Tracoma: ainda uma importante causa <strong>de</strong> cegueira201São Paulo, que em 1904 proibiu a entrada <strong>de</strong> imigrantescom Tracoma no Porto <strong>de</strong> Santos, a exemplo do que erafeito nos Estados Unidos. Esta medida, porém, não tevesucesso, <strong>de</strong>vido à pressão dos fazen<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> café, quenecessitavam da mão <strong>de</strong> obra imigrante. Desta forma, aproibição foi substituída por uma multa para o dono donavio que trouxesse imigrantes com Tracoma. Em 1906,inicia-se em São Paulo a primeira “Campanha contra oTracoma” realizada no país, e em 1914 começam a serinstalados, também em São Paulo, os primeiros serviçosespecializados em Tracoma, os “Postos Antitracomatosos”.Em nível nacional, a primeira medida <strong>de</strong> controledo Tracoma foi tomada em 1923, quando foi <strong>de</strong>cretadoo “Regulamento do Departamento Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>Pública”, que proibia o <strong>de</strong>sembarque <strong>de</strong> imigrantescom Tracoma, medida esta que, naquele momento, jáera totalmente inócua, já que o mesmo encontrava-seamplamente disseminado no país, e não mais <strong>de</strong>pendiada imigração para sua manutenção.A partir <strong>de</strong> 1938, o estado <strong>de</strong> São Paulo iniciou aimplantação <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> serviços especializados emTracoma, os “Dispensários do Tracoma”, anexos aosCentros <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e localizados nos locais on<strong>de</strong> a doençaera mais prevalente. Esta re<strong>de</strong> chegou a ter mais <strong>de</strong> 200unida<strong>de</strong>s, cobrindo quase a totalida<strong>de</strong> do estado <strong>de</strong> SãoPaulo. Depois <strong>de</strong> diversas medidas <strong>de</strong> combate a doença,com postos <strong>de</strong> <strong>de</strong>tecção ligados aos postos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> etambém na zona rural, chegou-se a diminuição importantedo número <strong>de</strong> casos.O Governo Fe<strong>de</strong>ral iniciou, em 1943, a realizaçãoda “Campanha Fe<strong>de</strong>ral Contra o Tracoma”, por iniciativado Departamento Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública.Esta Campanha foi incorporada ao “Departamento Nacional<strong>de</strong> En<strong>de</strong>mias Rurais - DENERu”, quando da suacriação em 1956, e posteriormente à SUCAM (SuperintendênciaNacional <strong>de</strong> Campanhas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública),criada em 1970.O ciclo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento econômico iniciadonos anos 50 e que perdura até o “milagre econômico”dos anos 70, teve um profundo impacto na ocorrência doTracoma no Brasil. Observou-se uma diminuição acentuadano número <strong>de</strong> casos <strong>de</strong>tectados em todo o país, echegou-se mesmo a consi<strong>de</strong>rar que o Tracoma havia sidoerradicado em alguns estados, como em São Paulo, sendoque em 1978, na implantação do Sistema <strong>de</strong> VigilânciaEpi<strong>de</strong>miológica no Estado <strong>de</strong> São Paulo, o Tracomanão foi incluído no elenco <strong>de</strong> doenças <strong>de</strong> notificação compulsória.Todo o aparato que havia sido montado para ocombate à en<strong>de</strong>mia foi redimensionado e o Tracomapassou a não ser mais pesquisado, nem ensinado nas escolasmédicas e nos cursos <strong>de</strong> especialização. Passa-se ater outra realida<strong>de</strong>, ligada ao <strong>de</strong>sconhecimento daafecção.O mito da “erradicação” do Tracoma, cunhado emmeados da década <strong>de</strong> 70 do século XX, persiste até hoje.A pretensão <strong>de</strong> pertencer a um mítico “país <strong>de</strong>senvolvido”e o fetiche tecnológico da incorporação <strong>de</strong> equipamentosoftalmológicos cada vez mais sofisticados, fez comque os <strong>de</strong>partamentos <strong>de</strong> <strong>Oftalmologia</strong> da maioria dasuniversida<strong>de</strong>s “esquecessem” <strong>de</strong> olhar o seu entorno, nãoi<strong>de</strong>ntificando a doença ocular ainda frequente na população.Assim, os especialistas continuaram a propagar o mitoda erradicação e muitos <strong>de</strong> nós, oftalmologistas, fazemosparte <strong>de</strong> uma geração que nunca recebeu treinamentoformal durante o curso <strong>de</strong> especialização em <strong>Oftalmologia</strong>para <strong>de</strong>tecção e manejo da doença.Na década <strong>de</strong> 80 do século passado, o Tracomavolta a ter <strong>de</strong>staque, a partir do encontro <strong>de</strong> Tracoma nacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bebedouro, estado <strong>de</strong> São Paulo, nas diversasfases, <strong>de</strong>notando que a doença nunca havia sido eliminadanaquele município (8) .As ações <strong>de</strong> vigilância epi<strong>de</strong>miológica doTracoma foram retomadas pela Secretaria <strong>de</strong> Estado daSaú<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, <strong>de</strong>tectando a en<strong>de</strong>mia em mais <strong>de</strong>150 municípios do estado, alguns com altos coeficientes<strong>de</strong> prevalência e com complicações e sequelas (9) .Em 1990, as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> controle do Tracomano âmbito nacional passaram a fazer parte das atribuiçõesda Fundação Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> - FNS. O Ministérioda Saú<strong>de</strong> vem mantendo as ações <strong>de</strong> controle nasregiões com maior prevalência, através da FNS, estandoo controle da doença na Gerência Técnica Nacional <strong>de</strong>En<strong>de</strong>mias Focais.Usando sistemática investigativa, o Tracoma foi<strong>de</strong>tectado em várias regiões do Brasil (9-18) . Entretanto, ai<strong>de</strong>ia da erradicação do Tracoma ainda permanece comodominante entre a comunida<strong>de</strong> científica brasileira atéos dias atuais.Pesquisas epi<strong>de</strong>miológicas feitas em todo o Brasilreforçam a existência do Tracoma na realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>todos os municípios nos quais foi feita a investigação,com taxas <strong>de</strong> <strong>de</strong>tecção variáveis: Alagoas (4,5%); RioGran<strong>de</strong> do Norte (3,61%), Bahia (3,58%), Paraíba(3,81%), Roraima (4,34%), São Paulo (4,11%), RioGran<strong>de</strong> do Sul (4,60%), Tocantins (5,33%), Sergipe(5,84%), Paraná (6,2%), Espírito Santo (4,74%), Ceará(7,81%), Acre (8,34%), São Paulo - SP (2,2%), SantaCatarina (4,9% e Joinville), Manaus (4,8%), Rio <strong>de</strong> Janeiro(8,78% em Duque <strong>de</strong> Caxias) (3) . Mesmo em regiõeson<strong>de</strong> não era reportada a doença, estudos bem con-Rev Bras Oftalmol. 2012; 71 (3): 199-204
202Schellini SA, Sousa RLFduzidos mostraram que a mesma está presente, inclusivecom altas taxas <strong>de</strong> <strong>de</strong>tecção, o que levou os pesquisadoresa concluir que é importante divulgar que oTracoma não foi erradicado e <strong>de</strong>ve permanecer no diagnósticodiferencial <strong>de</strong> conjuntivite folicular crônicaem crianças e adolescentes em alguns municípios (19) .Estudos feitos no interior <strong>de</strong> São Paulo também apontama presença da doença em diferentes taxas: Presi<strong>de</strong>ntePru<strong>de</strong>nte - SP (2,6%), Franco da Rocha - SP (1,5%),Francisco Morato - SP (3,6%) (14,19,20) .Assim é possível observar que, apesar da diminuiçãoacentuada na prevalência e na incidência doTracoma, a doença sempre existiu em nosso meio, acometendomajoritariamente as populações mais carentese <strong>de</strong>sassistidas, presente inclusive nas gran<strong>de</strong>s metrópoles.O agenteO Tracoma é causado pela C. trachomatis, quepossui 15 sorotipos diferentes já i<strong>de</strong>ntificados. Ossorotipos L1, L2 e L3 são os gran<strong>de</strong>s responsáveis pelasíndrome do linfogranuloma venéreo; A, B, Ba e C sãomais frequentemente associados ao tracoma; os <strong>de</strong> D aK estão ligados a outras manifestações sexualmente transmitidas,sendo que os sorotipos mais frequentes são os dotipo D, E e F. Assim como em outras doenças sexualmentetransmissíveis (DST), a infecção genital é uma porta<strong>de</strong> entrada e aumenta o risco <strong>de</strong> contrair o vírus HIV,agente da síndrome da imuno<strong>de</strong>ficiência adquirida(Aids/SIDA).O controle do tracoma <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da i<strong>de</strong>ntificação<strong>de</strong> portadores assintomáticos, os quais representam umreservatório para o agente patogênico. Acredita-se quea imunida<strong>de</strong> é apenas parcialmente protetora, pois o risco<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver sequelas como gravi<strong>de</strong>z ectópica ouinfertilida<strong>de</strong> aumenta com os sucessivos episódios <strong>de</strong>infecção.Os sinais, os sintomas e o diagnósticoO agente provoca uma conjuntivite crônica, que seacompanha <strong>de</strong> poucos sinais e sintomas, <strong>de</strong>ntre eles: pruridoocular, hiperemia leve, pouca ou nenhuma secreçãoocular. A dificulda<strong>de</strong> maior para o diagnóstico <strong>de</strong>correexatamente da cronicida<strong>de</strong>, o que faz com que os sintomassejam frustros ou ausentes. Confun<strong>de</strong>-se, ainda, com aconjuntivite alérgica que não infrequentemente se encontraassociada ao quadro da conjuntivite tracomatosa.O diagnóstico do Tracoma é essencialmente clínico. Aconfirmação laboratorial <strong>de</strong>ve ser utilizada, para aconstatação da presença do agente etiológico na comunida<strong>de</strong>,e não para a confirmação <strong>de</strong> cada caso.A OMS orienta que o diagnóstico <strong>de</strong> Tracoma<strong>de</strong>ve ser dado quando houver pelo menos dois dos seguintessinais clínicos: folículos na conjuntiva tarsal superior,folículos no limbo ou fossetas <strong>de</strong> Herbert, cicatrizconjuntival típica e pannus no limbo superior (21,22) .Visando a pesquisa da doença em comunida<strong>de</strong>s(trabalhos <strong>de</strong> campo), a mesma organização estabeleceuum esquema simples <strong>de</strong> classificação do Tracoma,com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> simplicida<strong>de</strong> diagnóstica e implicaçõesepi<strong>de</strong>miológicas (Tabela 1). Cada um dos sinaistem importância para compreensão do estadoepi<strong>de</strong>miológico da população (23) .A prevalência da doença ativa é representadapela proporção <strong>de</strong> pessoas com TF (tracoma folicular) eTI (tracoma folicular intenso); aqueles com TI representamindivíduos com doença grave, requerendo prontotratamento. A prevalência <strong>de</strong> TT (triquíase tracomatosa),por sua vez, indica a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tratamento cirúrgicopara aquela comunida<strong>de</strong>, enquanto que a prevalência<strong>de</strong> CO (opacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> córnea) indica o impacto doTracoma como causa <strong>de</strong> perda visual.Há várias formas <strong>de</strong> pesquisar o Tracoma na população.Atingir a população portadora é mais simplesse a pesquisa se inicia pelos escolares, já que as criançasestão reunidas nos espaços didáticos. A partir dos casospositivos, os adultos acometidos (comunicantes) po<strong>de</strong>mser i<strong>de</strong>ntificados e todos <strong>de</strong>vem receber o tratamentoclínico que atualmente é feito com a administração viaoral <strong>de</strong> Azitromicina. Todos os acometidos passam porexames periódicos para certificação da cura.Caso a doença tenha permanecido por muitos anosna comunida<strong>de</strong> investigada, as seguidas reinfecções po<strong>de</strong>rãoocasionar a triquíase tracomatosa, a qual po<strong>de</strong>ráser responsável por lesões corneanas por traumatismodireto, seguindo-se <strong>de</strong> opacida<strong>de</strong> da córnea e perda davisão. A forma cicatricial da doença po<strong>de</strong>rá requerertratamento cirúrgico.Esta é a sistemática para quem se lança a campopara pesquisar esta afecção, <strong>de</strong>vendo ser a equipe preparadapara tal.Importância <strong>de</strong> se pesquisar e ensinar o TracomaDetectar e tratar o Tracoma é muito importante,já que estas medidas são capazes <strong>de</strong> alterar o quadro dadoença. O Tracoma pesquisado em escolares <strong>de</strong> Botucatuno ano <strong>de</strong> 1992 mostrou prevalência <strong>de</strong> 11%, tendo sidoos casos e comunicantes tratados (9) . Nova pesquisa feitano ano <strong>de</strong> 2005, conduzida nos mesmos mol<strong>de</strong>s que aanterior, apontou significativa queda do número <strong>de</strong> casosem relação ao levantamento anterior, comprevalência <strong>de</strong> TF <strong>de</strong> 3,7% (24) .Rev Bras Oftalmol. 2012; 71 (3): 199-204
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