO A UMA COMUNIDADE ÉTICA 27<br />

Rawls afirma no parágrafo 40 que na posição original estaria<br />

constituída uma comunidade ética de noumenos. Tal pretensão<br />

pode ser sustentada sem problemas? Em que sentido Rawls está<br />

54 impulso


afirmando a existência de uma comunidade ética na posição original?<br />

A idéia expressa sobre a posição original, que dá início à teoria,<br />

o contrato donde são originados os princípios de justiça, é claramente<br />

apresentada no referido parágrafo como uma assembléia<br />

de noumenos livres, iguais e racionais que decidem a respeito de<br />

como deverão conduzir-se numa estrutura básica de sociedade<br />

considerada como sendo uma boa ordem.<br />

Definitivamente Rawls atribui à posição original o status de<br />

comunidade ética por ela, primeiramente, considerar os indivíduos<br />

em sua condição social, a saber em sua situação relacional. Em<br />

segundo lugar, estes indivíduos racionais são, até mesmo, desprovidos<br />

de inveja. 28 Isso significa a existência de uma postura orientada<br />

pela razão (prática) e não por quaisquer níveis externos ao<br />

agente. Além do mais, na posição original, como foi visto anteriormente,<br />

os indivíduos estão preocupados com o bem de todos, o<br />

bem comum, e, em assim sendo, sacrificam-se espontaneamente,<br />

autonomamente.<br />

Ora, o conceito de comunidade ética, quer como apresentado<br />

no tomismo, quer como defendido pelos adeptos da ética do discurso,<br />

supõe, especialmente, o caráter intersubjetivo (social) dessa<br />

comunidade. O que caracteriza uma comunidade ética é o fato de<br />

a referência não serem os interesses privados, mas aqueles que<br />

podem ser partilhados moralmente pelos outros seres humanos<br />

(quer seja pela consideração da igualdade fundamental da pessoa<br />

humana, quer pela consideração da pertença a uma mesma comunidade<br />

do mundo da vida social, ou comunidade lingüística). Nessas<br />

condições, a comunidade é ética se, e somente se, for reguladora<br />

dos princípios orientadores da vida comum.<br />

Nesse sentido, Rawls está plenamente habilitado a considerar<br />

que, na posição original, tal comunidade foi estabelecida. Na verdade,<br />

a teoria do contrato supõe a existência de tal comunidade.<br />

Mas, o fundamento dessa comunidade é o estabelecimento de um<br />

mundo social hipotético. Assim, não se trata de uma comunidade<br />

ética substancial, mas formal. Tanto o tomismo, como os adeptos<br />

da ética do discurso, supõem a comunidade ética como parte do<br />

mundo da vida 29 dos indivíduos. A comunidade ética de tomistas<br />

e adeptos da ética do discurso situa-se como uma condição da existência<br />

de sujeitos-atores éticos, e não apenas como uma contingência<br />

na teoria.<br />

Para Rawls, o mundo social hipotético é apenas um pressuposto<br />

suficiente para estabelecer o esforço em vista de uma conce-<br />

28 Esta é uma idéia acidental,<br />

bastante discutida por Rawls,<br />

mas que não nos pareceu uma de<br />

suas principais idéias, no entanto,<br />

ele estabelece que sem essa<br />

consideração da ausência de inveja<br />

na posição original seria<br />

inadmissível que os contraentes<br />

pudessem buscar os princípios<br />

de uma concepção comum de<br />

justiça que significasse vantagens<br />

para todos.<br />

29 Estou entendo por mundo da<br />

vida o conjunto de relações sociais<br />

e culturais pré-existentes<br />

ao indivíduo, substrato da vida<br />

do indivíduo, espaço contextual<br />

de sua existência. Cf. HABER-<br />

MAS, J. Para a reconstrução<br />

do materialismo dialético. São<br />

Paulo: Brasiliense, 1981.<br />

impulso<br />

55


pção de justiça como eqüidade. Suficiente, mas não necessário. Na<br />

verdade, é necessário e suficiente para o esforço em vista do estabelecimento<br />

de qualquer concepção moral que exista uma comunidade<br />

ética. Disso concluímos que, por um lado, Rawls, de fato, a<br />

estabelece, formalmente, muito embora, por outro lado, isso não<br />

signifique que seja necessário supor como tal a assembléia dos<br />

contraentes que vise estabelecer uma concepção de justiça como<br />

eqüidade, por meio de um método como o equilíbrio reflexivo.<br />

Em síntese, a comunidade ética, como suposta por Rawls,<br />

não é suficiente e necessária para o estabelecimento da justiça<br />

como modus vivendi, ainda que pudesse ser assumida como<br />

modus operandi, ao menos por quem assume o normo-utilitarismo<br />

como orientador ético.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS<br />

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Vamireh Chacon.<br />

Brasília: UNB, 1981.<br />

TUGENDHAT, E. Problemas de la ética. México, 1983.<br />

HABERMAS, J. Justification and application. Cambridge: MIT<br />

Press, 1993.<br />

HABERMAS, J. Para a reconstrução do materialismo dialético.<br />

São Paulo: Brasiliense, 1981.<br />

PERINE, M. Precisamos de uma nova moral? Impulso, v. 14, n. 7,<br />

Piracicaba: UNIMEP, p. 97-114, 1994.<br />

FRANKENA, W. Ética. São Paulo: Zahar, 1981.<br />

BLOOM, A. Declínio da cultura ocidental. São Paulo: Nova<br />

Cultural & Best Sellers, 1989.<br />

56 impulso


O MÉTODO DO <strong>DIREITO</strong>:<br />

QUESTÕES DE LÓGICA JURÍDICA<br />

ERCÍLIO A. DENNY<br />

Quando se trata de conceituar o que é a lógica jurídica, isto<br />

é, qual parte da lógica é aplicável ao direito, há necessidade de<br />

definir o que se entende por “direito”.<br />

Existem duas formas de se conceituar o direito: a primeira<br />

compreende-o como um “conjunto de normas”. A segunda<br />

maneira é o de percebê-lo como “o justo” (tó díkaion).<br />

O <strong>DIREITO</strong> COMO “CONJUNTO DE NORMAS”<br />

O que caracteriza o pensamento jurídico contemporâneo é<br />

considerar o direito como uma produção do espírito humano. Ele<br />

seria constituído de normas, através das quais os homem comanda<br />

os fatos da natureza. Atrás desta visão está o dualismo essencial da<br />

filosofia cartesiana que separa, como dois mundos distintos, o<br />

espírito e o corpo, ou do pensamento kantiano que aparta o “ser<br />

em si” do “fenômeno”, o ser do dever ser.<br />

Este modo de filosofar comporta inumeráveis variantes.<br />

Savigny (1779-1861) e a Escola Pandectista entendem que a regra<br />

de direito não é o produto do espírito do homem individual, mas<br />

do espírito coletivo dos povos. Pode-se distinguir na filosofia que<br />

entende o direito como norma, duas principais direções:<br />

a) Para alguns pensadores, a regra de direito é o produto da<br />

razão humana. Um exemplo típico desta tendência é dado pela<br />

teoria de Hugo Grócio (1583-1645), que pretende tirar o seu sistema<br />

de regras de direito, a partir de alguns princípios racionais de<br />

moralidade, como “não furtar”, “cumprir as promessas”, “reparar<br />

impulso<br />

57


os danos causados”... De forma parecida, Kant (1724-1804) tentou<br />

construir seu direito natural sobre alguns axiomas racionais da<br />

razão pura prática.<br />

b) Outros teóricos atribuem as regras do direito à vontade<br />

humana. Esta tendência é típica de Hobbes (1588-1679) e de todo<br />

o positivismo jurídico. O direito, então, é constituído pela vontade<br />

do legislador, estabelecido pelo contrato social.<br />

Pouco importa aqui que o direito provenha da razão ou da<br />

vontade, ou ainda da mistura de uma e outra, pois, de qualquer<br />

maneira, ele é produto do espírito humano, sendo constituído de<br />

regras postas e concebidas pelo espírito do homem. Tanto numa<br />

teoria como em outra, o direito é definido como “um conjunto de<br />

regras”, e isto é o que se ensina tradicionalmente nas Faculdades<br />

de Direito.<br />

Para esta visão de direito, o método jurídico a ser seguido é<br />

o de que toda a solução jurídica deve ser encontrada, por inferência,<br />

a partir de regras que residem no pensamento humano, provindas<br />

ou de sua razão ou de sua vontade. A solução de direito só<br />

poderá ser fundamentada e a sua validade só pode ser demonstrada<br />

se ela estiver ligada dedutivamente a determinada regra jurídica;<br />

e esta mesma precisa estar unida a um princípio.<br />

As grandes obras da doutrina jurídica a partir da Idade<br />

Moderna cultivam apenas o método dedutivo. Trata-se da elaboração<br />

de um corpo de regras jurídicas. É um tempo de criação de<br />

grandes sistemas. Quando se trata da aplicação do direito na esfera<br />

judiciária, a doutrina moderna convida a tirar a sentença dedutivamente<br />

da regra de direito, seja ele codificado nas grandes obras da<br />

doutrina, seja ele colocado nos textos das leis pela vontade mais<br />

ou menos arbitrária do legislador. Tal é a forma da qual se revestem,<br />

em última análise, os tratados de direito. Isto não pode ser<br />

diferente, a partir do momento em que se admite que o direito é<br />

“um conjunto de normas” ou que ele é aquilo que se deduz destas<br />

regras positivas.<br />

Daí já se pode prever a noção que estes teóricos têm da lógica<br />

jurídica. A concepção de lógica aceita por estes pensadores para o<br />

direito é a da lógica matemática, daquela das ciências exatas.<br />

A lógica, no mundo moderno, está ligada especialmente à<br />

ciência e ao uso do raciocínio dedutivo. Ensina-se que ela, em<br />

sentido estrito, é o estudo das inferências, que permitem passar,<br />

com rigor, de uma proposição a outra. A análise dos conceitos e<br />

dos juízos têm, assim, o papel auxiliar e secundário. Até o início da<br />

58 impulso


Idade Moderna, a lógica admitia o silogismo, procedente dos<br />

Analíticos de Aristóteles. A partir de Descartes (1596-1650),<br />

houve o abandono da lógica formal e o descrédito do estudo do<br />

raciocínio silogístico. Quer-se usar o raciocínio matemático não só<br />

no estudo dos nomes e das forma, mas na ciência universal, indo<br />

até à filosofia. O raciocínio ao modo de Euclides (450-380 a.C.) é<br />

considerado um substituto da antiga lógica formal. Trata-se sempre<br />

de um raciocínio dedutivo.<br />

Qual seria o instrumento mais adequado às necessidades da<br />

arte jurídica? O direito, tal como o imaginam os positivistas e os<br />

normativistas, é o paraíso da lógica, entendida como a arte da<br />

dedução. É a partir daí que dá para entender o aparecimento de<br />

numerosos tratados de metodologia jurídica, a começar do século<br />

17, que apresentam esta espécie de lógica jurídica. Todos se esforçam<br />

para reduzir a ciência jurídica a um conjunto de teoremas.<br />

Procuram a matematização do direito.<br />

Para os positivistas, as regras de direito se unem num conjunto<br />

sistemático em razão de sua forma e de seu regime de produção,<br />

e não em razão de seu conteúdo. Assim, a dedução tem<br />

papel central no direito, principalmente na etapa da aplicação das<br />

leis às situações concretas, na passagem da regra de direito para a<br />

sentença judicial. Para alguns, o silogismo tem a preferência em<br />

relação ao modelo matemático. A obra do juiz seria um silogismo:<br />

a “menor” seria o caso em espécie, o “maior” seria expressa pela<br />

regra jurídica, e a “conclusão” seria constituída pela sentença judicial.<br />

É claro que há dificuldade de adaptar o caso concreto à norma<br />

jurídica, neste sistema conceptual. Entretanto, o importante é que<br />

a sentença seja deduzida analiticamente da regra, com ou sem silogismo.<br />

De outra forma não seria uma “solução jurídica”. O que é<br />

importante é a lógica, a lógica da dedução, que tem o seu lugar no<br />

mundo do direito, em razão deste ser uma produção ou uma construção<br />

do espírito humano.<br />

A atitude de indiferença, que Descartes e muitos de seus discípulos<br />

manifestaram com relação à lógica formal, pode explicar a<br />

duração, até atualmente, da ficção da construção de uma ciência<br />

do direito dedutiva. Não se sabe até quando os juristas levarão a<br />

lógica a sério na aplicação do direito. Indo às últimas consequências,<br />

a lógica jurídica dedutiva traz efeitos catastróficos. Aceitando-se<br />

como direito apenas o que se deduz da regra, chega-se a<br />

monstruosidades na vida prática. Foi o que percebeu Von Jhering<br />

(1818-1892), quando combateu a “lógica jurídica”, aquela levada<br />

impulso<br />

59


1 Ética a Nicômaco, 1129a<br />

2 Digesto, 1, 1, 6: “id quod<br />

justum est”.<br />

3 S. Th. 2 - 2ae, q. 57 a. 1<br />

ao extremo pela ciência do direito pandectista, a denominada<br />

“jurisprudência dos conceitos”.<br />

A crise de fé do jurista no valor da lógica chega a exageros.<br />

Ele deixa a produção das regras de direito ao capricho dos poderes<br />

de fato, à força, ao “curso da História”... Reagindo às doutrinas<br />

legalistas, aparecem o “intuitivismo”, o “direito livre”, a independência<br />

com relação à lei ou à lógica... Desta forma se torna impossível<br />

constituir uma ciência do direito. A realidade é que o dedutivismo<br />

lógico-jurídico da modernidade trouxe uma reação igual e<br />

contrária, que foi o irracionalismo jurídico...<br />

Direito e lógica jurídica se casam mal. Esta é opinião da<br />

maior parte dos lógicos, que não vêem com bons olhos a pretendida<br />

“ciência” do direito e nem o alegado “rigor” dos raciocínios<br />

jurídicos. Com relação aos juristas, bom número deles desconfia<br />

desta espécie de lógica.<br />

Na busca de uma solução viável, há que se evitar tanto o<br />

logicismo quanto o irracionalismo. Para isso há necessidade de se<br />

repensar o que seja a lógica jurídica e a idéia que se tem de direito.<br />

O direito como “o justo” é como entendiam os Antigos. Com<br />

efeito, entre os gregos o direito é “o justo” (tó díkaion). Aristóteles<br />

(384-322 a.C.) afirma que “vemos que todos os homens entendem<br />

por justiça aquela disposição de caráter que torna as pessoas prepensão<br />

a fazer o que é justo, que as faz agir justamente, e desejar<br />

o que é justo”. 1 O Digesto, também, afirma que o direito “é aquilo<br />

que é justo”. 2 A mesma visão foi continuada pelos glosadores e<br />

repetida por Tomás de Aquino (1225-1274). 3<br />

A solução justa, a boa solução jurídica, deve ser procurada<br />

para cada caso, necessitando ser adaptada a cada situação litigiosa.<br />

O direito dos Antigos era casuístico. Ele não é identificado com<br />

regras abstratas e gerais, saídas da cabeça do legislador ou de qualquer<br />

outro, mas com a solução concreta, que deve ser encontrada<br />

para cada caso.<br />

Isto não quer dizer que não haja regras. A vida social evoluiu<br />

tanto que não pode se dar ao luxo de viver sem normas. Entretanto,<br />

a relação das leis com o direito é que precisa ser determinada.<br />

Tanto na Grécia como em Roma, o Estado também legisla.<br />

Entretanto, as leis são tão pouco numerosas que se pode fazer abstração<br />

delas. O que existe, principalmente, são regras doutrinais<br />

produzidas pelos jurisconsultos. Elas servem de modelos, nascidos<br />

espontaneamente das relações jurídicas justas. Elas servem de<br />

guias para outras decisões. Contudo, essas regras não constituem<br />

60 impulso


“o direito”, porque elas são falíveis. Seus autores são particulares<br />

e, aparentemente, contraditórios. Há, pois, necessidade de compará-las<br />

a novos fatos e, para responder exatamente às condições<br />

de cada caso, cada solução deve se adaptar à “natureza da coisa”,<br />

à essência de cada caso.<br />

O método para isso é diferente. O discurso é outro. É uma<br />

outra espécie de ciência do direito. O método dos juristas romanos<br />

era controversial. As questões de direito aconteciam com disputas<br />

longas e rigorosamente conduzidas. Coisa totalmente diferente do<br />

“intuitivismo”, do apelo ao “sentimento” do direito, do “irracionalismo”...<br />

Os juristas romanos raciocinavam a partir de regras, pois<br />

existiam normas de direito neste regime: encontram-se leis positivas<br />

e, muito mais ainda, dispositivos doutrinais. O Digesto, que<br />

representa apenas uma pequena parte da literatura dos jurisconsultos<br />

romanos, foi uma fonte rica de inspiração para as codificações<br />

do século passado e início deste, principalmente no que se refere<br />

ao ramo do Direito Civil. Durante a Idade Média foi acrescentado<br />

um grande número de máximas e de brocardos.<br />

Nota-se que o método destes juristas não era o da passagem<br />

das regras à sentença. Não é um trabalho de pura dedução do<br />

direito a partir de normas.<br />

Por primeiro, não é possível extrair o direito de um processo<br />

de pura dedução, pois as regras são muito numerosas e, além<br />

disso, contraditórias. A ilusão, cara a Leibniz (1646-1716), de que<br />

as regras de direito romano formassem um todo homogêneo, está<br />

abandonada pelos romanistas. Os textos dos juristas romanos parecem<br />

constituir um conjunto de contradições. As regras de direito<br />

não formam a “unidade da ordem jurídica” com a qual sonhou<br />

Kelsen (1881-1973).<br />

Diante de tantas regras, de qual delas se extrairia o direito?<br />

Uma serve à causa de determinado pretendente, enquanto que<br />

outra serve à do seu adversário. A função do juiz seria a de escolher<br />

entre as normas aquela da qual ele extrairia o direito. O certo<br />

é que este trabalho não se executa pela via dedutiva.<br />

Em segundo lugar, existe uma razão que exclui a possibilidade<br />

de que a solução seja encontrada por inferência dedutiva:<br />

nenhuma das regras usadas pelos juristas consegue inferir a solução<br />

plenamente adaptada ao caso concreto. As normas foram estabelecidas<br />

pelos jurisconsultos trabalhando sobre precedentes, sobre<br />

impulso<br />

61


4 Cf. S. Th. 1 – 2ae, q. 93, a. 6<br />

casos mais ou menos parecidos, e não sobre princípios da razão<br />

pura ou a partir de uma lei da razão previamente conhecida.<br />

Nenhum destes precedentes é exatamente idêntico ao caso que se<br />

vai julgar. E o direito é entendido aqui como a solução concreta<br />

apropriada ao caso em espécie, à própria natureza da causa. A solução<br />

apropriada não pode ser extraída exclusivamente da lei prevista<br />

para casos diferentes. Há necessidade, pois, de uma outra fonte.<br />

A sentença, para ser justa, idealmente deveria se apoiar sobre<br />

uma regra. Entretanto, não existe esta regra pré-estabelecida. Ela é<br />

descoberta ao mesmo tempo em que é exarada a sentença. Se existisse<br />

esta norma pré-estabelecida, seria a “lei eterna”, na língua<br />

neotomista. 4 Entretanto, dela o homem não tem o respectivo<br />

segredo: Tomás de Aquino convida a procurar a ordem da lei<br />

eterna em seu reflexo, isto é, na natureza das coisas que mudam.<br />

O arsenal de regras oferecido pelos códigos é insuficiente. O<br />

Digesto proclama expressamente: Jus non a regula sumatur (o<br />

direito não seja tirado da regra). Os romanos não aceitavam um<br />

método exclusivamente dedutivo.<br />

Então, qual seria o método? Pode-se seguir o seguinte<br />

esboço:<br />

a) Por primeiro, o trabalho de pesquisa do direito não é<br />

monódico. A busca do direito se faz de várias formas, é uma obra<br />

polifônica. Com efeito, no esquema do judiciário, de onde sai a<br />

solução do direito, estão necessariamente presentes os advogados<br />

das partes, e também imprescindivelmente o representante da<br />

sociedade, dos terceiros que têm algum interesse no processo, e<br />

por último, o juiz que dá a conclusão. A luz sairá do embate entre<br />

os contendores contrários. O lugar da busca do direito era a controvérsia.<br />

b) Na controvérsia, exerciam-se ações diversas. Usava-se a<br />

dedução, pois o homem usa-a sempre. Cada advogado trazia os<br />

dispositivos legais que eram do interesse de seu cliente, e destes<br />

textos ele deduzia as conclusões que lhe interessavam. Entretanto,<br />

não é só o advogado que faz o direito. Não é ele que o faz em<br />

definitivo. Existe a figura do juiz, cuja função é presidir o confronto<br />

entre as diferentes regras alegadas. Discute-se a pertinência<br />

de cada regra, e sua relevância para o caso, ao tipo de processo<br />

em questão, à espécie em particular. Tudo isto tem a finalidade de<br />

62 impulso


escolher entre diferentes regras, por uma contínua referência ao<br />

caso concreto, dentro do arsenal contraditório de regras alegadas no<br />

processo; de procurar as mais adequadas no encontro da solução.<br />

Este trabalho nada tem de dedutivo.<br />

c) A solução não será tirada analiticamente, através do<br />

método dedutivo, de uma regra pré-existente. As regras servem de<br />

meio para se chegar à solução definitiva. Esta decorre da natureza<br />

do caso e não da análise da regra.<br />

Assim, se tal é o processo normal de invenção do direito, se<br />

não é da sua essência ser rigorosamente conforme a uma regra<br />

pré-estabelecida, compreende-se que a “ciência do direito” dificilmente<br />

terá uma forma axiomática. Com efeito, os “sistemas de<br />

direito” da Antiguidade, da Idade Média e até do século XVI têm<br />

uma estrutura diferente dos sistemas da época moderna: são classificações<br />

de casos, de tipos de negócios ou de questões, e não<br />

sistemas dedutivos de regras; Assim são o Digesto e as Institutas.<br />

É o contrário do que acontece com os tratados teóricos e abstratos,<br />

que afirmam um sistema dedutivo de regras; não merecem o<br />

nome de direito, pois não conseguem encontrar solução nova para<br />

o caso concreto. A idéia de direito construída por tais pensadores<br />

perdeu a sua essência. O direito não constitui pura dedução.<br />

Assim, também, a lógica jurídica pode ser tudo, menos um<br />

complexo de operações puramente dedutivas. Se há uma lógica,<br />

não é no sentido rigoroso do termo. Não é o desdobramento analítico<br />

de determinada questão dada previamente, mas a arte de<br />

conduzir dentro de certa ordem uma pesquisa ativa.<br />

Não se trata, aqui, de uma “lógica do necessário”. Os raciocínios<br />

da controvérsia jurídica não são do tipo constrangente. Só<br />

há premissas razoáveis, cujas inferências levam a uma solução<br />

jurídica. A verossimilhança está fundada em regras doutrinais ou<br />

na opinião de uma autoridade, podendo ambas ser discutidas.<br />

Este procedimento, se bem que seja racional, está contido inteiramente<br />

dentro do provável. A controvérsia judiciária do direito<br />

romano ou medieval tinha por objetivo chegar a um acordo o<br />

mais amplo possível entre as opiniões. Havia uma tentativa de se<br />

aproximar da verdade. Só, então, vinha a sentença.<br />

Não se trata, portanto, de uma lógica pura, da lógica formal.<br />

O discurso que levava das regras de direito à sentença não era<br />

impulso<br />

63


5 Ret. I, 1 e 14.<br />

feito através de “formas puras” do pensamento. Havia um vai-evem<br />

permanente entre os conceitos e o caso concreto que estava<br />

sendo analisado. No pensamento aristotélico-tomista, o mundo do<br />

pensamento não era separado do mundo das coisas, como aconteceu<br />

depois de Descartes e de Kant.<br />

Aristóteles sublinhava que existem setores imensos da obra<br />

intelectual humana onde não dá para usar o método perfeito da<br />

lógica formal descrita principalmente nos Analíticos. Como<br />

exemplo, citava a descoberta dos princípios na própria ciência e o<br />

universo da vida prática. O Estagirita tinha cultura universal:<br />

conhecia não só matemática, física, biologia, mas também as pesquisas<br />

ordenadas à vida prática, como aquelas que se usavam na<br />

ágora e nos tribunais. Ele sabia que aí devem ser adotados procedimentos<br />

adequados às controvérsias políticas e jurídicas.<br />

Para os que se interessam pela lógica do direito, há que se<br />

estudar as obras dialéticas de Aristóteles, principalmente os<br />

“Tópicos” e a “Retórica”. Ele estuda nos “Tópicos” a dialética.<br />

Esta é um método e uma arte, que permite responder sobre todas<br />

as questões, e que ensina a raciocinar, sem contradições, sobre a<br />

opinião. Em razão de estar fundada na “dóxa” (opinião), a dialética<br />

é uma arte, não uma ciência. Como lógica do provável, ela<br />

participa da verdade, já que ensina a raciocinar corretamente, partindo<br />

de proposições plausíveis.<br />

A “Retórica” de Aristóteles é uma verdadeira técnica, uma<br />

arte. Considera-a como um método persuasivo, cuja temática é<br />

“comum” a outras artes, e que a partir do comum estrutura as<br />

suas argumentações. Ela não trata dos princípios ou premissas<br />

básicas de cada ciência particular, mas dos tópicos, dos lugares<br />

ou conceitos que de u'a maneira semelhante são comuns a todas<br />

as coisas. Assim Aristóteles pode dizer que a retórica é correlativa<br />

da dialética. 5<br />

Nem a retórica e nem a dialética são disciplinas especiais.<br />

Todas as pessoas as usam durante a vida. Sempre que se ataca ou<br />

de defende uma opinião, pratica-se a dialética. Cada vez que se<br />

acusa ou se defende, sempre que se aconselha, que se censura ou<br />

se louva alguém, usa-se da retórica. Como a dialética e a retórica<br />

não se propõem demonstrar, elas podem estabelecer duas proposições<br />

opostas, em suas diversas modalidades. Entretanto, é o<br />

64 impulso


verdadeiro que se presta melhor para o raciocínio e a persuasão<br />

do que o falso. Como o médico, o dialético e o retórico não são<br />

obrigados a triunfar; uma vez feito o que podiam fazer, estão<br />

desobrigados de tudo o mais.<br />

CONCLUSÃO<br />

Hoje, a humanidade está longe do regime de produção do<br />

direito que existia na Roma clássica. Longe porque a educação<br />

hodierna condicionou o homem a crer que o direito é o produto do<br />

espírito do legislador. Há uma crença que direito é o direito positivo<br />

estabelecido nos códigos e demais dispositivos legais. A hermenêutica<br />

jurídica consiste na dedução de normas gerais de dispositivo<br />

que deve ser aplicado no caso concreto. Assim, o juiz deve<br />

deduzir automaticamente a sua sentença do código. Esta crença<br />

tem o seu fundamento: o mundo moderno o sacrificou por razões<br />

de segurança e de previsibilidade da vida social; ele é desconfiado<br />

do arbítrio do juiz. Em razão disso, o direito positivo cresceu<br />

incomparavelmente ao que era antes.<br />

Sabe-se que o trabalho efetivo do juiz consiste, ontem como<br />

hoje, em procurar a solução de direito pela via da dialética. Ele<br />

escolhe no conjunto das regras legais alegadas de parte a parte<br />

normas que não são concordantes entre si, e que não constituem<br />

nenhuma “ordem jurídica” homogênea. Busca além da regra legal,<br />

se for necessário. Cria novas regras para tornar a sentença adequada<br />

ao caso em espécie, que é sempre novo. As coisas mudam<br />

menos do que as novas maneiras de as ver.<br />

Nestas circunstâncias, existe na produção do direito uma<br />

parte que é viva e imprevisível. É ilusório querer construir uma<br />

ciência do direito totalmente axiomática. Um sistema coerente de<br />

regras, dentro de uma ordem jurídica, pode ser admirado como<br />

obra-prima de lógica formal, entretanto, ele está fora da realidade<br />

do direito. O direito, que deseja ser uma ciência, não pode jamais<br />

atender ao estatuto de uma ciência estável e rigorosa. Os sistemas<br />

não constituem o direito, estando ao seu lado. A verdadeira solução<br />

lhes escapa, porque a sua verdadeira fonte não reside nas<br />

regras, mas nas coisas.<br />

A melhor garantia contra o arbítrio do juiz e contra o “julgamento<br />

por eqüidade” não está na ficção de um regime dedutivo do<br />

direito, mas num sólido e consciente procedimento controversial.<br />

O cerne da lógica jurídica está no estudo da dialética.<br />

impulso<br />

65


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AQUINATIS, Sanctus Thomas. Summa theologiae. 2ª ed. Madrid:<br />

BAC, 1956.<br />

ARISTÓTELES. Obras. 2ª ed. Madrid: Aguilar, 1973.<br />

AUGUSTI, Justiniani. Digesta. Milano: F. Vallardi, 1931.<br />

FASSÒ, Guido. Historia de la filosofía del derecho. 3ª ed. Madrid:<br />

Pirámide, 1982.<br />

KAUFMANN, Arthur, HASSEMER, Winfried. El pensamiento<br />

jurídico contemporaneo. Madrid: Debate, 1992.<br />

VILLEY, Michel. Seize essais de philosophie du droit. Paris: Dalloz,<br />

1969.<br />

VILLEY, Michel. Critique de la pensée juridique moderne. Paris:<br />

Dalloz, 1976.<br />

66 impulso


SEGURANÇA PÚBLICA E<br />

GARANTIAS INDIVIDUAIS SOB A<br />

AMEAÇA DA CRIMINALIDADE<br />

COMUM E ORGANIZADA NA<br />

VISÃO DE WINFRIED HASSEMER<br />

SAMUEL ZEM<br />

SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL DA POLÍTICA<br />

DE SEGURANÇA NA ALEMANHA<br />

A criminalidade e a violência preocupam, atualmente,<br />

de modo intenso, os cidadãos na República Federal<br />

Alemã. Uma política, com base antes na “garantia da<br />

liberdade” do que no “combate à criminalidade”, não<br />

pode minimizar o tema. 1<br />

1. Hassemer nos coloca hoje, na Alemanha, frente ao debate<br />

deste problema, que não é novo, embora muito importante. Notamos<br />

pelo que se noticia que, tanto lá, como cá, a dificuldade está<br />

em encontrar-se uma política que concilie, ao mesmo tempo, segurança<br />

pública, liberdades individuais, combate ao crime organizado<br />

e à criminalidade. Lá, todavia, a questão das garantias individuais<br />

assume um contorno mais nítido, e toda a discussão em<br />

torno do combate ao crime se passa, necessariamente, respeitandose<br />

esses princípios.<br />

1 HASSEMER, Winfried. Perspektiven<br />

einer neuen Kriminalpolitik.<br />

Innere Sicherheit im<br />

Rechtsstaat, Straftverteidigertag,<br />

v. 19, p. 15, Freiburg 1995.<br />

impulso<br />

67


A atual política neoliberal, que predomina, começa a preocupar.<br />

Não tem dado resultados satisfatórios, porque não privilegia um<br />

adequado modo para enfrentar a criminalidade, falta-lhe criatividade<br />

nos meios de intervenção. Houve por esta política uma adequação<br />

a um método, no qual a ênfase foi a uma maior pressão à<br />

opinião pública e aos meios típicos de investigação dos atos criminosos.<br />

Depara-se com o primeiro problema: como reduzir a<br />

recente intensificação da violência e da criminalidade sobre eles.<br />

A criminalidade e a violência sempre assustam, mas, em<br />

compensação, quando o Estado escolhe o recrudescimento das<br />

normas e os métodos usados chegam a ameaçar os direitos fundamentais,<br />

surge uma situação no mínimo curiosa: aqueles que não<br />

vêem com bons olhos tais métodos se escandalizam, enquanto os<br />

outros ficam fascinados. Por que tais métodos atraem? Certamente<br />

quem acredita vê neles a solução.<br />

Mas, não é tão simples assim. Temos não apenas um tipo de<br />

criminalidade, mas pelo menos dois. Hassemer não quer que sejamos<br />

ingênuos. A criminalidade organizada, por este mesmo<br />

motivo, não se deixa conhecer em profundidade; por isto dá ensejo<br />

a que se ameace o plano de combate com propostas que podem<br />

interferir na privacidade. Por outro lado, a criminalidade de massa,<br />

por seu volume, já não é mais possível controlar. A impotência dos<br />

atuais métodos põe o Estado em xeque. Surge daí a ameaça de se<br />

lançar mão de métodos que possam ferir a dignidade das pessoas.<br />

O processo de intervenção do Estado no combate ao crime,<br />

em vez de ser de ordem da Política Criminal, vira apenas caso de<br />

polícia, não há o debate político. Sabe-se que na Alemanha as<br />

questões de segurança interna são sempre um tema tabu, porque se<br />

teme que uma eficiente intervenção estatal com polícia secreta e<br />

seu aparato descambe para um Estado do tipo intervencionista. A<br />

tendência da atual política, no entanto, é sempre no sentido de<br />

aumentar a intervenção policial.<br />

A presença da polícia não deve ser afastada, na visão de Hassemer,<br />

porém não se pode creditar a ela a solução de todo o problema.<br />

Nem tudo o que é desejável é factível.<br />

2. Sabe-se que a política conservadora usa do tema criminalidade<br />

e seu combate para sua sustentação, e vem sendo pressionada<br />

pelas exigências de um combate eficaz. Aparece aí um conflito.<br />

Não se pode sacrificar a liberdade em nome da segurança, e a política<br />

de liberdade com segurança, além de não estar sendo lembrada,<br />

fica impotente frente aos arroubos populistas destes conservadores.<br />

68 impulso


Desta política conservadora resulta que a ênfase acaba sendo<br />

no Direito e na Ordem, por serem um campo onde eles têm maior<br />

atuação, e acabam resultando no acatamento pela opinião pública.<br />

O sentimento de ameaça e a impotência dos Estados acabam<br />

determinando que se apóie tal tipo política.<br />

Por que ênfase no Direito e na Ordem? Como adiante se<br />

verá, não se resolve questão dessa envergadura apenas com mais<br />

leis e mais policiamento. O Direito aqui é o ordenamento positivo<br />

penal, enquanto a Ordem representa o sistema policial organizado<br />

e repressivo. A opinião pública aceita a implementação desta política,<br />

porque, acuada pelo clima geral de insegurança gerada pela<br />

mídia, se predispõe favoravelmente a este tipo de discurso.<br />

Os conservadores exploram a opinião pública, temerosa<br />

frente ao aumento da criminalidade organizada, porém não tomam<br />

atitudes frente ao problema, limitam-se a apontá-lo, sem todavia<br />

encaminhá-lo para uma solução. E os crimes aumentam.<br />

Essa tranquilidade do poder criminoso atua no sentido de<br />

levar-se a pensar em sacrificar as liberdades individuais. Os direitos<br />

fundamentais dos cidadãos são informalmente quebrados, e<br />

qualquer proteção aos dados pessoais não é vista pelos combatentes<br />

do crime senão como qualquer direito liberal e são rotulados<br />

de exagerados e distantes da vida. Isso significa que, em nome do<br />

combate ao crime, se vilipendiam os valores humanos e seus<br />

direitos. Revela, como já se disse acima, falta de criatividade<br />

frente ao problema.<br />

A crítica não é somente aos conservadores, mas também<br />

àqueles que deveriam expor e defender as tradições, especialmente<br />

uma política criminal estatal de liberdade com segurança pública e<br />

direitos fundamentais de segurança que não é adequadamente<br />

exposta. Significa que aqueles que têm o bastão da defesa dos<br />

direitos individuais deveriam se esforçar mais, pois o recrudescimento<br />

da intervenção policial não é só o resultado de uma política<br />

conservadora, mas também da inércia daqueles.<br />

CRIMINALIDADE DE MASSA E<br />

CRIMINALIDADE ORGANIZADA<br />

3. O fato de a população acreditar que a questão central da<br />

criminalidade reside no combate à criminalidade de massa, dificulta<br />

o combate a criminidade em geral. Todavia, frente às garantias<br />

constitucionais, o crime organizado, que é em grande parte<br />

impulso<br />

69


esponsável por aquele, tem seu combate obstruído, tornando a<br />

situação tensa. Esta é a questão-chave do problema; precisa-se<br />

tocar naquelas garantias para tentar resolvê-la.<br />

Face aos diversos tipos de crime, que aumentam em quantidade,<br />

enquanto os casos solucionados diminuem, fica a população<br />

à mercê, impotente, não só corporal e economicamente falando,<br />

mas psicológica e normativamente. Essa estranha isenção e inércia<br />

coloca a população em xeque diante da força do Direito.<br />

A colocação é crucial: deseja-se sempre que a prepotência<br />

social, que aponta sempre para uma solução de intervenção, seja<br />

minimizada, porém, a necessidade de combate ao crime com as<br />

medidas que devem ser tomadas vai em sentido contrário. Tornase<br />

então, em ausência de segurança para os mais fracos. O Direito<br />

tem, entre outras tarefas, a de garantir o cidadão frente à prepotência<br />

do Estado. Surge, por isto, a necessidade de se discutir a utilização<br />

de outros métodos, que não somente o uso da Polícia e do<br />

Direito, porque nas formas de criminalidade organizada, na maioria<br />

das vezes, não estão presentes. Pode-se pensar na aplicação de<br />

prevenção técnica, maior presença policial, mudança no modo de<br />

vida da juventude, inovação na política de drogas, etc.<br />

Desta forma, o problema é relativizado e trazido para a discussão<br />

dentro do contexto da necessidade diária das pessoas com<br />

segurança e liberdade.<br />

4. Todavia, a tática que se utiliza do medo das pessoas diante<br />

da criminalidade de massa, mantendo-as alheias ao debate do problema<br />

da criminalidade de massa, é de cunho populista. O temor<br />

ao criminoso e a debilidade estatal frente a isto tornam-se um<br />

grave problema.<br />

A criminalidade tem estado aí por um longo tempo: arrombamento<br />

de residências, roubo e usualmente a violência contra os<br />

fracos na rua, furtos de automóveis e bicicletas, e recentemente a<br />

dissimulada violência contra os estrangeiros. É obvio que a origem<br />

destas formas de criminalidade está mais profunda, como por<br />

exemplo, o comércio internacional de drogas e armas, e exige<br />

outras formas de intervenção. Uma nova política de intervenção<br />

aponta para o combate deste tipo de criminalidade como forma de<br />

se diminuir a criminalidade de massa.<br />

Como método de trabalho, teríamos primeiro que fazer um<br />

completo levantamento das formas de criminalidade, para conhecermos<br />

nas suas origens, e, a partir daí darmos combate a eles.<br />

70 impulso


5. A criminalidade organizada é bem menor que a de massa,<br />

e certamente não subsiste sozinha, ela depende da criminalidade<br />

de massa e a fomenta. Então, ao combater a criminalidade organizada,<br />

estaríamos combatendo a criminalidade de massa. Também<br />

a corrupção no legislativo, executivo e judiciário.<br />

Necessitamos conhecer melhor a criminalidade organizada,<br />

as investigações estão no início e existe a possibilidade de uma<br />

confiante explicação criminológica.<br />

Há explicações que o colocam com um enorme potencial de<br />

ameaça, o que provocou até agora mudanças quantitativas na<br />

estrutura de seu combate, como pena e Direito Processual Penal.<br />

Porém não se pode olvidar que no combate ao crime organizado<br />

deve-se passar por uma mudança qualitativa. O potencial de ameaça<br />

do crime organizado manifesta-se pela usurpação das instâncias<br />

estatais, que influenciam a definição, esclarecimento ou condenação<br />

do criminoso. Confunde-se, portanto, as fronteiras de criminalidade<br />

e combate à criminalidade. O combate ao crime organizado<br />

deve guiar-se pela prevenção oportuna.<br />

Hassemer descreve a criminalidade organizada como um<br />

fenômeno ágil, que acompanha o mercado, um tanto escasso (lá),<br />

e que conta com múltiplos meios de acobertamento. No Brasil, o<br />

que se observa, no caso do tráfico, em especial no Rio de Janeiro,<br />

é a substituição do próprio Estado, inclusive nas questões sociais<br />

dos moradores dos morros e subúrbios.<br />

Um Estado duplamente impotente gera este tipo de solução,<br />

os espaços antes ocupados pela assistência social e policial estatal,<br />

agora são reduto do crime organizado. Ouve-se falar em divisão<br />

dos espaços de atuação dos diversos grupos, e mais recentemente,<br />

a partilha por atividade, em que determinado grupo se encarrega<br />

do tráfico de armas, enquanto outros se concentram na distribuição<br />

de drogas ou assaltos a carros-fortes e seqüestros. De um modo<br />

geral, o fenônemo tende a seguir a mesma técnica de divisão e<br />

atribuição das tarefas que qualquer empresa capitalista organizada<br />

pratica.<br />

Uma das questões sérias, a nosso ver, diz respeito ao argumento<br />

que países produtores usam, quando países consumidores<br />

como os Estados Unidos os acusam de lassidão no combate a produção.<br />

Este argumento é o de que se não houvesse mercado não<br />

haveria produtor. Nada mais óbvio; no entanto, sempre haverão<br />

impulso<br />

71


produtores e consumidores, e a minimização do problema certamente<br />

não se faz com penas duras e repressão policial.<br />

Ele pensa que até se saberia como combatê-la, mas seria uma<br />

postura ingênua. Seria, frente a uma situação ameaçadora e frente<br />

a um inimigo desconhecido, por ignorância criminológica, sair<br />

“atirando às cegas”. Uma política criminal, no caso, deve lançar<br />

mão de considerável força, engajando-a para o esclarecimento criminológico.<br />

Necessita ao máximo se assegurar dos meios para<br />

atingir o alvo. A experimentação científica dos assertos das ciências<br />

filosóficas deve ser permanente e feita de modo seguro.<br />

O ESTREITAMENTO DO <strong>DIREITO</strong><br />

6. O sistema policial é impotente diante da criminalidade<br />

organizada. Também o Direito Penal tem sido reduzido em detrimento<br />

dos direitos fundamentais. Resulta que princípios consagrados<br />

são postos de lado, como o in dubio pro reo, a lisura na averiguação.<br />

Embora colocados como legítimos pelas autoridades,<br />

diversos meios como vigilância telefônica, grampos, confisco,<br />

penalização pela lavagem do dinheiro, etc, o que não é pouco,<br />

muita coisa ainda deve ser feita.<br />

Mas não é esse o ponto da discussão. As autoridades põem<br />

esses meios como irrenunciáveis, o que é prova da debilidade<br />

argumentativa, de uma orientação com base no direito de uma<br />

política de segurança.<br />

7. A aceitação desses métodos leva à transformação do<br />

direito estatal, nivela os limites entre polícia e direito processual<br />

penal, os métodos de investigação como vigilância telefônica,<br />

observação policial, observação velada, estendem-se necessariamente<br />

sobre um terceiro “desinteressado”, vale dizer, inocente.<br />

Estes métodos levam a um agravamento, como a ampliação da<br />

escuta telefônica, ao flagrante preparado e à entrada dos meios oficiais<br />

secretos no combate à criminalidade. Isto não traz muitas utilidades,<br />

mas certamente muitos danos.<br />

Não dá para se dizer que resultado tem dado o agravamento,<br />

se positivo ou negativo. A necessidade de informação não é uma<br />

ciência teórica da vontade, mas a preocupação de intervenção do<br />

Direito, que observa de cima, vale dizer, do ponto de vista do<br />

poder.<br />

Embora tudo isso tenha sido posto em ação, sabe-se que o<br />

foram de maneira superficial. Os legisladores conhecem que, por<br />

72 impulso


exemplos: a vigilância telefônica esbarra nos avanços tecnológicos,<br />

os bloqueios de rua, na correta conduta das pessoas. O acompanhamento<br />

do suspeito, na Alemanha, choca com problemas<br />

étnicos, não se dispõem. Não se pode usar indiscriminadamente<br />

as permissões constitucionais.<br />

O Estado não deve usar dos mesmos métodos, que persegue,<br />

por exemplo, a privacidade do cidadão é invadida, quando ele abre<br />

as portas de sua residência para o levantamento de um crime ocorrido<br />

dentro dela, mas é legitimada em nome da elucidação. O contrário<br />

se dá, quando ela é invadida, pela polícia para uma batida;<br />

aí, o Estado se coloca no mesmo nível do criminoso. Então, a<br />

fronteira entre crime e seu combate desaparece.<br />

Se o Estado usa desses métodos, mesmo sendo constitucional,<br />

acaba a transparência, tanto para o surpreendido como para a<br />

publicidade em geral.<br />

Hassemer anota que as pessoas de um modo geral, quando a<br />

ameaça é especialmente grave, abrem mão de suas garantias constitucionais.<br />

Porém, frente a tal situação, requer-se uma posição de<br />

ponderação, cuja visão não seja restrita ao caso.<br />

QUESTÕES DE FUNDO<br />

8. Não se pode falar em sociedade sem pensar nos riscos que<br />

existem; eles fazem parte do nosso cotidiano. A sociedade de risco<br />

vislumbra crescente dificuldade; essas relações crescentes antecipam<br />

ameaças difusas. Significa que não devemos pressupor menos<br />

prejuízo do o esperado, nem melhorar o prejuízo já ocorrido. Isso<br />

gera uma tendência: há a fortificação dos fortes e o enfraquecimento<br />

dos fracos. As instituições de controle social, como a<br />

família, a vizinhança, e a comunidade escolar têm perdido a suas<br />

força. Diante disso, fazer-se normas, sem profundas investigações,<br />

é anacrônico.<br />

Uma visão não científica reforça a tese de que deve haver um<br />

recrudescimento dos meios de repressão. Enquanto isso, um<br />

grande número de pessoas faz seu futuro incerto. A falta de instrução,<br />

de empregos, o aumento das rendas, do aluguel, dos custos<br />

com saúde, resulta: a crescente chance dos hábeis para enriquecer<br />

e ascender socialmente; o relativo empobrecimento dos outros.<br />

Esta postura é que nos leva a ser contrários à criminalidade e a<br />

violência. A norma social, da qual a norma do Direito depende,<br />

deve ser modificada a longo prazo. Num mundo de “diabos”, nem<br />

a polícia nem o Direito têm chance.<br />

impulso<br />

73


9. Contrariamente existem fenômenos superficiais. A violência<br />

na televisão, que é feita para o prazer, não é a fonte da<br />

desgraça, mas o prenúncio. Essa orientação para a violência é<br />

nata, a sua representação não teria resultado se não o fosse. Isto<br />

significa que se fosse possível atingir a personalidade das pessoas<br />

com a violência pela televisão seria possível também modificá-las<br />

para o bem.<br />

Não é apenas a ameaça que determina a política de segurança<br />

pública, porém a observação das reações das pessoas. O Estado é<br />

mais sensível a este fator. São exigências para uma maior intervenção<br />

estatal, elas autorizam a ação e a intervenção. Em vista disso,<br />

não há uma relação direta entre a ameaça e o sentimento de ameaça;<br />

um crime de reduzida probabilidade pode gerar um clamor<br />

maior pelo sentimento de ameaça do que crimes mais freqüentes,<br />

porém com potencial de ameaça menor. Pequenos furtos acontecem<br />

em maior número, seqüestros em número reduzidíssimos,<br />

porém o potencial de ameaça é maior neste último.<br />

A política deve, então, trabalhar com as condições de origem<br />

da ameaça, e isto se complica à primeira vista. Os detalhes não<br />

foram ainda pesquisados, quais os fatores que tornam a ameaça<br />

concreta. O processo de erosão da norma baseia-se que eles são o<br />

resultado da desestabilização normativa. O sentimento de ameaça<br />

é difuso e então não há diferenças, por princípio, da ameaça criminal<br />

e ameaça concreta.<br />

CAMINHOS<br />

10. A posição de estabilidade da norma se justifica porque<br />

não há uma panacéia atuante contra a violência e criminalidade. O<br />

caminho correto tende muito mais para uma política interna pragmática,<br />

diferenciada e orientada para o futuro.<br />

Tanto o receio da criminalidade como a criminalidade tem<br />

raízes profundas. Uma correta política criminal deve procurar e<br />

identificar as prioridades e reduzir as intervenções permitidas, que<br />

estejam na lista das autoridades. Deve também procurar e anular a<br />

ingerência que a política de segurança tem hoje, para adequá-la à<br />

medida correta.<br />

Isto significa que a política de segurança pública deve conciliar<br />

a efetividade policial com garantias de direito constitucional e<br />

penal. Tem que se mostrar: é política de segurança sem respeito à<br />

juventude, trabalho, o social; cultura por muito tempo de uma<br />

74 impulso


organização sem esperança. Isto torna a política de segurança<br />

interna sem sentido.<br />

A reflexão sobre a política de segurança deve ser pragmática.<br />

A ocupação científica criminológica deve selecionar os temas a<br />

tratar, para não ficar apenas nos problemas do dia-a-dia; deve recusar<br />

medidas dogmáticas escolásticas como a escuta clandestina.<br />

Precisamos tomar uma posição frente aos problemas da violência<br />

para sabermos quais meios usar em contrário.<br />

Uma política pragmática deve ser versátil e reconhecer<br />

quando necessário fazer as mudanças e então fazê-las. O que tem<br />

ocorrido é de uma intervenção ser posta no Código Penal e lá permanecer.<br />

A política pragmática, ao contrário, não conta somente<br />

com a obtenção de acerto ou erro, mas também com resultados<br />

aproximados, não claramente entendidos, mas necessários. Além<br />

do endurecimento, a política de segurança deve ter em seu programa<br />

também consideração correção e moderação.<br />

A resposta política para a criminalidade deve ser apta para<br />

distinguir entre criminalidade de massa e criminalidade organizada.<br />

Podemos, é claro, por causa da ameaça, pensar em mudança<br />

do processo não a longo prazo, porém devem ser pensadas sob<br />

uma perspectiva de longo prazo. Significa que não devemos ser<br />

imediatistas.<br />

11. A política criminal atual deve abrandar os meios, como<br />

conseqüência da sociedade de risco. Deve diminuir o fechamento<br />

da sociedade e a conseqüência disto e um abrandamento para as<br />

pessoas.<br />

Intervenções nas normas, na economia e na solidarização da<br />

sociedade são intervenções políticas diretas. Mas em que amplitude<br />

seria desejável o retrocesso. “Modernização não se pode<br />

‘recusar’, vive-se nela”. 2<br />

A politica interna pode também até certo ponto desgastar ou<br />

distribuir o resultado da modernização, quer apele para o retrocesso<br />

ou para a modernização. Aqui há uma chance de vida, dos<br />

fracos, das crianças, da juventude, dos velhos e dos estrangeiros. A<br />

política social, que é a melhor política criminal, vale nesta relação<br />

desde antigamente. 3<br />

Isto ainda não é um programa prestimoso, mas é uma política<br />

de curto prazo, para obter resultados de longo prazo.<br />

O patriotismo leva a uma solidarização da sociedade (nacionalismo).<br />

Uma política de fechamento, não só econômico, mas de<br />

parâmetros normativos, pode tornar, pela tradição dos países<br />

2 HASSEMER, Winfried, op.<br />

cit., p. 19.<br />

3 HASSEMER, Winfried, op.<br />

cit., p. 19.<br />

impulso<br />

75


europeus e em especial pela história recente da Alemanha um<br />

fermento e desenvolver uma consciência de solidariedade e<br />

comunhão no cidadão. Seria uma barreira contra a decadência da<br />

sociedade e o deslize para a criminalidade. Mas, precisamos ponderar<br />

os direitos fundamentais, quando pensarmos em efetividade<br />

policial um contra o outro.<br />

Para uma perspectiva de longo prazo, nossa discussão favorece<br />

a segurança em detrimento do aspecto político. Devemos ter<br />

em vista que os elementos de um eficiente e técnico controle do<br />

crime são fixados a longo prazo, porém apenas superficialmente os<br />

olhamos. Uma política de segurança seria melhor debatida entre<br />

os cidadão interessados do que com os experts. O debate entre<br />

estes contempla apenas questões criminalísticas. Isto, sem dúvida,<br />

não parece ser favorável, pelo enfraquecimento do meio político,<br />

pois retira uma tendencial solução do problema pelo meio, através<br />

do acobertamento da observação. Para a política de segurança<br />

interna, é, a longo prazo, perigoso o estar orientada sob este setor,<br />

pois a sociedade sozinha pode não se livrar do problema da violência<br />

e da criminalidade.<br />

12. Uma política pragmática deve prevalecer sobre os conflitos<br />

de crença. Nós devemos a distintas forma de criminalidade<br />

com distintas formas de combate responder. Precisa-se caminhar a<br />

passos firmes.<br />

A atual política policial dá resultados, por exemplo, sobre<br />

aquelas formas de crime que assustam diretamente os cidadãos,<br />

que se utilizam de seguranças profissionais particulares, o que é<br />

uma política de segurança escandalosa, direito estatal perigoso,<br />

pois privatiza um meio natural que é o âmago da estatização, também<br />

desproporção entre rico e pobre em segurança diante do criminoso,<br />

prejuízo na construção da norma, nos direitos fundamentais<br />

de segurança e no controle estatal do combate aos criminosos.<br />

Uma política de segurança pragmática se assentará não<br />

somente em um novo regulamento de direito policial e processual<br />

penal, mas numa mudança não muito acentuada: equipamento e<br />

presença da polícia, posição política melhorada, preparação e<br />

remuneração, prevenção técnica melhorada, regulamentação da<br />

entrada para serviços de segurança e vigilância, ênfase reforçada<br />

no fator humano em vez do tecnológico, etc. Certamente com<br />

esses meios será obtida uma segurança muito mais eficaz dos<br />

cidadãos.<br />

76 impulso


Outro aspecto importante é abrandar o direito penal, até descriminalizar,<br />

naqueles casos em que este, mesmo sendo brando (na<br />

Alemanha), age contraprodutivo, em especial a política das drogas.<br />

A política de drogas é um dos poucos campos onde a criminalidade<br />

de massa e a criminalidade organizada tocam-se um no<br />

outro: criminalidade organizada é antes de tudo o comércio internacional<br />

com narcóticos; o recrutamento da criminalidade entre<br />

dependentes de drogas constitui de novo uma boa parte de nossa<br />

criminalidade de massa. Também é urgente encontrar aqui uma<br />

saída segura politicamente. 4<br />

Como se pode observar, o consumo de drogas é combatido<br />

pelos males que causa à saúde e pela dependência que cria. Mas<br />

também não se pode negar, como observa Hassemer, que a dependência<br />

leva a prática de outros crimes, de natureza criminal desorganizada,<br />

tais como furtos, roubos, extorsão, etc; também leva o<br />

dependente a participar do esquema organizado, pois aí há um<br />

plus de exigência comercial do meio: dependentes se relacionam<br />

melhor com outros dependentes; também para dissimular o tráfico,<br />

já que na maioria das vezes os traficantes-dependentes são pessoas<br />

de bom nível social. O tráfico não sobreviveria somente com os<br />

consumidores de baixa renda. Desse comprometimento dependente-traficante<br />

nascem problemas de todo tipo que não se pode<br />

resolver com apenas proibição e pena.<br />

Desta forma, o problema das drogas deixa de ser só do<br />

Direito Penal, mas também da saúde pública. O mercado negro<br />

agradece a esses tipos de intervenção, que lhes dá ganhos exorbitantes.<br />

Enquanto seus lucros sobem, sobem também o número dos<br />

contágios, dos óbitos e a tentação do dependente. Hassemer não<br />

defende a “heroína na drogaria”, mas uma gradual liberalização no<br />

direito penal das drogas e uma experiência controlada, de tratamento<br />

dos dependentes, acompanhando passo a passo e protegendo-os,<br />

e ao final estabelecendo-se uma política de drogas,<br />

semelhante às que existem para o tabaco, álcool e medicamentos,<br />

com severo controle estatal da produção e distribuição, porém sem<br />

penas. Proscrição das drogas, porém, com ajuda diferenciada aos<br />

dependentes.<br />

Este entendimento se baseia em que não é possível o extermínio<br />

total das drogas. Isto vem sendo tentado há muito tempo,<br />

não é nem viável nem suportável pelo Estado. Então, uma política<br />

pragmática no sentido não de liberar mas de a médio prazo controlar<br />

é uma perspectiva. A criminalidade existe na sociedade, é uma<br />

4 HASSEMER, Winfried, op.<br />

cit., p. 20.<br />

impulso<br />

77


5 HASSEMER, Winfried, op.<br />

cit., p. 20.<br />

6 HASSEMER, Winfried, op.<br />

cit., p. 21.<br />

“sociedade de risco” e o ser humano tem que conviver com ela, e<br />

essa criminalidade em grande parte é gerada pelos fatores acima<br />

apontados.<br />

Sempre foi o sonho de países autoritários, como a ex-DDR,<br />

uma sociedade livre da criminalidade, como nos contos de fada,<br />

porém a realidade mostra que se tem que afrouxar os parafusos<br />

dessa regulagem. Política criminal pragmática deve trabalhar com<br />

a possibilidade da continuidade da criminalidade. Com isso se<br />

evita o exacerbamento dos meios policiais e penais e se restabelece<br />

um equilíbrio entre o direito à segurança e o direito dos atingidos<br />

por esse flagelo.<br />

13. E volta-se ao começo: tudo deve ser amplamente debatido,<br />

acerca das dimensões do direito à liberdade que foi quase por<br />

inteiro perdido. Deve-se angariar a compreensão dos ultrapassados<br />

para com os direitos fundamentais, os quais não são estorvo para<br />

um trabalho policial razoável. Não podemos esquecer que o criminoso<br />

não traz uma marca identificável; assim, uma investigação<br />

ilimitada pode não saber fazer a distinção entre o “bom” e o<br />

“mau” cidadão. Na Europa a presunção de inocência vale, e, no<br />

entanto, se investiga mesmo não havendo um autor, mas apenas<br />

um suspeito. Quem debate o tema deve afastar esse tipo de manipulação<br />

verbal.<br />

Toda intervenção deve, apesar dos conflitos de crença, preservar<br />

os direitos fundamentais. Isto significa que devemos concentrar<br />

e controlar toda intervenção. Não se pode generalizar a<br />

intervenção estatal nas investigações. Quanto mais precisa a intervenção<br />

sobre seu alvo for posta, tanto mais antes pode ela ser<br />

aceita, porque ela tanto menos dano normativo faz. 5 Pois atingese,<br />

na melhor das hipóteses, o suspeito, também o inocente e um<br />

realmente não envolvido. Quanto mais exatamente se atingir o<br />

alvo, menos dano jurídico se traz e torna a intervenção aceitável.<br />

O princípio determina: quanto menos, para o ofendido e a opinião<br />

pública, um direito fundamental de intervenção é controlável,<br />

tanto mais é ele insuportável normativamente. 6<br />

O que se pretende é um controle dos meios investigatórios do<br />

Estado. Não se pode em nome do combate à criminalidade organizada<br />

deixar ao arbítrio da polícia o uso de meios intervencionistas<br />

na privacidade dos cidadãos, tais como escuta clandestina de telefone<br />

(grampo), invasão de residências, prisão de suspeitos etc,<br />

porque pode ocorrer que, em virtude da ameaça, o cidadão concorde<br />

com tais arbítrios. Aqui cabe uma indagação: mas seria preferível<br />

78 impulso


sacrificar as garantias individuais em nome do combate ao crime<br />

organizado, sendo que há outros meios, como uma política de saúde<br />

com gradual liberalização do uso das drogas pelos dependentes, que<br />

certamente determina uma redução na criminalidade comum.<br />

CONCLUSÃO<br />

14. As questões levantadas por Hassemer estão na ordem do<br />

dia em todos os países em que o Estado Democrático de Direito<br />

impera e que adotam em suas constituições os princípios da dignidade<br />

humana, da liberdade, do respeito à privacidade, à intimidade<br />

e a segurança e a livre disposição dos bens etc.<br />

Exatamente por isto é que o debate se inflama. A questão é<br />

como conciliar estes direitos conquistados, com o combate à<br />

criminalidade, se o crime se acoberta atrás desses.<br />

Outro ponto que se levanta relativamente a este é: se não dá<br />

para conciliar, qual deles se deve sacrificar? Se a opção for a favor<br />

da segurança e da propriedade, onde poderá chegar; ou se for<br />

pelos primeiros, que conseqüências trará. Creio que a segunda<br />

alternativa é a única que realmente não traz prejuízos. Os direitos<br />

individuais constitucionais conquistados a duras penas, não podem<br />

ser sacrificados em nome de uma falsa segurança, aliás o discurso<br />

da segurança sempre norteou as iniciativas políticas que acabaram<br />

por destruí-la.<br />

Os povos, via de regra, apoiam o recrudescimento dos meios<br />

repressivos, mas se esquecem facilmente dos seus resultados tão<br />

logo eles cessam. A violência deste meios não é sempre visível nem<br />

se dá a eles o mesmo destaque que se dá à criminalidade comum.<br />

Assim, é recomendável a aplicação de novas política de<br />

segurança e de saúde públicas com outros meios, alguns já disponíveis,<br />

e que têm eficácia estatisticamente comprovada, como a<br />

educação, a melhoria do nível sócio-econômico, e, no caso dos<br />

dependentes, o tratamento controlado e outros. Seus custos não<br />

são baixos, mas se comparados às demais medidas como o<br />

aumento do aparato policial, construção de presídios, etc, certamente<br />

não haverá prejuízo. A outra opção é muito perigosa e seu<br />

implemento por si só já é uma insegurança.<br />

impulso<br />

79


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA<br />

HASSEMER, Winfried. Prespektiven einer neuen Kriminalpolitik.<br />

Innere Sicherheit im Rechtsstaat, Straftverteidigertag, v. 19,<br />

Freiburg 1995.<br />

80 impulso


BASES DO <strong>DIREITO</strong> PENAL<br />

NO ESTADO DEMOCRÁTICO<br />

DE <strong>DIREITO</strong><br />

A. L. CHAVES CAMARGO<br />

Os direitos fundamentais, em geral, são objeto de sérios conflitos<br />

no âmbito do Direito Penal, diante do significado ambivalente,<br />

que ainda pauta nossa sistemática.<br />

Busca-se um meio para prevenir a delinqüência, ao mesmo<br />

tempo em que a intervenção indiscriminada do Estado colide com<br />

os princípios básicos do direito penal, no Estado Democrático de<br />

Direito.<br />

O conflito está em cada setor da atividade jurídica brasileira,<br />

tendo sido criadas várias comissões, que pretendem fazer cumprir<br />

a Constituição Federal, no que diz respeito aos direitos fundamentais,<br />

porque estes são os reflexos da dignidade da pessoa humana. 1<br />

A discussão, entretanto, se mantém sob uma diretriz meramente<br />

formal, pois ainda não há uma consciência, ou uma linha,<br />

para a aplicação e execução das normas penais. Este fato está, intimamente,<br />

ligado à estagnação das idéias penais, no Brasil, que não<br />

conseguiu superar a fase de um dogmatismo exagerado, ou seja,<br />

uma postura crítica direcionada para um direito penal moderno.<br />

A pretensão de avanço das idéias penais esbarra num reflexo,<br />

ainda patente, de um longo período autoritário, onde a intervenção<br />

do Estado não tinha limites, justificada pelo aumento da criminalidade<br />

e paralela repressão punitiva, com penas exacerbadas e argumentos<br />

de caráter moral, já afastados do direito penal moderno. 2<br />

1 A dignidade da pessoa humana<br />

é um dos fundamentos do<br />

Estado Democrático de Direito,<br />

artigo 1º, III, da Constituição<br />

Federal.<br />

2 Vide a lei dos chamados “crimes<br />

hediondos”, que tem fundamento<br />

na Constituição Federal,<br />

artigo 5º, XLIII, totalmente<br />

incompatível com os princípios<br />

do Estado Democrático de<br />

Direito.<br />

impulso<br />

81


3 No caso brasileiro, quando se<br />

trata da discussão sobre temas,<br />

tabus, como, por exemplo, imputabilidade<br />

penal, aborto, transexualismo,<br />

etc., a pauta dos<br />

debates é o aspecto moral, ou<br />

moralista, das diversas facções,<br />

sem muita preocupação com os<br />

direitos fundamentais.<br />

A própria denominação de “crimes hediondos” reflete a<br />

índole moral, que ainda sustenta várias posturas de juristas pátrios,<br />

causando, na prática, sérias conseqüências pela rigidez das penas e<br />

pelo impedimento de benefícios previstos para os demais crimes.<br />

O sistema progressivo, na execução penal, foi deixado de lado, e<br />

os institutos, já consagrados em nosso Direito, da fiança, liberdade<br />

provisória e da prescrição foram esquecidos.<br />

Até o momento, não se conseguiu conceituar o que é crime<br />

hediondo, a não ser através da retrógrada visão do direito penal do<br />

resultado. A discussão dos direitos humanos, no âmbito jurídico,<br />

deve ter como meta o respeito à dignidade da pessoa humana,<br />

afastadas as dimensões meramente formais, que colidem com o<br />

fundamento da legitimação.<br />

O caráter social dos direitos humanos é dado, na sociedade<br />

moderna, por ser uma sociedade pluralista, que oferece condições<br />

para o exercício efetivo destes direitos, não só pela maioria, mas<br />

também, pela minoria.<br />

A Constituição Brasileira no seu artigo 5º enumera os direitos<br />

fundamentais, ao mesmo tempo em que estabelece a proteção<br />

destes direitos. A complexidade do Estado moderno, entretanto,<br />

leva a conflitos entre a regulamentação da proteção destes direitos<br />

fundamentais e a tarefa dos legisladores. Muitas vezes, na ânsia de<br />

proteção a determinados direitos, o legislador ultrapassa a barreira<br />

ou limites estabelecidos pelos direitos fundamentais.<br />

O conflito se acentua quando há necessidade de proteção a<br />

determinados bens jurídicos e, para tanto, o legislador, visando à<br />

segurança social, vê-se diante de um problema, que deve ser resolvido,<br />

em razão do futuro da própria sociedade. Temos, como<br />

exemplo, as leis sobre genética, aborto, transexualidade e, ainda,<br />

as que regulam os direitos trabalhistas. 3<br />

A solução, muitas vezes, é atribuída ao direito penal, com<br />

consequências irreparáveis, deixando-se de lado as específicas<br />

funções deste no Estado Democrático de Direito.<br />

O esclarecimento da questão se encontra no papel, que<br />

exerce o Direito Penal, através de sua sistematização e do significado<br />

da dogmática, na atualidade.<br />

82 impulso


CONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA DO<br />

<strong>DIREITO</strong> PENAL<br />

Devemos entender por sistema científico uma ordenação<br />

lógica dos conhecimentos particulares, compatíveis entre si, não<br />

apresentando contradição.<br />

Positivismo empírico<br />

O direito penal, até o final do século XVIII, consegue se<br />

separar do direito canônico e do civil, mas o autêntico início com<br />

qualidades autônomas acontece no começo o século XIX, sob a<br />

influência iluminista do século XVIII, após as idéias reformistas<br />

de Beccaria. As primeiras construções científicas são atribuídas a<br />

Bentham, Filangieri, Romagnosi e Feuerbach. 4<br />

Nesta primeira época da denominada Escola Clássica, a ciência<br />

do direito penal é dominada por um naturalismo que tenta<br />

reproduzir no sistema de direito os elementos naturais do delito.<br />

O sistema Liszt-Beling adota o conceito de delito, que tem<br />

por base um comportamento dominado pela vontade, enquanto a<br />

tipicidade era um acontecer externo, descrito na Parte Especial,<br />

sem necessidade de qualquer valoração. A reprodução dos fatos da<br />

natureza não impede, entretanto, que se atenha aos fundamentos<br />

metafísicos para a descrição do crime como ente jurídico, prévio,<br />

capaz de perpertuar-se no tempo e no espaço, para atingir seu<br />

objetivo final, a paz social.<br />

A antijuridicidade, neste sistema, se apresenta como algo<br />

estranho à natureza, com um caráter meramente normativo, considerando<br />

a ação contrária à lei e ao direito.<br />

O elemento subjetivo (dolo e culpa) estava na culpabilidade<br />

representado pela relação entre o autor e o resultado, de modo a<br />

possibilitar a gradação destes elementos, influindo diretamente na<br />

fixação da pena, na medida em que se apresentasse com maior ou<br />

menor intensidade.<br />

Há o predomínio da lógica formal na construção dogmática,<br />

que, na concepção de Von Liszt, reconhece dois aspectos na ciência<br />

jurídico-penal: o sistemático e o prático.<br />

Este sistema naturalístico de Liszt-Beling se manteve,<br />

durante muito tempo, devido ao conceito de causalidade, com o<br />

triunfo da teoria da equivalência que, com seu monismo causalista,<br />

impedia qualquer valoração normativa. 5<br />

4 CUEVA, Lorenzo Morillas.<br />

Metodología y Ciencia Penal.<br />

Granada: Comares, p. 14.<br />

5 SCHÜNEMANN, Bernd. Introducción<br />

al razonamento sistemácito<br />

en Derecho Penal.<br />

Em: El sistema moderno del<br />

derecho penal: cuestiones fundamentales.<br />

Trad. Jesús-María<br />

Silva Sánchez. Madrid: Tecnos,<br />

1992, p. 46.<br />

impulso<br />

83


O formalismo<br />

Outra influência na evolução sistemática do direito penal foi<br />

a de Hans Kelsen, que, com base na distinção entre ser e dever ser,<br />

atribui à Ciência do Direito uma característica normativa. Esta<br />

não se ocupa de fatos, ou acontecimentos, mas, do conjunto de<br />

normas.<br />

Entre nós, este tecnicismo-jurídico, com a supervalorização<br />

da letra da lei em detrimento de seu espírito, atinge uma exuberância<br />

formalista. O formalismo impede a análise de elementos<br />

importantes da realidade social, pois tudo se converte no império<br />

da lei, determinando em muitos aspectos contradições inadmissíveis.<br />

6<br />

6 A influência do tecnicismojurídico,<br />

no Brasil, foi decisiva,<br />

ainda persistindo sentenças que<br />

simplificam o Direito Penal num<br />

argumento lógico-dedutivo, que<br />

tem como premissa maior a lei,<br />

e como premissa menor o fato<br />

e, a decisão, como conclusão.<br />

Não há, em geral, preocupação<br />

com outros acontecimentos sociais,<br />

ou fatores, que possam determinar<br />

a falsidade de qualquer<br />

das premissas.<br />

7 SHÜNEMANN, Bernd, op.<br />

cit., p. 49.<br />

8 JESCHECK, H. H. Tratado<br />

de Derecho Penal. Trad. José<br />

Luis Manzanares Samaniego.<br />

4ª ed. Granada: Comares, 1993,<br />

p. 124-125.<br />

Neokantismo<br />

Outra forma de superação do naturalismo e do formalismo<br />

kelseniano foi o surgimento de uma nova fase da sistemática do<br />

direito penal, sob a influência da Escola Sudocidental Alemã, de<br />

origem kantiana.<br />

O formalismo se impôs pela recusa de qualquer postulado<br />

metafísico, afastando do Direito considerações filosóficas, políticas<br />

ou religiosas e, através da jurisprudência dos interesses, procurou<br />

negar à causalidade conceitos causais em relação ao resultado.<br />

Toda solução jurídica deveria ser encontrada nos limites do jus<br />

positum.<br />

A reação neokantiana adota um logicismo axiológico e<br />

aplica uma teoria dos valores para elaborar a teoria jurídica. A<br />

dogmática e a sistemática estabelecem critérios de valor para uma<br />

decisão especificamente jurídica. 7<br />

A influência ocorre no âmbito da antijuridicidade, que deixa<br />

de ser uma categoria meramente formal do sistema Liszt-Beling,<br />

para determinar o surgimento da “antijuridicidade material”. Esta<br />

é definida como o comportamento socialmente danoso, permitindo,<br />

assim, a aplicação da excludente da antijuridicidade, através<br />

do que se denominou meio adequado para um fim justo, ou princípio<br />

de mais proveito que dano.<br />

Seguindo a doutrina de Rickert e Lask, segundo a qual os<br />

conceitos em Direito deveriam sempre se referir a valores, a tipicidade<br />

supera a jurisprudência dos conceitos e interpreta teleologicamente<br />

o tipo a partir do bem jurídico protegido, o que de certa<br />

forma persiste até hoje. 8<br />

84 impulso


O direito penal recebe a nova sistemática como solução dos<br />

problemas complexos até então não resolvidos pelos sistemas<br />

anteriores, mantendo, entretanto, os mesmos elementos do crime<br />

(ação, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade) na mesma<br />

ordem.<br />

A culpabilidade é entendida com novos elementos e, a partir<br />

de Frank, se reconhece a existência de elementos objetivos, mantidos<br />

o dolo e a culpa, como formas e elementos desta culpabilidade.<br />

A concepção normativa da culpabilidade se impôs com destacados<br />

penalistas, como Mezger, com seu causalismo valorativo,<br />

colocando em destaque, a inexigibilidade de conduta diversa como<br />

causa da exclusão ou diminuição da responsabilidade.<br />

O normativismo, que pauta o direito penal, ainda é “novidade”<br />

para os juristas brasileiros, que não conseguiram assimilar<br />

no seu todo este sistema e insistem em manter como válidos seus<br />

conceitos, não aceitando os aspectos decisivos, que impossibilitam<br />

a manutenção deste positivismo na atualidade.<br />

Finalismo<br />

Após o período totalizador, representado pelo nacional-socialismo,<br />

onde prevaleceu o direito penal da vontade, Welzel investe<br />

contra o pensamento neokantiano, em especial contra o relativismo<br />

valorativo e o normativismo.<br />

O neokantismo se caracteriza pelo subjetivismo, pois exclui<br />

os valores do objeto, condicionando seu conhecimento à aplicação<br />

dos conceitos jurídicos a priori. Esta metodologia resulta no relativismo<br />

gnoseológico, pois os valores, que não provêm do objeto,<br />

são subjetivos.<br />

O finalismo repudia o subjetivismo neokantiano, pregando a<br />

necessidade de se retornar a uma epistemologia objetivista. Ao<br />

mesmo tempo, afirma a necessidade de determinar-se o método<br />

segundo o objeto. 9<br />

Postula, assim, duas ordens do real: a ordem do suceder<br />

(Ordnung des Geschehens) e a ordem do pensar (Ordnung des<br />

Meinens). Esta última se caracteriza no direito penal pelo caráter<br />

final da ação. O conceito naturalístico de ação não mais serve ao<br />

Direito Penal, pois a dogmática jurídico-penal parte de um conceito<br />

pré-jurídico de ação final e de uma estrutura lógico-objetiva. 10<br />

As mudanças, introduzidas pelo finalismo de Welzel, atingem<br />

o conceito de tipo, que não mais pode limitar-se a um tipo formal<br />

objetivo, mas, com a estrutura final da ação, tem de apresentar um<br />

9 Cf. MIR PUIG, Santiago. Introducción<br />

a las bases del Derecho<br />

Penal. Barcelona: Bosch, p.<br />

253.<br />

10 WELZEL, Hans. Introducción<br />

a la filosofía del derecho.<br />

Trad. Felipe González Vicen. 2ª<br />

ed. Madrid: Biblioteca Jurídica<br />

Aguillar, l974, p. 257.<br />

impulso<br />

85


tipo subjetivo, que surge junto daquele. No crime doloso este elemento<br />

se encontra no próprio verbo da ação, restanto à culpabilidade<br />

não mais a concepção normativa, afastada de modo completo,<br />

mas, o conhecimento potencial da proibição.<br />

A influência do finalismo no direito penal alemão e europeu<br />

fez-se sentir com profundidade com alguns efeitos no direito penal<br />

brasileiro, a partir do Código Penal de 1984. Ocorre que, entre<br />

nós, ainda não mereceu um interesse acentuado o estudo de todos<br />

os aspectos desta corrente sistemática, mas insistimos em afirmar<br />

seus preceitos, com ímpeto de positivistas jurídicos, o que cria<br />

conflitos insuperáveis na doutrina e jurisprudência diante do antagonismo<br />

metodológico destes sistemas de direito penal.<br />

Hassemer salienta que, contra o finalismo não “germinou<br />

nenhuma erva dogmática”, mas os opositores se limitaram às críticas<br />

metodológicas, o que não abalou seus alicerces. 11 Seus<br />

seguidores continuaram a desenvolver a teoria numa busca incessante,<br />

para suprir as lacunas, que surgiram com este sistema aplicado<br />

ao Direito Penal.<br />

11 HASSEMER, Winfried. Três<br />

temas penais. Porto Alegre e<br />

São Paulo: Fundação Escola<br />

Superior do Ministério Público,<br />

1993, p. 23 ss.<br />

12 A Constituição Federal de<br />

1988 indica como um dos fundamentos<br />

do Estado Democrático<br />

de Direito brasileiro o pluralismo<br />

político. Artigo 1º, IV.<br />

Sistema atual<br />

Na atualidade, o Direito Penal sofre os abalos naturais em<br />

busca de uma eficácia para fazer frente à nova criminalidade. Ao<br />

mesmo tempo em que se pretende adotar os princípios, que decorrem<br />

do Estado Democrático de Direito, procura-se atribuir às decisões<br />

jurídicas uma estruturação científica. Neste sentido, há exigências<br />

de precisão e clareza nas decisões jurídicas que apontam<br />

para uma maleabilidade hermenêutica de um sistema aberto.<br />

A norma penal não mais se apresenta como hermética, ligada<br />

simplesmente ao autor, nem mesmo naquela relação empírica e<br />

material, puramente causal, capaz de impor uma sanção penal<br />

pelos atos de uma pessoa no querer volitivo e final, sem qualquer<br />

valoração legislativa.<br />

O direito penal pressupõe um sistema aberto, que tem por<br />

base uma norma jurídico-penal que, na dinâmica interpretativa terá<br />

em vista o pluralismo da sociedade. 12<br />

O pluralismo aceita a sociedade como grupos de pessoas,<br />

que no seu conjunto representam o Estado. A maioria é dominante<br />

com respeito integral às minorias. Isto se contrapõe à idéia que<br />

predomina entre nós de uma sociedade unitária com valores prévios<br />

e aceitos por todos como verdadeiros.<br />

86 impulso


Nesta visão de sociedade, os participantes da comunicação<br />

pertencem a um grupo e garantem a solidariedade, compondo as<br />

ordens legítimas. 13 Desta forma, as pessoas, como estruturas<br />

simbólicas, no agir comunicativo, constituem-se reciprocamente<br />

com a sociedade através da ação e da fala. Os conceitos valorativos<br />

se uniformizam pela maioria e numa interação dos grupos,<br />

sob o ponto de vista social, há a coesão solidária, determinando a<br />

estabilização da sociedade. 14<br />

Assim, para um sistema moderno de direito penal há a necessidade<br />

da apreensão pelo interpréte destas variantes de relações<br />

interpessoais, ou mesmo intergrupais, que revelam o conceito<br />

vigente dos bens jurídicos protegidos pela norma. 15<br />

Há uma tendência atual de atribuir, como missão específica<br />

do direito penal, a proteção ao bem jurídico diante de possíveis<br />

lesões ou colocação em perigo. Esta opinião majoritária, na Alemanha<br />

e na Espanha, encontra críticos, uma vez que não se consegue<br />

esclarecer o conceito deste bem jurídico e muito menos de<br />

dano social relevante.<br />

De acordo com Hassemer, 16 estas críticas são infundadas,<br />

pois não levam em conta outros critérios, como por exemplo, o<br />

dano social, a subsidiariedade, a tolerância, etc. Estes possibilitam<br />

fixar as metas do Direito Penal dentro dos limites traçados pela<br />

Constituição e pela idéia de Estado de Direito.<br />

Nesta linha de idéias constata-se o dinamismo do conceito de<br />

bem jurídico, que merecerá a proteção penal, ou estará no âmbito<br />

de proteção do tipo penal. Haverá neste aspecto uma preocupação<br />

da metodologia jurídico-penal para uma aproximação com a realidade.<br />

A realidade, conforme já referimos, se reflete na coesão mais<br />

ou menos solidária das redes de interação dos grupos sociais.<br />

Assim, a ciência do direito penal, como ciência social, estará mais<br />

próxima desta realidade e dentro do âmbito específico da vida<br />

social.<br />

Os conceitos valorativos do bem jurídico não mais serão prévios,<br />

como pretendia o positivismo jurídico, ou ontológicos, como<br />

no finalismo, mas dependerão, em cada fato, do agir comunicativo,<br />

determinando a ocorrência do dano relevante social, quando<br />

o dissenso na comunicação concretizar este dano capaz da interferência<br />

do direito penal. 17<br />

O direito penal possui instrumentos eficazes de controle<br />

social, que o diferenciam dos demais pela imposição de sanções<br />

13 HABERMAS, Jürgen. Pensamento<br />

pós-metafísico. Trad.<br />

Flávio Beno Sibeneichler. Rio<br />

de Janeiro: Tempo Brasileiro,<br />

1992, p. 96.<br />

14 HABERMAS, Jürgen, op.<br />

cit., p. 101.<br />

15 Sobre a formação da consciência<br />

da ilicitude com base na<br />

teoria habermasiana do agir comunicativo,<br />

vide nosso livro:<br />

Culpabilidade e reprovação penal.<br />

São Paulo: Sugestões Literárias,<br />

1993, p. 165 ss.<br />

16 HASSEMER, Winfried. Introducción<br />

a la criminología y<br />

al derecho penal. Valência: Tirant<br />

le Blanch, 1989, p. 113.<br />

17 Estudo mais pormenorizado<br />

desta posição se encontra em<br />

nosso livro citado, Culpabilidade....,<br />

p. 161 ss.<br />

impulso<br />

87


estritivas da liberdade e, ao interferir no dissenso, atua de forma<br />

pedagógico-social, pois reforça os conceitos valorativos vigentes<br />

num determinado grupo, resolvendo os conflitos mais graves, que<br />

decorreram deste mesmo dissenso na comunicação.<br />

Junto a esta interferência o direito penal consegue através de<br />

institutos, que constituem o sistema codificado, aplicar uma sanção<br />

penal, para atingir a finalidade, que é oferecer uma oportunidade<br />

ao condenado para um esforço individual de convívio com<br />

seu grupo social. 18<br />

Evidentemente, dentro desta proximidade do direito penal<br />

com a realidade social, a Política-Criminal exerce acentuada influência,<br />

havendo mesmo uma tendência na Alemanha em admitir<br />

como um avanço o interesse pelas consequências do direito penal,<br />

não mais se limitando à dogmática. 19<br />

Esta união entre a dogmática e a política criminal foi denominada<br />

de dogmática realista, 20 pois, esta última, como ciência<br />

social, permite a concretização da lei baseada na realidade, objeto<br />

da regulação, tendo em vista as necessidades político-criminais.<br />

Todo o debate do Direito Penal moderno na Europa, diversamente<br />

do que ocorre entre nós, ainda adormecidos num positivismo<br />

jurídico ortodoxo, está voltado para a busca de norma mais<br />

eficaz para a reprovação criminal, sem abandonar os princípios,<br />

que regem o direito penal no Estado Democrático de Direito.<br />

18 V. nosso livro. Culpabilidade...,<br />

p. 231.<br />

19 HASSEMER, Winfried. Perspectivas<br />

de uma moderna política<br />

criminal. Em: Três temas de<br />

Direito Penal, op. cit., p. 84.<br />

20 MIR PUIG, Santiago, op.<br />

cit., p. 345.<br />

PRINCÍPIOS NORTEADORES DO<br />

<strong>DIREITO</strong> PENAL MODERNO<br />

A partir de 1988, com a promulgação da Constituição Federal,<br />

ficou patente no seu artigo 1º que o Brasil é um Estado Democrático<br />

de Direito e tem como fundamento:<br />

I – a soberania;<br />

II – a cidadania;<br />

III – a dignidade da pessoa humana;<br />

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e<br />

V – o pluralismo político.<br />

Estes fundamentos com certeza são os limites da interferência<br />

do Estado na vida do cidadão, refletindo nos princípios, que<br />

regem o Direito Penal no Estado Democrático de Direito, bem<br />

como, delimitando o poder de punir do Estado.<br />

88 impulso


Princípio da intervenção mínima<br />

O direito penal no Estado Democrático de Direito depara-se<br />

com uma ambivalência, que leva a uma antinomia: restringe a<br />

liberdade ao mesmo tempo em que tem por função proteger os<br />

bens jurídicos, utilizando-se do instrumento mais severo, que é a<br />

interferência nos direitos humanos dos cidadãos através da aplicação<br />

de penas.<br />

Desde o início da sistematização com a denominada Escola<br />

Clássica até os nossos dias, parece não ter havido problemas, toda<br />

vez em que se encara o direito penal como compensatório ou retributivo.<br />

Cominada a pena e adequada ao tipo praticado, esta surgia<br />

como a manifestação do poder do Estado, para reconduzir ao equilíbrio<br />

social.<br />

O desenvolvimento da ciência penal paralela às novas formas<br />

de Estado determinou o conflito entre esta postura, que tinha como<br />

limite o mínimo e máximo das penas cominadas e a fórmula de<br />

adequação da pena à culpabilidade do autor com respeito aos<br />

direitos fundamentais não atingidos pela sanção penal.<br />

A interferência do Estado ficou limitada ao âmbito do indispensável<br />

para solução de conflitos, mas somente quando se tratar de<br />

fatos, que atingem de forma relevante o bem jurídico protegido.<br />

A necessidade de interferência estatal encontra, ainda, uma<br />

barreira, que é justificar a pena não só com um objetivo preventivo,<br />

ne peccetur, mas, como um ne punietur, em que o réu não<br />

sofra indevidamente um abuso maior com uma pena inadequada.<br />

Para concretizar-se o princípio da intervenção mímina, devese<br />

ter em conta o caráter fragmentário do direito penal.<br />

A fragmentariedade se expressa naquela intervenção do<br />

direito penal, quando há uma antijuridicidade específica decorrente<br />

do âmbito de proteção da norma, com um conceito de bem<br />

jurídico adequado ao momento social e, ainda, respeitando o<br />

código de comunicação do grupo social. Isto quer dizer que nem<br />

sempre aquilo que se apresenta como um ilícito pode ser resolvido<br />

no âmbito penal. Neste sentido, há a afirmativa de Hassemer,<br />

segundo a qual há de se fazer uma distinção entre tipicidade e antijuridicidade,<br />

para manter-se a sensibililidade do jurista. 21 22<br />

Assim o direito penal é a ultima ratio da intervenção estatal<br />

na proteção aos bens jurídicos. 23 Isto é, haverá interferência do<br />

Estado através do direito penal, somente quando não houver outro<br />

meio de controle social, ou seja, quando o dissenso comunicativo<br />

atingir um bem jurídico, causando-lhe um dano relevante.<br />

21 HASSEMER Winfried adverte<br />

que: “tanto os estudantes<br />

principiantes como os avançados<br />

que preparam os temas memoristicamente,<br />

quando superam o<br />

estágio da tipicidade, repetem,<br />

em seus exames e informes jurídico-penais<br />

a frase “a tipicidade<br />

é indício de antijuridicidade. E<br />

esclarece que esta afirmativa revela<br />

pobreza de linguagem,<br />

bem como de conhecimentos<br />

jurídicos”. Em: Fundamientos<br />

de Derecho Penal. Trad. Francisco<br />

Munhóz Conde. Barcelona:<br />

Bosch, 1984, p. 265, nota de<br />

radapé n. 86.<br />

22 Ainda sobre a fragmentariedade<br />

do Direito Penal,<br />

MAIWALD, Manfred. Zum<br />

fragmentarischen charakter des<br />

Strafrechts. Em: Festschrift für.<br />

Karlsruhe, p. 9ss, 1972.<br />

23 Já afirmamos que “o direito<br />

penal mínimo, assim entendido<br />

como limite para a imposição<br />

violenta da restrição à liberdade,<br />

é o caminho mais curto no<br />

momento para se construir uma<br />

sociedade pautada no respeito à<br />

dignidade da pessoa humana e<br />

nas demais garantias fundamentais”.<br />

Em: nosso livro, Culpabilidade...,<br />

p. 241.<br />

impulso<br />

89


Decorre, ainda, do princípio de intervenção mínima o caráter<br />

subsidiário do direito penal como o último recurso a ser utilizado,<br />

quando outros de caráter social não surtiram o efeito desejado.<br />

24 Na nossa Constituição, artigo<br />

5º, XXXIX, dispõe: “não há crime<br />

sem lei anterior que o defina,<br />

nem pena sem prévia<br />

cominação legal”.<br />

25 Esclarece SCHÜNEMANN,<br />

Bernd, op. cit., p. 37; “assim, a<br />

opção por um sistema aberto de<br />

Direito penal implica, por um<br />

lado, que o conhecimento existente<br />

se dispõe numa ordem removível<br />

a qualquer momento;<br />

e, por outro lado, que os casos e<br />

problemas não advertidos não<br />

se julgarão sem reparos pelo<br />

mesmo “rasero”, senão que<br />

sempre haverá ocasião para<br />

modificar o sistema dado”.<br />

26 Assim, podemos indicar: artigo<br />

5º, XLV: “nenhuma pena<br />

passará da pessoa do condenado...;<br />

XLVIII – a pena será<br />

cumprida em estabelecimentos<br />

distintos, de acordo com a natureza<br />

do delito, a idade e o sexo<br />

do apenado; XLIX – é assegurado<br />

aos presos o respeito à integridade<br />

física e moral”.<br />

Princípio da legalidade<br />

Também denominado princípio da reserva legal é adotado<br />

como basilar pelo direito penal desde a sistematização, quando<br />

formulado por Feuerbach, na Alemanha. 24 Desde sua adoção<br />

sofreu várias interpretações com base na filosofia e ideologia, que<br />

inspiraram sua compreensão. Desta forma, na atualidade é a<br />

garantia à própria liberdade, enquanto direito fundamental, pois<br />

tem como consequência assegurar um sistema de garantias no<br />

âmbito penal (dos tipos), no da execução (das penas e medidas de<br />

segurança) e no judicial (processo regular).<br />

A primeira garantia de âmbito penal é o consagrado nullum<br />

crimen, nulla poena sine previa lege. Há, portanto, necessidade de<br />

lei anterior, clara e certa, que descreva um tipo penal e impeça a<br />

irretroatividade em prejuízo do agente.<br />

A clareza e a certeza são requisitos inerentes à descrição<br />

típica. A proibição à analogia e à interpretação extensiva obriga o<br />

legislador à formulação típica, dentro de um sistema de proteção ao<br />

bem jurídico. Isto não significa que se deva adotar um sistema com<br />

base metafísica ou ontológica com conceitos prévios, nem mesmo<br />

o axiomático, não realizável, mas um sistema aberto, de forma a<br />

não constituir-se num obstáculo ao desenvolvimento social.<br />

A partir dos conceitos técnico-jurídicos, semanticamente<br />

adequados ao momento social, na definição do bem jurídico há de<br />

se levar em conta o mundo de vida dos partícipes da comunicação,<br />

que orienta a valoração do fato passível de reprovação penal. 25<br />

A outra garantia, que decorre do princípio da legalidade, é o<br />

nulla poena sine previa lege. O ius puniendi terá por base única as<br />

penas cominadas abstratamente pelo legislador, no nosso caso,<br />

entre o mínimo e o máximo para cada tipo penal.<br />

O grande problema na atualidade tem sido a forma de fixação<br />

da pena, para ajustá-la dentro do princípio da culpabilidade a<br />

cada autor. O Direito Penal do resultado foi abandonado, há tempos,<br />

pela doutrina penal moderna, embora ainda entre nós prevaleça<br />

a idéia de retribuição da pena.<br />

Nossa Constituição Federal procurou fundamentar em nível<br />

de garantia constitucional a individualização da pena, apontando-a<br />

em vários incisos do artigo 5º. 26 Ao mesmo tempo garantiu, de<br />

<strong>90</strong> impulso


modo claro e preciso, o cumprimento da pena dentro das previsões<br />

legais, no caso, a lei de execução penal. O cumprimento da pena<br />

deve observar as prescrições das garantias penitenciárias, o que no<br />

momento é uma utopia no sistema penal brasileiro. O castigo,<br />

ainda emoldurando a execução penal brasileira, determina o cumprimento<br />

da pena por uma pequena parcela dos condenados. 27<br />

No Estado Democrático de Direito, com base no princípio da<br />

intervenção mímina, a pena tem por objetivo a prevenção geral e a<br />

prevenção especial, não mais nos moldes clássicos. Aquela serve<br />

de exemplo para que outros não delinqüem, e esta última atua no<br />

próprio condenado, para que atinja a ressocialização ou reinserção<br />

social. Estas teorias já estão superadas e abandonadas pelo direito<br />

penal moderno.<br />

A lei penal sob o prisma da prevenção geral exerce uma função<br />

positiva, motivadora, que estimula a compreensão semântica<br />

dos valores vigentes, garantidos através do bem jurídico protegido,<br />

de modo a atuar como estímulo ao grupo social para evitar a prática<br />

de atos proibidos. Sob o aspecto da prevenção especial, também<br />

positiva, a influência da lei visa a reafirmar no condenado os<br />

conceitos de valores vigentes, de modo a convencê-lo a não praticar<br />

aquelas condutas reprovadas pelo grupo social. Dá-se adeus,<br />

neste aspecto, aos mitos da ressocialização e da reinserção social<br />

tão enaltecidos pelo direito penal clássico.<br />

Deduz-se, portanto, que as bases para a reprovação penal se<br />

estabelecem no sentido da aplicação de uma pena, somente<br />

quando for necessária e indispensável.<br />

Princípio da culpabilidade<br />

O direito penal retributivo tem como seu argumento mais<br />

sólido a possibilidade de livre arbítrio ou, entre nós, o superado<br />

poder atuar de maneira diversa. A base para estas alternativas, no<br />

sentido de justificar-se a punição, é a imagem do homem médio,<br />

que, como o homem das neves, jamais foi definido ou concretizado.<br />

É pura imaginação...<br />

Assim, o conceito clássico de culpabilidade com seu elementos<br />

dolo e culpa já não mais faz parte dos princípios constitucionais.<br />

O fundamento constitucional do princípio da culpabilidade,<br />

que decorre do princípio da legalidade, é o reflexo da dignidade da<br />

pessoa humana, encontrado na totalidade das restrições à intervenção<br />

do Estado na vida privada. 28<br />

27 Há dezenas de milhares de<br />

mandados de prisão a serem<br />

cumpridos em todo o Brasil, o<br />

que revela a falência do sistema<br />

penal, ainda em vigor, apesar<br />

das modificações constitucionais<br />

e da lei de execução penal.<br />

O condenado ainda é visto<br />

como uma mera estatística, e a<br />

construção dos presídios tem<br />

sido a meta dos governantes,<br />

sem atentar para outros problemas<br />

decorrentes da postura rígida<br />

da justiça brasileira, como,<br />

por exemplo, as condenações<br />

arbitrárias e o reinado da reincidência,<br />

que impede qualquer<br />

substitutivo penal. Podemos dizer<br />

que o número de mandados<br />

de prisão supera em muito o dos<br />

condenados, que cumprem pena,<br />

o que significa uma cifra negra<br />

a merecer uma meditação<br />

criminológica séria.<br />

28 Nosso livro: Culpabilidade...,<br />

p. 93.<br />

impulso<br />

91


29 HASSEMER, Winfried, op.<br />

cit., p. 269.<br />

30 Nosso livro: Culpabilidade...,<br />

p. 225.<br />

31 Artigo 59 do Código Penal:<br />

“O juiz, atendendo à culpabilidade,<br />

aos antecedentes, à conduta<br />

social, à personalidade do<br />

agente, aos motivos, às circunstâncias<br />

e consequências do crime,<br />

bem como ao comportamento<br />

da vítima, estabelecerá,<br />

conforme seja necessário e suficiente<br />

para reprovação e prevenção<br />

do crime...”<br />

A concepção moderna da culpabilidade traz em si algumas<br />

regras, que devem ser observadas, impossibilitando a sanção de<br />

um fato. O limite e a individualização da pena são garantias, impedindo<br />

que a mesma exceda a responsabilidade do autor.<br />

Estas exigências se refletem no conteúdo da culpabilidade<br />

material, pois a motivação pela norma, isto é, a consciência da ilicitude,<br />

é indispensável para a existência da culpabilidade e decorrente<br />

punição. Esta motivação atualmente é reconhecida como<br />

uma imputação subjetiva, 29 pois o agente no momento da ação<br />

deve ser capaz de culpabilidade. Além do elemento subjetivo da<br />

ação, há necessidade de ter a capacidade de compreender a ilicitude<br />

do fato e estar em situação de conhecer a proibição.<br />

Este quadro, na atualidade, representa o que denominamos<br />

de capacidade de reprovação, pois a prática do crime é uma situação<br />

de dissenso, na qual o agente, conhecendo a validade da<br />

norma num determinado momento social, procurou modificá-la,<br />

determinando uma condição de sanção ou reprovação. 30<br />

No âmbito de um direito penal do resultado ainda eficaz<br />

entre nós, como já dissemos, este entendimento se torna difícil,<br />

visto que alguns o consideram surrealista, indicando um total desconhecimento<br />

do que ocorre na atualidade.<br />

Não se pode, entretanto, deixar de atender aos dispositivos<br />

constitucionais, esquecendo-se do princípio da culpabilidade no<br />

momento mais importante de todo o fato social, que é a reprovação<br />

através do direito penal. Além de ser uma garantia constitucional<br />

foi consagrado pelo Código Penal de 1984, estando expresso no<br />

seu artigo 59. 31<br />

O mencionado artigo da lei é claro ao estabelecer que a fixação<br />

da pena tem em vista o necessário e o suficiente para a reprovação.<br />

Conseqüência imediata do Estado Democrático de Direito,<br />

os princípios da proporcionalidade e da necessidade são, também,<br />

acolhidos pelo direito penal.<br />

Princípio da proporcionalidade e da necessidade da pena<br />

É o limite do ius puniendi, isto é, a pena deve ser necessária,<br />

não podendo ser superior à intensidade do dano causado ao bem<br />

jurídico protegido. Ao mesmo tempo deve ser adequada à culpabilidade<br />

do agente.<br />

Este princípio não se refere tão somente à quantidade da<br />

pena a ser aplicada, mas leva em consideração a importância<br />

92 impulso


social do fato, bem como as circunstâncias do ato de comunicação<br />

e as características dos partícipes. A prevenção geral neste sentido<br />

não é mais intimidatória, mas motivadora, no sentido de poder<br />

afirmar os valores vigentes naquele momento, sendo, portanto,<br />

uma prevenção geral positiva. Como já afirmamos, a necessidade<br />

da pena será o exame da situação individual de compreensão da<br />

validade da norma e da intenção de causar dano social: a vida cotidiana<br />

é o pressuposto da análise do agente numa tentativa de adequar<br />

o conceito de norma à validade social desta. 32<br />

A necessidade da pena está ligada à humanização, que, hoje,<br />

influencia o direito penal, apesar de algumas tendências em agravar<br />

as punições como meio de diminuir a criminalidade.<br />

No Estado Democrático de Direito a pena deve ser aplicada<br />

somente quando necessária e indispensável à reafirmação dos<br />

valores vigentes. Os fins das penas, que as justificavam, tais como,<br />

ressocialização, reeducação, reintegração social, não mais podem<br />

servir de parâmetro para sua fixação concreta, nem mesmo para<br />

afirmar sua necessidade.<br />

No momento atual, há uma tendência do direito penal à aproximação<br />

da realidade através de um pensamento sistemático, em<br />

substituição ao pensamento-problema adotado a partir do direito<br />

de caso, próprio do pensmaento anglo-saxão. Esta tendência<br />

requer uma especial atenção da política criminal, ao mesmo tempo<br />

em que determina um direito penal aberto, que se socorre de<br />

outras ciências, como um conjunto, para melhor deduzir a sanção<br />

a ser aplicada.<br />

O que é certo, no moderno direito penal, quanto à concreta<br />

aplicação da pena; deve-se prestar atenção à prevenção especial,<br />

que desempenha um papel mais relacionado com o prognóstico,<br />

possibilitando, o quanto possível, a substituição da privativa de<br />

liberdade, de caráter mais grave, dentre as sanções existentes, por<br />

outras de cunho social, como a suspensão condicional, as restritivas<br />

de direito e as pecuniárias.<br />

Esta política criminal não é aquela proposta pelo direito<br />

penal funcional, que nem mesmo se preocupou em investigar suas<br />

conseqüências, mas, dentro de um sistema jurídico-penal, possibilita<br />

ao direito penal cumprir sua restrita e verdadeira missão, a<br />

proteção aos bens jurídicos.<br />

Restringindo o campo do direito penal, somente sancionando-se<br />

aquelas situações de fato, que não podem deixar de ser<br />

reprovadas por ausência de outros meios de controle social, pode-<br />

32 Nosso livro: Culpabilidade...,<br />

p. 224.<br />

impulso<br />

93


mos nos deparar com uma nova ordem de idéias: a criminalidade<br />

organizada, criminalidade econômica, avanços bioéticos, crimes<br />

ecológicos, tráfico de entorpecentes, etc.<br />

Este tipo de fato é a preocupação mais intensa do momento,<br />

pois não se trata de um campo capaz de ser enfrentado pelos princípios<br />

do direito penal vigente. Esta criminalidade, assim denominada<br />

moderna, não é simplesmente um caso de danos materiais,<br />

mas um caso de risco, de perigo. 33 Para esta criminalidade devemos<br />

ter um direito penal diferenciado, que Hassemer 34 a princípio<br />

denomina “Direito de Intervenção”, mas, pela sua complexidade,<br />

será matéria para novas meditações.<br />

33 HASSEMER, Winfried. Três<br />

Temas...., p. 95.<br />

34 HASSEMER, Winfried. Três<br />

Temas...., p. 96.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

CAMARGO, A. L. Chaves. Culpabilidade e reprovação penal. São<br />

Paulo: Sugetões Literárias, 1993.<br />

CUEVA, Lorenzo Morillas. Metodología y ciencia penal. Granada:<br />

Comares.<br />

HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. Trad. Flávio<br />

Beno Sibeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.<br />

HASSEMER, Winfried. Fundamientos de Derecho Penal. Trad.<br />

Francisco Munhoz Conde. Barcelona: Bosch, 1984.<br />

HASSEMER, Winfried. Introducción a la criminología e al<br />

Derecho Penal. Valência: Tirant le Blanch, 1989.<br />

HASSEMER, Winfried. Três temas penais. Porto Alegre e São<br />

Paulo: Fundação Escola Superior do Ministério Público, 1993.<br />

JESCHECK, H. H. Tratado de Derecho Penal. Trad. José Luis<br />

Manzanares Samaniego. 4ª ed. Granada: Comares, 1935.<br />

MAIWALD, Manfred. Zum fragmentarischen Charakter des Strafrechts.<br />

Em: Festschrift für. Karlsruhe: R. Maurach, 1972.<br />

MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del Derecho Penal.<br />

Barcelona: Bosch.<br />

SCHÜNEMANN, Bernd. Introducción al razonamento sistemático<br />

en Derecho Penal. Em: El sistema moderno del derecho penal:<br />

cuestiones fundamentales. Trad. Jesús-María Silva Sánchez.<br />

Madrid: Tecnos, 1992,<br />

WELZEL, Hans. Introducción a la filosofía del Derecho. Trad.<br />

Felipe González Vicen. 2ª ed. Madrid: Biblioteca Jurídica<br />

Aguillar, l974.<br />

94 impulso


A RELEVÂNCIA CAUSAL<br />

DA OMISSÃO<br />

EDUARDO SILVEIRA MELO RODRIGUES<br />

– Nós, disse Madame Stäel – só poderemos ser incriminados<br />

pelo que não fizemos.<br />

– Eis o ponto.<br />

Disse Olynthe Rodrigues, logo depois decapitado”.<br />

(Excerto imaginado de um programa ideal de um partido verdadeiramente<br />

revolucionário)<br />

A QUESTÃO DOS CRIMES COMISSIVOS<br />

POR OMISSÃO<br />

Apesar da enorme dificuldade que cerca o tema da relevância<br />

causal da omissão, ou talvez precisamente devido à necessidade de<br />

se buscar a sua clarificação, é que o abordamos neste trabalho.<br />

Trata-se de “um dos temas mais difíceis e uma das questões mais<br />

tormentosas da ciência do Direito Penal”, 1 não acolhido como fórmula<br />

expressa porque entendido desnecessário pelo legislador de<br />

1940, conforme justificativa apresentada à época por um, e talvez<br />

o principal, dos artífices da reforma:<br />

Fez bem a Comissão Revisora em riscar o dispositivo.<br />

Desde que se reconhece, do ângulo de vista lógico<br />

(como já fazia o Projeto Alcântara, que a omissão é<br />

CAUSAL, redunda numa incoerência declarar-se, em<br />

seguida, que a omissão equivale a causa. E inteiramente<br />

ocioso é dizer-se que a omissão só tem relevância penal,<br />

como causa, quando represente o descumprimento de<br />

1 FRAGOSO, Heleno Cláudio.<br />

Comentários, v. I, t. II, n. 12.<br />

impulso<br />

95


um dever jurídico. Ora, também a ação só tem sentido<br />

penal, como causa, quando é contrária ao dever jurídico.<br />

O evento lesivo resultante de uma omissão LÍCITA<br />

não pode entrar na estrutura de um crime: é objetivamente<br />

lícito. 2<br />

Alcançava já, portanto, o renomado Hungria, que a relevância<br />

causal da omissão repousava em muito no caráter de antijuridicidade<br />

da conduta, mas não antevia com o costumeiro acerto o<br />

vazio tipológico, que adviria da falta de disposição a respeito.<br />

Redimindo-se de tal falha, o próprio grande doutrinador acolheu<br />

dispositivo semelhante ao proposto por Alcântara Machado,<br />

assim se justificando:<br />

Importante é o que agora aparece como referência aos<br />

crimes comissivos por omissão. Não se encontram<br />

especificados na lei vigente, nem nos Códigos de sua<br />

época, os pressupostos da conduta típica, dessa categoria<br />

de delitos, defeito que as legislações penais modernas<br />

vêm corrigindo. Como se demonstrou, amplamente,<br />

a ilicitude aqui surge, não porque o agente tenha causado<br />

o resultado, mas porque o não impediu, violando<br />

o seu dever de garantidor. É indispensável fixar na lei<br />

as fontes de tal dever de atuar. 3<br />

2 HUNGRIA, Nelson. Comentários<br />

ao Código Penal, v. I, t.<br />

II, n. 60.<br />

3 Exposição de Motivos. n. 1,<br />

D.O.U. de 21.10.69, n. 9.<br />

Deve-se verificar, portanto, que Hungria ia além da justificativa,<br />

para afirmar, nas entrelinhas, incompleta a proposta Alcântara,<br />

por prever expressamente a hipótese em que a omissão valesse<br />

como causa, mas não frizar as suas fontes de dever jurídico. Tal<br />

não fora, entretanto, e como visto, o motivo da supressão anteriormente<br />

feita.<br />

Sabido, mais, que a reforma que instituiu a nova Parte Geral<br />

do Código Penal (Lei nº 7.209/1984) acolheu dispositivo praticamente<br />

idêntico ao redigido por Hungria (art. 13, § 2º). Nada mais<br />

interessante que analisar o instituto dos crimes comissivos por<br />

omissão também sob a perspectiva histórica positiva, no Brasil,<br />

indagando se a proposta de Alcântara Machado era efetivamente<br />

errônea, ou incompleta; se melhor seria efetivamente a supressão<br />

da previsão legal, como o fez o nosso CP de 1940, deixando à<br />

jurisprudência e à doutrina a sua solução; ou se a fórmula proposta<br />

96 impulso


por Hungria (CP de 1969 e CP vigente) era a mais adequada à<br />

solução do problema. É o que ousadamente passamos a fazer.<br />

A PROPOSTA DE ALCÂNTARA MACHADO<br />

Assim se redigia o aludido dispositivo no Projeto Alcântara<br />

Machado:<br />

Art. 9 – O agente só responderá pelo evento que for<br />

efeito de sua ação ou omissão.<br />

§ 1º – Faltar à obrigação de impedir o evento equivale<br />

a causá-lo.<br />

Se insurgência houve, ainda que morigerada, quanto ao<br />

CAPUT (Costa e Silva, principalmente, discutiu sua necessidade),<br />

muito maior foi a reação ao parágrafo primeiro, na qual se sobressaiu<br />

o próprio Hungria. A previsão, para ele haurida do Códito italiano,<br />

fora reproduzida no uruguaio e era, ao ser ver, incoerente.<br />

De tais críticas procurou defender-se o próprio Alcântara,<br />

com a proverbial clareza de sempre:<br />

Toda a atoarda vem, afinal de contas, de mero equívoco<br />

do censor. O de que trata o dispositivo é, pura e simplesmente,<br />

de afirmar que na espécie há um nexo causal<br />

entre a omissão e o evento. Mas o reconhecimento da<br />

relação de causalidade não importa evidentissimamente,<br />

por si só, no reconhecimento da responsabilidade<br />

criminal do omitente em apreço. De fato, sabe<br />

toda a gente que, além do elemento material ou objetivo,<br />

a responsabilidade pressupõe o elemento subjetivo<br />

ou psicológico, isto é, o dolo ou a culpa. De sorte que se<br />

não houver dolo ou culpa, da parte do omitente, este<br />

não responderá pelo evento. Ainda mais: se o evento<br />

relacionado com a omissão realizar hipótese considerada<br />

pelo legislador sómente quando dolosa, e culposa<br />

for a omissão, não existirá para o omitente responsabilidade<br />

penal, embora exista o nexo de causalidade. 4<br />

O que pretendia o venerando mestre, pois, era demonstrar<br />

que o dispositivo não implicava em estruturar o crime, vale dizer,<br />

que só o reconhecimento do nexo causal com o resultado não<br />

esgotava o delito, da mesma forma quanto aos comissivos puros,<br />

4 MACHADO, Alcântara. O<br />

Projeto do Código perante a<br />

Crítica. Revista da Faculdade<br />

de Direito, v. 35, fasc. 1, jan./<br />

abr. 1939, p. 63-64.<br />

impulso<br />

97


porque havia que se indagar, ainda, do tipo subjetivo, do dolo ou<br />

da culpa. Cabia, assim, a previsão genérica quanto à omissão, porque,<br />

quanto a esta, havia que se estabelecer um nexo normativo,<br />

diferentemente da ação, em que o nexo era naturalmente causal.<br />

Estabeleça-se desde logo: não havia dissidência doutrinária<br />

quanto à causalidade omissiva em si, afirmada por todos, desde<br />

Costa e Silva, resultante do dever jurídico de impedir o evento. O<br />

que se discutia era a necessidade de se estabelecer a equivalência<br />

causal entre a ação e a omissão expressamente, bem como os pressupostos<br />

da conduta típica omissiva.<br />

Se o legislador de 1940 repudiou a fórmula de Alcântara<br />

Machado (que era reconhecidamente colhida na lei italiana), não o<br />

fêz porque a considerasse de pioneirismo temerário. Já a admitiam,<br />

viu-se, os códigos italiano e uruguaio mencionados, o projeto<br />

penal alemão de 1913 (§ 14), e até o Código Penal Chinês de<br />

1935. 5<br />

Alcântara Machado, entretanto, apenas propôs que a relevência<br />

omissiva ficasse consignada, adquirindo base normativa. Não<br />

se propôs a fixar as hipóteses do dever jurídico. Isto foi objeto do<br />

CP de 1969, acolhido pelo legislador de 1984. Como num aliviar<br />

de seu erro, diga-se, Hungria desenvolveu e ampliou a fórmula de<br />

Alcântara, como a afirmar publicamente que errara, mas também<br />

errara o seu criticado.<br />

5 Art. 15 – Where the prevention<br />

of a specified result is an<br />

obligation under the law, the failure<br />

to prevent what is preventable<br />

is equivalente to the active<br />

commission of such a result.<br />

The Criminal Code of Republic<br />

of China. Shangai: Kelly &<br />

Walsh Ltd., 1936.<br />

6 ARAÚJO, Laurentino da Silva,<br />

FAVEIRO, Vitor Antonio<br />

Duarte. Código Penal português<br />

anotado. 4ª ed. Coimbra:<br />

Coimbra Ltda., 1966, p. 11-13.<br />

A RELEVÂNCIA DA OMISSÃO PERANTE<br />

O CÓDIGO PENAL DE 1940<br />

O silêncio do legislador de 1940 suscitou reações doutrinárias<br />

díspares. Àquela altura já se consolidara, mundo afora, a idéia<br />

de que a lei penal procura sempre um fim de tutela para certos<br />

interesses, e que toda e qualquer conduta, desde que resulte em<br />

ofensa ou ameaça a tais interesses, deve ser condenável, “quer<br />

consista num facere ou num omittere”. 6<br />

E a doutrina alienígena, como a nacional, bem estabelecia os<br />

pressupostos do dever de evitar um resultado, como os oriundos da<br />

lei, da ordem de superior hierárquico, de uma situação contratual<br />

ou profissional. A estes, a doutrina portuguesa acrescentaria os<br />

resultantes de uma situação de fato (o que adviria de uma ação<br />

anterior lícita, como o do que promove queimada e tem que impedir<br />

que alastre) ou dos deveres resultantes da moral e dos costumes,<br />

numa ampliação arrojada para a época (exemplificava-se<br />

98 impulso


com o não andar nu pelas ruas, quando, aí, a conduta era nitidamente<br />

comissiva). 7<br />

Em sua obra principal, o mestre Basileu Garcia teceu comentário<br />

bastante sucinto quanto aos próprios delitos comissivos por<br />

omissão, sem qualquer preocupação de detalhamento: “caracteriza-se<br />

a existência da infração quando o sujeito ativo tem o dever<br />

jurídico de praticar o ato de que se abstém”. 8<br />

Calava-se quanto ao tema, seguindo os passos do legislador,<br />

ao tratar da relação causal.<br />

Aníbal Bruno igualmente pouco discorre acerca da matéria,<br />

limitando-se a pouco mais que dizer: “a punibilidade da omissão é<br />

outro problema, cuja solução depende da comprovação de concorrência<br />

de outros elementos do fato punível, a partir da antijuridicidade,<br />

resultante do dever jurídico de agir, que incumbia ao omitente”.<br />

9<br />

Afirma, pois, o grande mestre do Recife, um elemento natural<br />

na ação omissiva (em nota de rodapé inclusive anota a divergência<br />

entre as teorias naturalística e normativa quanto à omissão),<br />

que deveria ser melhor explicitado com a análise da antijuridicidade<br />

da conduta. Assim, resolvida a questão de que se houvesse<br />

a ação omitida o resultado desapareceria (omissão causal, na<br />

CONDITIO SINE QUA NON), haver-se-ia de perquirir o outro elemento<br />

do crime, o antijurídico, verificando se o agente tinha o<br />

dever jurídico de agir. Isto significa que a omissão, revelada causa,<br />

seria típica desde logo, restando a indagar de sua antijuridicidade,<br />

que seria afirmada se o agente tivesse o dever jurídico de evitar o<br />

resultado (cujas bases não vinham afirmadas na lei), e seria arredada<br />

se não tivesse o agente tal dever jurídico (quando, entretanto,<br />

as causas de exclusão de antijuridicidade deviam ser expressas,<br />

como entendido à época).<br />

Magalhães Noronha parece ter sido um dos que mais atento<br />

olhar dirigiu à questão. Admitiu expressamente a omissão sob um<br />

ponto de vista naturalístico, lembrando percuciente indagação de<br />

Masimo Punzo: “se não é exato que as flores secam tanto quando<br />

o jardineiro não as rega, como quando as rega com uma solução<br />

de sublimado”, depois de ter afirmado que “quanto à ação negativa,<br />

ou omissão, entra no conceito de ação (Genus) de que é espécie.<br />

É também um comportamento ou conduta e, consequentemente,<br />

manifestação externa, que, embora não se concretize na<br />

materialidade de um movimento corpóreo – antes é a abstenção<br />

7 ARAÚJO, Laurentino da Silva,<br />

FAVEIRO, Vitor Antonio<br />

Duarte, op. cit.<br />

8 GARCIA, Basileu.<br />

Instituições de Direito Penal. 5ª<br />

ed. Max Limonad, v. 1, t. 1, p.<br />

222.<br />

9 BRUNO, Aníbal. Direito Penal,<br />

Parte Geral. 3ª ed. São<br />

Paulo: Forense, tomo I, 1967, p.<br />

impulso<br />

99


desse movimento –, por nós percebida como REALIDADE, como<br />

SUCEDIDO ou REALIZADO”.<br />

Para o renomado autor, razão se encontra na Teoria Naturalística,<br />

portanto. Mas, nem por isso afasta a necessidade da afirmação<br />

de seu conteúdo antijurídico: “Mas, ao Direito Penal elas só<br />

interessam quando têm relevância, quando importam o descumprimento<br />

de um dever jurídico ou se opõem ao COMANDO da<br />

norma legal, o que lhes dá o conteúdo normativo”. 10<br />

Não se cansa de demonstrar que a omissão é um fato e não<br />

uma abstração:<br />

Ela é tão real como a ação, pois é expressão da vontade<br />

do omitente, porque é reconhecível e verificável no<br />

tempo e no espaço, e porque não é um NÃO-SER,<br />

porém, modo de SER do autor. E, se tem um conteúdo<br />

real, não é um nada, mas alguma coisa suscetível de<br />

determinação e percepção. Como tal, pode dar lugar a<br />

um processo causal. 11<br />

321.<br />

Para arrematar, quanto à nossa indagação primária: “o<br />

Código Penal italiano é expresso: “não impedir um acontecimento<br />

que se tem a obrigação jurídica de evitar equivale a causá-lo”. Tal<br />

dispositivo, entretanto, é superfetação, desde que se declare ser a<br />

omissão causa, como faz o legislador pátrio no art. 11”. 12<br />

Desde então, refutando-o e aos adeptos de tal superfetação,<br />

erguia-se a voz de Paulo José da Costa Jr., de formação nitididamente<br />

clássica italiana: “o Projeto Alcântara Machado, que antecedeu<br />

o Código Penal de 1940, continha dispositivo que a Comissão<br />

Revisora deliberou suprimir”: não poderia o legislador brasileiro<br />

de forma alguma suprimir o dispositivo em questão. Sem ele não<br />

será possível promover a condicionalidade hipotética omissiva à<br />

categoria de causa. Necessário, portanto, o decreto de promoção<br />

normativa. Ausente a ficção legal, a omissão perde sentido. Diluiuse,<br />

desnorteia-se.<br />

Dois, portanto, os pressupostos da causalidade omissiva: “a<br />

conexão condicional hipotética entre conduta e evento; e a violação<br />

de uma obrigação jurídica de intervir”. 13<br />

Vê-se, pois, e claramente, que o ex-Professor Titular de<br />

Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São<br />

Paulo afirmava o que outros apenas intuíam: a falta de tipicidade<br />

dos delitos comissivos por omissão.<br />

100 impulso


Esta, precisamente, a grande crítica que se fazia, e cada vez<br />

mais tomando espaço na doutrina mundial. Se faltava tipicidade<br />

aos denominados delitos omissivos impróprios, faltava-lhes legalidade,<br />

ou seja, constituíam-se em violação do vetusto e básico<br />

Princípio da Legalidade.<br />

O CRIME COMISSIVO POR OMISSÃO E<br />

O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE<br />

O que parece é que o legislador de 1940, e os doutrinadores<br />

que o influenciaram, além de boa parcela dos comentaristas da<br />

época, não se deram conta do grave problema da infringência, que<br />

o tratamento dado à questão representava para o Princípio da<br />

Reserva Legal.<br />

É verdade que Paulo José da Costa Júnior, bem mais tarde,<br />

afirmaria a necessidade da previsão legal dos crimes omissivos<br />

impróprios. Mas afirmaria, também, que “no crime comissivo,<br />

uma única violação se perpetra da norma principal. No crime<br />

comissivo-omissivo, duas: da principal e da acessória, que estabelece<br />

o dever de agir. Consequentemente somente uma parte do tipo<br />

acha-se legalmente descrita. A outra incumbe ao Juiz construir,<br />

complementando o tipo”. 14<br />

Assim o afirmou, quando já aceita a reforma que introduziu<br />

em 1984 o dispositivo acerca da relevância causal da omissão.<br />

Entretanto, vê-se, deixava a solução pela metade, incumbindo ao<br />

Juiz parcela do tipo a realizar, o que significa menos que o arbítrio<br />

tão só pela segura orientação doutrinária a respeito.<br />

Sobre o assunto, discorre Carlos Creus, sendo de se lembrar<br />

que o Código Penal argentino não acolhe a previsão, em tipo próprio<br />

da Parte Geral, da causalidade omissiva:<br />

Sin duda, lo que más preocupa a la doctrina contemporanea<br />

al tractar de los delitos de Comisión por<br />

Omisión, es el hecho de que su reconocimiento puede<br />

colisionar con el principio de legalidad encuanto se<br />

trata de tipos ‘no escritos’ (son ‘tipos de interpretación’,<br />

Schmidthäuser): la ley pune al que mata, peropor un<br />

lado se plantea esa objeción, pero por el otro, dejar de<br />

reconecerlos importaría poner al descubierto un amplio<br />

campo de permisividad al ataque del bien jurídico que<br />

el mismo tipo omisivos improprios aparecerían como el<br />

10 NORONHA, E. Magalhães.<br />

Direito penal. 17ª ed. São Paulo:<br />

impulso<br />

101


agotamiento necesario del contenido prohibitivo del<br />

tipo escrito (Zaffarini).<br />

Elide, entretanto, a suposta agressão ao princípio da legalidade,<br />

da seguinte forma:<br />

Por supuesto que la objeción del principio de legalidad<br />

se rebate cuando la omisión impropria es tractada<br />

legalmente como una extensión del tipo (como lo hizo<br />

nuestro Proyecto de 1960 – Soler, en su art. 10), o<br />

cuando excepcionalmente el legislador lo prevé taxativamente<br />

(entre nosotros ciertos casos de abandono de<br />

personas del art. 106, Cód. Penal). Creemos que la corrección<br />

jurídica de la causalidad permite incluir en ella<br />

toda condición típica de un resultado, sea esta la de<br />

producirlo – cuando no se lo debía producir – o la de no<br />

impedirlo – cuando se lo debía impedir –, por lo cual no<br />

nos parece violatoria del principio de legalidad la consideración<br />

de la comisión por omisión (en un significado<br />

socialmente adecuado de la acción de “matar”,<br />

tanto mata el que quita la vida a otro, como el que permite<br />

que se extinga la vida cuando puede imperdirlo). 15<br />

E prossegue com observação a ser pensada:<br />

Por muchas razones el tema puede parecer sobredimensionado<br />

en la doctrina con abundancia del debate teórico,<br />

sin poner demasiada atención a suas verdaderas<br />

consecuencias prácticas (dogmáticas). 16<br />

Saraiva, v.1, p. 106.<br />

11 NORONHA, E. Magalhães,<br />

op. cit., p. 125-126.<br />

12 NORONHA, E. Magalhães,<br />

A questão, todavia, subsiste. Não ofenderia ao princípio da<br />

legalidade a inexistência de uma norma que expressamente previsse<br />

a extensão ao tipo incriminador? A conduta incriminada só o<br />

poderia ser, se fosse hipótese de adequação típica de subordinação<br />

mediata, como o é a tentativa, ou o são as modalidades culposas,<br />

mas para tanto deveria haver a previsão genérica da relevância<br />

causal da omissão e a específica, a cada tipo penal em que<br />

cabente, como se faz com os delitos culposos.<br />

Ainda em terras argentinas, Ricardo C. Nuñes dá uma solução<br />

simplista ao problema:<br />

102 impulso


Fracasada la tesis de la relación causal física, la atribución<br />

del resultado físico al omitente encontró un<br />

nuevo fundamento en el princípio de la “acción esperada”...<br />

la omisión es causal si el resultado desaprobado<br />

por el ordenamiento jurídico hubiera sido<br />

impedido por la acción que se “esperaba del autor”.<br />

E apressa-se em corrigir a fórmula:<br />

La acción esperada no puede, empero, explicar satisfactoriamente<br />

el fundamento jurídico de la obligación<br />

de actuar para evitar el resultado delectivo en el caso<br />

de ingerencia, esto es, en el caso en que ese deber tiene<br />

como fuente un hecho precedente a la omisión realizada<br />

por el autor. 17<br />

Aponta, a seguir, fórmula simplista ou, pelo menos, insuficiente<br />

para tão magno problema, ao afirmar que a responsabilidade<br />

do omitente por um resultado delitivo é uma questão de tipicidade<br />

inerente aos tipos dos delitos de comissão, que são aqueles<br />

que prevêem um comportamento contrário a uma norma proibitiva.<br />

A infração a tal espécie de norma tanto se dá pela causação física<br />

do resultado como pela omissão, quando se tenha uma situação<br />

jurídica particular, que lhe atribua a responsabilidade.<br />

Com a costumeira clareza inovadora, afirma Welzel:<br />

Si se desea desarrollar los tipos de los delitos de omisión<br />

improprios mediante una conversión de los tipos<br />

de comisión, se evidencia un sensible vacío en la elaboración<br />

de los tipos legales.<br />

El no evitar el resultado típico en el sentido de un delito<br />

de comisión, por una persona con poder para ello,<br />

nunca es suficiente para fundamentar la autoría, en el<br />

sentido de correspondiente delito de omisión improprio.<br />

En estos casos, más bien, la autoria tiene que ser fundada<br />

independientemente, junto a la conducta típica,<br />

op. cit., p. 125-126.<br />

por características especiales de autor: sólo el no evitar<br />

un resultado típico por parte de una determinada persona<br />

con poder para ello, convierte a dicha persona en<br />

autor en el sentido de un delito de omisión impróprio. 18<br />

13 COSTA, Paulo José da. Direito<br />

Penal Objetivo. São Paulo:<br />

Forense Universitária, 1989,<br />

p. 32.<br />

impulso<br />

103


Pretende, portanto, o renomado autor resolver o tema (ou<br />

buscar o seu campo de solução) sob um outro ângulo, o dos crimes<br />

próprios, em que só determinados autores podem fundamentar o<br />

injusto punível. Assim, se um qualquer revela segredo privado<br />

alheio, a conduta é atípica. Se se trata de um sacerdote, entretanto,<br />

há crime. Também só haveria o delito comissivo impróprio para o<br />

autor que tivesse o dever jurídico de impedir o resultado que a<br />

norma pretende evitar.<br />

El no evitar el resultado típico es típico en el sentido de<br />

un delito de omisión improprio sólo para determinadas<br />

personas con poder del hecho, que de antemano estén<br />

en una relación estrecha respecto al bien jurídico. Los<br />

delitos de omisión improprios comparten, por lo tanto,<br />

con los delitos especiales proprios, la particularidad de<br />

carácter típico de que la antijuridicidad de la conducta<br />

del autor sólo se funda mediante la adición de características<br />

objetivas especiales del autor. 19<br />

E conclui, aceitando a exceção ao Princípio da Legalidade:<br />

14 COSTA, Paulo José da, op.<br />

cit.<br />

En los delitos de omisión improprios, el juez mismo<br />

mediante una complementación del tipo, tiene que<br />

encontrar las características objetivas del autor... “El<br />

principio NULLA POENA SINE LEGE experimenta en<br />

estos casos una profunda limitación: sólo la conducta<br />

del autor está ‘legalmente determinada’ y no las características<br />

objetivas de autor. Por esta razón, se han<br />

hecho valer siempre reparos de índole constitucional en<br />

contra de los delitos de omisión improprios. Del vacío<br />

en la descripción legal típica resulta dogmáticamente<br />

la inseguridad para el juez de circunscribir con suficiente<br />

precisión las características típicas no escritas<br />

del autor de la omisión. Esta dificuldad dogmática no<br />

radica en las deficiencias de una ley determinada, sino<br />

en la naturaleza de la cosa. Es imposible, por principio,<br />

circunscribir concreta e exaustivamente en tipos<br />

legales la inmensa variedad de posibles autores de<br />

omisión [grifo nosso]. 20<br />

104 impulso


Se assim o é, como, ao menos, minorar tais defeitos congênitos<br />

da espécie normativa em questão?<br />

Sin embargo, estos deberes señalados expresamente en<br />

la ley, son sólo parte de un círculo de deberes más<br />

amplios que está detrás de ellos. Así, por ejemplo, el<br />

deber de garante jurídico penal de salvar la vida no<br />

debe identificarse con el deber civil de dar alimentos.<br />

Por otra parte, se corre el peligro de que mediante la<br />

‘des-positivation’ de los deberes de acción, se pierda la<br />

linea divisoria entre un deber meramente ético-social y<br />

otro consolidado juridicamente; la antigua fundamentación<br />

formal de los deberes es sustituida en medida creciente<br />

por la figura de la ‘estrecha comunidad de vida’.<br />

Sin embargo, aunque no se pueda volver al primitivo y<br />

restringido punto de partida de un deber jurídico formulado<br />

en la ley, hay que exigir la consolidación jurírica<br />

del deber de garante: esto es, la responsabilidad del<br />

garante, aunque se lea directamente en la ley, tiene que<br />

poder ser confirmada por la ley. 21<br />

Ora, assim, rechaça o mestre de Bonn a fórmula, entre nós<br />

preconizada por vultos da estatura de Alcides Munhoz Netto, da<br />

inclusão, na Parte Geral, de cláusula, pela qual a omissão imprópria<br />

só fosse punida em casos expressos, excepcionais, em que a<br />

conduta constasse do preceito da parte especial, assim como<br />

ocorre com os delitos culposos. 22 Neste mesmo sentido aponta o<br />

preconizado na Segunda Reunião da Comissão Redatora do<br />

Código Penal Tipo para a América Latina. 23<br />

De qualquer modo, vê-se, é eivada de dificuldades a proposta<br />

de uma fórmula genérica com as hipóteses de dever jurídico,<br />

quando o que se tem, antes de tanto, é a figura do devedor jurídico,<br />

imprevisível genericamente. Por outro lado, o nível de detalhamento<br />

por alguns preconizado na Parte Especial seria mais um,<br />

entre tantos outros, imenso óbice ao já abalado dogma do “conhecimento<br />

presumido da lei”, ante a sua extensão e diversidade.<br />

Teria sido, indaque-se, mais feliz o legislador de 1940,<br />

calando-se quanto ao não positivável, que o atual?<br />

Esta era a resposta dada à época por doutrinador do porte de<br />

Luis Jiménes de Asúa, que, após esmiuçar as várias correntes<br />

explicadoras da natureza do delito comissivo por omissão, analisou<br />

15 CREUS, Carlos. Derecho Penal,<br />

Parte General. 3ª ed .<br />

Astrea, p. 181.<br />

16 CREUS, Carlos, op. cit.,<br />

p. 184.<br />

impulso<br />

105


17 NUÑEZ, Ricardo C. Manual<br />

de Derecho Penal, Parte General.<br />

3ª ed. Córdoba: Marcos<br />

Lerner, p. 160.<br />

18 WELZEL, Hans. Derecho<br />

Penal Alemán. 3ª ed. Santiago:<br />

Editorial Jurídica de Chile, p.<br />

286-287.<br />

a oportunidade do art. 40 do Código Penal italiano, onde a proposta<br />

de Alcântara confessadamente abeberou-se, além de trazer à<br />

colação autorizadas vozes do país de Carrara, cada uma a trazer<br />

sua fundação à necessidade do dispositivo, tendo por base sua fundamentação<br />

para a própria natureza da omissão enquanto causa. O<br />

grande mestre não deixou de observar, após demonstrar as muitas<br />

dificuldades, que: “Cuanto antecede es aplicable a los Códigos<br />

Iberoamericanos que han copiado lo dispuesto por el Código de<br />

Italia, y ante las dudas que existen para esclarecerlo, queda justificada<br />

nestra censura a cuantos han transcrito, sin demasiadas preocupaciones,<br />

un precepto que origina tantos debates”. 24<br />

A dificuldade, entretanto, não poderia justificar o gravame<br />

da aceitação da ofensa ao princípio da legalidade. O Código<br />

Penal de 1940, pode-se afirmar hoje sem medo, perdeu excelente<br />

oportunidade de, pela previsão normativa ainda que sumária, iniciar<br />

o grande esforço no sentido de que a tipificação dos delitos<br />

omissivos impróprios não seja aberta, como incrivelmente pregado<br />

por alguns.<br />

“O Direito Penal, todavia, pelo princípio da legalidade e da<br />

tipicidade, não pode abrir mão da exigência de ligar o juízo, de<br />

responsabilidade a uma norma-comando. Por isso, a omissão<br />

juridicamente relevante é a que infringe uma OBRIGAÇÃO<br />

JURÍDICA DE FAZER”. 25<br />

Essa obrigação, a que se refere Nuvolone, pode estar especificamente<br />

prevista pela própria lei, e assim o deve ser, embora<br />

possa estar sancionada por uma norma jurídica diferente: e esta<br />

norma pode, ainda, ser deduzida do sistema. Sem dúvida, entretanto,<br />

a única maneira de cumprir o rigor da reserva legal será a<br />

previsão expressa no próprio texto penal.<br />

É preciso não esquecer a advertência de Zaffaroni, lembrada<br />

por Alcides Munhoz Netto: “e o uso indiscriminado da tipificação<br />

pode redundar num autoritarismo penal muito restritivo do âmbito<br />

ou espaço da liberdade das pessoas e em abertas violações a direitos<br />

fundamentais do homem”. 26<br />

Refere-se, o autor, à necessidade de limitar a faculdade do<br />

legislador na citação de figuras delituosas da espécie, e assim o<br />

deve ser de fato. Todavia, nada impede a previsão genérica e a<br />

sequente especificação, como se tem com os crimes culposos.<br />

Bem por isso afirma o mesmo consagrado estudioso:<br />

106 impulso


Sob outro prisma, para os crimes omissivos impróprios,<br />

enquanto permanecer o critério de não limitar sua punibilidade<br />

na parte especial, nem definir legislativamente<br />

as situações de que surge o dever de evitar o resultado,<br />

tais delitos continuarão previstos em tipos abertos, que<br />

necessitam de complementação judicial, para que neles<br />

possam ser subsumidas determinadas inações.<br />

A segurança do direito impõe que não se deixe ao livre<br />

critério dos Juízes o equiparar a omissão à comissão,<br />

para castigá-la como se também esta fosse causadora<br />

do resultado. Sem limites obrigatórios, quanto ao dever<br />

do omitente em evitar a lesão, e quanto à punibilidade<br />

do comportamento, se enfraquece a garantia do nullum<br />

crimen sine lege, mediante a qual se afirma a função<br />

limitadora do Direito Penal. Importante, pois, o esforço<br />

de condensar, em fórmulas legislativas precisas, as hipóteses<br />

em que alguém possa ser responsabilizado por um<br />

resultado que não causou, mas que poderia e deveria<br />

evitar. Importante, igualmente, estudar a maneira de<br />

criar tipos fechados de crimes omissivos impróprios. 27<br />

Discorria o professor paranaense sobre a matéria às vésperas<br />

da reforma da parte geral do CP, efetivada em 1984. Suas palavras<br />

encontraram eco, sabe-se, mas são de total atualidade:<br />

Enquanto a expressa previsão das hipóteses de evitar o<br />

resultado não for incorporada ao nosso Direito Positivo,<br />

persistirá o problema de compatibilizar os crimes<br />

de omissão imprópria com o princípio da anterioridade<br />

da lei penal. 28 É geral, em conseqüência, o reconhecimento<br />

de que compete à doutrina e à jurisprudência<br />

determinar as posições de garantidor, dos quais se<br />

deduz aquele dever. Com isso, o princípio do nulla<br />

poena sine lege experimenta profunda limitação, já que<br />

a conduta não está inteiramente determinada. A lei só<br />

comina a pena para a produção comissiva do resultado<br />

e estende a mesma responsabilidade a quem não o<br />

evita, sem especificar, contudo, quando ocorre tal<br />

dever de impedi-lo. Assim, só uma parte do tipo está<br />

legalmente descrita; a outra tem que ser construída<br />

pelo Juiz, a quem fica a tarefa de complementá-lo.<br />

19 WELZEL, Hans, op. cit., p.<br />

287.<br />

20 WELZEL, Hans, op. cit., p.<br />

288.<br />

impulso<br />

107


Quanto à segurança do Direito, o atual sistema de disciplina<br />

legislativa dos crimes omissivos impróprios<br />

comporta, destarte, todos os reparos opostos aos tipos<br />

penais abertos. 29<br />

Já advertia Anibal Bruno, que o princípio da legalidade não<br />

se limita à necessidade de previsão penal anterior, mas à exigência<br />

da não formulação de tipos penais abertos.<br />

Everardo da Cunha Luna, por sua vez, aborda especificamente<br />

soluções, para obviar o entrave:<br />

21 WELZEL, Hans, op. cit., p.<br />

293.<br />

Como os crimes comissivos por omissão, regra geral,<br />

não estão explicitados nos tipos penais, surge o problema<br />

da constitucionalidade da punção por omissão<br />

imprópria. Não haveria, na tipificação desses crimes,<br />

considerados implícitos nos tipos penais de resultado,<br />

uma ofensa ao princípio da reserva legal? Tendo como<br />

conteúdo deveres jurídicos emanados de outras fontes,<br />

que não a própria lei penal, não escapariam esses tipos<br />

penais ao controle do salutar princípio da legalidade?<br />

Quanto à implicitude, deve-se lembrar que, em muitos<br />

tipos penais, elementos constitutivos do crime estão<br />

implícitos, exigindo, desse modo, uma investigação<br />

especial. E quanto a outras fontes de deveres jurídicos,<br />

que vão além das palavras descritivas da lei penal, exigindo<br />

juízos de valorização, deve-se lembrar, igualmente,<br />

que existem, em muitos tipos penais, elementos<br />

constitutivos do crime de natureza valorativa. A questão<br />

básica, fundamental, portanto, não está na própria<br />

essência da omissão imprópria, mas no modo como<br />

deve ela ser disciplinada pelo Direito Penal.<br />

A técnica da construção de tipos penais, na Parte Especial,<br />

destinados aos crimes comissivos por omissão,<br />

não pode ser escolhida como a única constitucionalmente<br />

adequada e praticamente eficaz. Dois defeitos<br />

apresenta: ou deixa escapar uma grande quantidade de<br />

fatos que merecem punição, ou procurando abarcá-los<br />

a todos, tarefa tortuosa, peca contra a economia legal.<br />

Tem a virtude, porém, de limitar o número de bens jurídicos<br />

e de agrupar, num tipo omissivo, vários crimes da<br />

mesma natureza. 30<br />

108 impulso


Em nível de proposta, entretanto, não avança mais do que no<br />

postular um aumento de previsões típicas de crimes omissivos,<br />

quer próprios quer impróprios. A questão do dogma da reserva<br />

legal persiste irresolvida; reconhece, apenas acrescentando que se<br />

devam evitar, o quanto possível, os chamados tipos penais abertos.<br />

A FÓRMULA ADOTADA NA REFORMA PENAL DE 1984<br />

O atual dispositivo repete, quase que identicamente, a proposta<br />

de Nelson Hungria, que constituiu o malfadado Código de<br />

1969:<br />

Relação de causalidade<br />

Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do<br />

crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se<br />

a ação ou omissão sem a qual o resutado não<br />

teria ocorrido.<br />

§1º - ..............................................<br />

Relevância da omissão<br />

§2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente<br />

devia e podia agir para evitar o resultado. O<br />

dever incumbe a quem:<br />

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou<br />

vigilância;<br />

b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir<br />

o resultado;<br />

c) com seu comportamento anterior, criou o risco da<br />

ocorrência do resultado.<br />

De início, constata-se a convivência de um critério mecanicista<br />

(caput) e de uma forma normativa (§2º) no preceito, o que é<br />

incongruente, como alertou René Ariel Dotti, lembrado por Damásio.<br />

A explicação para tanto é dada pelo último doutrinador, no<br />

sentido de que “a incongruência do texto atual não se encontra no<br />

Projeto de CP. Deveu-se à Emenda no Congresso Nacional”, 31 não<br />

convence, na medida em que o mesmo defeito ostentava a fórmula<br />

proposta por Hungria em 1963.<br />

A explicação dada por Ricardo Antunes Andreucci e Sérgio<br />

Marcos de Moraes Pitombo, membros da comissão responsável<br />

pela atualização da reforma, é mais convincente:<br />

22 Crimes Omissivos. Revista<br />

da Associação dos Magistrados<br />

do Paraná, Curitiba, v. 326,<br />

jul./dez. 1984.<br />

23 Código Penal Tipo para Latinoamérica.<br />

México: Academia<br />

Mexicana de Ciencias Penales,<br />

1967, p. 84-109 e 493.<br />

(2ª Reunião Plenária)<br />

impulso<br />

109


Volveu-se, neste passo, seguindo a linha dos legisladores<br />

atuais, à fórmula que se continha no Código de<br />

1969, para disciplinar a relevância etiológica da omissão,<br />

estabelecendo-se os destinatários do preceito primário,<br />

para o que se concretizou, em elenco, o prévio<br />

dever de agir. 32<br />

O conteúdo da norma, contudo, não implica a adesão,<br />

pura e simples a um conceito normativo, mesmo porque,<br />

mantida a referência, de origem naturalística, à<br />

omissão no CAPUT, as hipóteses em que se instaura o<br />

dever de agir melhor se ajustam à antijuridicidade do<br />

que ao tipo.<br />

O legislador, nesta matéria, como em outras, não assumiu<br />

compromisso doutrinário que transcendesse a sua<br />

tarefa específica. 33<br />

Já de muito os analistas do Código italiano, entretanto, vislumbram<br />

explicação mais correta:<br />

24 ASÚA, Luis Jiménez de.<br />

Tractado de Derecho Penal. Buenos<br />

Aires: Losada, t. III, 1951,<br />

n. 1154, p. 600.<br />

25 NUVOLONE, Pietro. O sistema<br />

do Direito Penal. São<br />

Paulo: Revista dos Tribunais, v.<br />

1, 1981, p. 198.<br />

26 MUNHOZ, Alcides Netto.<br />

Os crimes omissivos no Brasil.<br />

Ajuris, Porto Alegre, n. 29, ano<br />

10, nov. 1983, p. 35.<br />

Acaso el menos imperfecto de todos os comentarios que<br />

sucita ese inciso segundo el art. 40 del Código italiano,<br />

sea el que hace Francisco Antolisei: el artículo 40, en<br />

su párrafo 1º, afirma el ligamen causal, y en el segundo<br />

se delimita la responsabilidad del que se omite: “Por<br />

efecto de esta disposición quien determina un resultado<br />

mediante una omisión no responde siempre de ella... La<br />

causalidad, pues, no basta: se necesita, además, la<br />

existencia de la obligación, para el sujeto, de ejecutar<br />

una acción dada, y precisamente la acción que habría<br />

impedido la realización del resultado. Tal obligación<br />

debe ser jurídica, es decir, impuesta por el derecho, sin<br />

que la simple violación de un deber moral sea suficiente”.<br />

34<br />

Interessante notar que, sob os aplausos do não menos aplaudido<br />

Jiménez de Asúa, volvia-se à singela explicação prestada pelo<br />

próprio Alcântara Machado, ao início da “atoarda”, como se tem<br />

da referência de nº 04.<br />

E, portanto, definitivamente, incorporava o legislador à lei<br />

penal brasileira o que a grande maioria dos doutrinadores da<br />

época do Código de 1940, e a quase totalidade dos da época atual<br />

110 impulso


o faziam: a relevância jurídica da omissão e os casos de tal<br />

relevância/dever. Para que o princípio da legalidade não sofresse<br />

qualquer esbarrão, só restava, se possível, a explicitação dos tipos<br />

penais, que comportassem a forma omissiva imprópria, o que<br />

ficou para o futuro.<br />

Procedente, como sempre, a observação de Alberto Silva<br />

Franco:<br />

Diante da alternativa ou enumerar, em artigo de lei, as<br />

fontes geradoras do dever de atuar, ou compor, tal<br />

como ocorre com o crime culposo, figuras atípicas de<br />

omissão imprópria, não há dúvida de que a opção que<br />

melhor atende ao direito de liberdade do cidadão é a<br />

segunda. O legislador de 84 preferiu, contudo, definirse<br />

pela primeira, acolhendo, em linhas gerais, no texto<br />

legal, a tipologia clássica das fontes geradoras do<br />

dever de atuar, sem concessão alguma às considerações<br />

da doutrina mais moderna, a respeito de fontes<br />

desse dever, de conotação ética ou moral.<br />

E indaga: “não se ajustaria a tal hipótese o caso do transeunte,<br />

única testemunha do fato, que, sem nenhum esforço maior,<br />

poderia salvar uma criança de tenra idade que caiu numa fonte de<br />

praça pública? (Günter Stratenwerth, ob. cit., p. 302)”. 35<br />

Assim, vê-se, a previsão legal vigente não é satisfatória,<br />

conforme abalizadas vozes, porque incompleto o tipo genérico e<br />

ofensiva ao princípio da reserva legal a inexistência de tipos omissivos<br />

impróprios na parte especial, ao lado dos tipos comissivos,<br />

da mesma forma que ao lado dos tipos dolosos arrolam-se alguns<br />

culposos.<br />

Todavia, e a data venia aqui é irresistível, a verdade é que<br />

doutrinadores como Damásio e Mirabete preferiram o silêncio<br />

quanto a tão importante questão, quem sabe considerando-a, como<br />

a considerou Creus (referência nº 16), tema superdimensionado,<br />

de decorrências mais teóricas que práticas-dogmáticas, com o que<br />

não se pode concordar.<br />

Merece destaque, entretanto, o posicionamento de Francisco<br />

de Assis Toledo, sem dúvida o grande mentor da reforma da Parte<br />

Geral do CP, em 1984:<br />

27 NETTO, Alcides Munhoz,<br />

op. cit., p. 36.<br />

28 NETTO, Alcides Munhoz,<br />

impulso<br />

111


O problema da causalidade nesses delitos comissivos<br />

por omissão tem ensejado inúmeras disputas doutrinárias<br />

que, entre nós, com a reforma penal, perde<br />

relevância. Com efeito, o legislador pátrio estabeleceu<br />

um nexo de causalidade normativo entre a omissão e o<br />

resultado, no art. 13 e parágrafos do Código Penal,<br />

especificando as hipóteses em que esse nexo deva ser<br />

reputado presente, a saber:<br />

A omissão terá o mesmo valor penalístico da ação<br />

quando o omitente se colocar, por força de um dever<br />

jurídico (art. 13, §2º), na posição de garantidor da<br />

não-ocorrência do resultado. 36<br />

Será assim, efetivamente? A posição de garante esgotaria a<br />

questão da tipicidade de tais delitos? A previsão legal é, portanto,<br />

suficiente? Afinal, qual o seu campo de abrangência? O risco pessoal<br />

afasta ou não o dever jurídico? São questões ainda pendentes,<br />

sobre as quais nos debruçamos a seguir.<br />

op. cit., p. 49.<br />

ALGUNS ASPECTOS RELEVANTES<br />

A natureza da omissão imprópria<br />

Após tantos debates doutrinários e propostas legislativas, a<br />

indagação permanece para a perplexidade de muitos ou a adesão,<br />

até hoje, às Teorias Causal e Normativa da omissão.<br />

Valha-nos uma solução. Indubitável é que se encontra superada<br />

a “falsa máxima ‘de nada, nada puede resultar’”, 37 mas não<br />

há negar que persista uma concepção causal para a omissão. Por<br />

outro lado, a ela se antepondo, alguns professam explicação puramente<br />

normativa para a causalidade omissiva.<br />

TEORIA CAUSAL – Para os que ainda acreditam na realidade<br />

da causalidade omissiva, a melhor das explicações é aquela,<br />

que parte de um conceito puramente dinâmico do real, pelo qual<br />

as coisas estão sempre acontecendo num fluir incessante. Não há<br />

para esta concepção atos que rompam a inércia e determinem um<br />

resultado, qualquer que seja. Há, só, atos que impulsionam movimentos<br />

previamente tendentes a um determinado resultado e<br />

outros que vão contra tal movimentação, desviando o fluxo dos<br />

acontecimentos para outro, que não aquele ao qual inicialmente<br />

tendia o ato (deslocar) considerado. O que chamamos causa, portanto,<br />

seria, sempre, concausa ou contracausa, inexistindo causalidade<br />

pura, primária.<br />

112 impulso


A inércia, a omissão, não passam de atos que aceleram a disposição<br />

prévia do movimento. A comissão, ao contrário, é a conduta,<br />

que se antepõe ao resultado a que se dirigia o movimento<br />

fático. Ambos são ação, vê-se, determinando resultados, mas não<br />

ação pura. A omissão é a que apóia o fluxo dos acontecimentos<br />

naturais. A comissão, a que o nega. Assim, Tício, matando Caio a<br />

tiros, impediu a continuidade do movimento vida, em Caio;<br />

enquanto Tício, não socorrendo Caio que caíra numa lagoa, foi<br />

concausa para o resultado morte, que já se desenvolvia naturalmente.<br />

Esta visão, de modo geral, coincide com a de Pietro Nuvolone,<br />

para quem não procede a aparência enigmática do problema<br />

da causalidade omissiva:<br />

Isso significa que a materialidade do fato consiste em<br />

não ter interrompido uma sucessão causal já in itinere,<br />

colocando em ação outra sucessão causal capaz de<br />

interromper a primeira. 38<br />

Seguindo-se tal corrente, sob a idéia motriz de uma sucessão<br />

permanente dos fatos, seria ação a omissão, porque aquela precederia<br />

esta, tanto quanto omissão a ação, porque contrária à ordem<br />

natural das coisas.<br />

Como distinguir, assim, num campo de pura especulação,<br />

ação e omissão? Impossível. Tal só se resolveria no campo ético,<br />

de valores, no qual ação seria contrariar o movimento natural,<br />

enquanto omissão seria apoiá-lo. O movimento natural, contudo,<br />

só importaria ao Direito Penal, enquanto bom, enquanto justo. Terse-ia<br />

a relevância causal resolvida meramente no campo ético, e,<br />

depois, do Direito. Daí que a relevância jurídica, tanto da ação<br />

como da omissão, reside no campo da antijuridicidade, acentuando-se<br />

tal característica na omissão (porque, quanto a esta, só<br />

alguma é considerada, e só o é se antijurídica). Por isso a afirmação<br />

de Andreucci e Pitombo, de que “as hipóteses em que se instaura<br />

o dever de agir melhor se ajustam à antijuridicidade que ao<br />

tipo” (referência nº 30).<br />

Tal posicionamento, vê-se, resumir-se-ia na aceitação da causalidade<br />

omissiva (como relevância no mundo dos fatos) condicionada<br />

à sua antijuridicidade (pertinente à condição de garante), o<br />

que foi, em termos gerais, o posicionamento do legislador de<br />

1984.<br />

29 NETTO, Alcides Munhoz,<br />

op. cit., p. 49.<br />

impulso<br />

113


Com tão pouco de tipicidade, e tanto de antijuridicidade,<br />

fácil de concluir que se ameniza a questão de ofensa ao Princípio<br />

da Reserva Legal.<br />

TEORIA NORMATIVA – Sustenta-se, entretanto e ainda,<br />

uma opção meramente normativa, para fundamentar a conduta<br />

omissiva. Aí se inseriria o pensamento de Max Ernst Mayer, no<br />

sentido de que o descarrilhamento de um trem pode dever-se tanto<br />

à conduta omissiva de um guarda-vias desatento, como à comissiva<br />

do que empreende manobra errada. Para tal escritor, a conduta<br />

omissiva é causação em sentido filosófico. 39<br />

Do mesmo modo Guex, para quem<br />

También los hechos negativos son condiciones. Nosotros<br />

decimos que la causa del incendio por el rayo es la<br />

falta de pararrayos, y la causa de la derrota de Waterloo<br />

ha sido la ausencia de Grouchy. 40<br />

A todos assistiria a “teoria da ação esperada”, de Mezger:<br />

La pregunda decisiva se formula así: Hubiera sido impedido<br />

por la acción ‘esperada’ el resultado que el derecho<br />

desaprueba? Cuando esta pregunta se responde afirmativamente,<br />

la omissión es causal en orden al resultado. 41<br />

Nessa linha, coube a Grispigni, para o esclarecimento do art.<br />

40 do Código Penal italiano, a melhor formulação normativa:<br />

en el párrafo primero – dice – se trata de enunciar en<br />

general la causalidad; y en el segundo se afirma en<br />

punto de vista normativo, que es el único que permite<br />

concebir causalmente da comisión por omisión. 42<br />

30 LUNA, Everardo da Cunha.<br />

O Crime de omissão e a responsabilidade<br />

penal por omissão.<br />

Em: LEGIS, Vox. Ano XV, v.<br />

173, p. 07-08, mai. 1983.<br />

31 JESUS, Damásio E. de.<br />

Direito Penal, Parte Geral. 15ª.<br />

ed. São Paulo: Saraiva, p. 222,<br />

nota 18.<br />

A afirmação supra, para nossas terras transpostas, encontra<br />

perfeito eco na crítica ao dispositivo equivalente de nosso Código.<br />

Porque a omissão é causal, afirma-o o ‘caput’ do art. 13, no sentido<br />

mesmo que estabelece o nexo: não houvesse a omissão, não<br />

se daria o resultado. Mas nem toda omissão é penalmente relevante,<br />

porque só se é punido, por não evitar o que se tem o dever<br />

de evitar, nas hipóteses normativamente alcançadas, que se resolvem<br />

no terreno da antijuridicidade.<br />

114 impulso


A teoria nenhuma unem-se, pois e ao final, ambas as teorias,<br />

em fórmula híbrida, sendo de se aceitar que a omissão é causal,<br />

mas tal não basta para que seja relevante, precisando ser antijurídica.<br />

Daí que a enumeração expressa das hipóteses de dever jurídico<br />

se faz necessária.<br />

O campo de abrangência dos crimes comissivos impróprios<br />

a) SUA GENERALIDADE – Ousamos afirmar, de pronto,<br />

que praticamente todos os delitos comissivos podem vir a ser<br />

cometidos por omissão, daí a dificuldade criada pela ausência da<br />

previsão específica da punibilidade em cada tipo penal. Como<br />

acentua Zaffaroni, até mesmo um estupro, ou um furto, podem ser<br />

cometidos por omissão, figurando-se o primeiro no caso do<br />

médico encarregado da guarda de um manicômio que, enquanto<br />

toma banho de sol, deixa que uma paciente pratique com ele o<br />

coito, sem fazer qualquer movimento; o segundo no caso do<br />

encarregado de vigiar a correia transportadora de jóias de uma<br />

fábrica, que deixa o seu trabalho, levando conscientemente jóia<br />

por acidente caída e enroscada em suas calças. 43<br />

b) CRIMES COMISSIVOS IMPRÓPRIOS CULPOSOS –<br />

Apesar da oposição de notáveis cultores da ciência jurídico-penal,<br />

entendemos que o crime comissivo impróprio possa ser atribuído<br />

ao agente a título também de culpa.<br />

Conforme Heleno Cláudio Fragoso, tanto comete crime<br />

comissivo por omissão o garantidor, que se abstém de evitar o<br />

resultado, por desejar a sua superveniência, quanto o que, embora<br />

não a querendo, aquiesce em seu advento, ou o que simplesmente<br />

omite deveres de cuidado, conhecendo ou podendo conhecer o<br />

resultado que lhe cumpria evitar. 44 Ora, a este o crime será imputado<br />

por culpa.<br />

É que, como assinala H. H. Jescheck, sempre que o correspondente<br />

tipo de comissão admita a forma culposa, os delitos de<br />

omissão imprópria podem ser cometidos com culpa. Trata-se,<br />

como nos crimes comissivos, da inobservância do dever de cuidado.<br />

45<br />

Como resume Delmanto, configurando-se a obrigação de<br />

agir com a possibilidade de agir, “se não agir para evitar o resultado,<br />

poderá ser responsável por este, a título de dolo ou de<br />

culpa”. 46 E o reitera Jescheck:<br />

32 Cf. trabalhos apresentados ao<br />

Colóquio Nacional Preparatório<br />

do 12º. Congresso Internacional<br />

de Direito Penal (In: Revista de<br />

Direito Penal, nº. 33).<br />

33 ANDREUCCI, Ricardo A.,<br />

PITOMBO, Sérgio Marques de<br />

Moraes. Notas ao quadro comparativo<br />

da Lei nº. 7209/1984 e<br />

parte geral do Código Penal.<br />

Apamagis, Nota 7, 1985.<br />

34 ASÚA, Luis Jiménez de, op.<br />

cit., n. 1153.<br />

impulso<br />

115


Los delitos de omisión impropria no regulados en la ley<br />

pueden cometerse por imprudencia siempre que el correspondiente<br />

tipo de comisión considere suficiente la<br />

culpa. 47<br />

Merece verificação, a respeito, a abrangente visão de Nuvolune:<br />

(...) a obrigação de não omitir todas as cautelas necessárias<br />

para evitar que se verifique uma situação perigosa,<br />

da qual surja um evento lesivo, está implícita em<br />

todas as normas sobre culpa (a esse propósito, como se<br />

verá, convém esclarecer que, em muitos casos, os crimes<br />

culposos são crimes cometidos mediante omissão). 48<br />

Ao analisar casos colhidos no Direito positivado, Asúa menciona<br />

um da jurisprudência argentina, de crime comissivo por<br />

omissão culposo, julgado em 1941, no qual um rapaz caíra num<br />

poço de cal, morrendo em conseqüência de queimaduras, e o réu<br />

(o construtor) teria omitido as cautelas indispensáveis:<br />

El hecho debe calificarse de homicidio omisivo por<br />

negligencia, categoria de delito que, al decir de Binding,<br />

‘ha merecido el honor de ser, en la escala de los<br />

delitos, el más pequeño entre los pequenos. 49<br />

c) CRIMES COMISSIVOS IMPRÓPRIOS TENTADOS –<br />

Dúvida não há quanto à figuração da tentativa em tais delitos. Discorre<br />

a respeito, com a normal clareza, Munhoz Netto:<br />

35 FRANCO, Alberto Silva. Código<br />

Penal e sua interpretação<br />

jurisprudencial 4ª ed. São Paulo:<br />

Revista dos Tribunais, p. 74.<br />

Delitos de resultado, os omissivos impróprios sempre<br />

comportam a tentativa. Neles o fazer não importa<br />

necessariamente em consumação. Entre a omissão e o<br />

summatum opus pode surgir circunstância imprevista<br />

que impeça o advento do resultado (ex.: a inesperada<br />

atuação de terceiro impede a morte do filho, não aleitado<br />

pela mãe).<br />

O limite mínimo da tentativa punível não pode, entretanto,<br />

ser fixado pelo começo da execução a que alude<br />

o CP (art. 12, II). No comportamento omissivo não há<br />

nada comparável ao início da comissão ativa. Deve-se<br />

116 impulso


ecorrer, portanto, ao critério da exposição do bem<br />

tutelado a perigo. A tentativa começa no momento em<br />

que a demora da ação salvadora faz surgir ou aumenta<br />

o perigo imediato. 50<br />

d) A PARTICIPAÇÃO POR OMISSÃO – Aqui, deve-se distinguir:<br />

trata-se da participação por omissão em crime comissivo.<br />

A participação é que é omissiva, caracterizando responsabilidade<br />

penal à guiza de crime omissivo impróprio. Da mesma forma é<br />

possível participação omissiva no próprio crime comissivo impróprio.<br />

A respeito, ensina Everardo da Cunha Luna:<br />

É admissível a participação por omissão em crime de<br />

ação ou de omissão. Assim, o vigia de uma casa que,<br />

na ausência dos moradores, assiste, impassível, à<br />

entrada de estranhos na casa, sem o consentimento ou<br />

contra a vontade de quem de direito, participa, por<br />

omissão, da violação de domicílio. Assim também o pai<br />

de uma criança que, impassível, assiste à esposa<br />

matando por inanição o filho comum, participa, por<br />

omissão, do homocídio. 51<br />

A QUESTÃO DA POSSIBILIDADE DE AGIR<br />

Não se caracterizará o delito comissivo por omissão, se não<br />

tiver o sujeito ativo a possibilidade de agir. Isto significa a possibilidade<br />

material, física, no terreno da possibilidade fática, daí resultando<br />

que, se tentando evitar o resultado, não se o consegue,<br />

dando-se o evento lesivo, não se poderá imputar ao agente a responsabilidade<br />

penal, porque não podia o que não pode. Desde que,<br />

é claro, sejam lançadas mãos das possibilidades existentes e conscientizadas.<br />

Porém, significa mais: significa que só há possibilidade de<br />

agir se não houver risco pessoal para o agente. Trata-se, é claro, do<br />

risco ponderável, capaz de expô-lo a lesão tão ou mais grave que<br />

aquela a que já está exposto o bem jurídico em perigo. O Direito<br />

Penal não pode exigir o sacrifício pessoal, contrário à natureza<br />

humana, adstrita ao instinto da sobrevivência.<br />

Neste passo, não nos convence o sempre convincente Mirabete:<br />

36 TOLEDO, Francisco de Assis.<br />

Princípios básicos de Direito<br />

Penal. 4ª ed. São Paulo:<br />

Saraiva, p. 116.<br />

impulso<br />

117


Pode ocorrer que haja risco para aquele que se omite,<br />

indagando-se assim se deve ser responsabilizado pelo<br />

delito caracterizado pela omissão, ou seja, se é responsável<br />

pelo resultado quando se omitiu pelo perigo existente<br />

para um bem jurídico próprio ou alheio que lhe<br />

causaria a ação exigida para evitar o evento. É preciso<br />

verificar se a ação era juridicamente exigida ao omitente.<br />

Embora preveja a lei que o dever de agir só<br />

existe quando o sujeito pode agir, deve ele arrostar o<br />

perigo desde que no caso haja a probabilidade de evitar<br />

o resultado. A conclusão se impõe pelo sistema do<br />

Código. Basta observar que, ao tratar do estado de<br />

necessidade, a lei nega a justificativa àquele que tem o<br />

dever legal de enfrentar o perigo (art. 24, §1º). Se se<br />

adotasse a solução oposta, chegar-se-ia à conclusão de<br />

que a lei contém uma contradição: de um lado permitiria<br />

a justificação pela existência de risco para o omitente<br />

(art. 13, §2º) e de outro excluiria a justificativa do<br />

fato quando houvesse perigo para quem tem o dever de<br />

enfrentá-lo (art. 24, §1º). 52<br />

Ora, não se justificaria, por um lado, que se sacrificasse<br />

direito de qualquer terceiro que, nada tendo com o fato, acabaria<br />

sendo o único lesado, por outro, a ninguém e em nenhuma circunstância<br />

pode o Direito Penal exigir a emulação.<br />

Poucos discorrem a respeito, no Brasil. Delmanto, entretanto,<br />

afirma que “tanto a consciência da obrigação de agir como a possibilidade<br />

real de fazê-lo, sem risco pessoal, devem estar presentes”. 53<br />

Francisco de Assis Toledo contrariamente afirma que “não basta,<br />

pois, o dever de agir. É preciso que, além do dever tivesse a possibilidade<br />

física de agir, ainda que com risco para sua pessoa”. 54<br />

37 ASÚA, Luis Jiménes de, op.<br />

cit., n. 1150.<br />

A situação de fato de que se origina o dever de agir é o<br />

estado de perigo iminente e evitável em que se encontra<br />

o bem jurídico, cuja incolumidade deve ser garantida<br />

pelo autor. 55<br />

Ora, só é evitável o que não implique dano apreciável no<br />

agente, porque não evitar resultado, causando outro tão mais<br />

lesivo, é pior que evitá-lo.<br />

118 impulso


Ainda que seja por evocação de uma causa supra legal de<br />

exclusão da antijuridicidade, não se poderia configurar relevância<br />

omissiva ao agente que esteja obstado de impedir o resultado pelo<br />

grave risco a que fica submetido. (Assim, quem lança alguém em<br />

piscina de águas profundas, sem saber que o ofendido não sabe<br />

nadar está, evidentemente, obrigado a evitar o resultado, se sabe<br />

nadar ele próprio. Se não o sabe, não estará obrigado. Responderá<br />

por homicídio doloso, se não socorrer a vítima, no primeiro caso;<br />

e por culposo no segundo, bastando-se a análise na da sua conduta<br />

comissiva.) É-lhe inexigível conduta diversa.<br />

As incertezas, oriundas da falta de previsão legal a respeito,<br />

estão a reclamar igualmente a prefixação na lei do verdadeiro significado<br />

da expressão: poder evitar o resultado.<br />

38 ASÚA, Luis Jiménes de, op.<br />

cit., p. 198.<br />

CONCLUSÃO<br />

A natureza dos crimes comissivos por omissão, no que tange à<br />

relevância causal, é precipuamente normativa, decorrendo do caráter<br />

de antijuridicidade, da abstenção de atuar, a sua punibilidade.<br />

Assim sendo, é necessário, como o faz o Código atual, que se<br />

determine a sua relevância, ocorrível quando houver o poder e o<br />

dever jurídico de evitar o resultado, sendo que o dever é de três<br />

espécies básicas: o legal; o contratual ou de ‘garante’; o decorrente<br />

da criação da situação de risco.<br />

Mais que isto, entretanto, seria necessário especificar, nos<br />

diversos tipos penais, expressamente, a possibilidade da configuração<br />

omissiva, assim atendendo aos pressupostos do Princípio da<br />

Reserva Legal e ao mesmo tempo imprimindo maior segurança<br />

normativa.<br />

O elemento subjetivo dos crimes omissivos impróprios é o<br />

mesmo dos comissivos: o dolo e a culpa, esta quando prevista no<br />

tipo penal respectivo.<br />

É admissível a tentativa de crime comissivo por omissão,<br />

devendo-se atentar, entretanto, que o início da execução, no sentido<br />

normativo, do delito, dá-se quando o bem jurídico passe à<br />

exposição ao risco pela demora na ação obstadora.<br />

Pode ocorrer participação em crime comissivo por omissão.<br />

É o caso referido do marido que não impede a mulher de não aleitar<br />

o filho comum. Tal não se confunde com a chamada participação<br />

por omissão em crime comissivo próprio, como no caso de<br />

empregada que deixa a porta aberta para a entrada do gatuno.<br />

impulso<br />

119


39 ASÚA, Luis Jiménez de, op.<br />

cit., p. 592.<br />

40 ASÚA, Luis Jiménez de, op.<br />

cit., p. 593.<br />

41 ASÚA, Luis Jiménez de, op.<br />

cit., p. 596.<br />

42 ASÚA, Luis Jiménez de, op.<br />

cit., p. 599.<br />

Só o dever jurídico não basta para a responsabilidade penal<br />

por omissão: é preciso que o agente tenha o domínio fático de<br />

impedir o resultado. Isto significa não só que tenha meios físicos<br />

como também que a atitude salvadora não implique um sacrifício<br />

que se configuraria excludente, ainda que da inexigibilidade da conduta<br />

diversa.<br />

É indubitável a necessidade de que conste do texto legal, ao<br />

menos, a previsão da relevância omissiva, sem o que se operaria<br />

em clara infringência ao Princípio da Legalidade, daí porque correto<br />

o posicionamento adotado no Projeto Alcântara Machado, e<br />

equivocado o do legislador de 1940 em excluí-lo.<br />

Mais que isto, ainda, há de se adotar (como feito em 1984) a<br />

enumeração hipotética dos deveres de agir, bem como, um passo<br />

adiante, a previsão, no próprio tipo penal, da possibilidade omissiva.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ANDREUCCI, Ricardo Antunes et al. Notas ao quadro comparativo<br />

da Lei nº. 7209/1984 e Parte Geral do Código Penal. Apamagis,<br />

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ARAÚJO, Laurentino da Silva, FAVEIRO, Vítor António Duarte.<br />

Código Penal português anotado. 4ª ed. Coimbra: Coimbra<br />

Ltda., 1966.<br />

ASÚA, Luis Jiménez de. Tractado de Derecho Penal. Buenos<br />

Aires: Losada, Tomo III, 1951.<br />

BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral. 3ª ed. São Paulo:<br />

Forense, Tomo I, 1967.<br />

COSTA, Paulo José da. Direito Penal Objetivo. São Paulo: Forense<br />

Universitária, 1989.<br />

CREUS, Carlos. Derecho Penal, Parte General. 3ª ed. Astrea.<br />

DELMANTO, Celso. Código Penal comentado. São Paulo:<br />

Saraiva, 1976.<br />

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal. V. I,<br />

t. 2.<br />

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, Parte Geral.<br />

4ª ed. São Paulo: Forense.<br />

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jurisprudencial. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais.<br />

GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 5ª ed. Max Limonad,<br />

v. 1, t. 1.<br />

120 impulso


HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 2ª ed. São<br />

Paulo: Forense, v. I, t. 2, 1953.<br />

JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal, Parte<br />

General. Barcelona: Bosch, 1981.<br />

JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, Parte Geral. 15ª ed. São<br />

Paulo: Saraiva, 1991.<br />

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penal por omissão. Voxlegis, ano 15, v. 173, mai. 1983.<br />

MACHADO, Alcântara. O projeto do código criminal perante a<br />

crítica. Revista da Faculdade de Direito, v. 35, fasc. 1, jan./abr.<br />

1939.<br />

MARQUES, José Frederico. Curso de Direito Penal. São Paulo:<br />

Saraiva, 1954, v. 1.<br />

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, Parte<br />

Geral. 7ª ed. São Paulo: Atlas.<br />

MUNHOZ, Alcides Netto. Os crimes omissivos no Brasil. Ajuris,<br />

Porto Alegre, n. 29, ano 10, nov. 1983.<br />

NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 17ª ed. São Paulo:<br />

Saraiva, v. 1.<br />

NUÑEZ, Ricardo C. Manual de Derecho Penal, Parte General. 3ª<br />

ed. Córdoba: Marcos Lerner.<br />

NUVOLONE, Pietro. O sistema do Direito Penal. São Paulo:<br />

Revista dos Tribunais, v. 1, 1981.<br />

PITOMBO, Sérgio Marques de Moraes. Notas ao Quadro Comparativo<br />

da Lei nº. 7209/1984 e Parte Geral do Código Penal.<br />

Apamagis, 1985.<br />

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal.<br />

4ª. ed. São Paulo: Saraiva.<br />

WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. 3ª ed. Santiago: Editorial<br />

Jurídica de Chile.<br />

ZAFFARONI, Eugênio Raul. Trabalho apresentado ao Colóquio<br />

de Direito Penal. Rio de janeiro, 20 a 23/10/82.<br />

Também:<br />

The Criminal Code of the Republic of China. Shangai: Kelly &<br />

Walsh Ltd., 1936.<br />

Código Penal Tipo para Latinoamérica. México: Academia Mexicana<br />

de Ciencias Penales, 1967. (2ª Reunião Plenária)<br />

Exposição de Motivos. n. 1, do CP de 1969, D.O.U. de 21/10/69.<br />

43 ZAFFARONI, Eugênio Raul.<br />

Trabalho apresentado ao Colóquio<br />

de Direito Penal. Rio de<br />

janeiro, 20 a 23/10/82.<br />

44 FRAGOSO, Heleno Cláudio.<br />

Lições de Direito Penal, Parte<br />

Geral. 4ª ed. São Paulo: Forense,<br />

p. 225.<br />

45 JESCHECK, Hans Heinrich.<br />

Tratado de Derecho Penal, Parte<br />

General. Barcelona: Bosch,<br />

1981.<br />

46 DELMANTO, Celso. Código<br />

Penal comentado. São Paulo:<br />

Saraiva, p. 20.<br />

impulso<br />

121


47 JESCHECK, Hans Heinrich,<br />

op. cit., p. 868.<br />

48 JESCHECK, Hans Heinrich,<br />

op. cit., p. 199.<br />

49 ASÚA, Luis Jiménez de, op.<br />

cit., p. 600.<br />

122 impulso


50 NETTO, Alcides Munhoz,<br />

op. cit., p. 58.<br />

51 LUNA, Everardo da Cunha,<br />

op. cit., p. 10.<br />

impulso<br />

123


52 MIRABETE, Julio Fabbrini.<br />

Manual de Direito Penal, Parte<br />

Geral. 7ª ed. São Paulo: Atlas,<br />

p. 104.<br />

53 DELMANTO, Celso, op.<br />

cit., p. 118.<br />

54 DELMANTO, Celso, op.<br />

cit., p. 118.<br />

55 DELMANTO, Celso, op. cit.<br />

124 impulso


LIMITAÇÕES AO PODER<br />

PUNITIVO DO ESTADO<br />

EDSON JOSÉ MENEGHETTI<br />

O homem, em sua história social, sempre demonstrou preocupação<br />

no sentido de conseguir um equilíbrio em suas interrelações<br />

que lhe propiciasse uma paz social duradoura, adequada e<br />

justa. Nessa linha de raciocínio percebe-se um esforço constante<br />

no sentido de se adequar o poder punitivo do Estado, de forma tal<br />

que se possa preservar os valores sociais, sem colocar em risco os<br />

direitos individuais de cada um. Modernamente, o princípio da<br />

culpabilidade, em que pesem os entraves que se apresentam, vem<br />

provocando uma evolução sensível na forma de tratamento dos<br />

fatos afetos ao Direito Penal.<br />

Apesar da dificuldade natural em se fixar um momento preciso<br />

a partir do qual essa idéia se materializou, o certo é que a<br />

Revolução Francesa se constituiu no marco mais evidente do<br />

momento histórico em que o poder do Estado passou a sofrer, por<br />

parte da sociedade, controle e limitação, ao menos em termos teóricos.<br />

A partir dessa época, o Direito Penal passa a ser considerado<br />

instrumento de defesa dos valores fundamentais da sociedade, que<br />

só deve ser empregado contra ataques de real gravidade contra tais<br />

valores, porém, de uma forma controlada e limitada. A evolução<br />

histórica do Direito Penal, passando pelos períodos clássico, positivista,<br />

finalista e chegando até o Direito Penal como Ciência<br />

Social, demonstrou que esse ramo do Direito vem deixando de ser<br />

o aguilhão nas mãos dos poderosos para transformar-se em garantia<br />

das liberdades humanas.<br />

impulso<br />

123


Tal evolução evidentemente não se processa por águas calmas,<br />

sendo que tal estado de coisas sofreu profundas alterações<br />

em Estados, onde foram impostos regimes totalitários, o que acabou<br />

demonstrando o acerto dessa busca de um controle efetivo e<br />

equilibrado do poder de punir do Estado, que tenha em vista o respeito<br />

à dignidade humana, inserto em um verdadeiro ideal de Justiça.<br />

Para tanto tem-se, como princípios limitadores do poder de<br />

punir do Estado, princípios fundamentais, como o princípio de<br />

intervenção mínima, princípio da legalidade ou da reserva legal e<br />

o princípio da culpabilidade, entre outros.<br />

1 HASSEMER, Winfried. ¿Alternativas<br />

al principio de culpabilidad?<br />

Cuadernos de política<br />

criminal, Madrid, n. 18, 2ª p. do<br />

Artigo Editoriales de Derecho<br />

Reunidas, 1982.<br />

2 CAMARGO, Antonio Luís<br />

Chaves. Culpabilidade e reprovação<br />

penal. São Paulo: Sugestões<br />

Literárias, 1994, p. 20.<br />

PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE<br />

O Estado, para se desincumbir do exercício de seu poder de<br />

punir, sempre buscou formas de interferir em relação ao seu componente<br />

humano. Uma dessas formas foi a adoção do princípio da<br />

culpabilidade. É certo que esse princípio permaneceu por muito<br />

tempo sem ser questionado, entretanto, na atualidade, os estudiosos<br />

do Direito Penal têm voltado seus olhos para esse aspecto relevante<br />

desse ramo do Direito. A tendência atual de tratar o Direito<br />

Penal como Ciência Social muito tem colaborado para o desenvolvimento<br />

do princípio da culpabilidade, observando-se em certos<br />

aspectos uma forma de desgaste desse princípio, inclusive por<br />

parte do próprio legislador que, para levar a efeito uma adequada<br />

política criminal, acaba encontrando obstáculos nesse princípio,<br />

buscando contorná-lo, ou até mesmo afastá-lo em parte.<br />

Na Alemanha tem-se outras alternativas para se buscar<br />

soluções para a situação atual, tendo-se em vista a permanência do<br />

sistema do duplo binário, havendo até a possibilidade de que se<br />

aplique, por primeiro, a medida de segurança e, em seguida, a<br />

pena, havendo casos, inclusive, em que é possível ocorrer a total<br />

substituição da pena pela medida de segurança. 1 Ressalte-se, por<br />

oportuno, que o próprio sistema do duplo binário sofre restrições<br />

hodiernamente.<br />

Graças à evolução que tem ocorrido com relação à discussão<br />

sobre os fundamentos da pena, se tem percebido que o princípio da<br />

culpabilidade não se constitui como o único desses fundamentos.<br />

Inclusive, há uma atenuação importante quanto ao poder individual<br />

para atuar de outro modo 2 do agente.<br />

Entretanto, pelo menos em termos atuais, o princípio da<br />

culpabilidade vem apresentando importância crescente. Assim<br />

sendo, não se tem como manter a possibilidade de se ter a imputação<br />

124 impulso


subjetiva, sem que se baseie no princípio da culpabilidade, ou seja,<br />

na possibilidade de se manter o vínculo subjetivo entre o agente e<br />

o ato injusto por ele praticado. Como se poderia manter essa ligação<br />

entre o agente e o fato criminoso sem esse princípio?<br />

Aponta-se, como outra alternativa ao princípio da culpabilidade,<br />

admitir-se a responsabilidade pelo resultado, ou seja, atribuir-se<br />

o fato ao agente pela sorte, ou, digamos assim, pelo azar.<br />

Aqui fica claro o aspecto de responsabilidade objetiva, aspecto<br />

esse, de início, incompatível com o Estado Democrático de Direito<br />

e que vem sendo combatido no Brasil há muito tempo e, por isso,<br />

nem deve ser estudado, a não ser para se demarcar com precisão<br />

os limites entre o caso fortuito e a culpa em sentido estrito decorrente<br />

da imprudência.<br />

Outro aspecto importante do princípio da culpabilidade apresenta-se<br />

na forma ou na possibilidade de se valorar os graus de responsabilidade,<br />

diferenciando-os. Hassemer denomina essas diferenças<br />

como graus de participação interna no sucesso externo. 3<br />

Aqui vamos encontrar uma escala de comportamentos internos e<br />

subjetivos, que vai desde a culpa inconsciente até o cometimento<br />

intencional de uma crime. Cogita-se, nesse passo, de todo o<br />

aspecto subjetivo do crime, ou seja da culpa inconsciente, passando<br />

pela culpa consciente, chegando-se até o dolo.<br />

É de se notar, ainda, que o princípio da culpabilidade propicia<br />

a concretização do princípio da proporcionalidade da pena, do<br />

princípio de proibição de excessos na atribuição da pena e do princípio<br />

de limites de sacrifício. Como diz Hassemer, a intensidade<br />

da participação interna é um critério plausível e decisivo para a<br />

medição de conseqüências jurído-penais proporcionadas. 4<br />

O princípio da culpabilidade, é verdade, sofreu e vem<br />

sofrendo um desgaste que se constitui num verdadeiro burilamento<br />

desse princípio, fazendo com que se afastem os excessos,<br />

para que se tenha a permanência de sua essência, no sentido de<br />

que o Direito Penal realmente, sem perder suas características<br />

essenciais, possa transformar-se numa Ciência Social, que preserve<br />

as garantias individuais segundo os princípios basilares de um<br />

Estado Democrático de Direito, o qual não pode ir além de uma<br />

intervenção mínima na vida de seus cidadãos para garantir-lhes os<br />

bens jurídicos.<br />

3 HASSEMER, Winfried. Fundamentos<br />

del Derecho Penal.<br />

Trad. Muñoz Conde y Luis Arroyo<br />

Zapatero. Barcelona: Boch,<br />

1984, p. 279.<br />

4 HASSEMER, Winfried. ¿Alternativas<br />

al principio de culpabilidad?<br />

op. cit., p. 6.<br />

impulso<br />

125


INTERVENÇÃO MÍNIMA<br />

O Estado deve ter seu jus puniendi delimitado e regulado<br />

também pelo princípio da intervenção mínima. Ou seja, o Direito<br />

Penal só deve intervir nos casos de ataques graves aos bens jurídicos<br />

mais importantes. É de se pensar, por isso, no crime tentado,<br />

se deve e como deve ser punido.<br />

Por outro lado, é de se avaliar se o homicídio culposo deve<br />

ou não ser tratado à luz do Direito Penal, uma vez que o bem jurídico<br />

atingido é de importância indiscutível, entretanto, o ataque<br />

em si considerado pode não ser tido como grave. Não se pode perder<br />

de vista também o princípio da culpabilidade, uma vez que a<br />

morte provocada culposamente pode resultar de uma conduta que<br />

só poderia provocar, quando muito, ferimentos leves e, portanto,<br />

jamais a morte.<br />

Nesse contexto, deixando-se de lado o resultado causado e<br />

levando-se em conta a culpabilidade do agente, pode-se chegar a<br />

um tratamento adequado da situação daquele, de modo a, respeitando<br />

sua dignidade humana, dar-lhe um tratamento consentâneo<br />

com os princípios do Estado Democrático de Direito. É provável<br />

que no futuro tais fatos até mesmo saiam da esfera de aplicação do<br />

Direito Penal e sejam tratados exclusivamente à luz do Direito<br />

Civil. Fica claro que as perturbações leves da ordem jurídica são<br />

objeto de outros ramos do Direito, ou deveriam sê-lo; assim, as<br />

contravenções penais, o crime de adultério, ou mesmo os crimes<br />

contra a honra, ainda que somente os praticados contra particulares.<br />

Nesse aspecto, em se tratando da criminalidade de bagatela,<br />

se pode incluir as ações típicas informadas pela culpabilidade<br />

escassa, ou aquelas onde ocorre a reprovabilidade relativa; também<br />

nos casos em que ocorre a reparação do dano causado. Este<br />

aspecto é que demonstra o caráter subsidiário do Direito Penal<br />

com relação aos outros ramos do Direito. O dano de grande<br />

monta, porém, culposo, dá uma idéia da presente colocação, por<br />

não se constituir ilícito penal.<br />

É de se notar que a subsidiariedade do Direito Penal é também<br />

conhecida como acessoriedade ou secundariedade do Direito<br />

Penal e se constitui em uma conseqüência da aceitação do princípio<br />

da intervenção mínima.<br />

O ordenamento jurídico tem por função a proteção aos bens<br />

jurídicos, cabendo ao Direito Penal uma parte dessa proteção que,<br />

entretanto, deve ser a última; quando todas as demais falharem.<br />

Daí se afirmar o caráter subsidiário do Direito Penal. Esse caráter<br />

do Direito Penal assume vital importância, na medida em que se<br />

propicia a possibilidade dos conflitos de interesses passarem por<br />

126 impulso


vários crivos, antes de chegarem à área de incidência da norma<br />

penal. Somente quando falharem todas as normas de outra natureza,<br />

ou quando faltarem tais normas, é que se poderá buscar o<br />

Direito Penal para solucionar o problema apresentado.<br />

Conforme afirmativa de Beling, o Direito Penal é um ramo<br />

do Direito que se constrói sobre os demais, que se refere a estes e<br />

que somente em relação com estes pode funcionar. 5<br />

Na doutrina italiana, Grispigni afirma que a particularidade,<br />

que caracteriza o Direito Penal no conjunto do ordenamento jurídico<br />

e que determina suas relações com os diversos ramos desse<br />

ordenamento, é o caráter ulteriormente sancionatório que apresenta,<br />

e que deriva do fato de que sua função específica consiste<br />

em reforçar, com sua sanção própria, os preceitos e as sanções dos<br />

outros ramos do Direito. 6<br />

A razão disso encontra-se no fato de que o delito, além de ser<br />

proibido pelo preceito penal, também o é por outra norma não<br />

penal e, de regra, antes mesmo de ser proibido pelo próprio<br />

Direito Penal. Por isso, todas as vezes que a tutela de um bem<br />

pode ser assegurada por meio de uma sanção mais branda em relação<br />

a outra mais grave, deve-se preferir a mais branda, somente se<br />

devendo recorrer à mais grave quando a outra mostrar-se insuficiente.<br />

Por que se processar alguém pela prática de direção perigosa<br />

de veículo, por ter excedido a velocidade com seu conduzido, se a<br />

multa de trânsito resolve o problema?<br />

Carrara afirma ser autônomo o Direito Penal e critica a posição<br />

de Rousseau, quando este afirma que o Direito Penal não é<br />

uma lei autônoma por si mesma, senão a sanção das outras leis.<br />

Com esse entendimento, afirmava o autor italiano, se reduz a<br />

tarefa do Direito Penal ao mero castigo, sem que se tenha em<br />

conta a proibição que é, contudo, parte dele integrante. 7<br />

Fica claro que as duas posições apresentam acertos e erros.<br />

Posição interessante é de Maurach, o qual afirma que, diante<br />

dos demais ramos do Direito, o Direito Penal é independente em<br />

seus efeitos e relativamente dependente em seus pressupostos. 8<br />

De acordo com esse entendimento, os efeitos característicos<br />

ou privativos do Direito Penal são a pena e a medida de segurança.<br />

O uso delas se destina ou deveria se destinar exclusivamente ao<br />

Direito Penal, mesmo nos casos em que possam coexistir com<br />

outras sanções civis ou administrativas. Entretanto, é certo que não<br />

se constata diferença substancial entre esses tipos de sanção.<br />

5 MUÑOZ CONDE, Francisco.<br />

Introducion al Derecho Penal.<br />

Barcelona: Boch, p. 61.<br />

6 MUÑOZ CONDE, Francisco,<br />

op. cit.<br />

7 MUÑOZ CONDE, Francisco,<br />

op. cit., p. 62.<br />

8 MUÑOZ CONDE, Francisco,<br />

op. cit., p. 63.<br />

impulso<br />

127


Por outro lado, é de se verificar que se constitui um perigo<br />

evidente a aplicação de penas administrativas de privação de<br />

liberdade. De lege ferenda seria interessante que se reservasse<br />

exclusivamente ao Direito Penal essa espécie de medida coativa.<br />

O fato de o Direito Penal não ser independente em seus pressupostos<br />

é que demonstra o ponto polêmico referente à subsidiariedade<br />

desse ramo do Direito.<br />

Existem crimes cuja criação é genuinamente penal, como os<br />

crimes contra a vida, contra a liberdade sexual. Por outro lado,<br />

existem crimes, cuja relação com outros ramos do Direito é muito<br />

íntima, a ponto de muitas vezes confundirem-se os delineamentos<br />

penais com os de outros ramos do Direito, como ocorre nos crimes<br />

contra o patrimônio, como a apropriação indébita, o furto e<br />

mesmo os crimes falimentares. Não se pode perder de vista o problema<br />

referente à norma penal em branco, onde, além de depender<br />

de outros ramos do Direito, o Direito Penal fica em íntima relação<br />

de dependência com órgãos administrativos, como ocorre, por<br />

exemplo, com os crimes relativos a entorpecentes, em que são os<br />

órgãos da saúde que determinam quais as substâncias que se irão<br />

constituir no objeto material de um crime tratado como hediondo.<br />

Outras conseqüências decorrem do princípio da intervenção<br />

mínima. A absoluta autonomia do Direito Penal não significa que<br />

suas medidas possam ser empregadas em qualquer quantidade e<br />

qualidade para proteger bens jurídicos, mas, pelo princípio da<br />

intervenção mínima se pretende que os bens jurídicos devem ser<br />

protegidos, não só pelo Direito Penal, como também em face do<br />

Direito Penal. Se medidas de natureza civil ou administrativa<br />

puderem resolver a situação, estas devem ser empregadas antes<br />

das de Direito Penal. Na seleção dos recursos utilizados pelo<br />

Estado, o Direito Penal deve representar a ultima ratio legis, sendo<br />

empregado somente quando se tornar imprescindível para a manutenção<br />

da ordem jurídica, quando não houver outra alternativa.<br />

Dessa forma o princípio da intervenção mínima se constitui<br />

num princípio limitador do poder punitivo do Estado, apresentando<br />

conseqüências não só de ordem quantitativa com também de<br />

ordem qualitativa.<br />

Quantitativamente esse princípio se refere ao número de condutas<br />

puníveis que devem ser criadas pelo legislador e a quantidade<br />

de pena que deve ser imposta ao infrator. Para isso deve<br />

haver um critério rígido, tendo-se em vista que nem todas as ações<br />

que atacam bens jurídicos são proibidas pelo Direito Penal, nem<br />

128 impulso


tampouco todos os bens jurídicos são protegidos por esse ramo do<br />

Direito. Isto porque somente se devem tratar pela ótica penal as<br />

ações mais graves contra os bens jurídicos mais importantes. Daí<br />

o caráter fragmentário do Direito Penal, que não deve ser aplicado<br />

a toda e qualquer lesão a bens jurídicos, mas só aos fragmentos<br />

mais importantes do universo desses bens jurídicos. Aqui também<br />

se deve considerar se o crime tentado deve ser punido e como deve<br />

ser punido.<br />

Qualitativamente tal princípio se refere à gravidade das penas<br />

impostas. A pena é um mal necessário. Portanto, quanto a este<br />

aspecto, o importante é que se deva preferir sempre a sanção mais<br />

leve à mais grave, se com este procedimento se consegue restabelecer<br />

a ordem jurídica perturbada pelo crime. Um exemplo de aplicação<br />

deste princípio é o da retroatividade da lei mais benigna.<br />

São decorrentes desse princípio o princípio da humanidade e<br />

o de proporcionalidade das penas.<br />

O princípio da humanidade interfere tanto no Direito Penal,<br />

como no Direito Processual Penal e na execução da pena,<br />

devendo-se a ele a abolição da tortura, das penas infamantes e da<br />

pena de morte, por exemplo.<br />

O princípio de proporcionalidade determina que a cada um<br />

se deve dar segundo seus merecimentos e que os desiguais devem<br />

ser tratados desigualmente, individualizando-se e adequando-se a<br />

sanção a cada indivíduo que infringiu a lei penal.<br />

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE<br />

O princípio da legalidade, hoje, se constitui numa garantia de<br />

liberdade dos cidadãos, chocando-se frontalmente com a suspeição.<br />

Ou seja, por ser meramente suspeito, ninguém pode sofrer<br />

cerceamento de liberdade, segundo aquele princípio.<br />

Por isso a gravidade dos meios que o Estado emprega na<br />

repressão dos delitos, a drástica intervenção nos direitos elementares<br />

e, assim, fundamentais da pessoa humana, e o caráter de<br />

ultima ratio que tal intervenção apresenta obrigam que se busque<br />

um princípio que controle o poder punitivo estatal e confine sua<br />

aplicação dentro de limites, de modo a excluir toda arbitrariedade<br />

e excesso por parte dos que ostentam ou exercem esse poder<br />

punitivo. Esse princípio conhecido como princípio da legalidade,<br />

ou princípio da reserva legal, estabelece que a intervenção punitiva<br />

do Estado, tanto ao configurar o delito como ao determinar a<br />

impulso<br />

129


aplicação e execução de suas conseqüências, deve estar regida<br />

pelo império da lei.<br />

Tem por escopo o princípio da legalidade, afastar ou evitar o<br />

exercício arbitrário e ilimitado do poder de punir do Estado.<br />

Embora seja considerado como um princípio do Direito Natural,<br />

ou mesmo uma decorrência da inviolabilidade da dignidade da<br />

pessoa humana, seu reconhecimento e desenvolvimento não foi<br />

automático e pacífico, ao contrário, sofreu reveses intoleráveis por<br />

parte do autoritarismo, tanto de direita como de esquerda. Esse<br />

princípio é incompatível com o pensamento de que os fins justificam<br />

os meios, quando se pretende adotar medidas radicais para<br />

acabar com a criminalidade, impondo-se sanções não previstas<br />

nem reguladas em lei em sentido estrito.<br />

O princípio da legalidade provoca para o Direito Penal uma<br />

série de conseqüências, que condicionam todo seu conteúdo e que<br />

o distinguem das demais disciplinas jurídicas, tanto no que tange<br />

às fontes como a sua interpretação e a sua elaboração científica.<br />

Esse princípio apareceu com o Estado de Direito, após longo processo<br />

de elaboração.<br />

Há quem vislumbre seu fulcro no Direito Romano. Entretanto,<br />

costuma-se identificar seus precedentes mais claros na<br />

Magna Carta de 1215 da Inglaterra e no Decreto de Alfonso IX do<br />

Reino de León de 1188. 9<br />

A origem do princípio da legalidade, entretanto, encontra-se<br />

no momento em que o povo deixa de ser instrumento e sujeito passivo<br />

do poder absoluto do Monarca e passa a controlar e participar<br />

desse poder, o que ocorreu com o advento da Revolução Francesa.<br />

O princípio da legalidade apresenta um claro fundamento<br />

político, o do Estado Liberal de Direito, e também fundamentos<br />

jurídicos.<br />

9 NORONHA, Edgard Magalhães.<br />

Direito Penal. 23ª ed. São<br />

Paulo: Saraiva, 1985, v. 1, p. 68;<br />

FRAGOSO, Heleno. Lições de<br />

Direito Penal – a nova parte geral.<br />

12ª ed. Rio de Jneiro: Forense,<br />

19<strong>90</strong>, p. <strong>90</strong>.<br />

ASPECTOS POLÍTICOS DO PRINCÍPIO<br />

DA LEGALIDADE<br />

Politicamente o princípio da legalidade é produto do espírito<br />

liberal, que criou o Estado Liberal de Direito. Tal Estado apresenta<br />

quatro características: o império da lei; a divisão dos poderes; a<br />

legalidade na atuação administrativa; e a garantia dos direitos e<br />

liberdades fundamentais.<br />

1. O império da lei supõe que o detentor do poder estatal não<br />

pode castigar as pessoas arbitrariamente e que seu poder punitivo<br />

está vinculado à lei.<br />

130 impulso


2. A divisão dos poderes garante o princípio da legalidade<br />

penal, repartindo o poder punitivo estatal entre o legislativo – que<br />

se encarrega de determinar os delitos e as penas através de um processo<br />

democrático em que participam os representantes do povo –<br />

e o judiciário – que se encarrega de sua aplicação no caso concreto.<br />

3. Diante do quadro exposto, chega-se à conclusão de que o<br />

poder executivo não tem, ou não deve ter, atuação importante na<br />

elaboração do Direito Penal, por isso o princípio da legalidade<br />

administrativa não afeta tanto o Direito Penal.<br />

4. Em resumo, tem-se que o objetivo fundamental do princípio<br />

da intervenção legalizada é o de garantir os direitos e liberdades<br />

fundamentais das pessoas. Fica evidenciado que a melhor<br />

maneira de protegê-los é concretizá-los e formulá-los em leis e<br />

sancionar com penas sua lesão ou violação.<br />

Na verdade, no Estado em que não vigora o império da lei ou<br />

em que o princípio da divisão dos poderes se constitui em mera<br />

aparência, o princípio da legalidade não passa de mera formalidade<br />

estéril.<br />

Evidentemente o quadro apresentado sofreu ataque frontal de<br />

governos autoritários, cuja vocação é a de não respeitar os direitos<br />

individuais, exacerbando o poder dos que dominam. Isso ocorreu,<br />

por exemplo, na União Soviética e na Alemanha Nazista.<br />

ASPECTOS JURÍDICOS DO PRINCÍPIO<br />

DA LEGALIDADE<br />

Juridicamente também se pode falar em fundamento do princípio<br />

da legalidade. A base jurídica desse princípio nasceu com<br />

Feuerbach na expressão latina nullum crimen, nulla poena sine<br />

lege. É de se verificar, entretanto, que tal princípio constitui-se<br />

numa conseqüência imediata da teoria da pena do citado autor,<br />

entendida como coação psicológica. Para essa teoria, era necessário<br />

que todos conhecessem os crimes e as penas previstas para<br />

quem os cometesse, de forma tal que a pena pudesse exercer uma<br />

coação psicológica, de modo a motivar as pessoas a não cometerem<br />

tais crimes; a rigor, ainda não tinha o escopo de limitar o<br />

poder de punir do Estado.<br />

O princípio da legalidade constitui-se em garantia jurídica<br />

dos cidadãos frente ao poder punitivo do Estado, controlando esse<br />

poder:<br />

a) como garantia criminal, qualificando como crime só o que,<br />

como tal, é previsto em lei;<br />

impulso<br />

131


) como garantia penal, impondo somente a pena fixada em<br />

lei para o crime cometido;<br />

c) como garantia jurisdicional, garantindo que não se poderá<br />

executar pena alguma senão em razão de sentença com trânsito em<br />

julgado; e<br />

d) como garantia de execução, impedindo que se permita a<br />

execução de outra forma que não a descrita em lei e regulamentos,<br />

nem com outras circunstâncias ou acidentes diversos dos expressos<br />

em seu texto.<br />

Conseqüências do princípio da legalidade<br />

A adoção do princípio da legalidade implica uma série de<br />

conseqüências para o Direito Penal. Desta forma se consegue<br />

resumir toda a problemática do delito e da pena ao trazer configurados<br />

estes conceitos pela lei penal, vinculando-se assim o julgador<br />

e o intérprete.<br />

As conseqüências aludidas aparecem principalmente na hora<br />

de se estudar as fontes do Direito Penal, em sua interpretação, na<br />

proibição da retroatividade e na tipificação das condutas proibidas.<br />

Inicialmente parece evidente que, da adoção do princípio da<br />

legalidade decorra o fato de que a única fonte do Direito Penal é a<br />

lei. Entretanto, tal princípio significa que a lei deve ser a fonte criadora<br />

dos delitos, das penas e de suas causas de agravação e das<br />

medidas de segurança. Nestas matérias fica evidente a exclusão da<br />

analogia e dos costumes. Todavia, fora dessa área cessa o<br />

monopólio da lei. Portanto, para atenuar ou excluir a punibilidade<br />

tal monopólio desaparece, admitindo-se a utilização da analogia e<br />

do costume com tal escopo, em determinados casos.<br />

Outra conseqüência do princípio da legalidade é a proibição<br />

da analogia em Direito Penal. Essa proibição fica clara quando se<br />

busca fundamentar a responsabilidade: isto é indiscutível. Intolerável<br />

seria qualquer concessão em sentido inverso.<br />

Quando, entretanto, a analogia é empregada para beneficiar o<br />

violador da lei penal, tem-se posições a favor e contra sua aplicação.<br />

No Brasil, prevalece a possibilidade de aplicação da analogia<br />

in bonam partem.<br />

Um tema que apresenta íntima relação com o princípio da<br />

legalidade é a proibição da retroatividade das leis penais. A proibição<br />

da retroatividade da lei penal é complemento indispensável do<br />

princípio da legalidade que, sem ele, representaria mais uma burla<br />

do que uma garantia dos direitos individuais.<br />

132 impulso


Admite-se, entretanto, a retroatividade benéfica como exceção<br />

ao princípio da irretroatividade da lei penal, até porque seria<br />

insustentável a manutenção de alguém no cárcere pelo cometimento<br />

de um ato que o próprio legislador deixou de considerar<br />

crime. Nesse ponto, fica evidente a necessidade de se discutir a<br />

aplicação do princípio da ultratividade da lei excepcional e da<br />

temporária, à luz da evolução do Direito Penal. Discutível se<br />

torna, inclusive, a existência dessas leis.<br />

Aspecto importante a ser observado é que o princípio da<br />

legalidade é condicionado, na prática, pela técnica legislativa<br />

empregada na descrição das condutas proibidas (condutas típicas)<br />

e na determinação da gravidade das penas.<br />

A forma em que o princípio de intervenção legalizada se realiza<br />

se constitui na descrição das condutas proibidas em tipos<br />

legais, o que vale dizer: é a tipificação das condutas que se pretende<br />

proibir. Neste sentido o tipo cumpre a função de garantia do<br />

princípio de intervenção legalizada.<br />

No sentido de cumprir essa função de garantia, o tipo precisa<br />

estar redigido de tal modo que, através do seu texto se possa<br />

entender com clareza e certeza em que se constitui a conduta proibida,<br />

a matéria de proibição. Para tanto, um dos aspectos mais<br />

importantes que se deve observar é que o legislador descreva os<br />

tipos com uma linguagem clara, concisa e precisa, inteligível pelos<br />

cidadãos de nível cultural médio, valendo-se de termos simples,<br />

que todos possam entender. Nesse sentido, deve-se evitar, quanto<br />

possível, os elementos normativos, que dependem de valoração<br />

para o entendimento do fato e, conseqüentemente, em que consiste<br />

a proibição.<br />

Quanto ao aspecto em estudo, tem-se o problema apresentado<br />

pela necessidade de se encontrar um ponto adequado de equilíbrio<br />

entre o emprego das especificidades e das cláusulas generalizantes.<br />

A especificidade tende a provocar lacunas importantes,<br />

que deixam a descoberto certas lesões mais específicas a bens jurídicos.<br />

Já as cláusulas generalizantes supõem um alto grau de abstração<br />

e quase não apresentam lacunas, porém, apresentam o<br />

perigo da indeterminação, podendo com isso lesar o princípio da<br />

legalidade. Exemplo disso tem-se no período: atingir de qualquer<br />

modo o pudor e os bons costumes.<br />

No que tange à generalização, existem opções por conceitos<br />

indeterminados, como alteração da ordem e dos bons costumes ou<br />

impulso<br />

133


elaxar o sentimento nacional etc., que apresentam dificuldades<br />

importantes com relação à indeterminação.<br />

Deve-se analisar também com atenção o problema relativo à<br />

fixação da pena, tanto no aspecto qualitativo como no aspecto<br />

quantitativo. As penas absolutamente determinadas excluem qualquer<br />

possibilidade de individualização da reprimenda, levando-se<br />

em conta a pessoa do delinqüente. Por outro lado, as penas absolutamente<br />

indeterminadas supõem uma clara infração ao princípio<br />

da intervenção legalizada, pois deixam ao arbítrio do juiz a fixação<br />

de sua duração, natureza, regime de cumprimento de pena, etc.<br />

Neste aspecto, o ideal consiste no sistema das penas relativamente<br />

determinadas. Tais penas têm fixados seus limites máximo<br />

e mínimo de duração, o que permite uma adequação à personalidade<br />

do agente e às distintas circunstâncias que se apresentam<br />

com relação ao crime, ao agente e à própria vítima. Esses limites<br />

devem ser suficientemente precisos no sentido de excluir o<br />

excesso de arbitrariedade judicial e evitar que o juiz se converta<br />

em legislador. Aponta-se, ainda, como solução mais condizente<br />

com o princípio democrático, e com isso se comtempla também o<br />

princípio da culpabilidade, somente a fixação da pena máxima,<br />

deixando-se a mínima ao prudente arbítrio do julgador diante do<br />

caso concreto.<br />

Como se verifica, existe uma preocupação constante em se<br />

buscar formas adequadas e convenientes para o convívio social, de<br />

tal forma que se permita a interação tranqüila e pacífica dos componentes<br />

de uma coletividade. Entretanto, em face da natureza<br />

humana, fica evidente a possibilidade da existência de conflitos de<br />

interesses, que acabam desaguando na violação de bens jurídicos,<br />

até porque não existe uniformidade acerca da valoração dos bens<br />

jurídicos, por parte dos grupos sociais que convivem em determinado<br />

espaço físico. Tais violações podem apresentar importância<br />

tal, que não possam passar em branco, sem que se tomem medidas<br />

no sentido de repará-las e de evitar que venham a ocorrer novamente.<br />

Um dos meios que se tem para se conseguir esse escopo é<br />

o emprego do Direito Penal. Entretanto, a utilização desse ramo do<br />

Direito não pode ser levada a efeito sem que se tomem medidas<br />

acauteladoras, uma vez que o direito de punir do Estado interfere<br />

de forma incisiva em direitos elementares da pessoa humana,<br />

como a liberdade, a pretexto de proteger bens jurídicos, influindo<br />

sobre aqueles direitos. Portanto, é necessário se defender a dignidade<br />

humana até contra o Estado e aqueles que o representam na<br />

134 impulso


função de exercer seu poder de punir. Por isso existe uma necessidade<br />

indeclinável do Estado Democrático de Direito de instituir<br />

limitações ao Poder de punir do Estado, no sentido de se preservar<br />

o respeito à dignidade da pessoa humana.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Texto básico: MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdución al Derecho<br />

Penal (principios limitadores del poder de punir del Estado).<br />

Barcelona: Boch.<br />

BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1967.<br />

CAMARGO, A.L. Chaves. Culpabilidade e reprovação penal. São<br />

Paulo: Sugestões Literárias, 1994.<br />

CAMARGO, A.L. Chaves. Tipo penal e linguagem. Rio de<br />

Janeiro: Forense, 1982.<br />

FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições de Direito Penal – a nova<br />

parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 19<strong>90</strong>.<br />

GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. São Paulo: Max<br />

Limonad, 1954.<br />

HASSEMER, Winfried. ¿Alternativas al principio de culpabilidad?<br />

Cuadernos de política criminal, Madrid, n. 18, 2ª p. do Artigo<br />

Editoriales de Dercho Reunidas, 1982.<br />

HASSEMER, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal. Trad.<br />

Muñoz Conde y Luis Arroyo Zapatero. Barcelona: Boch,<br />

1984.<br />

HASSEMER, Winfried. Três temas de Direito Penal. Porto Alegre:<br />

Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul,<br />

1993.<br />

NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. São Paulo: Saraiva,<br />

v. 1, 1985.<br />

impulso<br />

135


136 impulso


SISTEMAS DE TRANSMISSÃO DO<br />

<strong>DIREITO</strong> DE PROPRIEDADE:<br />

UM ESTUDO NO <strong>DIREITO</strong> ALEMÃO<br />

VICTOR HUGO TEJERINA VELÁZQUEZ<br />

Avaliar o sistema de transferência de domínio no direito alemão<br />

pode ser mais pedagógico, se feito a partir do Registro imobiliário,<br />

1 considerado o melhor elaborado e firme entre os registros<br />

do mundo.<br />

Contudo, deve-se dizer que no Direito alemão, o Código civil<br />

(BGB) dedicou o Livro III aos Bens, e embora não exista uma<br />

rigorosa diferença entre bens móveis e imóveis, o que deve destacar-se,<br />

quanto aos bens imóveis, é que para a modificação jurídico-real,<br />

funciona o Livro Fundiário (Registro Imobiliário) que<br />

cumpre funções de registro e de publicidade. Nada parecido há<br />

previsto para bens móveis, sendo que o princípio da inscrição é<br />

substituído pelo princípio da tradição, em virtude do qual a transferência<br />

da propriedade e a criação de um direito real sobre bens<br />

móveis, exige, em geral, a entrega da coisa. 2 A tradição também<br />

cumpre aqui o papel de publicidade: o princípio da inscrição é<br />

substituído pelo princípio da tradição.<br />

Certos direitos sobre imóveis são juridicamente assimiláveis<br />

aos imóveis. O caso mais característico é o direito de superfície<br />

(Erbbaurecht), para o qual se aplicam todas as regras referentes a<br />

bens imóveis, a não ser que exista uma restrição específica da lei,<br />

já que é um direito cessível e transmissível, e sujeito a gravames<br />

de todos os direitos reais limitados, mesmo que se trate de uma<br />

servidão fundiária ou de um ônus imobiliário.<br />

1 No contexto do § 873 do<br />

BGB, a dupla exigência ali descrita<br />

(Einigung – convênio e<br />

Eintragung – inscrição) afeta a<br />

transmissão da propriedade, a<br />

oneração de um prédio com um<br />

direito, a transmissão de um tal<br />

direito e ao gravame do mesmo<br />

direito. Ao processo de inscrição<br />

no Registro (da transferência)<br />

do tráfico jurídico de<br />

imóveis, denomina-se o Sistema<br />

do Registro Imobiliário<br />

(Grundbuchsystem). V. HEDE-<br />

MANN, J.W. Tratado de Derecho<br />

Civil. Madrid: Revista de<br />

Derecho Privado, v. 2, 1955,<br />

versão espanhola de José Luis<br />

Díez Pastor e Manuel Gonzáles<br />

Enríquez, p. 117.<br />

2 V. FROMONT, Michel, RIEG,<br />

Alfred e outros. Introduction au<br />

Droit Allemand. République<br />

Fédérale, Paris, t. 3, Droit Privé,<br />

Éditions Cujas, Paris, 1991, p.<br />

134-135.<br />

impulso<br />

137


3 Sobre a história do Direito de<br />

Superfície e proposta de instituição<br />

na legislação brasileira<br />

V. TEIXEIRA, José Guilherme<br />

Braga. O Direito Real de Superfície,<br />

Edit. Revista dos Tribunais,<br />

São Paulo, 1993, págs. 45-<br />

49 e 117-121.<br />

4 V. FROMONT, Michel, RIEG,<br />

Alfred e outros, op. cit., p. 136.<br />

Hans Stoll, professor na Universidade<br />

de Fribourg-Brisgau,<br />

é o autor do capítulo sobre<br />

bens.<br />

No Direito Pátrio, a Clovis Beviláqua, quando da apresentação<br />

do “Projecto de Codigo Civil Brazileiro”, lhe pareceu ociosa a<br />

inclusão do direito de superfície, dizendo que no Direito Alemão se<br />

reduziu a um direito cessível e transmissível, como se acaba de descrever.<br />

O Projeto nº 634 B, aprovado pela Câmara dos Deputados e<br />

em tramitação no Senado Federal sob o nº 118/84, inclui entre os<br />

direito reais o direito de superfície (art. 1226). É caracterizado<br />

como um direito cessível e temporário de construir ou de plantar, a<br />

título gratuito ou oneroso, trasmissível a terceiro, inter vivos, ou<br />

mortis causa, aos herdeiros, constituído através de escritura pública<br />

inscrita no Registro de Imóveis (V. arts. 1368-1375). 3<br />

Por determinação legal, aeronaves e navios, bens móveis por<br />

natureza, não são assimiláveis aos bens imóveis, mas em função<br />

do valor que representam como investimento de uma empresa,<br />

junto com as construções navais (em fase de construção), têm<br />

regras especiais calcadas sobre as dos direitos imobiliários. Navios<br />

e aeronaves são objeto de registro especial. Por outro lado, se<br />

admite que navios, aeronaves e construções navais não terminadas<br />

sejam objeto de hipotecas, direitos que, normalmente, só são possíveis<br />

de serem constituídos para os direitos imobiliários.<br />

Há de destacar-se também que a influência do Direito<br />

público sobre os direitos reais, uma parte do direito privado, se dá,<br />

especialmente, em forma de restrições sobre o poder jurídico que<br />

o titular tem sobre a coisa. Hans Stoll 4 explica que, se bem o<br />

direito dado ao proprietário fundiário de construir sobre seu terreno<br />

é direito resultante da liberdade do proprietário (§ <strong>90</strong>3 do<br />

BGB), não pode ser exercido senão nas condições previstas pelo<br />

direito urbanístico, especialmente, pela lei federal sobre urbanismo<br />

com redação dada em 08 de dezembro de 1986, (Baugesetzbuch),<br />

como pelas leis complementares dos Länder. A venda,<br />

continua Stoll, de uma propriedade utilizada para uma exploração<br />

agrícola ou florestal precisa, em princípio, do acordo da autoridade<br />

competente, segundo as modalidades previstas pela lei de 1961<br />

sobre as modificações fundiárias (Grundstückverkehrsgesetz). É<br />

dificil, em matéria de direitos reais e de toda a disciplina sobre<br />

bens, traçar uma linha divisória, entre direito público e direito privado,<br />

em parte porque é diferente, por exemplo, de outros direitos,<br />

como o francês, por exemplo.<br />

138 impulso


HISTÓRIA 5<br />

1. A princípio, a entrega dos imóveis operava-se atendendo a<br />

forma solene e perante testemunhas (é o testemunho judicial medieval<br />

alemão), era a Auflassung. 6<br />

2. Mais tarde, o ato solene transferiu-se 7 à presença do Tribunal<br />

ou do Município das cidades em formação, e começou-se a<br />

apresentar documentos entregues às partes, dotados de enorme<br />

força probatória.<br />

3. No século 12, os negócios sobre imóveis começaram a ser<br />

assentados em repertórios oficiais, que depois passaram a ser<br />

livros permanentes (os livros de Colônia se conservam em seu<br />

texto original de 1135 a 1142).<br />

4. Paulatinamente, a inscrição caminha em direção de uma<br />

categoria mais elevada, tornando-se ato criador de direitos. Enneccerus<br />

dirá: “la inscripción en el registro, en sus orígenes medio<br />

probatorio de la modificación jurídica realizada se convirtió en<br />

parte del supuesto de hecho constitutivo de la modificación jurídica”.<br />

8 O princípio da inscrição não nasce de repente, seguramente,<br />

mas no início de um longo processo, não se tem a consciência<br />

que uma transmissão sem o registro não é completa. Só mais<br />

tarde se elabora a idéia jurídica que só a alteração ou modificação<br />

das relações jurídicas sobre o imóvel se verifica a partir da inscrição<br />

mesma. Nasceu assim o princípio da inscrição, o que significa que<br />

não há aquisição sem inscrição. Melhor ainda é o princípio da eficácia<br />

jurídica formal do registro imobiliário. 9 Para haver modificação<br />

na situação jurídica de um imóvel, no último período desta evolução,<br />

houve necessidade de cumprir dois requisitos: Auflassung, ou<br />

acordo de vontades e a inscrição no livro (princípio do consentimento<br />

material para Enneccerus), já que são elementos constitutivos.<br />

Sem eles ou sem um deles não há aquisição.<br />

A Auflassung 10 deve criar relações claras e definitivas, não se<br />

admitindo fazer sob condições ou prazos (V. infra: Reserva de<br />

domínio). É normalmente emitida como consequência de relação<br />

causal básica (ex.: contrato de compra e venda). A relação obrigatória<br />

é definida pelo BGB (§ 241) como uma relação jurídica onde<br />

“está o credor autorizado a exigir do devedor uma prestação”.<br />

A “Recepção” do direito romano (ou ítalo-romano como<br />

alguns autores entendem), na Alemanha, como se sabe, exerceu<br />

forte influência no desenvolvimento do direito privado e até no<br />

BGB, o que deu lugar a múltiplas discussões e explicações, no<br />

século XIX, sobre as razões de tal recepção. Segundo Michel<br />

5 V. HEDEMANN, J.W., op.<br />

cit., p. 76ss. V. ENNECCERUS,<br />

KIPP, WOLFF. Tratado de Derecho<br />

Civil. Barcelona: Bosch,<br />

t. 1, v. 3, 1935, p. 133ss.<br />

6 V. Código Civil Alemão<br />

(BGB) § 925. Trad. Souza Diniz.<br />

Rio de Janeiro: Record,<br />

1960, p. 154. Segundo EN-<br />

NECCERUS, KIPP, WOLFF,<br />

op. cit., p. 124, nas suas origens<br />

a palavra Auflassung significava<br />

“deixação” (corporal) unilateral<br />

da posse. Mas sobretudo significava<br />

a declaração do alienante<br />

mais a aceitação da mesma pelo<br />

adquirente. Finalmente (depois<br />

da extinção da Gewere ideal)<br />

chegou a significar já o acordo<br />

das partes com relação à transmissão<br />

da propriedade, baseada<br />

em dito acordo e na inscrição<br />

no Registro imobiliário.<br />

7 V. ENNECCERUS, KIPP,<br />

WOLFF, op. cit., p. 133.<br />

8 V. ENNECCERUS, KIPP,<br />

WOLFF, op. cit., p. 135.<br />

9 V. ENNECCERUS, KIPP,<br />

WOLFF, op. cit., p. 136; v.<br />

HEDEMANN, J.W., op. cit., p.<br />

77, denominava-o princípio da<br />

inscrição.<br />

10 Na alienação da propriedade<br />

agrícola ou florestal ou na imposição<br />

de ônus reais como o<br />

usufruto, precisa-se para expedir<br />

a Auflassung de autorização<br />

da autoridade alemã competente.<br />

V. HEDEMANN, J.W., op.<br />

cit., p. 165.<br />

impulso<br />

139


Fromont e Alfred Rieg, a influência do Direito romano no Ocidente<br />

ficou latente do século VII ao XI. Por causa da descoberta<br />

em Pisa, na segunda metade do século XI, de um manuscrito do<br />

século VI ou VII contendo o texto original do Digesto, voltou<br />

renovado. Seguiu-se um trabalho científico considerável, obra, primeiro,<br />

dos glosadores, na escola de direito de Bolonha, entre o<br />

século XI e meados do XIII e dos posglosadores, depois. Durante<br />

esse período se redige abundantes notas, as glossæ sobre o texto<br />

do Corpus juris, primeiro, e dos posglosadores, mais tarde. O<br />

resultado desse trabalho metódico é a glossæ ordinariae de Acúrsio,<br />

verdadeira súmula de todas as glosas de seus predecessores.<br />

Mas como ainda faltava o caráter sistemático, os posglosadores<br />

entre 1250 e 1500 vão se dedicar a esta tarefa. Um novo direito<br />

apareceu graças aos esforços de homens eminentes como Bártolo<br />

(1314-1357) e Baldo (1327-1400).<br />

As causas da penetração do Direito romano, segundo estes<br />

autores, não deve ser procurada na inadaptação do Direito germânico<br />

à situação econômica, no final da Idade Média, pois, as cidades<br />

pelo comércio florescente tinham, desde o século XIV, elaborado<br />

um direito comercial perfeitamente adaptado às mudanças<br />

econômicas da época, o que favoreceu em grande parte à recepção<br />

do Direito romano. Deve, pelo contrário, encontrar-se em razões<br />

de ordem intelectual que explicam, se não exclusivamente, o fenômeno<br />

da recepção. Deve lembrar-se, dizem, que o Império alemão<br />

era o Império Romano e que os imperadores alemães se consideravam<br />

os sucessores dos imperadores romanos. De outro lado,<br />

numerosos foram os alemães que atravessando os Alpes, desde o<br />

século XII foram estudar nas escolas e universidades italianas o<br />

direito canônico e sobretudo o “novo direito romano”. Com a fundação<br />

das primeiras universidades alemãs no século XIV (Universidade<br />

de Praga em 1348; Viena, 1365; Heidelberg, 1386; Colônia,<br />

1388; Erfurt, 1392, Leipzig, 1409, onde primeiro começou-se ensinando<br />

direito dos cânones, e mais tarde, a partir do século XV, se<br />

ensina Direito romano como matéria autônoma) e, com a influência<br />

dos professores conhecedores do direito estrangeiro, rapidamente<br />

se vê nascer uma classe de “juristas sabedores (sábios)” (gelehrter<br />

Juristenstand) – cuja influência na administração e na justiça se<br />

faz cada vez mais notória – é que a recepção tem operado. Embora<br />

não seja o objeto deste trabalho discutir as causas e a verdadeira<br />

influência que teve a chamada recepção do Direito romano na Alemanha,<br />

parece pertinente lembrar a quase nenhuma influência no<br />

140 impulso


Direito público, pela dificuldade de adaptação das normas romanas<br />

às germânicas. Assim em matéria penal a influência deve ter<br />

sido bastante restrita, levando em conta que Carlos V tinha sancionado<br />

a sua famosa Ordenança Criminal de 1532. Mesmo em<br />

matéria civil teria sido irregular, no direito das obrigações e das<br />

coisas muito forte e, menos no direito das pessoas e da família, 11<br />

porém, “estorvou temporariamente” 12 a evolução dos registros e a<br />

posterior difusão do sistema do Registro Imobiliário.<br />

Afirma Enneccerus que o princípio romano segundo o qual a<br />

transmissão e o gravame dos imóveis se efetuam do mesmo modo<br />

que para os móveis e o de que a transmissão podia ser feita por<br />

tradição, fazendo-se o ônus tacitamente, passaram a constituir<br />

direito comum.<br />

Para melhor compreender o sistema dos direitos reais no<br />

direito alemão, deve-se levar em conta que, designa-se sob o nome<br />

de direito de bens, no sentido objetivo (Sachenrecht), ao conjunto de<br />

normas que se referem ao poder de fato (tatsächliche Herrschaft)<br />

que se tem sobre as coisas – a posse (Besitz) –, assim como, aos<br />

direitos reais, no sentido subjetivo, ou seja, aos direitos subjetivos<br />

sobre as coisas. 13<br />

Segue o BGB o sistema da tradição 14 sob a forma original<br />

do direito romano, que entrou na Alemanha, como foi dito pela<br />

chamada “Recepção”: traditionibus et usucapionibus dominia<br />

rerum non nudis pactis transferuntur.<br />

Isto quer dizer que a modificação das relações jurídicas sobre<br />

um bem imóvel não se verifica senão por força da inscrição<br />

mesma: é o princípio da inscrição, “o que está no registro é exato,<br />

porque o registro o diz”. 15<br />

A elaboração do BGB uniformizou o direito imobiliário<br />

material do Reich, bem como, um ano mais tarde, adotou idêntica<br />

posição em matéria instrumental (GBO – 1897 ou Ordenança do<br />

Registro Imobiliário), que fora objeto de inúmeras críticas. Só em<br />

1935, quando da redação da nova GBO, conseguiu-se total unificação,<br />

já que, até então, a redação dos “formulários”, por ex., era<br />

facultativa dos Estados).<br />

DO REGISTRO IMOBILIÁRIO 16<br />

O registro (da jurisdição voluntária) compete ao Cartório de<br />

Registro, que se subordina ao Tribunal distrital, e está na dependência<br />

de um juiz. A função prática do agrimensor é também fundamental,<br />

pesando responsabilidades sobre este e outros funcionários,<br />

11 FROMONT, Michel e RI-<br />

EG, Alfred, op. cit., Tome I, Les<br />

Fondements, págs. 57-64.<br />

12 V. ENNECCERUS, KIPP,<br />

WOLFF, op. cit., p. 135; v. HE-<br />

DEMANN, J.W., op. cit., p. 78,<br />

considerava que a “Recepção”<br />

prejudicou o posterior desenvolvimento<br />

e a difusão do sistema<br />

do Registro imobiliário, já<br />

que tais aparatos registrais eram<br />

alheios à concepção jurídica<br />

dos romanos. Por outro lado, o<br />

pensamento jurídico romano<br />

afinou a lógica jurídica germânica,<br />

se entendida como uma<br />

recepção de “métodos e de<br />

compreensão, de noções jurídicas,<br />

de categorias legais, mais<br />

do que regras de fundo...” (V.<br />

também, FROMONT, Michel e<br />

RIEG, Alfred, op cit., o § 3., sobre<br />

os limites da recepção).<br />

13 V. FROMONT, Michel, RI-<br />

EG, Alfred et al., op. cit., p. 133.<br />

14 Para os imóveis, ocorre a<br />

inscrição no livro Fundiário<br />

(§ 873) e, para os móveis (V.<br />

§ 929) a transferência se dá<br />

com a entrega (tradição), salvo<br />

o constitutum possessorium em<br />

que é suficiente o acordo translativo<br />

(§ 930).<br />

15 V. ENNECCERUS, KIPP,<br />

WOLFF, op. cit., p. 136.<br />

16 V. HEDEMANN, J.W., op.<br />

cit., p. 75ss; ENNECCERUS,<br />

KIPP, WOLFF, op. cit., p. 138ss.<br />

impulso<br />

141


17 ENNECCERUS, KIPP,<br />

WOLFF, op. cit., p. 147-148.<br />

18 V. HEDEMANN, J.W., op.<br />

cit., p. 135-136.<br />

19 Com o princípio de abstração,<br />

o Direito alemão formula uma<br />

regra diversa de outros direitos,<br />

como o francês, por exemplo, e<br />

se distancia deles. O “princípio<br />

de abstração” significa que os<br />

contratos, obrigacional ou casual<br />

e real, são, por princípio, independentes<br />

um do outro; cada um<br />

existe “abstração feita” do outro,<br />

dissociado do outro. Uma função<br />

essencial do princípio de<br />

abstração está em limitar às partes<br />

interessadas das conseqüências<br />

viciosas que maculam a<br />

conclusão do contrato criador de<br />

obrigações e de evitar que os terceiros<br />

fiquem prejudicados. O<br />

caráter abstrato do negócio jurídico<br />

real precisa de um elemento<br />

objetivo, o acordo das partes<br />

sobre a modificação jurídica do<br />

direito real (e até de uma declaração<br />

unilateral) onde o acordo<br />

obrigacional, causal, não figura,<br />

quer dizer, não consta, por não<br />

ser necessário para que o acordo<br />

real produza efeitos e, claro, da<br />

inscrição no Registro imobiliário<br />

ou entrega da coisa, se móvel.<br />

Nesse sentido, V. FROMONT,<br />

Michel, RIEG, Alfred, op. cit.,<br />

p. 70 e 138-139.<br />

20 V. ENNECCERUS, KIPP,<br />

WOLFF, op. cit., p. 165.<br />

já que o registro obedece ao princípio de exatidão, tanto na identidade<br />

das pessoas, como nas operações matemáticas que o registro<br />

demanda. Exatidão que é base de toda transação imobiliária e, que<br />

se completa com o princípio da publicidade do registro. Mesmo<br />

público o registro, o acesso a ele é limitado: só quem tiver interesse<br />

jurídico justificado poderá ter acesso aos registros, é o caso<br />

de um titular de direitos reais ou de quem deseja adquirir um prédio.<br />

Considera-se que o “interesse justificado” seja um conceito<br />

mais amplo que o “interesse jurídico”. 17 O Registro alemão reflete<br />

a situação jurídico-real do imóvel.<br />

Para Hedemann, 18 há cinco princípios que inspiram o Registro:<br />

1) o princípio do sistema imobiliário onde constam todas as<br />

relações jurídicas referentes ao imóvel; 2) o princípio da inscrição,<br />

entendendo-se que todas as relações jurídicas, enquanto direitos<br />

reais procedem do tráfico dos negócios jurídicos, nascem só a partir<br />

da sua inscrição no Registro; 3) o princípio do consentimento,<br />

pelo qual basta a declaração abstrata 19 de vontade dirigida a obter<br />

a modificação jurídica em si mesma, deixando fora de cogitação a<br />

“legalidade” do negócio causal obrigacional; 4) o princípio da prioridade,<br />

o que significa que os diversos direitos, que possam existir<br />

sobre um imóvel, não estão entre si num mesmo plano de igualdade,<br />

mas que se ordenam por estratos, segundo um sistema visível<br />

no Registro (sistema do lugar e sistema da data); 5) o princípio de<br />

publicidade, segundo o qual o Registro há de formar a base de toda<br />

a transferência sobre imóveis e por isso é acessível ao público. Em<br />

sentido mais estrito, trata-se implicitamente de confirmação gerada<br />

pelo Registro, pela sua exatidão, embutida no princípio.<br />

Os elementos materiais necessários para modificar uma relação<br />

jurídica real no registro são: a solicitação da inscrição, Antrag<br />

(ato de mera forma processual) e o consentimento translativo<br />

(princípio do consentimento formal) indispensável para consumar<br />

a transmissão do direito de propriedade, Einigung (fato modificador<br />

do direito no ordenamento jurídico substantivo), e que é o consentimento<br />

bilateral de inscrição feita em termo ou instrumento<br />

público. A natureza do consentimento de inscrição, sendo uma<br />

declaração de vontade, para Enneccerus, 20 constitui parte de um<br />

negócio de disposição, embora Von Thur apenas a considere como<br />

preparo da mesma.<br />

O Registro obedece a uma cadeia de transmissões não interrompida,<br />

o que sugere a necessidade de inscrição prévia de quem<br />

outorgou permissão para o novo registro.<br />

142 impulso


A categoria dos direitos no Registro se organiza conforme o<br />

lugar (ordenação pelo lugar – Locussystem) que ocupa nos livros,<br />

se os direitos inscritos na mesma secção, ou pela data, se os direitos<br />

forem inscritos em secções distintas. A prioridade no registro<br />

determina, em caso de execução, o não pagamento proporcional,<br />

se vários forem os credores colocados em diversas categorias, e<br />

sim pagamento integral dos primeiros até onde alcançar o valor<br />

garantido, sendo que o lugar que se ocupa no registro (categoria) é<br />

adjunto e independente, todavia é possível trocar essa posição,<br />

mas não podem afetar direitos intermédios.<br />

Por outro lado, a solicitação, como o ato bilateral modificador,<br />

deve ser objeto de prévia qualificação do Juiz Registrador,<br />

embora os limites de tal qualificação devam estar definidos pela lei<br />

(princípio de legalidade).<br />

O princípio do consentimento fundamenta-se numa abstração,<br />

ou seja, separa a vontade modificadora jurídico-real do outro,<br />

o acordo voluntário causal. Mas o princípio de legalidade obriga o<br />

Registrador a comprovar a legalidade do processo como um todo,<br />

inclusive, a validade jurídica do negócio jurídico-causal (obrigacional),<br />

porém bastam para o registro as declarações abstratas e formais<br />

feitas.<br />

Na ausência do acordo bilateral abstrato e havendo uma<br />

pretensão pessoal (obrigacional), pode exigir-se uma prenotação<br />

(Vormerkung) por exemplo, o comprador tem o contrato de compra<br />

e venda com efeitos puramente obrigacionais, com pretensões<br />

para extinguir ou ceder um direito. Não outorga a seu titular direito<br />

real e não impede ao anotado (prejudicado) de sua capacidade de<br />

alienação; claro que estes atos posteriores à anotação preventiva,<br />

serão ineficazes na medida em que representam um prejuízo (óbice)<br />

à pretensão previamente anotada (§ 883), assegurando preferência<br />

na sua classe (categoria) ao direito em questão, se constituído definitivamente.<br />

Este deve ser o único caso em que a responsabilidade limitada<br />

do herdeiro (intra vires hereditatis) não poderia ser oposta ao titular<br />

da prenotação (§ 884).<br />

A prenotação é resultado de pretensão pessoal, e não passa<br />

de obrigacional em relação ao direito real. Na terminologia do<br />

direito romano, seria um ius ad rem. O crédito anotado é parecido,<br />

por conseguinte, com a figura do direito à coisa. 21<br />

Para eventuais inexatidões 22 do Registro, quase impossível<br />

de acontecer, há remédios como:<br />

21 In Otto v. Gierke, Dt. Priv.-<br />

R, II, p. 336ss, cit. por HEDE-<br />

MANN, J.W., op. cit., p. 106.<br />

22 Hedemann relata as seguintes:<br />

a) tem-se inscrito um direito<br />

não existente;<br />

b) tem-se deixado de inscrever<br />

um direito existente;<br />

c) cancelamento indevido de<br />

um direito existente, inscrito;<br />

d) expressado equivocadamente<br />

o conteúdo de um direito.<br />

impulso<br />

143


23 ENNECCERUS, op. cit.,<br />

p. 156.<br />

24 HEDEMANN, J.W., op. cit.,<br />

p. 113-115.<br />

25 HEDEMANN, J.W., op. cit.,<br />

p. 101.<br />

I) A retificação de ofício: há dois requisitos:<br />

a) a denominada retificação obrigatória (requerer ao herdeiro,<br />

atual proprietário, fornecer documentos para atualizar o Registro);<br />

o cancelamento de inscrições antiquadas e confusão nas relações de<br />

prioridade, praticando-se de ofício esclarecimento e nova inscrição;<br />

b) por faltas cometidas pelo Registro, como inscrições defeituosas<br />

e inscrições improcedentes.<br />

II) A retificação também pode ser pedida pelo prejudicado<br />

(§ 894), pretensão que pode ser dirigida contra o próprio Ofício do<br />

Registro ou contra o que foi falsamente inscrito, exigindo dele<br />

assentimento e demais atos de cooperação (§ 894 última parte), e<br />

não é suscetível de prescrever (§ 898). Uma vez obtida a retificação,<br />

retroage à data da inexatidão do registro, diverso, portanto, da<br />

prenotação.<br />

Resumindo, no registro imobiliário, fora das indicações de<br />

fato, que servem para individualização do bem, só podem ser inscritos<br />

os direitos reais sobre o bem ou sobre um direito imobiliário<br />

inscrivível (como também pode inscrever-se o direito de garantia<br />

sobre direito inscrito do herdeiro fideicomissário, ou o direito de<br />

garantia sobre a quota de um co-herdeiro), as limitações de dispor<br />

que existem a favor de determinadas pessoas (como por exemplo<br />

o resultado de concurso, administração de herença, herança fideicomissária,<br />

nomeação de testamenteiro etc.), as anotações preventivas<br />

e os assentos de contradição. 23 [A contradição (§ 899) se edifica<br />

sobre o fundamento de uma inexatidão registral diversa da<br />

prenotação, portanto, funda sua pretensão em direito real todavia<br />

não existente 24 ].<br />

Com a inscrição fica definitivamente concluída a modificação<br />

jurídico-real, mas não só isso, fica invariável. 25<br />

Nos cancelamentos (extinção total ou parcial de um assento<br />

anterior ou não existência de uma relação jurídica) são sublinhados<br />

com traço vermelho, além de praticar-se assento especial em<br />

que conste o cancelamento.<br />

As inscrições, de um modo geral, só cobrem inscrições de<br />

direitos, mas não de fatos, embora constem do registro para fins de<br />

individualização, como situação do bem, exploração econômica,<br />

edifícios existentes, preço de aquisição, etc.<br />

As inscrições podem ser de caráter constitutivo (é o caso da<br />

transmissão do direito de propriedade, ou de garantia gravados<br />

com uma hipoteca), ou também meramente declarativas (que<br />

retroagem ao momento em que ocorreu a inexatidão), destinadas a<br />

144 impulso


eliminar uma dissensão entre a situação jurídica inscrita e a real,<br />

ou por haver inscrições equivocadas, que provocam inexatidão no<br />

registro.<br />

As inscrições feitas não se extinguem pela confusão (reunião<br />

numa mesma pessoa de direito e obrigação), ao contrário, se consolida<br />

(§ 889). Esta subsistência da inscrição tem importância prática<br />

na denominada hipoteca de proprietário.<br />

Como já foi descrito, há, além das inscrições, os cancelamentos,<br />

que não se praticam inutilizando os registros, mas sublinhando-os<br />

com traço encarnado, além de constar inscrição especial<br />

a respeito. Nas prenotações 26 (Vormerkung do § 883 ao § 888 do<br />

BGB) (ver supra) o suposto de fato material é a existência de uma<br />

pretensão pessoal (quase sempre obrigacional) para exigir uma inscrição<br />

determinada, seja porque é permitido ao prejudicado (pactuado),<br />

ou por providência provisional de um Tribunal. Mas os efeitos<br />

destes são relativos (eficácia relativa), já que se trata de uma<br />

inscrição provisória. Simetricamente, por outro lado, os atos produzidos<br />

após a prenotação estão sujeitos a uma ineficácia relativa, 27<br />

mesmo em se tratando de disposições de caráter forçoso ou, em<br />

outras situações, porque assegura a preferência na sua classe ao<br />

direito pretendido, ou porque o herdeiro não pode opor ao titular da<br />

prenotação a sua responsabilidade limitada (supra § 884).<br />

TRADIÇÃO E BENS MÓVEIS<br />

O Direito alemão faz distinção entre “ato criador de obrigações”<br />

(Verpflichtungsgeschäft) e “ato de disposição” (Verfügungsgeschäft),<br />

sendo este último de domínio dos Direitos Reais.<br />

Quanto à aquisição da propriedade mobiliária, o BGB (§ 929<br />

a § 931) considera vários casos. O primeiro deles, aquisição por<br />

transmissão, é o mais importante. 28 Aqui nos interessa porque,<br />

entre os processos de aquisição, se inclui a traditio como um meio<br />

de transmissão [os outros dois são a) a compra e venda (§ 433 e<br />

ss.), contrato puramente obrigacional, pelo qual, como já mencionado,<br />

não é suficiente para transmitir o direito de propriedade,<br />

com ela só se cria um vínculo pessoal e a sua função, na transmissão<br />

do direito real é apenas servir de fundamento, de “causa” (à<br />

modificação da relação real), é a “relação causal” e b) o “convênio”<br />

ou o acordo translativo (V. § 929), que é uma “figura dificilmente<br />

intelegible para los juristas”, 29 diverso, portanto, da compra<br />

e venda (abstração causal)].<br />

26 Sobre a natureza da prenotação<br />

o § 883 prescreve:<br />

“Para garantia da pretensão à<br />

constituição ou extinção de um<br />

direito sobre um prédio, ou sobre<br />

um direito onerando um<br />

prédio, ou a modificação do<br />

conteúdo ou da ordem (de inscrição)<br />

de um tal direito... ou<br />

para garantia de uma pretensão<br />

futura ou condicional” (§ 883).<br />

Versão Souza Diniz do BGB,<br />

Edit. Record, Rio, 1960, p. 148.<br />

27 O § 883, II, 1ª parte, prescreve:<br />

“Uma disposição que, depois<br />

da inscrição da prenotação, for<br />

tomado sobre o prédio ou o direito,<br />

é ineficaz desde que venha<br />

a frustrar ou prejudicar a<br />

pretensão”.<br />

28 Os outros são:<br />

a) aquisição por usucapião;<br />

b) aquisição por adjunção,<br />

comistão e especificação;<br />

c) aquisição dos frutos e demais<br />

partes da coisa;<br />

d) aquisição por ocupação;<br />

e) aquisição por invenção e<br />

outros alheios ao Direito das<br />

Coisas como a sucessão hereditária,<br />

a desapropriação, etc.<br />

29 HEDEMANN, op. cit. p. 170.<br />

impulso<br />

145


Isto quer dizer que a entrega (traditio) e, portanto, a posse<br />

aparece aqui como modo de transmissão. Embora criticado o<br />

denominado sistema (da Traditionssystem) da tradição, no caso<br />

alemão, vigora o princípio romano (Codex 2.3.20 do Traditionibus...),<br />

que na visão de Hedemann respondia, nesse período histórico<br />

a realidades vitais urgentes mas que, entre nós, apenas se tornou<br />

uma construção doutrinária, encartilhada no princípio de<br />

“publicidade”, aplicável para todos os processos do Direito das<br />

coisas, que devem ser, de algum modo, “publicados”. A entrega<br />

corporal serviu para essa finalidade, esquecendo que, como o princípio<br />

não fora levado às suas últimas consequências, junto a um<br />

processo paralelo, de espiritualização da traditio, estava-se perdendo,<br />

na verdade, a essência mesma da “publicidade”, ou seja, o<br />

elemento corporal perceptível da entrega. Embora criticada esta<br />

posição de Hedemann pelos seus tradutores, por mesclar duas<br />

questões diferentes, possibilidade de eliminar o requisito e possibilidade<br />

de substituir a tradição real pela forma espiritualizada, a crítica<br />

não nos parece pertinente, já que o autor apenas levanta as<br />

inconsequências a que foi levado o princípio da tradição, tudo<br />

imposto pela realidade.<br />

O § 929 (BGB), ao tratar da transmissão dos direitos de propriedade<br />

de bens móveis, considera, além do acordo de transmissão,<br />

a entrega corporal, salvo se o adquirente estiver na posse imediata<br />

da coisa, em que bastará apenas o acordo para a transferência<br />

da propriedade.<br />

O acordo translativo, nos termos do § 929 do BGB, não é o<br />

negócio causal puramente obrigacional, mas um acordo que,<br />

fazendo abstração da causa, representa um novo ato de vontade, de<br />

ambas as partes. Faltando o acordo, não há transferência da propriedade.<br />

Significa que, em matéria de móveis, não basta a entrega da<br />

coisa, mas é necessário o acordo translativo, embora não haja necessidade<br />

de que se verifique a presença simultânea das partes;<br />

podendo cumprir-se pelo mero silêncio. Isto quer dizer que não se<br />

verifica a transferência quando, por exemplo, se paga o preço.<br />

Importa sobretudo cumprir com as exigências da entrega do acordo<br />

de transmissão, nos termos do artigo antes citado, para haver alienação<br />

(§ 929), sendo indiferente o momento em que se pagou.<br />

A transferência da coisa não se opera na data da entrega<br />

(traditio), e sim na data em que se verifica o acordo translativo. O<br />

clássico exemplo de Hedemann ilustra a respeito: o Sr. A encarregou<br />

em 03 de maio para o alfaiate B um terno sob medida<br />

146 impulso


(contrato de obra). Em 11 de maio é entregue o terno a domicílio,<br />

mas como A está viajando, a empregada – servidora da posse –<br />

o recebe. Nos termos do § 929, a entrega se consumou mas faltou<br />

o acordo translativo, que só aconteceu em 14 de maio, quando A<br />

regressou à sua casa, tendo visto o terno, não dizendo nada. Com<br />

o isto deu a sua aprovação. 30 Assim a transferência se deu só em<br />

14 de maio, e não na data da entrega.<br />

O sistema alemão admite a aquisição de bens móveis a non<br />

domino, desde que cumpridas as condições estabelecidas pelos<br />

§§ 929 a 931 BGB, e desde que haja entrega do bem, suposta a<br />

boa-fé do adquirente (§ 932 I e II BGB). As disposições referentes<br />

à aquisição de boa-fé supõem que o proprietário tenha livremente<br />

abandonado o controle direto do bem (quer dizer, que estava na<br />

posse direta e a perdeu contra a sua vontade) e que tenha aceitado<br />

o risco de um terceiro dispor sem sua autorização. Daí que estão<br />

excluídas, em princípio, aquisições de uma pessoa que não é titular<br />

de direitos sobre o bem, ou daqueles que tenham sido roubados,<br />

ou tenham sido perdidos ou até entregues a um terceiro por<br />

outra causa.<br />

O BGB prevê uma hipótese excepcional (§ 934, I), havendo<br />

boa-fé, em que seria possível a aquisição de um bem não perdido,<br />

mesmo sem tradição, se quem tiver o bem, não sendo titular do<br />

direito, é um possuidor indireto e transfere essa posse ao adquirente<br />

por cessão de um direito de pretensão (de agir em restituição).<br />

A segunda parte dessa norma, determina que, em caso contrário,<br />

só se tornará proprietário quando obtiver a posse da coisa,<br />

do terceiro, a não ser que no tempo da cessão ou da aquisição da<br />

posse não estivesse de boa-fé (§ 934, II). (V. infra, cessão de pretensão<br />

reivindicatória).<br />

Diferentemente, o sistema brasileiro, em função de disposição<br />

expressa de nosso Código Civil (art. 622), “não adotou o princípio<br />

da validade das aquisições a non domino com base na posse<br />

e na boa-fé do adquirente. Seguiu neste passo a posição firmada<br />

pelo direito romano que, em face do conflito entre os interesses<br />

preponderantes do verdadeiro proprietário e os do adquirente de<br />

boa fé protegidos pelo tráfico jurídico, pendeu em favor daqueles,<br />

em atenção ao princípio Nemo plus juris ad alium transferre<br />

potest quam ipse haberet, estabelecendo que o adquirente se beneficiaria<br />

com a posse apta para o usucapião (Hedemann, op. cit.,<br />

Derechos Reales, v. II, p. 182, § 212, e Dernburg, Dirritti Reali, v.<br />

I, Parte II, p. 158, § 212).” Conclui-se que no sistema pátrio “a tra-<br />

30 HEDEMANN, J.W., op. cit.,<br />

p. 170-171.<br />

impulso<br />

147


31 MAGALHÃES, Vilobaldo<br />

Bastos de. Compra e Venda e<br />

Sistemas de Transmissão da<br />

Propriedade, Edit. Forense, Rio<br />

de Janeiro, 1981, ps. 68-73.<br />

dição feita pelo não dono não produz a transferência da propriedade<br />

em favor do adquirente de boa-fé... admitindo, no art. 521, a<br />

reivindicação das coisas perdidas ou furtadas.” 31<br />

Quando o convênio (acordo translativo) é claro, não haveria<br />

dificuldade e/ou necessidade de interpretação da vontade das partes<br />

para saber se houve ou não o acordo abstrato de transmissão.<br />

Nos casos duvidosos em que se exige interpretação da vontade das<br />

partes, está por exemplo a do penhor. Se entregou a coisa a título<br />

de penhor e, portanto, conservando a propriedade? Ou se fez uma<br />

transmissão em garantia? (V. infra: Transmissão em Garantia). A<br />

hipótese exige examinar, em cada caso, a natureza de tal convenção.<br />

Nos arrendamentos em que há objetos constantes de um<br />

inventário pelo valor da estimativa e obrigação de restituí-los, (§<br />

587) nos termos dos §§ 588 e 589, como seguramente acontece<br />

com freqüência com utensílios da lavoura, inventariados no arrendamento<br />

da propriedade rural: o arrendatário os toma a título de<br />

compra e venda e os retrovende ao arrendador assim que expirar o<br />

prazo? Se trata aqui de um arrendamento em que se transmite o<br />

risco de eventuais perdas dos objetos do inventário ao arrendatário<br />

(§ 588), mas com a promessa de devolvê-los ao arrendador,<br />

porém, sem que este último suporte os riscos de perecimento<br />

casual, já que aquele tem obrigação de devolver o inventário, de<br />

conformidade com uma exploração regular, nas condições em que<br />

lhe foi entregue, e, as partes por ele fornecidas tornam-se, com a<br />

incorporação ao inventário, propriedade do arrendador (§ 588,<br />

última parte). E se houver um prazo muito longo, em que aconteceram<br />

alterações monetárias profundas e há desvalorização da<br />

moeda e, correlativamente, aumenta o valor desses bens móveis?<br />

Embora o Código não responda a esta hipótese, evidentemente, há<br />

um paradoxo: se atribui ao arrendatário aumento do valor do<br />

inventário (§ 589, última parte), mas se declara que o arrendador<br />

sempre foi proprietário, aliás conserva a propriedade dos objetos<br />

do inventário (§ 588, segunda parte).<br />

As denominadas formas supletórias da tradição, segundo<br />

Hedemann (op.cit. p. 175) previstas no BGB são:<br />

a) Brevi manu traditio, prevista pelo § 929, 2, na suposição de<br />

que a coisa já está, antecipadamente, em poder do adquirente, sendo<br />

que careceria de objeto voltar a entregar-se-lhe (algo que já exista<br />

em mãos do novo proprietário e que exigiria prévia devolução ao<br />

transmitente). Aqui basta o convênio ou acordo transmissivo.<br />

148 impulso


) Constitutum possessorium (§ 930 BGB), pelo qual se<br />

troca o conceito de posse, caso em que o alienante conserva provisioriamente<br />

a coisa, mas entendendo-se que é propriedade do<br />

adquirente, de tal sorte que, daí em diante, não a guarda mais para<br />

si e sim para o adquirente. Há de convir-se que, neste caso, há<br />

uma quebra do princípio de publicidade que cumpre a tradição.<br />

Hedemann, assegura que o BGB encontrou uma solução, denominada,<br />

construtiva, restringindo este meio de transmissão do direito<br />

de propriedade a casos em que “sobreviene entre el adquirente y el<br />

enajenante una súbita disgregación de las relaciones posesorias en<br />

cuanto el enajenante conserva la posesión ‘inmediata’, mientras<br />

que transmite la posesión ‘mediata’ o superior al adquirente” (op.<br />

cit. págs. 175-176), mas não basta esta mera desagregação do<br />

estado possessório, é necessário, “que se estipule una relación<br />

jurídica”, em virtude da qual, tal desagregação se efetua. Para<br />

compreendê-lo, há que fazer referência a uma antiga controvérsia<br />

da época do Direito comum. Já nessa época se tentava evitar um<br />

desbordamento do constitutum possessorium, diferenciando-o da<br />

chamada forma abstrata de estabelecê-lo, de uma maneira indeterminada,<br />

de outra, adotada pelo código, individualizada. A esta<br />

última forma se refere o BGB quando exige uma relação jurídica,<br />

arrendamento, depósito, aluguel, etc. Reconhece, por outra<br />

parte, que há inúmeros problemas com esta solução, especialmente<br />

no caso do depósito.<br />

Ainda existe uma outra forma de transmissão que deve ser<br />

estudada, embora pertença ao Direito Comercial. Trata-se da aquisição<br />

de títulos-valores, mediante tradição. Trata-se, na verdade,<br />

de mercadorias que estão sendo transportadas ou depositadas em<br />

determinados armazéns. O documento expedido toma diversos<br />

nomes, carta de conhecimento no transporte marítimo, carta de<br />

porte no terrestre e de warrants quando depositados em armazéns.<br />

É possível transmitir através de endosso ao próprio comprador das<br />

mercadorias e este a um terceiro; tal documento e esta tradição<br />

têm o efeito não só de representar a entrega corporal, mas e sobretudo<br />

de transmitir o direito de propriedade (§ 424, 450, 647 HGB);<br />

por outras palavras, significa que por este modo se transmite a<br />

posse mediata dos bens e também a propriedade através da traditio<br />

simbolica, na suposição de que medeia o acordo transmissivo<br />

(Einigung), necessário conforme exigência do Direito civil.<br />

impulso<br />

149


32 SERICK, Rolf. Garantías<br />

Mobiliarias en Derecho Alemán,<br />

Edit Tecnos, trad. de Angel<br />

Carrasco Perera, Madrid, 19<strong>90</strong>,<br />

p. 105-106, v. tb. p. 80-81.<br />

33 A obra de SERICK. Garantias<br />

Mobiliárias en Derecho Alemán,<br />

Edit. Tecnos, traduc. de<br />

Angel Carrasco Perera, Madrid,<br />

19<strong>90</strong>, é a base de nossos argumentos.<br />

Por esta razão, diz, Hedemann, se chama a estes documentos<br />

“títulos traditórios” (Traditionspapiere e também títulos reais ou<br />

títulos de disposição: Waren-oder Dispositionspapiere) (op. cit., p.<br />

179).<br />

Serick, 32 referindo-se às garantias mobiliárias “made in Germany”,<br />

assinala que faltam normas específicas que se ocupem das<br />

questões fundamentais, dos requisitos e da configuração da transmissão<br />

em garantia, e em especial da questão de se uma transmissão<br />

desse tipo (transmissão, não da propriedade plena, mas só da<br />

titularidade fiduciária) é admissível através do acordo sobre a<br />

transmissão da propriedade e o convênio de uma relação jurídica<br />

de mediação possessória (segundo o § 930 BGB), permanecendo<br />

o constituinte da garantia como possuidor imediato, mesmo depois<br />

da tramissão. Este problema, para ele, levantou uma discussão<br />

(que mais tarde se teria tornado obsoleta), sobre a opinião de que<br />

na transmissão em garantia oculta, por meio do constituto possessório<br />

(§ 930 BGB) estávamos diante de uma forma de fraude à lei,<br />

já que o BGB, tinha disposto normas relativas ao penhor mobiliário<br />

como sendo o caminho adequado para afetar um bem móvel<br />

em garantia de um crédito, sendo que estas normas estão governadas<br />

pelo princípio da publicidade.<br />

Há de entender-se que o constitutum possessorium não é<br />

forma admitida para a pignoração, embora seja perfeitamente<br />

admissível, desde o ponto de vista teórico, que alguém possa propor<br />

dar em penhor uma ou várias coisas, mas que a causa do tipo<br />

de trabalho do devedor, as precise diariamente, e por isso quer<br />

conservar (de acordo com o § 868 BGB) a posse imediata delas,<br />

transmitindo para o credor a posse mediata, sendo o próprio devedor,<br />

o mediador possessório. Mas, a lei não permite esta forma de<br />

negócio. Daí que, por via indireta, é só possível através da transmissão<br />

em garantia (V. infra).<br />

c) Cessão da pretensão reivindicatória, chamada também,<br />

cessio vindicationis (§ 931 BGB). Esta é a terceira forma supletória,<br />

assinalada por Hedemann, que consiste em que o alienante<br />

não tem em seu poder a coisa mesma, mas que se encontra em<br />

mãos de um terceiro, a título de empréstimo, ou por outra razão,<br />

um roubo, por exemplo. Como não pode entregá-la, mas como<br />

tem uma pretensão contra esse terceiro para que lhe devolva a<br />

coisa, (obrigacional ou real ou ambas de vez), cede esta pretensão,<br />

quer dizer, transmite ao adquirente uma pretensão.<br />

150 impulso


TRANSMISSÃO EM GARANTIA 33<br />

O BGB (§ 1204 e ss.) prevê transmissão de bens para garantir<br />

um crédito. É o caso do penhor, em que se exige que a coisa seja<br />

entregue (posse imediata) ao credor pignoratício (§ 1205, 1ª parte).<br />

Trata-se de uma garantia possessória, não sempre conveniente,<br />

quando o devedor precisa da coisa para trabalhar (maquinário,<br />

equipamento), transformar (matéria prima) ou, alienar (mercadorias).<br />

O penhor funciona sim, no Direito alemão como no Direito<br />

brasileiro, para pequenos empréstimos de dinheiro com garantia<br />

de objetos preciosos (jóias, por exemplo).<br />

Há poucos casos em que o sistema exige, em matéria de<br />

penhor, a inscrição em um registro especial em lugar da tradição<br />

do bem: cabos submarinos, (L. de 25 de março de 1925, RGBl. I,<br />

p. 37) e aeronaves (L. de 25 de fevereiro de 1959, Gezetz über<br />

Rechte an Luftfahrzeungen, BGBl. I, p. 57). Também é possível,<br />

dar em penhor, sem deslocamento do bem, no penhor agrícola, se<br />

feito por escrito e depositado no Tribunal Cantonal (L. de 5 de<br />

agosto de 1951 sobre a organização de arrendamentos agrícolas,<br />

Pachtkreditgesetz, BGBl. I, p. 494). O direito de penhor pode se<br />

dar sem desposse, como é o caso do penhor legal atribuído ao<br />

locador de um prédio sobre os bens móveis introduzidos pelo<br />

locatário (§§ 559 a 561 BGB) 34 .<br />

Entende Hedemann que no Direito alemão está excluída a<br />

utilização do constitutum possessorium para a pignoração,<br />

devendo dar-se um rodeio, utilizando-se de uma via quase clandestina<br />

para chegarmos à transmissão em garantia. 35<br />

A transmissão em garantia no Direito alemão (não penhor)<br />

de coisas móveis, se faz valer hoje graças ao direito consuetudinário,<br />

já que no BGB não há previsão a respeito. 36<br />

De um modo geral, o estudo da transmissão de bens móveis,<br />

créditos ou direitos, quando se trata de negócios de garantia, é<br />

assunto complexo, já que nas garantias mobiliárias, há, de parte do<br />

adquirente, uma retenção não definitiva, e mesmo que seu titular o<br />

seja de um direito pleno, conserva a propriedade só de um modo<br />

temporário (em fidúcia) para a segurança de um crédito.<br />

Nos empréstimos (mútuo, especialmente) é comum este tipo<br />

de garantia (os bancos são exemplo disto) com a diferença do tratamento<br />

dado pelos administradores de bens que utilizam da<br />

reserva de domínio como garantia.<br />

No Direito alemão, tecnicamente é possível transmitir em<br />

garantia não só bens móveis como imóveis, mas, parece que neste<br />

34 FROMONT, Michel et RIEG,<br />

Alfred, op. cit. Tome III Droit<br />

Privé, p. 185.<br />

35 HEDEMANN, J. W. op. cit.<br />

p. 178.<br />

36 A base estaria no art. 2º da<br />

Lei de Introdução ao Código<br />

Civil (BGB) no entendimento<br />

de que “lei” é toda norma jurídica<br />

escrita ou não. Nesse sentido<br />

V. SERICK, Rolf, op. cit.,<br />

p. 26-27.<br />

impulso<br />

151


último caso, seria mais efetivo impor um ônus hipotecário, por<br />

exemplo, do que fazer um ato translativo do bem em garantia, quer<br />

por resultar custosa a documentação, quer por razões fiscais (dupla<br />

tributação).<br />

Quanto à cessão de créditos ou de direitos em garantia, há no<br />

BGB regulação sobre sua penhora, mas nada sobre transmissão<br />

em garantia de créditos ou direitos. A origem é consuetudinária no<br />

sentido já expressado.<br />

O Supremo Tribunal Federal (em sentença proferida em 24-<br />

10-79) entendeu que propriedade em garantia, não é um domínio<br />

pleno: o objeto desta propriedade é garantir satisfação plena de um<br />

crédito, permancendo o devedor, no uso e exploração da coisa. 37<br />

Prevê o § 930 do BGB transmissão em garantia através do<br />

constituto possessório, quando por exemplo o concedente da garantia<br />

continua na posse (imediata) do bem não como proprietário mas<br />

como depositário (§ 868) e o adquirente fica com a posse mediata.<br />

37 SERICK, op. cit., p. 33.<br />

38 SERICK, op. cit., p. 101.<br />

RESERVA DE DOMÍNIO<br />

O BGB prescreve que, se o vendedor de uma coisa móvel<br />

tem-se reservado a propriedade até o pagamento do preço, deve<br />

entender-se que a transmissão de propriedade está sujeita à condição<br />

suspensiva do pagamento completo do preço (§ 455). Quer<br />

dizer que o negócio obrigacional não está submetido à condição,<br />

ele é puro e simples; o negócio de cumprimento é que está sujeito<br />

à condição. A regra é apenas válida para bens móveis. Não acontece<br />

isto com a transmissão da propriedade de bens imóveis por<br />

expressa proibição do § 925 concordante com o § 873: o entendimento<br />

é que o negócio obrigacional (Auflassung) não pode nem<br />

deve ser submetido à condição.<br />

Serick, 38 chama a atenção para o fato de que a reserva de<br />

domínio e a transmissão em garantia têm tido um desenvolvimento<br />

com assombrosa vida própria fora do direito escrito desde a<br />

entrada em vigor do BGB em 1<strong>90</strong>0 até nossos dias, sendo que o §<br />

455 previu a forma básica da reserva de domínio. Sem embargo,<br />

esta forma básica tem derivado em direção de uma obra de arte<br />

juridicamente mais perfeita, devido sobretudo às técnicas de prolongação<br />

e ampliação da reserva de domínio e ao direito de expectativa<br />

do comprador sob reserva. Adverte também que faltam<br />

regras sobre a transmissão em garantia, – quer dizer, sobre a transmissão<br />

em garantia de bens móveis, a cessão em garantia de cré-<br />

152 impulso


ditos e direitos –, e que só aparece aludida no § 223 do BGB, relativo<br />

à prescrição.<br />

Nos bens móveis, o contrato de compra e venda, sujeito ao<br />

Direito obrigacional, é a causa da transmissão da propriedade, e<br />

não só causa como razão que dá fundamento ao comprador para<br />

permanecer com a coisa. Mas não é suficiente, há necessidade de<br />

um segundo ato, o acordo transmissivo. Pode ser que a causa seja<br />

considerada ineficaz e o acordo transmissivo eficaz, isto graças ao<br />

princípio de abstração do Direito alemão.<br />

Portanto, como já lembrado por Hedemann, a transmissão do<br />

direito da propriedade se dá por acordo e entrega da coisa (§ 925),<br />

ou pelas formas subrogadas dos § 930 (constituto possessório) e §<br />

931 (cessão da pretensão à devolução).<br />

Daí que, o acordo transmissivo é um convênio abstrato, independe<br />

da causa, quer dizer, do acordo obrigacional, que pode até<br />

ser, em princípio, nulo e que daria lugar a que haja enriquecimento<br />

ilícito, caso em que deveria seguir-se o caminho inverso (§ 929).<br />

Nesse contexto a compra e venda com reserva de domínio é<br />

uma venda, que no acordo obrigacional em nada se diferencia do<br />

negócio puro e simples de compra e venda de bens móveis; diferencia-se<br />

sim, na transmissão, que a lei supõe, sujeita à condição<br />

suspensiva. O vendedor permanece como proprietário pleno pendente<br />

conditione, mas por outro lado, cumprida a condição, o direito<br />

de propriedade passa automaticamente ao comprador (§ 158).<br />

Como Serick, 39 entendemos que neste caso, reserva de domínio, há<br />

uma quebra do princípio de abstração, pelo qual a condição faz o<br />

papel de nó que une ambos negócios, o obrigacional com o real.<br />

Segundo Rodríguez-Cano, 40 foi tese de Blomeyer (1939) a<br />

que equipara a reserva de domínio à constituição de um direito de<br />

penhor sobre a coisa vendida na compra-venda a prazos das coisas<br />

móveis. Posição que sofreu muitas críticas; segundo as quais, esta<br />

doutrina,<br />

“presupone, someter la tradición, del vendedor al comprador,<br />

a una condición resolutoria, (puesto que al<br />

acreedor prendario, es decir, al vendedor, se le transmite,<br />

la propriedad de la prenda bajo la condición suspensiva<br />

del impago del precio) y ello es claramente<br />

contradictorio con el § 455 del BGB que construye la<br />

reserva de dominio como un sometimiento a condición<br />

suspensiva de la mencionada tradición”.<br />

39 SERICK, op. cit. p. 46.<br />

40 BERCOVITZ, RODRÍGUEZ-<br />

CANO, Rodrigo. La Cláusula<br />

de Reserva de Dominio. Estudio<br />

sobre su naturaleza jurídica en<br />

la compraventa a plazos de bienes<br />

muebles, Edit. Moneda y<br />

Crédito, Madrid, 1971, p. 15-17.<br />

impulso<br />

153


41 Faz-se referência à nomeação<br />

pelo Conselho Federal em junho<br />

de 1874 de uma “Primeira<br />

Comissão” (Erste Kommision)<br />

de 11 membros, entre altos funcionários<br />

do MInistério da Justiça,<br />

magistrados e de dois<br />

professores universitários, entre<br />

os quais o célebre romanista<br />

WINDSCHEID; este “Primeiro<br />

Projeto” (I. Entwurf, E I), publicado<br />

em 1888, acompanhado de<br />

uma Exposição de Motivos<br />

(Motive) de 5 volumes, recebeu<br />

vivas críticas pelo seu caráter<br />

doutrinário e extremamente técnico,<br />

ininteligível para a grande<br />

massa alemã e muito pesado<br />

para os próprios juristas e, da<br />

nomeação de uma “Segunda<br />

Comissão” (Zweite Kommission)<br />

feita pelo mesmo Conselho em<br />

dezembro de 18<strong>90</strong> formada de<br />

11 membros permanentes e 12<br />

não permanentes, cujo projeto, o<br />

“Segundo Projeto” (Zweiter Entwurf,<br />

E II), com algumas<br />

modificações de importância<br />

variável foi submetido pelo<br />

Conselho Federal ao Reichstag<br />

em 1º de julho de 1896 sob a<br />

denominação de “Terceiro Projeto”<br />

(Dritter Entwurf, E III). Ver<br />

nesse sentido, FROMONT, Michel<br />

e RIEG, Alfred (et alii), op.<br />

cit., Tome I Les Fondements, págs.<br />

70-75.<br />

Sobre a cláusula de reserva de domínio e o tipo de condição<br />

a que estaria submetido o negócio, deve lembrar-se que quando da<br />

redação do Código Civil alemão, as duas comissões 41 designadas<br />

tinham pareceres contraditórios a respeito. Enquanto a primeira<br />

delas assegurava que a venda com reserva de domínio estava submetida<br />

a uma condição resolutiva, a segunda afirmava estar submetida<br />

a condição suspensiva, critério que prevaleceu no § 455 do<br />

BGB. Segundo a doutrina da condição resolutiva, não é verdade<br />

que seja a vontade das partes a vinculação da transmissão da posse<br />

com a tradição, e que a solução dada pelo BGB é duplamente chocante,<br />

porque contradizia múltiplas legislações particulares (o<br />

Código Civil de Saxônia equipara a reserva de domínio ao direito<br />

de penhor ou ao de hipoteca, quando tem por finalidade garantir<br />

um direito de crédito).<br />

A conseqüência lógica, segundo Rodríguez-Cano, de ver na<br />

reserva de domínio um direito de penhor seria, na realidade, seu<br />

efeito principal: que o vendedor poderá dar lugar a uma alienação<br />

da coisa sobre a que constitui a garantia, cobrando seu preço sobre<br />

o preço conseguido, mas em momento algum, poderá apropriar-se<br />

diretamente da coisa.<br />

Pergunta Rodríguez-Cano, por que Blomeyer não se acolhe a<br />

uma solução tão simples e totalmente compaginada com a sua<br />

tese? Uma razão, diz, há de ser as conseqüências práticas que a<br />

doutrina alemã atribui à reserva de domínio. A outra razão, deve<br />

ser o fato de que Blomeyer<br />

“apuntaba que la especialidad que presenta (de acuerdo<br />

com la doctrina alemana), la reserva de dominio como<br />

derecho de prenda en cuanto a sua ejecución, se debía<br />

a que dicha reserva de dominio no solo garantizaba el<br />

pago del precio, sino también la recuperación de la<br />

cosa por el vendedor en cualquier supuesto de ineficacia<br />

originaria o sobrevenida de la compra venta. Y es<br />

que frente al principio de la abstracción, vigente en<br />

Alemania para las transmisiones patrimoniales, la<br />

cláusula de reserva de dominio da lugar a una conexión<br />

de la tradición (causalización del negocio dispositivo)<br />

con el negocio obligacional de compra venta, en<br />

tanto en cuanto su eficacia definitiva depende de la<br />

vigencia y cumplimiento de éste. Es, pues, esta segunda<br />

función de la reserva de dominio la que obliga a man-<br />

154 impulso


tener esa eficacia, aunque se pudiese afirmar también<br />

en Alemania que dicha reserva implica una condición<br />

resolutoria, impuesta al negocio dispositivo”. 42<br />

Concluindo, para Rodríguez-Cano, seria um desastre permitir<br />

que na reserva de domínio se garanta diretamente ao vendedor com<br />

a propriedade da coisa. Seria a via para defraudar a proibição do<br />

pacto comissório, o que reforça a idéia de que a reserva de domínio<br />

submete o negócio dispositivo a uma condição suspensiva<br />

Esta posição, submetimento à condição suspensiva, foi,<br />

segundo Rodríguez-Cano, a mantida por Candil, em 1915, na sua<br />

monografia sobre o “Pactum reservati dominii”, o primeiro a estudar<br />

no ordenamento espanhol esta figura, o que a torna de obrigatória<br />

referência, segundo este autor, sendo que só Oertmann em<br />

1930 publicou um artigo na Revista de Direito Privado.<br />

Candil considera que no Direito romano a transmissão da<br />

propriedade não se produzia, apesar da entrega da coisa, até o<br />

pagamento do preço desta. Comenta ainda que essa norma não é<br />

senão uma acertadíssima interpretação da vontade das partes; daí<br />

que essa suposta vontade pudesse modificar-se por outra contrária<br />

expressada por elas mesmas: quando se oferecia uma garantia real<br />

ou pessoal para o pagamento do preço ou quando o vendedor se<br />

fiava simplesmente do comprador (o que se entendia sempre que<br />

se assinalava um prazo para a paga do preço). De acordo com esta<br />

intepretação do Direito romano, parece lógico admitir, nele, a validade<br />

do pactum reservati dominii, embora se conceda crédito (adiantamento<br />

do pago do preço) ao comprador: posto que com a vontade<br />

das partes se pode evitar a aplicação da regra geral, (precisamente<br />

por que esta é interpretação da vontade normal das mesmas),<br />

lógico é que essa mesma vontade, devidamente expressa,<br />

possa produzir o efeito de voltar a essa regra geral. 43<br />

A diferença entre a propriedade sujeita a garantia fiduciária e<br />

a propriedade reservada está na função que cumpre a garantia nestas<br />

duas formas de propriedade. Aparece com maior nitidez no<br />

concurso de credores.<br />

Na propriedade em garantia, decorrente de um convênio (de<br />

garantia), em que há apenas uma pretensão obrigacional de restituição,<br />

se satisfeito o crédito, o credor tem um direito de preferência<br />

para ser pago sobre uma coisa que é da massa. Na propriedade<br />

reservada, que é um domínio ordinário, o pretendente tem direito<br />

42 BERCOVITZ, RODRÍGUEZ-<br />

CANO, Rodrigo, op. cit. p. 93-<br />

94. V. também, pp. 73-94 em<br />

que trata da Reserva de domínio<br />

e a classe de condição a que se<br />

submete a tradição.<br />

43 BERCOVITZ, RODRÍGUEZ-<br />

CANO, Rodrigo, op. cit. p. 75-<br />

78.<br />

impulso<br />

155


44 De conformidade com os §§<br />

48 e 43 KO (Ordenança Concursal<br />

de 10-02-1977), no primeiro<br />

caso apenas há direito a<br />

exigir preferência sobre a coisa<br />

para satisfazer o crédito; já no<br />

segundo, trata-se de um proprietário<br />

pleno com direito a separação.<br />

Nesse sentido V. SERICK,<br />

op. cit. p. 43 e 120 a 122.<br />

45 SERICK, op. cit. p. 45.<br />

46 SERICK, op. cit. p. 44.<br />

a exigir separação da massa, já que se trata de propriedade separada<br />

e distinta daquela. 44<br />

Diferentemente do entendimento doutrinário e jurisprudencial<br />

alemão, na alienação fiduciária em garantia, o Tribunal pátrio<br />

entendeu que a propriedade é do credor, dizendo que o bem é impenhorável,<br />

distinto da massa. “Ademais, o bem disputado é de exclusiva<br />

propriedade do credor, por se tratar de contrato com cláusula de<br />

alienação fiduciária (D.L. 911/69, art.. 1º), não podendo, destarte,<br />

haver arrecadação em favor da massa no processo de insolvência<br />

(CPC art. 776). É que apenas os bens penhoráveis serão objeto de<br />

arrecadação (art. 775), e entre eles não se inclui o entregue ao devedor<br />

mediante garantia fiduciária”. “Na alienação em garantia não<br />

há dupla propriedade. Há propriedade única e exclusiva do credor<br />

fiduciário, que se extingue com o pagamento da dívida, quando se<br />

transfere automaticamente ao devedor. Este, antes do pagamento, é<br />

mero depositário, não podendo por isso incidir penhora sobre o<br />

bem alienado, para garantir crédito de outros credores” (RT 450/<br />

270, 504/150 e 531/235”. “Tem-se decidido, aliás, que, “em caso<br />

de falência do devedor, o proprietário da coisa alienada, conforme<br />

o D.L. 911/69, pode pleitear a restituição do objeto da alienação<br />

fiduciária (RT 440/118, 453/175, 478/73, 507/185, 534/67, 551/77 e<br />

599/249)”. [V. RT 629/408 (RHC 65.748-6-SP 1ª turma J. 12-02-88,<br />

relator M. O Correia DJU 11-03-88)].<br />

Como lembrado, o vendedor com reserva de domínio sujeito<br />

a condição resolutiva (desde o ponto de vista do vendedor), ou<br />

melhor, cuja obrigação de entrega está sujeita a condição suspensiva<br />

do pagamento total do preço, conserva esta posição até dar-se<br />

situação de condição cumprida. O comprador tem, por sua vez,<br />

certeza de que adquirirá a propriedade assim que terminar de<br />

pagar o preço: ele tem uma expectativa de direito. O Supremo Tribunal<br />

Federal alemão [in BGH de 20-02-84, ZIP, 1984, pp. 420 e<br />

ss. (primer grado de la propiedad)] 45 tem declarado que “o direito<br />

de expectativa é um primeiro grau (Vorstufe) da propriedade”.<br />

Esta expectativa representa, pois, um valor patrimonial, capaz<br />

de ser transmitido em garantia para obtenção de um crédito<br />

(transmissível a um credor do comprador nos termos dos §§ 929,<br />

930 BGB). [BGH de 24-10-1979 (Az VIII, ZR 289/78), BGHZ, 75,<br />

pp. 221, 227], 46 mas deve advertir-se, imediatamente, que esta<br />

transmissão pode resultar ineficaz se a expectativa decorrente de<br />

contrato obrigacional resulta nula, ou melhor, resulta diminuída na<br />

156 impulso


sua eficácia real, por ser dependente de um negócio obrigacional<br />

causal.<br />

Assim, acordo e tradição (ou às vezes só acordo, nos termos<br />

dos §§ 929 e 930 BGB) passam ao segundo adquirente (o credor<br />

em garantia de um direito de expectativa) com esta limitação.<br />

A transmissão de um direito de expectativa está sujeita, como<br />

deve ter sido advertido, a uma condição resolutiva, na medida em<br />

que o devedor, ao pagar o débito, recupera a propriedade automaticamente.<br />

O direito de expectativa, não regulado pelo Código Civil, mas<br />

reconhecido pela doutrina e pela jurispendência, é de natureza<br />

híbrida, já que participa do Direito das Obrigações e do Direito das<br />

Coisas. Precisa, para nascer, de sua causa jurídica: o contrato de<br />

venda com reserva de domínio, de inteiro domínio do Direito obrigacional.<br />

Porém, seus efeitos, se cumprida a condição, são reais.<br />

Com efeito, Serick entende que este “direito de expectativa”<br />

(Antwartschaftrecht) tem uma dupla natureza obrigacional-real, e<br />

afirma que o Supremo Tribunal Federal tem subscrito esta posição,<br />

refirindo-se<br />

à transmissão em garantia do direito de expectativa e à<br />

situação do segundo adquirente a respeito da relação<br />

vendedor-comprador sustenta que: na primeira relação<br />

jurídica, não existe nehum direito de expectativa quando<br />

o contrato obrigacional não existe, ou o resultado é nulo<br />

ou ineficaz; nestas condicções resulta excluída a possibilidade<br />

de uma aquisição a non dominio do direito de<br />

expectativa, pois, não resulta protegida a errônea<br />

crença sobre a existência do crédito sobre o preço de<br />

venda. 47 Igualmente, extingue-se automaticamente o<br />

direito de expectativa do segundo adquirente do mesmo<br />

quando o vendedor, titular da reserva rescinde o contrato<br />

por mora do comprador (BGHZ – Repertório de<br />

Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal alemão –<br />

35, 85, 94) ou quando o contrato é impugnado. O direito<br />

de expectativa, um primeiro grau da propriedade<br />

(BGHZ, 28,16,27) resulta diminuído na sua eficácia<br />

própria do direito real como conseqüência de sua<br />

dependência com o negócio obrigacional causal. 48<br />

A exigência de um ato de entrega, no penhor, regulado pelos<br />

§§ 1204 a 1258 BGB, única forma de garantia para um empréstimo<br />

47 RAISER, op. cit., p. 38;<br />

SERICK, op. cit., p. 271.<br />

48 SERICK, op. cit., p. 45.<br />

impulso<br />

157


com feição de coisa móvel, deriva do princípio da publicidade.<br />

Cumpre a entrega função de exteriozação, concordante com o<br />

§ 929 relativa à transmissão de uma coisa móvel. Para ambas, a<br />

situação de entrega em garantia ou transmissão da propriedade<br />

modificadora da situação jurídica se exterioriza através da entrega.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BERCOVITZ RODRÍGUEZ-CANO, Rodrigo. La Cláusula de<br />

Reserva de Dominio. Estudio sobre su naturaleza jurídica en la<br />

compra y venta a plazos de bienes muebles, Madrid: Edit.<br />

Moneda y Crédito, 1971.<br />

Código Civil Alemão (BGB) §925. Trad. Souza Diniz. Rio de<br />

Janeiro: Record, 1960.<br />

ENNECCERUS, KIPP, WOLFF. Tratado de Derecho Civil. Barcelona:<br />

Bosch, 1935.<br />

FROMONT, Michel, RIEG, Alfred e outros. Introduction au Droit<br />

Allemand. République Fédérale. Paris: Éditions Cujas, Droit<br />

Privé, 1991.<br />

HEDEMANN, J.W. Tratado de Derecho Civil. Madrid: Revista de<br />

Derecho Privado, 1955.<br />

MAGALHÃES, Vilobaldo Bastos de. Compra e Venda e Sistemas<br />

de Transmissão da Propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 1981.<br />

SERICK, Rolf. Garantias mobiliarias en Derecho Alemán. Trad.<br />

Angel Carrasco Perera. Madrid: Tecnos, 19<strong>90</strong>.<br />

TEIXEIRA, José Guilherme Braga. O Direito Real de Superfície.<br />

São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.<br />

Abreviações<br />

BGB Bügerliches Gesetzbuch (Código Civil)<br />

BGBI Bundesgesetzblatt (Diário Oficial)<br />

BGHZ Entscheidungen des Budesgerichtshofs in Zivilsachen<br />

(Acórdãos do Supremo Tribunal Federal em matéria civil)<br />

CPC Código do Processo Civil<br />

D.L. Decreto Lei<br />

GBO Ordenança do Registro Imobiliário<br />

HGB Haldelsgesetzbuch (Código do Comércio)<br />

RHC Recurso de Habeas Corpus<br />

RT Revista dos Tribunais (Jurisprudência)<br />

158 impulso


ZIP<br />

Zeitschrift für Wirtschaftsrecht und Insolvenzpraxis,<br />

1980 ss. (desde 1983: Zeitschrift für Wirtschaftsrecht.<br />

impulso<br />

159


UNIÃO ESTÁVEL:<br />

ANTIGA FORMA DE CASAMENTO DE FATO<br />

ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO<br />

Foi aprovado, na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº<br />

1.888, de 1991, de autoria da Deputada Beth Azize, em que figurou<br />

como Relator o Deputado Edesio Passos, fundamentado parcialmente<br />

no Esboço de Anteprojeto de lei, às páginas 280 a 283, de<br />

meu livro “Do concubinato ao casamento de fato” (2ª ed. Belém:<br />

Cejup, 1987. 306 p.).<br />

Atualmente, esse mesmo Projeto de Lei encaminhou-se ao<br />

Senado Federal, tomando o nº 84, de 1994, tendo como relator o<br />

senador Wilson Martins. Este projeto, mais completo, resgatou<br />

artigos do meu aludido Esboço, que tinham sido retirados do Projeto<br />

originário, da Câmara dos Deputados. Tudo para que seja<br />

regulamentada a União Estável, prevista no parágrafo 3º do artigo<br />

226 da Constituição Federal, como uma das formas de instituição<br />

da família brasileira.<br />

BREVES ASPECTOS HISTÓRICOS<br />

Na antigüidade a família era em geral constituída por meio<br />

de celebrações religiosas ou por meio de simples convivência. No<br />

Direito Romano a mulher passava a integrar a família de seu<br />

marido, pela conventio in manum, sujeitando-se à manus, que era<br />

o poder marital, por uma das seguintes formas de constituição<br />

familiar: a) pela confarreatio, que consistia em uma cerimônia<br />

religiosa, reservada ao patriciado, com excessivas formalidades,<br />

com a oferta a Júpiter de um pão de farinha (panis farreum), que<br />

impulso<br />

159


os nubentes comiam, juntos, realizada perante dez testemunhas e<br />

perante o Sacerdote de Júpiter (flamen Dialis); b) pela coemptio,<br />

casamento privativo dos plebeus, que implicava a venda simbólica<br />

da mulher ao marido, assemelhando-se pela forma à mancipatio; e<br />

c) pelo usus, que era o casamento pela convivência ininterrupta do<br />

homem e da mulher, por um ano, em estado possessório, que automaticamente<br />

fazia nascer o poder marital, a não ser que, em cada<br />

período de um ano, a mulher passasse três noites fora do lar conjugal<br />

(trinoctii usurpatio).<br />

Além dessas formas de casamento, existiu o concubinato em<br />

Roma, regulamentado de modo indireto à época do Imperador<br />

Augusto pelas Lex Iulia e Papia Poppaea de maritandis ordinibus.<br />

Embora tendo reprovado o concubinato, como forma de<br />

constituição de família, a Igreja Católica tolerou-o, quando não se<br />

cuidasse de união comprometedora do casamento ou quando<br />

incestuosa, até sua proibição pelo Concílio de Trento, em 1563.<br />

Ressalte-se em verdade que a existência do casamento nos<br />

moldes de antigamente, sem os formalismos exagerados de hoje,<br />

não possibilitava, praticamente, a formação familiar sob o modo<br />

concubinário.<br />

Realmente, bastava que um homem convivesse com uma<br />

mulher, por algum tempo, como se casados, com ou sem celebração<br />

religiosa, para que se considerassem sob casamento. Isto, porque,<br />

nessa época, o concubinato puro, não adulterino nem incestuoso,<br />

que é utilizado hoje como modo de constituição de família,<br />

era o casamento de fato, provado por escritura pública ou por duas<br />

testemunhas.<br />

Esse o casamento de fato, que, sob a singela forma de convivência<br />

no lar, selava a união dos cônjuges, sob o pálio do Direito<br />

Natural.<br />

O concubinato, portanto, existia, somente, adulterino, como<br />

concorrente e paralelamente ao casamento, de modo excepcional e<br />

desabonador da família.<br />

Todavia, desrespeitando essa lei natural e simples, entendeu<br />

o legislador de criar formalismos ao casamento, criando-o de<br />

modo artificial, na lei, quando em verdade ele é um fato social,<br />

que a legislação deve regular somente no tocante a seus efeitos,<br />

para impedir violações de direitos.<br />

Assim, editou-se no Brasil o Decreto nº 181, de 24 de janeiro<br />

de 18<strong>90</strong>, que secularizou o casamento. A partir dele, o formalismo<br />

160 impulso


tomou conta da legislação brasileira, em matéria de casamento,<br />

reeditando-se o sistema no Código Civil.<br />

Com isso, deixou o Estado brasileiro não só de considerar o<br />

casamento de fato (por mera convivência duradoura dos cônjuges),<br />

bem como o casamento religioso, que, hoje, por si só, sem o posterior<br />

registro civil, é considerado concubinato. Não tem ele existência<br />

autônoma, independente, como antes desse Decreto de 18<strong>90</strong>.<br />

CAUSAS DO CONCUBINATO<br />

A par desse sistema formal, com muitos óbices à separação,<br />

e a par das dificuldades ao registro do casamento religioso, surgiu<br />

paralelamente uma nova tendência de constituição de família, pelo<br />

concubinato, que existe com grande intensidade nos países latinoamericanos.<br />

Ressalte-se, como visto, e mais uma vez que, entre nós, a<br />

falta de registro civil do casamento religioso, base secular de constituição<br />

de família, importa concubinato.<br />

É certo ainda que, com o advento do progresso e a agitação<br />

nos centros urbanos, diminuiu sobremaneira e paulatinamente a<br />

tolerância e a compreensão dos problemas aflitivos dos casais,<br />

levando esse estado de coisas aos desquites (hoje, separações judiciais).<br />

Como crescesse o número de desquites, era preciso que se<br />

possibilitasse a existência do divórcio pela reforma constitucional,<br />

que só ocorreu em meados de 1977.<br />

Embora a sociedade brasileira reprovasse o concubinato,<br />

também como forma de constituição familiar, no começo do<br />

século, o certo é que, com esse número crescente de desquitados,<br />

impossibilitados de se casarem, eles constituíram suas novas famílias<br />

à margem da proteção legal, cumprindo o desígnio da lei natural<br />

de que o homem é animal gregário e necessita dessa convivência<br />

no lar.<br />

Quando surgiu a lei do divórcio, a par de nova filosofia liberal<br />

do povo, já a sociedade acostumara-se à família concubinária,<br />

que preenche atualmente grande espaço de nossa sociedade, com<br />

problemas seríssimos que necessitam de cuidados legislativos.<br />

CONCEITO E ESPÉCIES DE CONCUBINATO<br />

Todavia, neste passo é indispensável que se conceitue o concubinato<br />

por suas espécies, para diferenciá-las devidamente.<br />

Em sentido etimológico, concubinatus, do verbo concumbere ou<br />

impulso<br />

161


concubare (derivado do grego), significava, então, mancebia, abarregamento,<br />

amasiamento.<br />

Apresenta-se esse vocábulo atualmente com dois sentidos:<br />

amplo e estrito. Pelo sentido amplo ou “lato”, significa todo e<br />

qualquer relacionamento sexual livre; pelo sentido estrito, é a<br />

união duradoura, constituindo a sociedade familiar de fato, com<br />

affectio societatis, respeito e lealdade recíprocos.<br />

Como se pode aquilatar, esse sentido amplo compreende<br />

inclusive a concubinagem, com relacionamentos reprováveis, tal,<br />

por exemplo, o adulterino, que leva uma pessoa casada a conviver,<br />

concubinariamente, em concorrência com sua vida conjugal.<br />

Daí a necessidade de fixar-se o conceito de concubinato em<br />

sua significação estrita, com fundamento no artigo 1.363 do<br />

Código Civil, onde se assegura que a sociedade de fato nasce do<br />

somatório recíproco de esforços, pessoais ou materiais, para a<br />

obtenção de fins comuns.<br />

À falta de outro dispositivo legal mais específico, é nesse que<br />

se encontra a base da constituição da família de fato, que se mostra<br />

pela coabitação dos concubinos, como se casados fossem, presos<br />

pela affectio societatis, com a responsabilidade de provisão do lar<br />

pelo concubino, com o auxílio de sua mulher, cuidando ambos de<br />

sua prole. Por isso que nenhuma sociedade pode existir sem a<br />

colaboração e a lealdade dos sócios.<br />

Com esses dados e elementos é possível agora conceituar o<br />

concubinato, abrangendo todas as suas espécies, como a união<br />

estável, duradoura, pública e contínua, de um homem e de uma<br />

mulher, não ligados por vínculo matrimonial ou concubinário, mas<br />

convivendo como se casados, sob o mesmo teto ou não, constituindo,<br />

assim, sua família de fato.<br />

Desses elementos surgem as espécies de concubinato: puro e<br />

impuro. É puro o concubinato, quando se constitui a família de<br />

fato, sem qualquer detrimento da família legítima ou de outra<br />

família de fato (este poderá rotular-se, também, de concubinato<br />

leal). Assim, ocorre, por exemplo, quando coabitam solteiros,<br />

viúvos e separados judicialmente, sob essa forma familiar.<br />

Impuro é o concubinato, se for adulterino, incestuoso ou desleal,<br />

como, respectivamente, o de um homem casado, que mantenha,<br />

paralelamente a seu lar, outro de fato; o de um pai com sua<br />

filha; e o de um concubino formando um outro concubinato.<br />

Ressalte-se, neste passo, que, segundo meu entendimento, se<br />

o concubinato for adulterino ou desleal, mas o concubino faltoso<br />

162 impulso


estiver separado de fato de seu cônjuge ou de seu concubino anterior,<br />

cessará a adulterinidade ou a deslealdade, tornando-se puro<br />

seu concubinato.<br />

Entendo que o concubinato puro ou concubinato simplesmente,<br />

ou união estável, na expressão atual de nossa Constituição,<br />

deve merecer por parte dos Poderes Públicos completa proteção;<br />

diferentemente do que deve suceder com o concubinato impuro ou<br />

concubinagem. Aduz-se que deste último não devem em geral ser<br />

protegidos seus efeitos, a não ser no concubinato de boa fé, como<br />

acontece analogamente com o casamento putativo, e para evitar<br />

locupletamento indevido, quando a concubina, mesmo em adultério,<br />

aumenta o patrimônio do concubino casado.<br />

CONCUBINATO E SOCIEDADE DE FATO<br />

Nossas Doutrina e Jurisprudência têm diferenciado a situação<br />

concubinária da sociedade de fato.<br />

Realmente, a par do concubinato, vislumbrado em conceito<br />

já expendido, a comprovação da existência de sociedade de fato,<br />

patrimonial, entre os concubinos, é exigida pelo Supremo Tribunal<br />

Federal, pelo princípio sumulado sob nº 380, para que se possibilite<br />

a dissolução judicial societária, com a partilha dos bens adquiridos<br />

pelo esforço comum.<br />

Em apoio a essa súmula, têm entendido nossos Tribunais que<br />

o simples concubinato não gera direitos ao patrimônio do companheiro,<br />

sendo indispensável a prova para formação da sociedade<br />

de fato, com a efetiva colaboração econômica ou financeira dos<br />

concubinos, a realização de seu patrimônio comum.<br />

Em que pese esse posicionamento de torrencial jurisprudência,<br />

entendo que, sendo o concubinato puro, união estável,<br />

basta a convivência concubinária, para que seja de admitir-se o<br />

condomínio. Neste caso, deve presumir-se o esforço comum dos<br />

concubinos, pois não se uniram eles sob mera sociedade de fato,<br />

em qualquer empresa em que se vislumbre interesse meramente<br />

econômico, mas com o propósito de constituírem sua família.<br />

Esta última posição encontra respaldo em alguns acórdãos de<br />

nossos Tribunais.<br />

Mas esse apoio à relação concubinária pura, que pretendo,<br />

deve ser retirado quanto ao concubinato impuro ou desleal; nesse<br />

caso deve ser exigida prova da aquisição patrimonial.<br />

Entretanto, a atual súmula 380, citada, não diferencia entre as<br />

espécies de concubinato, exigindo essa participação comum, na<br />

impulso<br />

163


aquisição proprietária, tanto numa quanto noutra espécie de concubinato.<br />

E, exigindo essa participação efetiva, de cunho econômico,<br />

a mesma súmula iguala a sociedade concubinária com outra<br />

qualquer, alheia aos desígnios familiares, negando o cunho de<br />

contribuição espiritual, que existe no lar.<br />

REGULAMENTAÇÃO DO CONCUBINATO<br />

É certo que a família de fato vive em maior clima de liberdade,<br />

do que a família de direito.<br />

Todavia, a excessiva liberdade, em Direito, é muito perigosa,<br />

pois acaba por escravizar o mais fraco. Tudo porque essa liberdade<br />

não pode ser totalmente desapegada de regulamentação, há<br />

que ser condicionada, pois ela termina, onde outra começa.<br />

Assim, o Estado tem interesse em proteger as pessoas, evitando<br />

lesões de direito.<br />

No fundo, o amor que liga os conviventes, ao primeiro<br />

impacto da união, é como a afeição dos sócios em uma empresa<br />

qualquer: pode acabar. Entretanto, quando uma sociedade civil ou<br />

comercial termina, não é o mesmo que o findar de uma sociedade<br />

de família. Esta é mais apegada a regras morais e religiosas, ao<br />

Direito Natural, devendo ter uma proteção maior, no âmbito do<br />

Direito de Família, para que se respeite a célula, onde, no mais das<br />

vezes, com o nascimento de filhos, grava-se a natureza pela descendência,<br />

contrariando qualquer reprovação, que possa existir<br />

contra essa situação fática.<br />

Na sociedade familiar de fato, como na de direito, os interesses<br />

são, preponderantemente, de cunho pessoal e imaterial. Isto,<br />

sem se cogitar do interesse maior do Estado, em preservar sua própria<br />

existência, mantendo no lar, as famílias, em relativo estado de<br />

felicidade e de segurança financeira.<br />

Porém, ao lado dessa liberdade convivencial, impõe-se a responsabilidade,<br />

para que, em nome daquela não cresça demais o<br />

direito de um concubino, a ponto de lesar o do outro.<br />

A família de fato não pode viver sob um clima de liberdade<br />

sem responsabilidade, tanto que, mesmo sem estar regulamentada,<br />

legalmente, em um só todo, já algumas normas existem a seu respeito,<br />

talhadas na lei, na jurisprudência e na doutrina.<br />

Não se pode em sã consciência admitir que o regramento de<br />

conduta, na família de fato, seja inibidora da liberdade, porque, em<br />

Direito, cuida-se da liberdade jurídica, que vive no complexo do<br />

relacionamento humano, com as limitações necessárias.<br />

164 impulso


Realmente, se é licito que duas pessoas vivam como marido<br />

e mulher, sem serem casadas, não há que admitir-se que, em caso<br />

de abandono ou de falecimento, bens fiquem em nome de uma<br />

delas, embora, por justiça, pertençam a ambos. Essa liberdade seria<br />

escravizante a possibilitar lesão, enriquecimento ilícito, o que é<br />

incompatível com o pensamento jurídico. O Estado há que intervir<br />

nessas situações, sendo melhor que o faça antes, regulamentando a<br />

matéria relativa à família de fato. Essa regulamentação, pelo Estatuto<br />

da União Estável, que venho propondo, deve mantê-la em sua<br />

forma natural, preservando-se a liberdade dos conviventes, mas<br />

sob clima de responsabilidade, para que exista segurança, em caso<br />

de lesão. Esta deve ser, sempre, prevista, para ser repelida.<br />

Esse é o meu lema, para a regulamentação da união estável:<br />

Liberdade com Responsabilidade.<br />

CONSTITUIÇÃO DE 1988<br />

A Constituição de 1988, pelo parágrafo 3º de seu artigo 226,<br />

reconheceu o concubinato puro, não adulterino nem incestuoso,<br />

como forma de constituição de família, como instituto, portanto,<br />

de Direito de Família.<br />

Houve, por bem, ainda, o legislador constituinte substituir a<br />

palavra concubinato, pela expressão união estável, para inaugurar<br />

nova era de compreensão aos conviventes, respeitando seus direitos<br />

e sua sociedade de fato, que sempre existiu, antes do Decreto<br />

nº 181, de 18<strong>90</strong>, sob forma de casamento de fato ou presumido.<br />

Por outro lado, entretanto, não estendeu essa mesma<br />

Constituição ao casamento religioso, como entendo correto, os<br />

efeitos do casamento civil, para recuperar sua antiga dignidade,<br />

ante o Estado. Limita-se ela, por seu artigo 226, parágrafo 2º, a<br />

dizer, do mesmo modo que a anterior, que “O casamento religioso<br />

tem efeito civil, nos termos da lei”. Esta, entretanto (Lei nº 1.110,<br />

de 23 de maio de 1950), só admite tal efeito quando pré ou pósexiste<br />

a habilitação para o casamento civil.<br />

Assim, tanto o casamento civil, como o religioso, com suas<br />

formalidades próprias, devem existir, no meu entender, automática<br />

e independentemente.<br />

A união estável precisa ser regulamentada, para que não existam<br />

abusos entre os conviventes, que devem ser livres na convivência,<br />

mas responsáveis.<br />

impulso<br />

165


CASAMENTO DE FATO E UNIÃO ESTÁVEL<br />

Como visto, tanto a união estável como o antigo casamento<br />

de fato nascem espontânea e naturalmente na sociedade, isentos de<br />

formalismos. Em verdade, a união estável de hoje, nada mais é, na<br />

sua aparência, do que o antigo casamento de fato ou presumido.<br />

Entretanto, no casamento de fato os conviventes sentem-se<br />

casados, como esposos, porque são casados, tal como no casamento<br />

da common law, que existe hoje em alguns Estados americanos,<br />

assim como por comportamento do Estado de Tamaulipas,<br />

no México, no da Escócia e no casamento de fato ou clandestino<br />

admitido pelas Ordenações Filipinas, até o advento do aludido<br />

Decreto nº 181, de 18<strong>90</strong>, que instituiu entre nós o casamento civil.<br />

Desse modo, pelo casamento de fato, desde o início da convivência,<br />

sem quaisquer formalidades de celebração, ainda que<br />

religiosa, existe o casamento presumido.<br />

Na união estável a liberdade dos conviventes é maior porque<br />

vivem como se fossem marido e mulher, mas sem o serem em verdade.<br />

Não existe o estado conjugal, mas, meramente, o convivencial<br />

ou concubinário.<br />

Por outro lado, destaque-se que, sob o prisma psicológico,<br />

atualmente, as pessoas casadas só religiosamente, sem que tenha<br />

existido registro de seu casamento, embora se sintam casadas,<br />

vivem sob o regime da união estável.<br />

LEI 8.971, DE 29.12.1994<br />

Com a edição da Lei nº 8.971, de 29/12/1994, regulou-se o<br />

“direito dos companheiros a alimentos e à sucessão”.<br />

O art. 1º, dessa lei, concede à companheira ou ao companheiro,<br />

na união estável (concubinato puro), após a convivência de<br />

cinco anos ou a existência de prole, o direito de alimentos, nos<br />

moldes da Lei nº 5.478, de 25/07/1968, “enquanto não constituir<br />

nova união e desde que prove a necessidade”.<br />

Confesso que, em princípio e pelo meu Esboço de Anteprojeto<br />

de “Estatuto dos Concubinos”, não fui favorável à concessão<br />

de direito a alimentos entre conviventes, a não ser quando contratados,<br />

por escrito.<br />

Acontece que já existia uma tendência jurisprudencial à concessão<br />

desses alimentos, após a edição da Constituição de 1988;<br />

166 impulso


talvez por esta, em seu art. 226, § 3º, recomendar que a lei facilite<br />

a conversão da união estável em casamento.<br />

Desse modo, concedendo direito alimentar aos conviventes,<br />

reconhece a lei sob cogitação os mesmos direitos e deveres existentes<br />

entre cônjuges, constantes da aludida Lei de Alimentos, nº<br />

5.478, de 1968.<br />

Todavia, entre os conviventes esse direito-dever alimentar<br />

surge tão somente após o decurso do prazo de cinco anos ou o nascimento<br />

de filho. O dispositivo sob análise estabelece que o postulante<br />

de alimentos comprove a necessidade destes; não sendo,<br />

portanto, automática a aquisição desse direito alimentar. Estabelece,<br />

ainda, causa de cessação desse pensionamento, com a constituição,<br />

pelo alimentando, de nova união, seja concubinária ou<br />

matrimonial.<br />

Porém, esse art. 1º não menciona a hipótese de mau comportamento<br />

do convivente alimentando, que é prevista, corretamente,<br />

pela Jurisprudência, como causa de perda da pensão alimentícia.<br />

Não é correto que o convivente se entregue a maus costumes,<br />

como a prostituição, por exemplo, e continue a receber alimentos<br />

de seu companheiro.<br />

Também não entendo que seja justo que o convivente culpado<br />

da rescisão do contrato concubinário, seja escrito ou não,<br />

possa pleitear alimentos do inocente.<br />

Por seu turno, o art. 2º da lei sob comentário cuida do direito<br />

sucessório dos conviventes, nos parâmetros mencionados em seus<br />

três incisos. Os dois primeiros reeditam o preceituado no parágrafo<br />

1º do art. 1.611 do Código Civil, que trata de iguais direitos,<br />

mas do cônjuge viúvo, que era casado sob regime de bens diverso<br />

do da comunhão universal (usufruto vidual).<br />

Entendo não conveniente essa reafirmação, para os conviventes,<br />

do aludido direito a usufruto, pois na prática ele estorva o<br />

direito dos herdeiros. Melhor seria tornar o convivente sobrevivo<br />

herdeiro, adquirindo sua parte na herança concorrendo com os aludidos<br />

filhos loco filiae ou loco filii, conforme o caso (como filha<br />

ou filho). Assim, por exemplo, a (o) sobrevivente, concorrendo<br />

com dois filhos, receberia cota da herança correspondente a um<br />

terço, ficando cada qual com o seu, sem o atrapalho do usufruto,<br />

gravando direito dos filhos herdeiros.<br />

impulso<br />

167


MEU ENTENDIMENTO<br />

Entendo que deveria voltar a existir o casamento religioso,<br />

só com celebração religiosa, ao lado do casamento civil, com os<br />

formalismos abrandados, inclusive no tocante à separação e ao<br />

divórcio.<br />

Assim, com maior ou menor liberdade, teríamos o casamento<br />

sob todos os seus aspectos histórico-existenciais mais importantes.<br />

A sociedade moderna está repelindo os excessos de formalismo<br />

com uma tendência ao casamento simples, do passado. É<br />

certo, pois os rigores de forma, hoje existentes no Brasil, datam do<br />

Decreto nº 181, de 18<strong>90</strong>, que instituiu somente há pouco mais de<br />

cem anos entre nós o casamento civil. Antes, tudo era natural em<br />

matéria de casamento, como sempre foi no passado.<br />

Todavia, ainda que existam as aludidas modalidades matrimoniais,<br />

preferindo a sociedade constituir família sob a forma de<br />

união estável, não pode o Estado impedi-lo por qualquer de seus<br />

Poderes. O Poder maior e do povo. O Estado deve regulamentar o<br />

que existe, impedindo lesões de direito.<br />

Mas, mesmo assim, é preciso que exista a possibilidade de<br />

considerar a união estável como uma espécie nova de casamento<br />

de fato, que proponho.<br />

Assim, para mim, já com esse espírito de iure constituendo,<br />

casamento de fato ou união estável e a convivência não adulterina<br />

nem incestuosa, duradoura, pública e contínua, de um homem e<br />

de uma mulher, sem vínculo matrimonial, convivendo como se<br />

casados, sob o mesmo teto ou não, constituem, assim, a família<br />

de fato.<br />

168 impulso


R E S E N H A S<br />

O <strong>DIREITO</strong> À VIDA<br />

Resenhas de<br />

NIÑO, Luis Fernando. Eutanasia, morir con dignidad, consecuencias<br />

jurídico-penales. Buenos Aires: Editorial Universidad, 1994.<br />

MARTÍNEZ, Stella Maris. Manipulación genética y Derecho Penal.<br />

Buenos Aires: Editorial Universidad, 1994.<br />

JOSÉ RENATO SCHMAEDECKE<br />

Eutanasia, morir con dignidad é um trabalho extraordinário<br />

do autor que é Juiz e Professor de Direito Penal da Universidade<br />

de Buenos Aires.<br />

Tudo o que se refere à eutanásia sugere mudanças e pronunciamentos,<br />

que precisam ser comentados. “Dar morte suavemente”<br />

provoca avalanche de problemas doutrinários tão<br />

complexos quanto apaixonantes.<br />

Não adianta ficar de fora, pretendendo chegar ao atalho do<br />

reducionismo ou deslocar problemas morais para esta espécie de<br />

religião do cientificismo neutro.<br />

É oportuno lembrar o caso da atriz polonesa Stansilawa<br />

Uminska. O namorado, Juan Zinowsky, acometido de câncer e<br />

tuberculose, sofrendo dores terríveis conseguiu que ela voltasse a<br />

seu lado. Encerrada em sua rígida angústia, ela sofre uma intensa<br />

comoção ante as dores atrozes que o afligem e, embora recusandose<br />

no início, o sofrimento do seu amado dobra a sua vontade, e ela<br />

acaba cedendo a seus desesperados pedidos: a 15/07/1924,<br />

enquanto ele dorme sob o efeito da morfina, ela descarrega sobre<br />

ele o seu revólver!<br />

impulso<br />

169


Impossível não recordar também o José<br />

Ingenieros da “piedade homicida”: Um<br />

pobre esfarrapado, de 40 anos, tartamudo,<br />

com câncer na garganta, não pode mais<br />

engolir nada, não lhe restando senão morrer<br />

ou de fome, ou do câncer. Vendeu tudo e<br />

ficou na miséria total. No desespero da dor,<br />

pediu a seu melhor amigo, que o estrangulasse.<br />

Agarrou as mãos do amigo e as levou<br />

ao pescoço... Mais tarde este amigo diria ao<br />

comissário: “O infeliz ficou tranqüilo, com<br />

se eu lhe tivesse feito o maior benefício!...”<br />

Outro caso famoso foi o de um jovem<br />

inglês, Richard Corbett, que matou a mãe<br />

que sofria de dores atrozes de um câncer,<br />

tendo declarado no tribunal: “Fiz uso de um<br />

direito humanitário: não teria sido necessário<br />

se o Estado tivesse leis que permitam aos<br />

médicos acabar com o sofrimento de um<br />

paciente incurável”. Foi absolvido sob<br />

aplausos do público!...<br />

Cadetes chilenos, viajando em trem<br />

para Buenos Aires, sofreram um acidente<br />

fatal, no qual um deles teve as duas pernas<br />

decepadas num choque frontal. Sem recursos<br />

médicos por perto, com dores insuportáveis,<br />

ele estava morrendo lentamente.<br />

Movido pela comiseração, um soldado descarregou<br />

o fuzil e acabou com o sofrimento<br />

do coleta.<br />

Seguiam-se exemplos diários semelhantes,<br />

e a lei silenciando, minorando sanções,<br />

ou sugerindo formas inovadoras e<br />

compreensivas...<br />

É conhecido o caso da Karen Quinlan,<br />

que, levando vida vegetativa, levou os pais a<br />

pedirem à Suprema Corte de New Jersey<br />

para que fossem desligados os aparelhos, no<br />

que foram atendidos, não sem antes ouvirem<br />

o comitê de ética médica, e os médicos, é<br />

claro.<br />

Pelo contrário, quando Nancy Cruzan,<br />

de 32 anos, teve um acidente de carro, e<br />

ficou três semanas em coma, sem funções do<br />

coração e dos pulmões, os pais pediram à<br />

Corte de Missouri para que fossem desligados<br />

os tubos que a mantinham em vida. A<br />

corte negou, dizendo que os pais não tinham<br />

o direito de fazer esse pedido. Mas assim<br />

mesmo a corte admitiu que a Constituição<br />

dos EE.UU. não proíbe pedir evidência do<br />

desejo de um doente incapacitado a manifestar-se.<br />

E em minoria, o juiz Brennan afirmou:<br />

“A paciente tem direito fundamental de<br />

ver-se livre dos tubos... e tem direito de<br />

escolher e morrer com dignidade”.<br />

O problema é complexo e polêmico,<br />

devido a fatores religiosos, éticos, médicos,<br />

biogenéticos, e muitos outros.<br />

O livro tenta apresentar sérias respostas<br />

a grandes perguntas sobre o direito de morrer<br />

com dignidade. O autor optou por reduzir<br />

a análise da eutanásia à ação médica que,<br />

ademais, está em consonância com as escassas<br />

legislações contemporâneas que abordam<br />

a questão.<br />

A matéria ultrapassa o mundo jurídico<br />

e social, e alcança a problemática dos médicos,<br />

que costumam adotar uma atitude inalterável,<br />

levados pelo princípio de que,<br />

“enquanto há vida, há esperança”, mas que,<br />

no fundo, reconhecem que é preciso acabar<br />

com sofrimentos dilacerantes que torturam o<br />

paciente, os familiares e os amigos.<br />

No capítulo I Niño aborda algumas<br />

concessões religiosas a respeito de certas<br />

ações homicidas e a ocultação da morte em<br />

sistemas sociais contemporâneos conformativos<br />

do marco em que cabe situar historicamente<br />

o tema.<br />

No capítulo II ele se aprofunda em<br />

redefinir os limites da vida segundo as ciên-<br />

170 impulso


cias especializadas e reordenar as diversas<br />

hipóteses da eutanásia.<br />

O II capítulo se baseia nos assinalamentos<br />

jurídicos, sociológicos e culturais<br />

que emergem do capítulo anterior. Niño procura<br />

nova visão e síntese do problema, agrupando<br />

em dois tipos os casos mais<br />

necessitados de tratamento legal:<br />

1) a retirada dos meios artificiais de<br />

reanimação desproporcionais ao caso;<br />

2) a eutanásia passiva: abstenção ou<br />

retirada de medidas e meios terapêuticos que<br />

levam de modo paralelo e conexo à abreviação<br />

do curso vital.<br />

Há fortes referências a objeções de<br />

consciência, além de uma atualização<br />

panorâmica da eutanásia no Direito Comparado,<br />

e uma proposta de reforma legal que<br />

significam uma resposta aos problemas tratados<br />

neste livro.<br />

Quanto ao livro Manipulación genética<br />

y Derecho Penal, hoje existe no mundo um<br />

temor onipresente quando se percebe que,<br />

mediante a ciência, o homem pode chegar a<br />

auto-reproduzir-se. Esse temor resulta do<br />

fato extremo a que se pode chegar, que é a<br />

manipulação dos genes.<br />

Será que o homem pretende alterar a<br />

essência e a transcendência da vida? Ou simplesmente<br />

se trata de dar vida e felicidade a<br />

quem não pode obtê-la, porque a natureza<br />

decretou a deserção da semente procriativa?<br />

A engenharia genética realiza grandes<br />

avanços e novos campos vêm surgindo a<br />

cada dia. Nesta obra, Stella Maris Martínez,<br />

Professora de Direito Penal na Universidade<br />

de Buenos Aires, traz noções básicas que<br />

devem servir para nos orientar nesta problemática,<br />

apresentando postulados éticos<br />

impressionantes que devem reger a matéria.<br />

O grande mérito da autora é de abordar<br />

um tema inédito, vasto e complexo, onde<br />

estão em jogo dados e elementos de suma<br />

importância para o futuro da humanidade<br />

toda. A Bioética é a ciência auxiliar que nos<br />

ajudará a encontrar rumos seguros nesta difícil<br />

caminhada.<br />

Chama-se a atenção para uma oportuna,<br />

mas feliz constante nessa investigação.<br />

trata-se da efetiva necessidade de normas<br />

claras e diretivas, assim como o âmbito em<br />

que devem reger, descartando expressamente<br />

a auto-regulação como exclusiva pauta de<br />

controle.<br />

Martínez analisa a função da Ética a<br />

precisar o seu conteúdo essencial: a dicotomia<br />

homem-natureza, e o respeito que este<br />

homem deve, tanto a sua própria substância<br />

humana como a seu contorno, à luz da dignidade<br />

essencial que o distingue do resto das<br />

espécies.<br />

Ao descrever as descobertas da Bioética,<br />

a autora se pronuncia pela necessidade<br />

de um “minimum” de ética obrigatória,<br />

segundo Jellinek, para fundamentar o papel<br />

da obrigatoriedade do direito no âmbito da<br />

investigação e manipulação genética.<br />

No Capítulo III se define o fruto da<br />

concepção em suas diferentes etapas e se<br />

determina o seu “status” jurídico. Aí está a<br />

mola mestra do pensamento de Martínez,<br />

que caracteriza toda a sua tese: embora não<br />

considere o pré-embrião como vida humana,<br />

e sim, um ser de valor insubstituível para a<br />

humanidade, e por isso, necessitado de<br />

proteção jurídico-penal. Ela afirma que a<br />

única e grande dona deste bem é a própria<br />

humanidade.<br />

Assim se pode responder a um dos<br />

mais agudos interrogativos dos cientistas do<br />

futuro: “É legítimo fazer experimentos com<br />

impulso<br />

171


embriões humanos?” A resposta a que chega<br />

é afirmativa. Mas só depois de muito analisar<br />

a totalidade dos valiosos bens em jogo.<br />

Nesta ótica, aborda a árdua questão das<br />

técnicas de engenharia genética, para saber<br />

como e quando podem lesar ou pôr em<br />

perigo o embrião, já caracterizado como um<br />

bem jurídico, ou a vida humana que ele precede,<br />

atingindo as diferentes etapas do<br />

desenvolvimento uterino do nascituro. Elogia<br />

o papel do experimento definindo a sua<br />

necessidade, mas também sem esquecer suas<br />

eventuais limitações.<br />

Quando se refere à parte jurídica,<br />

cita exemplos de leis e documentos de<br />

outros países, já que a investigação genética<br />

não pode prescindir a contribuição do<br />

que pode vir de além das fronteiras nacionais.<br />

É necessário levar em consideração<br />

substanciais decisões internacionais sobre<br />

a matéria.<br />

São estudados cuidadosamente os<br />

motivos de manipulação sob a ótica da<br />

incidência sobre o patrimônio genético da<br />

Humanidade, insistindo na diversidade de<br />

técnicas e em suas eventuais conseqüências<br />

à luz de concepções básicas da política criminal.<br />

Vem destacada a importância da<br />

intangibilidade do patrimônio hereditário, e<br />

do grave risco do surgimento de teorias<br />

extremas de genética criminal.<br />

Merecem especial atenção a necessidade<br />

e as funções dos bancos genéticos, as<br />

técnicas de identificação pessoal por meio do<br />

ADN, do diagnóstico pré-natal, e os recentes<br />

avanços na investigação histórico-genética.<br />

Assunto sério é o que se refere à avaliação<br />

das possibilidades eugenésicas mediante<br />

novas tecnologias, que levam a<br />

Humanidade outra vez a um ponto temível: a<br />

tentação de modificar o gênero humano!<br />

Extremos como a “Rocca Tarpea” e a abominável<br />

loucura hitleriana.<br />

Modificar ou tentar modificar a composição<br />

do gênero humano implica a destruição<br />

do que se conceitua como seres defeituosos.<br />

E agora os riscos seriam muito maiores, pois<br />

é cientificamente possível, como se acredita,<br />

erradicar definitivamente o gene do patrimônio<br />

da espécie. Seria algo de terrível o resultado<br />

de tal loucura humana e social.<br />

O trabalho culmina com um projeto de<br />

legislação que postula a penalização de<br />

quem faz experimentos com pré-embriões<br />

ou os gera em laboratório com um fim que<br />

não seja o de conseguir o seu desenvolvimento<br />

no útero da gestante. Fica incorporada<br />

uma cláusula de justificativa para quem realize<br />

tais atividades com uma autorização prévia<br />

para uma investigação que beneficie de<br />

modo direto a sobrevivência da Humanidade<br />

ou uma eficiente melhora da chamada qualidade<br />

de vida.<br />

A obra nos parece excelente e de<br />

grande ajuda para os profissionais do Direito<br />

e Legislação.<br />

172 impulso


RESUMOS<br />

Abstracts<br />

REFORMA CURRICULAR:<br />

PERFUMARIAS FUNDAMENTAIS<br />

CURRICULAR REFORM:<br />

FUNDAMENTAL PERFUMERIES<br />

Aloysio Ferraz Pereira<br />

Ex-professor associado da Faculdade de Direito da USP<br />

e ex-professor do Programa de Pós-Graduação<br />

em Direito da UNIMEP<br />

RESUMO: Não há um único perfil de jurista ou do jurista,<br />

como frequentemente se supõe ou se propõe. Os Romanos<br />

tinham perfeita noção de que havia, entre eles, pelo menos, dois<br />

perfis ou duas faces diferentes de jurista: o perfil do advogado e<br />

o do jurisprudente. Uma Faculdade de Direito deve ter em mira<br />

uma série aberta de paradigmas ou perfis: juiz e legislador,<br />

assessores e auxiliares de um e de outro, delegados de polícia,<br />

com seus escrivães e funcionários, advogados das mais variadas<br />

especialidades e funções. Apegar-se ou impor um só perfil de<br />

jurista na universidade seria dirigismo totalitário, como ao<br />

tempo de Stalin e de Hitler. O texto apresenta um caminho para<br />

libertar o nosso Direito do empirismo, da improvisação, do imobilismo,<br />

da ignorância e dos interesses criados em benefício das<br />

elites retrógradas, com sua tradicional clientela de bacharéis.<br />

Palavras-chaves: ENSINO DE <strong>DIREITO</strong> – FACULDADES DE<br />

<strong>DIREITO</strong><br />

ABSTRACT: There is not a single profile of a Jurist or of the<br />

Jurist, as is frequently supposed or proposed. The Romans had<br />

a perfect notion that there were, amongst them, at least two<br />

profiles or two different faces of the Jurist: the profile of the<br />

Advocate and of the Jurisprudent. A Faculty of Law should<br />

have in view an open series of paradigms or profiles: judge and<br />

legislator, assessors and auxiliaries of one and of the other,<br />

police delegates, with their scribes and workers, advocates of<br />

the most varied specialities and functions. Attach oneself to, or<br />

impulso<br />

173


impose only one profile of the jurist at the university would be<br />

totalitarian control, as in the time of Stalin and Hitler. The text<br />

presents a way of liberating our Law from empirism, improvisation,<br />

immobilism, ignorance and from the interests created<br />

to benefit the retrograde elite, with their traditional clientele of<br />

Bachelors.<br />

Keywords: FACULTIS OF LAW – TEACHING OF LAW<br />

LEITURAS E DEBATES EM<br />

TORNO DA INTERPRETAÇÃO NO <strong>DIREITO</strong><br />

CONSTITUCIONAL <strong>NOS</strong> A<strong>NOS</strong> <strong>90</strong><br />

Readings and Debates Concerning Interpretation In<br />

Constutional Law During The 19<strong>90</strong>s.<br />

José Ribas Vieira<br />

Professor titular da Faculdade de Direito da UUFF –<br />

Doutor em Direito<br />

RESUMO: Uma reflexão a respeito da temática de interpretação<br />

constitucional. Na sociedade brasileira, é fácil constatar a<br />

presença, em todos os níveis de nossa vida social, da<br />

“jurisdização do discurso político”. As atuais posições assumidas<br />

pelo Direito e o papel do juiz podem acarretar uma perigosa<br />

substituição do jurídico pela ordem democrática.<br />

Segundo o autor, a saída é, por conseqüência, a reflexão de<br />

mecanismos de equilíbrio para a função de prestação jurisdicional,<br />

o que assegura a manutenção não só das garantias constitucionais<br />

de fortalecimento da cidadania, como, também, e<br />

principalmente, do jogo democrático.<br />

Palavras-chaves: CIDADANIA – CONSTITUIÇÃO BRASI-<br />

LEIRA – ESTADO DE <strong>DIREITO</strong> – <strong>DIREITO</strong> CONSTITU-<br />

CIONAL<br />

ABSTRACT: A reflection with respect to the theme of constitutional<br />

interpretation. In Brazilian society, it is easy to find the<br />

presence, at all levels of our social life, of jurisdiction of the<br />

political discourse. The current positions assumed by the Law<br />

and the role of judge may carry a dangerous substitution of the<br />

legal by the democratic order. According to the author, the way<br />

out, consequently, is a re-election of the mechanisms of equilibrium<br />

for the function of jurisdictional service, which would<br />

174 impulso


assure the maintenance not only of constitutional warranties<br />

for strengthening citizenship, but also, and mainly, the democratic<br />

game.<br />

Keywords: BRAZILIAN LAW – CITZENSHIP – CONSTITU-<br />

TIONAL LAW – DEMOCRATIC STATE OF LAW<br />

DO PROCESSO LEGISLATIVO:<br />

BREVES CONSIDERAÇÕES<br />

From The Legislative Process: Brief Considerations<br />

João Miguel da Luz Rivero<br />

Professor do curso de Direito da UNIMEP –<br />

mestrando em Direito<br />

RESUMO: O autor nos mostra um estudo sobre a função legislativa.<br />

O processo legislativo, por suas peculiaridades, deve<br />

garantir em todo o seu procedimento um mínimo de legitimidade,<br />

para eliminar as distorções existentes, como, por exemplo,<br />

o exercício da função legislativa pelo Executivo que, quando<br />

permitido através do art. 62, transforma a Constituição do país,<br />

que deve ser um instrumento estável e garantidor dos direitos e<br />

garantias e limitador do poder, em um documento frágil e praticamente<br />

comparado a um programa de governo, que pode ser<br />

alterado a cada mandato presidencial e a qualquer tempo,<br />

gerando, dessa forma, instabilidade e insegurança aos seus destinatários.<br />

Palavras-chaves: CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA – <strong>DIREITO</strong><br />

CONSTICIONAL – DEMOCRATIC STATE OF LAW –<br />

PODER LEGISLATIVO<br />

ABSTRACT: The author shows us a study about the legislative<br />

function. The legislative process, for all it peculiarities, in its<br />

entire procedure should warrant a minimum of legitimacy to<br />

eliminate the existing distortions, such as for example, the exercise<br />

of the legislative function by the Executive, which, when<br />

permitted by means of Art. 62, transforms the Constitution of<br />

the country, which should be a stable instrument and warrant of<br />

rights and warranties and limiter of power, into a fragile document<br />

and practically compared to a government program,<br />

which may be altered during each presidential mandate at any<br />

impulso<br />

175


time, thus generating instability and insecurity to those for<br />

whom it is destined.<br />

Keywords: BRAZILIAN LAW – CONSTITUTIONAL LAW<br />

– DEMOCRATIC STATE OF LAW – LEGISLATIVE<br />

FUNCTION<br />

FILOSOFIA DO <strong>DIREITO</strong> EM HABERMAS<br />

Philosophy of Law In Habermas<br />

João Bosco da Encarnação<br />

Promotor de Justiça do Estado de São Paulo<br />

RESUMO: O presente estudo tem por escopo entender o conceito<br />

de Direito em Jürgen Habermas, o que contribui para a<br />

identificação da crise do Direito. Partindo da “curiosidade”<br />

científica acerca do que poderia ser o Direito na época “pósmoderna”,<br />

o autor examina a visão desse filósofo<br />

contemporâneo, para ver nela, quem sabe, uma identidade. Sua<br />

trajetória parte de uma orientação inicialmente situada na chamada<br />

“teoria crítica” da Escola de Frankfurt, mas logo envereda<br />

por caminhos próprios, que são, na verdade, um feixe eclético<br />

de doutrinas de várias linhas. Trazem consigo, no entanto, algo<br />

em comum: certo positivismo. Há que entender isso, sob pena<br />

de não termos um parâmetro de verdade e justiça e acabarmos<br />

fomentando uma ideologia!<br />

Palavras-chaves: FILOSOFIA DO <strong>DIREITO</strong> – HABERMAS,<br />

JÜRGEN<br />

ABSTRACT: The scope of the present study is to understand the<br />

concept of Law in Jürgen Habermas, which contributes to the<br />

identification of the Crisis of Law. Starting from the scientific<br />

curiosity around what could be Law in the post modern era, the<br />

author examines the vision of this contemporary philospher, to<br />

find in it, perhaps, an identity. Its trajectory starts with guidance<br />

initially situated in the so called critical theory of the Frankfurt<br />

School, but soon goes its own ways, which are, in truth, an eclectic<br />

bundle of doctrines of various lines. They bring with them,<br />

however, something in common: a certain positivism. This<br />

should be understood, on pain of not having a parameter of truth<br />

and justice, and we end up fomenting an ideology!<br />

Keywords: HABERMAS, JÜRGEN – PHILOSOPHY OF LAW<br />

176 impulso


A TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS E<br />

ALGUMAS DIFICULDADES: UMA LEITURA<br />

John Rawlss Theory of Justice and<br />

Some Difficulties: A Reading<br />

Jorge Atílio Silva Lulianelli<br />

Professor das Faculdades Integradas Bennett<br />

e do Seminário Diocesano<br />

RESUMO: A abordagem que Rawls faz da justiça é apresentada<br />

não como uma teoria moral, mas como uma teoria da justiça<br />

stricto sensu. Ele pretende discutir quais princípios devem<br />

orientar a ação justa dos indivíduos e da sociedade, mas não pretende<br />

abordar o conjunto de normas que deve reger a vida dos<br />

indivíduos. Para Rawls, o mundo social hipotético é apenas um<br />

pressuposto suficiente para estabelecer o esforço em vista de<br />

uma concepção de justiça como eqüidade. Em síntese, a comunidade<br />

ética, como suposta por Rawls, não é suficiente e necessária<br />

para o estabelecimento da justiça como modus vivendi,<br />

ainda que pudesse ser assumido como modus operandi, ao<br />

menos por quem assume o normo-utilitarismo como orientador<br />

ético.<br />

Palavras-chaves: FILOSOFIA DO <strong>DIREITO</strong> – RAWLS, JOHN<br />

– TEORIA DA JUSTIÇA<br />

ABSTRACT: The approach Rawls makes to justice is presented<br />

not as a moral theory, but as a theory of justice stricto sensu. He<br />

intends to discuss which principles should guide just action of<br />

individuals and of society, but does not intends to approach the<br />

set of norms which should rule the life of individuals. For<br />

Rawls, the hypothetical social world is only a pre-supposition<br />

sufficient for establishing the effort in view of a concept of justice<br />

as equity. In synthesis, the ethical community, as supposed<br />

by Rawls, is not sufficient and necessary for the establishment<br />

of justice as a modus vivendi, even though it could be assumed<br />

as modus operandi, at least by whom the ultilitarism-norm is<br />

assumed as ethical guide.<br />

Keywords: PHILOSOPHY OF LAW – RAWLS, JOHN –<br />

THEORY OF JUSTICE<br />

impulso<br />

177


O MÉTODO DO <strong>DIREITO</strong>:<br />

QUESTÕES DE LÓGICA JURÍDICA<br />

The Method of Law: Questions of Judicial Logic<br />

ERCÍLIO A. DENNY<br />

Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito e<br />

do Curso de Direito da UNIMEP – doutor em Direito<br />

RESUMO: Existem duas formas de se conceituar o Direito: a<br />

primeira compreende-o como um “conjunto de normas”. A<br />

segunda maneira é o de percebê-lo como “o justo” (tó díkaion).<br />

Hoje, a humanidade está longe do regime de produção do<br />

Direito que existia na Roma clássica. Longe porque a educação<br />

hodierna condicionou o homem a crer que o Direito é o produto<br />

do espírito do legislador. Há uma crença que Direito é o Direito<br />

positivo estabelecido nos códigos e demais dispositivos legais.<br />

Existe na produção do Direito uma parte que é viva e imprevisível.<br />

É ilusório querer construir uma Ciência do Direito totalmente<br />

axiomática. Um sistema coerente de regras, dentro de<br />

uma ordem jurídica, pode ser admirado como obra-prima de<br />

lógica formal, entretanto, ele está fora da realidade do Direito. O<br />

Direito, que deseja ser uma ciência, não pode jamais atender ao<br />

estatuto de uma ciência estável e rigorosa.<br />

Palavras-chaves: – <strong>DIREITO</strong> COMO CIÊNCIA – FILOSOFIA<br />

DO <strong>DIREITO</strong> – LóGICA JURÍDICA<br />

ABSTRACT: There are two forms in which the Law may be<br />

conceived: the first understands it as a set of norms. The second<br />

is that of perceiving it as the just (tó díkaion). Today, humanity<br />

is far from the regime of the production of Law which existed in<br />

classical Rome. It is far from it because Hodiern education conditioned<br />

man to believe that the Law is a product of the legislator<br />

mind. There is a belief that Law is the positive Law established<br />

in the codes and other legal devices. There is a part in the<br />

production of the Law which is alive and unpredictable. It is<br />

illusory to wish to construct a totally axiomatic Science of Law.<br />

A coherent system of rules within a judicial order may be admired<br />

as a masterpiece of formal logic, however, it is outside the<br />

reality of the Law. Law, which desires to be a science, could<br />

never meet the statute of a stable and rigorous science.<br />

Keywords: – LAW AS SCIENCE – JUDICIAL LOGIC – PHI-<br />

LOSOPHY OF LAW<br />

178 impulso


SEGURANÇA PÚBLICA E<br />

GARANTIAS INDIVIDUAIS SOB A<br />

AMEAÇA DA CRIMINALIDADE COMUM<br />

E ORGANIZADA, NA VISÃO DE<br />

WINFRIED HASSEMER<br />

Public Safety and Individual Warranties:<br />

the Threat of Common Criminality and Organized<br />

Criminality, the View of Winfried Hassemer<br />

Samuel Zem<br />

Advogado – OAB – Secção de São Paulo –<br />

mestre em Direito<br />

RESUMO: As questões levantadas por Hassemer estão na<br />

ordem do dia em todos os países em que o Estado Democrático<br />

de Direito impera, e que adotam em suas constituições os princípios<br />

da dignidade humana, da liberdade, do respeito à privacidade,<br />

à intimidade, à segurança, à livre disposição dos bens, etc.<br />

Exatamente por isto é que o debate se inflama. A questão é<br />

como conciliar estes direitos conquistados, com o combate à criminalidade,<br />

se o crime se acoberta atrás desses. Para o autor, a<br />

atual política neo-liberal, que predomina, começa a preocupar,<br />

pois não tem dado resultados satisfatórios porque não privilegia<br />

um adequado modo para enfrentar a criminalidade. Falta-lhe criatividade<br />

nos meios de intervenção.<br />

Palavras-chaves: ESTADO DE <strong>DIREITO</strong> – HASSEMER,<br />

WINFRIED – SEGURANÇA PÚBLICA<br />

ABSTRACT: The questions raised by Hassemer are in todays<br />

agenda in all the countries in which the Democratic State of<br />

Law reigns, and which adopt in their constitutions the principles<br />

of human dignity, liberty, respect for privacy, for intimacy and<br />

the safety and free disposal of assets, etc. Exactly for this reason<br />

the debate becomes inflamed. The question is how to conciliate<br />

these conquered rights with the combat of criminality, if crime<br />

takes shelter behind this. For the author, the current neo-liberal<br />

policy, which predominates, begins to cause concern for it has<br />

not given satisfactory results because it does not privelige an<br />

adequate manner to face criminality, it lacks creativity in the<br />

means of intervention.<br />

Keywords: DEMOCRATIC STATE OF LAW – HASSEMER,<br />

WINFRIED – PUBLIC SAFETY<br />

impulso<br />

179


BASES DO <strong>DIREITO</strong> PENAL NO ESTADO<br />

DEMOCRÁTICO DE <strong>DIREITO</strong><br />

Bases of Penal Law In the Democratic State of Law<br />

A. L. CHAVES CAMARGO<br />

Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito e<br />

do Curso de Direito da UNIMEP – Doutor em Direito<br />

RESUMO: Os direitos fundamentais, em geral, são objeto de<br />

sérios conflitos no âmbito do Direito Penal, diante do significado<br />

ambivalente, que ainda pauta nossa sistemática. Busca-se<br />

um meio para prevenir a delinqüência, ao mesmo tempo em que<br />

a intervenção indiscriminada do Estado colide com os princípios<br />

básicos do Direito Penal, no Estado Democrático de Direito.<br />

Neste estudo, o autor nos mostra que a pretensão de avanço das<br />

idéias penais esbarra num reflexo, ainda patente, de um longo<br />

período autoritário, onde a intervenção do Estado não tinha limites,<br />

justificada pelo aumento da criminalidade e paralela repressão<br />

punitiva, com penas exacerbadas e argumentos de caráter<br />

moral, já afastados do Direito Penal moderno.<br />

Palavras-chaves: ESTADO DE <strong>DIREITO</strong> – <strong>DIREITO</strong> PENAL<br />

ABSTRACT: Fundamental rights, in general, are the object of<br />

serious conflicts in the ambit of Penal Law, in the face of significant<br />

ambivalence, which still features in our system. Means are<br />

sought for preventing delinquency, at the same time in which<br />

indiscriminate State intervention collides with the basic principles<br />

of Penal Law, in the Democratic State of Law. In this study<br />

the author shows us that the pretension of the advance of penal<br />

ideas clashes in a reflection, still patent, of a long authoritarian<br />

period, where the intervention of the State did not have limits,<br />

justified by the increase in criminality and parallel punitive<br />

repression, with exacerbated punishment and arguments of<br />

moral character, already removed from modern Penal Law.<br />

Keywords: DEMOCRATIC STATE OF LAW – PENAL LAW<br />

A RELEVÂNCIA CAUSAL DA OMISSÃO<br />

The Causal Relevance of Omission<br />

Eduardo Silveira Melo Rodrigues<br />

Ex-Professor do Curso de Direito da UNIMEP e<br />

Promotor de Justiça do Estado de São Paulo<br />

RESUMO: A natureza dos crimes comissivos por omissão, no<br />

que tange à relevância causal, é precipuamente normativa,<br />

180 impulso


decorrendo do caráter de antijuridicidade, da abstenção de atuar,<br />

a sua punibilidade. É necessário, como o faz o Código atual, que<br />

se determine a sua relevância, ocorrível quando houver o poder<br />

e o dever jurídico de evitar o resultado, sendo que o dever é de<br />

três espécies básicas: o legal, o contratual ou de “garante” e o<br />

decorrente da criação da situação de risco. O elemento subjetivo<br />

dos crimes omissivos impróprios é o mesmo dos comissivos: o<br />

dolo e a culpa. Neste texto, o autor chama a atenção para o fato<br />

de que só o dever jurídico não basta para a responsabilidade<br />

penal por omissão: é preciso que o agente tenha o domínio<br />

fático de impedir o resultado.<br />

Palavras-chaves: <strong>DIREITO</strong> PENAL – OMISSÃO<br />

ABSTRACT: The nature of crimes committed by omission,<br />

with regard to causal relevance, is mainly normative, arising<br />

from the anti-jurisdictive character of the abstention from acting,<br />

to its punishability. It is necessary, as the current Code does, to<br />

determine its relevance, which occurs where there is the power<br />

and the judicial duty to avoid the result, the duty being of three<br />

basic kinds: the legal, the contractual or guarantee and that arising<br />

from the creation of a risk situation. The subjective element<br />

of improper omissive crimes is the same as those of comissive<br />

ones: the fraud and the blame. In this text, the authors draws<br />

attention to the fact that only judicial duty is not sufficient for<br />

the penal responsibility by omission: it is neceesary for the agent<br />

to have effective dominion to impede the result.<br />

Keywords: OMISSION – PENAL LAW<br />

LIMITAÇÕES AO PODER PUNITIVO<br />

DO ESTADO<br />

Limitations to the Punitive Power of the State<br />

Edson José Meneghetti<br />

Professor do Curso de Direito da UNIMEP –<br />

Mestrando em Direito<br />

RESUMO: O homem, em sua história social, sempre demonstrou<br />

preocupação no sentido de conseguir um equilíbrio em suas<br />

interrelações, que lhe propiciasse uma paz social duradoura,<br />

adequada e justa. Como se verifica, existe uma preocupação<br />

constante em se buscar formas adequadas e convenientes para o<br />

convívio social. Para tanto, é necessário se defender a dignidade<br />

impulso<br />

181


humana até contra o Estado e aqueles que o representam na função<br />

de exercer seu poder de punir. Por isso, existe uma necessidade<br />

indeclinável, do Estado Democrático de Direito, de instituir<br />

limitações ao Poder de punir do Estado, no sentido de se<br />

preservar o respeito à dignidade da pessoa humana.<br />

Palavras-chaves: ESTADO DE <strong>DIREITO</strong> – LEI PENAL<br />

ABSTRACT: Man, in his social history has always demonstrated<br />

concern in the sense of achieving equilibrium in his interrelations<br />

which would propitiate to him lasting, adequate and just<br />

social peace. As can be seen, there is a constant concern for<br />

seeking adequate and convenient forms of social intercourse.<br />

Thus it is necessary to defend human dignity even against the<br />

State and those who represent it in the function of exercising its<br />

power to punish. For this, there is an indeclinable necessity for<br />

the Democratic State of Law to institute limitations to the States<br />

Power to punish, in the sense of preserving respect for the dignity<br />

of the human person.<br />

Keywords: DEMOCRATIC STATE OF LAW – PENAL LAW<br />

SISTEMAS DE TRANSMISSÃO<br />

DO <strong>DIREITO</strong> DE PROPRIEDADE:<br />

UM ESTUDO NO <strong>DIREITO</strong> ALEMÃO<br />

Systems of Transferring the Right to Property:<br />

A Study In German Law<br />

Victor Hugo Tejerina Velázquez<br />

Professor do Curso de Direito da UNIMEP –<br />

Mestre e doutorando em Direito<br />

RESUMO: O texto se propõe a avaliar o sistema de transferência<br />

de domínio no Direito alemão a partir do Registro imobiliário,<br />

considerado o melhor elaborado e firme entre os registros do<br />

mundo. De acordo com o autor, a transmissão de um direito de<br />

expectativa está sujeita a uma condição resolutiva, na medida<br />

em que o devedor, ao pagar o débito, recupera a propriedade<br />

automaticamente.<br />

Palavras-chaves: <strong>DIREITO</strong> ALEMÃO – <strong>DIREITO</strong> COMPA-<br />

RADO – <strong>DIREITO</strong> IMOBILIÁRIO – <strong>DIREITO</strong> DE PROPRIE-<br />

DADE<br />

182 impulso


ABSTRACT: The text proposes to evaluate the system of transference<br />

of dominion under German Law from the real estate<br />

register, considered the best elaborated and firm among those<br />

registers in the world. According to the author, transfer of a right<br />

of expectation is subject to a resolutive condition, as the debtor,<br />

in paying the debt, recovers the property automatically.<br />

Keywords: COMPARATIVE LAW – GERMAN LAW – PRO-<br />

PERTY LAW – REAL ESTATE LAW<br />

UNIÃO ESTÁVEL:<br />

ANTIGA FORMA DE CASAMENTO DE FATO<br />

Stable Union: Ancient Form of de Facto Marriage<br />

Álvaro Villaça Azevedo<br />

Professor do Programa de Pós-Graduação em<br />

Direito da USP e da Universidade Mackenzie e<br />

professor titular da Faculdade de Direito da USP e<br />

da Universidade Mackenzie – Doutor em Direito<br />

RESUMO: Na antigüidade, a família era, em geral, constituída<br />

por meio de celebrações religiosas ou por meio de simples convivência.<br />

De acordo com o autor, deveria voltar a existir o casamento<br />

religioso, só com celebração religiosa, ao lado do casamento<br />

civil, com os formalismos abrandados, inclusive no<br />

tocante a separação e ao divórcio. Assim, com maior ou menor<br />

liberdade, teríamos o casamento sob todos os seus aspectos histórico-existenciais<br />

mais importantes. Ele propõe que se considere<br />

a união estável como uma espécie nova de casamento de fato.<br />

Assim, casamento de fato ou união estável e a convivência não<br />

adulterina nem incestuosa, duradoura, pública e contínua, de um<br />

homem e de uma mulher, sem vínculo matrimonial, convivendo<br />

como se casados, sob o mesmo teto ou não, constitui uma família<br />

de fato.<br />

Palavras-chaves: CASAMENTO – <strong>DIREITO</strong> CIVIL –<br />

<strong>DIREITO</strong> DE FAMÍLIA<br />

ABSTRACT: In ancient times, the family was, in general, constited<br />

by means of religous celebrations or by means of simple<br />

living together. According to the author, religious marriage<br />

should come back into existence, only with religious celebration,<br />

alongside of civil marriage, with its milder formalisms, as<br />

well as with religeous celebration, alongside of civil marriage,<br />

impulso<br />

183


with its milder formalisms, as well as with regard to separation<br />

and divorce. Thus, with greater or less liberty, we would have<br />

marriage under all of its most important historical-existential<br />

aspects. He proposes to consider a stable union as a new kind of<br />

de facto marriage. Thus a de facto marriage or stable union and<br />

a non adulterous nor incestuous living together, lasting, public<br />

and continuous, of a man and a woman, without matrimonal<br />

ties, living as though they were married, under the same roof or<br />

not, constitutes a de facto family.<br />

Keywords: CIVIL LAW – FAMILY LAW – MARRIAGE<br />

184 impulso

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