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Luiz Guilherme Marinoni - Tribunal Regional Federal da 4ª Região

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APROXIMAÇÃO CRÍTICA ENTRE AS JURISDIÇÕESDE CIVIL LAW E DE COMMON LAWE A NECESSIDADE DE RESPEITOAOS PRECEDENTES NO BRASIL 1LUIZ GUILHERME MARINONIPROF. TITULAR DA UFPR. PÓS-DOUTOR PELA UNIVERSIDADE ESTATAL DE MILÃO. VISITINGSCHOLAR NA COLUMBIA UNIVERSITY. ADVOGADOSUMÁRIO: 1. Introdução – 2. O common law: as teorias declaratória e constitutiva <strong>da</strong> jurisdição – 3.Common law e stare decisis – 4. Criação judicial do direito em virtude <strong>da</strong> omissão do Legislativo? –5. Criação judicial do direito como consequência do stare decisis? – 6. Ver<strong>da</strong>deiro significado <strong>da</strong> lawmakingauthority – 7. Da “supremacy of the English parliament” ao “judicial review” estadunidense –8. Um esclarecimento: os diferentes significados de “supremacia do parlamento” na Inglaterra e naFrança – 9. A superação do jusnaturalismo racionalista pelo positivismo e as concepções de judgemake law e de juge bouche de la loi – 10. O juiz como “bouche de la loi” – 11. O problema <strong>da</strong>interpretação <strong>da</strong> lei no civil law – 12. A certeza jurídica como garantia <strong>da</strong> segurança – 13. Oindividualismo do juiz do civil law – 14. O impacto do constitucionalismo no civil law – 15. Ocontrole <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei no Brasil – 16. A adoção do sistema de controle difuso <strong>da</strong>constitucionali<strong>da</strong>de e a imprescindibili<strong>da</strong>de do stare decisis – 17. O juiz diante dos conceitosindeterminados e <strong>da</strong>s regras abertas – 18. Judge make law e decisão judicial, na ausência de lei, nocivil law – 19. O Superior <strong>Tribunal</strong> de Justiça e a uniformi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> interpretação do direito federal –20. A aproximação entre os sistemas do civil law e do common law e a imprescindibili<strong>da</strong>de de respeitoaos precedentes no direito brasileiro.1. IntroduçãoO civil law e o common law surgiram em circunstâncias políticas e culturais completamentedistintas, o que naturalmente levou à formação de tradições jurídicas diferentes, defini<strong>da</strong>s por institutos econceitos próprios a ca<strong>da</strong> um dos sistemas.O civil law carrega, a partir <strong>da</strong>s bandeiras <strong>da</strong> Revolução Francesa, dogmas que ain<strong>da</strong> servem paranegar conceitos e institutos que, muito embora não aderentes à sua teoria e tradição, mostram-seindispensáveis diante <strong>da</strong> prática e <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de de países que se formaram a partir <strong>da</strong> doutrina <strong>da</strong>separação estrita entre os poderes e <strong>da</strong> mera declaração judicial <strong>da</strong> lei.Não obstante as transformações que se operaram no civil law – inclusive nas concepções de direito ede jurisdição, marca<strong>da</strong>mente em virtude do impacto do constitucionalismo – e as especifici<strong>da</strong>des dosistema brasileiro – que se submete ao controle difuso <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei –, há notóriaresistência, para não se dizer indiferença, a institutos do common law de grande importância aoaperfeiçoamento do nosso direito, como é o caso d;o respeito aos precedentes.1 O presente texto constitui o Capitulo 1 do livro “Precedentes Obrigatórios” (São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais,2012, 2ª. Edição). O texto serviu de base à conferência “Precedentes no Sistema Estadunidense”, proferi<strong>da</strong> no TRF<strong>da</strong> <strong>4ª</strong>. <strong>Região</strong> por ocasião <strong>da</strong> abertura do “Seminário Brasil – Estados Unidos” (31.05.2012).


Este capítulo pretende demonstrar, mediante um método histórico-crítico, a aproximação entre asjurisdições do civil law e do common law, e, em tal dimensão, a necessi<strong>da</strong>de de se render respeito aosprecedentes no direito brasileiro. Num sistema que, ao expurgar os dogmas, depara-se com a reali<strong>da</strong>deinafastável de que a lei é interpreta<strong>da</strong> de diversos modos, não há outra alternativa para se preservar aigual<strong>da</strong>de perante a lei e a segurança jurídica, elementos indispensáveis a um Estado de Direito.2. O common law: as teorias declaratória e constitutiva <strong>da</strong> jurisdiçãoNo common law, discutiu-se intensamente sobre o significado <strong>da</strong> decisão judicial, ou, maispropriamente, sobre o significado <strong>da</strong> função jurisdicional. Desejava-se esclarecer se a decisão judicialcriava o direito ou somente o declarava e, bem por isto, intuiu-se que se estava discutindo uma teoria <strong>da</strong>jurisdição. 2Inicialmente, sustentou-se, na Inglaterra, a tese de que o juiz apenas declarava o direito, sendo umdos seus principais defensores William Blackstone. 3 Em seu entendimento, existiria a lex non scripta – odireito não escrito ou o common law – e a lei escrita – o direito escrito ou o statute law. O common lawpropriamente dito espelharia tanto costumes gerais (“costumes estabelecidos” e “regras e máximasestabeleci<strong>da</strong>s”), 4quanto os costumes particulares de algumas partes do reino, bem como aquelesobservados apenas em algumas cortes e jurisdições. 5A suposição de que o common law consiste nos costumes gerais faz sentir a teoria declaratória emoutra perspectiva, isto é, a própria teoria declaratória sob disfarce. 6 Partindo-se <strong>da</strong> ideia de que o commonlaw está nos costumes gerais observados entre os Englishmen, o juiz não o cria, mas tão somente odeclara. Daí a conclusão de Blackstone de que as decisões <strong>da</strong>s Cortes constituíam a demonstração do queo common law é. 7Não obstante, a natureza declaratória também era frisa<strong>da</strong> quando a decisão se baseava em anteriorprecedente judicial. Se os precedentes se destinam a desenvolver o common law, decisões iguais sobre umponto de direito significariam, igualmente, common law. Para a teoria em análise, o juiz estava limitado adeclarar o direito fixado nos precedentes. A sua autori<strong>da</strong>de não lhe <strong>da</strong>va poder para criar um novo direito,mas apenas para manter e declarar um direito já conhecido. 82. WESLEY-SMITH, Peter. Theories of adjudication and the status of stare decisis. In: GOLDSTEIN, L. (ed.).Precedent in law. Oxford: Clarendon Press, 1987, p. 73 e ss.3. BLACKSTONE, William. Commentaries on the law of England (fac-símile <strong>da</strong> 1.ª edição, de 1765). Chicago: TheUniversity of Chicago Press, 1979. vol. 1, p. 69.4. Idem, p. 68.5. CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. Precedent in English law. Oxford: Clarendon Press, 1991. p. 168.6. “A ideia de que a common law consiste em costumes gerais é a teoria declaratória sob outro disfarce” (CROSS,Rupert; HARRIS, J. W. Op. cit., p. 168).7. BLACKSTONE, William. Op. cit., p. 86.8. “Assim, enquanto o case-law, no começo do século XIX, constituía uma parcela menor de regras escocesas emcomparação com as leis inglesas, ele era explicado nos mesmos termos em ambos os países. O common lawpauta-se nos costumes de um país no qual as decisões judiciais são declarações de direitos que podem ou nãoser precisas. Essas decisões são dota<strong>da</strong>s de autori<strong>da</strong>de na medi<strong>da</strong> em que são declara<strong>da</strong>s por eles [Câmara dosLordes], mas na<strong>da</strong> além disso” (No original: “Thus while case-law at the beginning of the nineteenth century


Jeremy Bentham e John Austin condenaram de maneira áci<strong>da</strong> e impiedosa a teoria declaratória.Bentham igualou-a ao método adotado para o treinamento de cachorros – chegou a qualificá-la,literalmente, de dog-law 9 –, ao passo que Austin acusou-a de ficção infantil. 10 Para este autor, os juízesteriam a noção ingênua de que o common law não seria produzido por eles, mas se constituiria em algomilagroso feito por ninguém, existente desde sempre e para a eterni<strong>da</strong>de, meramente declarado de tempoem tempo. 11 O common law, na concepção <strong>da</strong> teoria positivista, existia por ser estabelecido por juízes quepossuíam law-making authority, sendo o direito, então, produto <strong>da</strong> vontade dos magistrados: não algomeramente descoberto, porém, criado. 12A fim de ser mais bem compreendi<strong>da</strong> a disputa entre as duas teorias, é importante voltar a atençãopara a questão <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> decisão judicial. O problema, portanto, consiste em saber se o juiz tinhaautori<strong>da</strong>de para criar ou apenas para declarar o direito. Qualquer que seja a justificativa teóricaemprega<strong>da</strong> no intuito de se concluir que o juiz possui autori<strong>da</strong>de para criar o direito, há, antes, anecessi<strong>da</strong>de de conhecer a reali<strong>da</strong>de em que o Estado inglês se formou ao admitir a law-making authority.Aqui, não importa saber se a decisão declara ou cria o direito, mas sim conhecer o motivo pelo qual ocommon law admitiu, ao inverso do civil law, que o juiz pode criar o direito.Não obstante, a natureza declaratória ou constitutiva <strong>da</strong> decisão judicial poderia ter relevância para aquestão do respeito obrigatório aos precedentes ou, em outras palavras, para o stare decisis, enquantotomado em sua acepção corrente no direito estadunidense. 13 Afirmou-se que, se o precedente representaformed a smaller part of Scots than of English law, it was explained in the same terms in both countries. Thecommon law is the custom of the country of which judicial decisions are declarations which may or may not beaccurate. They are authoritative in so far as they declare it, but no further”) (MACCORMICK, Neil. Can staredecisis be abolished? Judicial Review, 1966, p. 203).9. BENTHAM, Jeremy. Truth versus Ashhurst; or law as it is, contrasted with what it is said to be. The works ofJeremy Bentham (published under the superintendence of his executor, John Bowring). Edinburgh: WilliamTait, 1843. vol. 5, p. 231-238.10. AUSTIN, John. Lectures on jurisprudence, or the philosophy of positive law. 5. ed. rev. London: John Murray,1911. vol. 2, p. 634.11.Idem. “O que o impediu [Blackstone] de perceber isto foi a ficção infantil emprega<strong>da</strong> por nossos juízes de que ojudiciary ou common law não é feito por eles, mas é algo milagroso feito por ninguém, existindo, eu imagino,a partir <strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de, e sendo meramente declarado de tempo em tempo pelos juízes” (No original: “Whathindered him from seeing this, was the childish fiction employed by our judges, that judiciary or common lawis not made by them, but is a miraculous something made by nobody, existing, I suppose, from eternity, andmerely declared from time to time by the judges”).12.“A common law, aduzem os positivistas, existia (se é que realmente existia) porque era posta por juízes quepossuíam a law-making authority [autori<strong>da</strong>de de fazer lei]. A lei era um produto <strong>da</strong> vontade judicial. Não eradescoberta, mas cria<strong>da</strong>” (No original: “The common law, said the positivists, existed (if it existed at all)because it was laid down by judges who possessed law-making authority. Law was the product of judicial will.It was not discovered but created”) (WESLEY-SMITH, Peter. Op. cit., p. 74).13.De regra, o termo stare decisis significa tanto a vinculação, por meio do precedente, em ordem vertical (ouseja, como representação <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de uma Corte inferior respeitar decisão pretérita de Corte superior),como horizontal (a Corte respeitar decisão anterior proferi<strong>da</strong> no seu interior, ain<strong>da</strong> que a constituição dosjuízes seja altera<strong>da</strong>). Esta é a posição adota<strong>da</strong>, entre outros, por Neil Duxbury e Melvin Aron Eisenberg. Emoutra sen<strong>da</strong>, há aqueles que optam por distinguir o termo stare decisis de precedent, como FrederickSchauer, para quem, “tecnicamente, a obrigação de uma corte de seguir decisões prévias <strong>da</strong> mesma corte édita como sendo stare decisis (...), e o termo mais abrangente precedente é usado para se referir tanto à stare


apenas uma evidência do direito, nenhum juiz poderia ser absolutamente obrigado a segui-lo, uma vezque o juiz sempre teria o poder de declarar em contrário ao precedente ou mesmo ao seu overruling(revogação). 14Nesta linha, o stare decisis (respeito obrigatório aos precedentes) exigiria, comoantecedente lógico, a criação judicial do direito.Da relação entre a natureza constitutiva <strong>da</strong> decisão judicial e o stare decisis formaram-se três mitos:i) o common law não existe sem o stare decisis; ii) o juiz do common law, por criar o direito, realiza umafunção absolutamente diversa <strong>da</strong>quela do seu colega do civil law; e iii) o stare decisis é incompatível como civil law.Contudo, a ver<strong>da</strong>de é que a criação judicial do direito não constitui um pressuposto para o staredecisis. O respeito ao passado é traço peculiar à teoria declaratória, com a diferença de que o precedente,em vez de constituir, declara o direito costumeiro ou representa o próprio desenvolvimento dos costumesgerais, ou seja, o common law. Assim, ain<strong>da</strong> que se admitisse que a função judicial fosse meramentedeclaratória, na<strong>da</strong> poderia indicar que o juiz estivesse menos disposto a respeitar o passado. Por outrolado, mesmo que se aceitasse a criação judicial do direito, na<strong>da</strong> poderia assegurar que o juiz estariaobrigado a respeitar os precedentes. Deixe-se claro, desde logo, que tanto a teoria declaratória, quanto aconstitutiva, foram obriga<strong>da</strong>s a admitir a revogação do precedente cujo conteúdo não pudesse serreprisado sem gerar injustiça no caso concreto.Neil MacCormick, no trabalho sugestivamente intitulado Can stare decisis be abolished?, 15 apósalegar que Bentham e Austin demonstraram o “disparate <strong>da</strong> teoria declaratória do precedente” e afirmarque as suas doutrinas passaram a fazer parte <strong>da</strong> “herança [bag-and-baggage] intelectual do direito”, fazinteressante construção. 16 O jurista escocês adverte que, como os juízes estavam mergulhados em culturajurídica que evidenciava o colapso <strong>da</strong> teoria declaratória, os magistrados não mais poderiam se esconderatrás desta teoria caso desejassem revogar os precedentes. De acordo com MacCormick, para seguir aAustin, o juiz teria de legislar abertamente. Como a doutrina austiniana sustenta que o juiz cria o direito, asua aceitação exigiria que os juízes também admitissem que realmente poderiam legislar, inclusive aorevogar os precedentes.To<strong>da</strong>via, relata MacCormick que o convite de Austin não foi aceito. 17 É que os juízes se sentiamconfortáveis ao declarar e não queriam assumir a responsabili<strong>da</strong>de de criar o direito e de revogar osdecisis, quanto à obrigação de uma corte inferior de seguir decisões de uma superior”. Ver DUXBURY, Neil.The nature and authority of precedent. New York: Cambridge University Press, 2008. p. 12-13; 28;EISENBERG, Melvin Aron. The nature of the common law. Cambridge: Harvard University Press, 1998. p. 48e ss.; SCHAUER, Frederick. Why precedent in law (and elsewhere) is not totally (or even substantially) aboutanalogy. Disponível em:. Acesso em: 01out. 2009.14.CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. Op.cit., p. 30.15.MACCORMICK, Neil. Can stare decisis be abolished?, p. 197 e ss.16.Idem, p. 204.17.“A partir do momento em que essas teorias se tornaram parte <strong>da</strong> herança intelectual do direito ficou claro que osjuízes não poderiam mais se esconder atrás <strong>da</strong> teoria declaratória caso desejassem divergir de autori<strong>da</strong>desanteriores. Se fosse para legislarem, deveriam legislar abertamente. Porém, o convite de Austin não foi aceito.Por consequência ou não <strong>da</strong> desaprovação de Betham, os juízes vieram a aceitar que se afastar de decisõesanteriores era também legislar; e isso eles não iriam fazer” (No original: “Once these theories had become partof the intellectual bag-and-baggage of the law, it was clear that judges could no longer hide behind thedeclaratory theory if they wished to dissent from previous authorities. If they were to legislate they must


precedentes. Assim, é realmente possível dizer que os juízes tiveram boas razões para se manterem presosà teoria declaratória, permitindo-lhe uma longa sobrevi<strong>da</strong>, especialmente por se livrarem do peso dedecisões retroativas que poderiam ser ditas não democráticas. 18Note-se que a argumentação de MacCormick e a própria doutrina de Austin não apenas sustentarama improprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> natureza declaratória <strong>da</strong> decisão judicial, tendo também sublinhado que o juiz, aorevogar o precedente, sempre estaria criando o direito. Para Austin, a teoria declaratória entraria emcontradição com a revogação do precedente, uma vez que, se a primeira Corte cometeu um erro, o juizque se encontra com o caso nas mãos teria de legislar ou fazer algo bem diferente do que declarar odireito contido no precedente. 19Reafirme-se que não interessa, aqui, saber qual <strong>da</strong>s teorias estava certa. Os próprios partidários <strong>da</strong>teoria de que o juiz cria o direito, ao considerarem a necessi<strong>da</strong>de de revogação do precedente, anunciaramque, neste caso, ocorreria um remaking. 20 Não importa se o juiz reconstrói o direito ou declara o erro <strong>da</strong>primitiva declaração do direito quando uma ou outra explicação serve para justificar a revogação doprecedente. Ora, ao justificarem tal revogação, ambas as teorias estavam cientes do dever judicial derespeito aos precedentes. 21legislate openly. But Austin’s invitation was not accepted. Whether or not in consequence of Bentham’srevilement of their legislation, the judges came to accept that to deviate from previous decisions was tolegislate; and that they would not do”) (idem, p. 205).18.WESLEY-SMITH, Peter. Op. cit., p. 76.19.Neil Duxbury, ao tratar do mencionado texto de MacCormick, e, assim, também do impacto <strong>da</strong> doutrina de Austinsobre a prática dos juízes, escreve: “Se os juízes têm o dever de encontrar e declarar a lei eles mesmos, eles sópodem ser obrigados a seguir a decisão proferi<strong>da</strong> por outras cortes na hipótese de essa decisão ser uma corretadeclaração <strong>da</strong> lei. Se a Corte anterior cometeu um equívoco, os juízes que estão julgando o caso em questãodevem declarar a lei através de maneira outra que não seguindo o precedente” (No original: “If judges have aduty to find and declare the law themselves, they can only be bound to follow the ruling of another court wherethat ruling is itself a correct declaration of the law. If the earlier court made a mistake, judges deciding the casein hand must declare the law by doing something other than following the precedent”) (DUXBURY, Neil. Op.cit., p. 39).20.De acordo com os adeptos <strong>da</strong> teoria declaratória, os precedentes devem ser seguidos, exceto quando são“terminantemente absurdos ou injustos” (“flatly absurd or injust”). Neste caso, os juízes futuros não elaboramum direito novo. No dizer de Blackstone, quando a sentença anterior é manifestamente absur<strong>da</strong> ou injusta, ojuiz não declara que aí existe “uma lei ruim” (“bad law”), mas sim que a sentença “não era lei” (“was notlaw”), isto é, “que ela não é o costume estabelecido do reino, uma vez que foi erroneamente determina<strong>da</strong>”(“that it is not the established custom of the realm, as has been erroneously determined”) (BLACKSTONE,William. Op. cit., p. 70).21.De outra parte, desde 1981, quando se passou a admitir o antecipatory overruling nos Estados Unidos, háquestionamentos que consideram o significado <strong>da</strong> antecipação <strong>da</strong> revogação de precedente <strong>da</strong> SupremaCorte, por parte <strong>da</strong>s Cortes de Apelação, na perspectiva <strong>da</strong>s teorias declaratória e constitutiva. Nestesentido, escreve Margaret Kniffin, em artigo publicado na Fordham Law Review: “Ao examinar se o staredecisis permite o overruling antecipatório, uma questão preliminar e geralmente debati<strong>da</strong> surge a respeito <strong>da</strong>natureza do direito. As Cortes, ao decidirem casos, ‘descobrem’ o direito, o qual sempre existiu, ou elas o‘criam’? Se as Cortes descobrem o direito, uma Corte de Apelação, ao prever uma ação <strong>da</strong> Suprema Corte etomar uma atitude sem esperar que a Corte Superior o faça, chega, antes <strong>da</strong> Suprema Corte, a um ponto jáexistente. Se, de outro lado, a Suprema Corte cria o direito quando revoga um precedente, uma Corte deApelação, antecipando, desenha o que acredita que a Corte Superior gostaria de criar. A tentativa deescolher entre esses dois conceitos pode gerar uma confusão desnecessária. Ca<strong>da</strong> qual pode ser considerado


O que muito releva, diante <strong>da</strong> argumentação de MacCormick, é que os próprios juízes chegaram àconclusão de que a ruptura com os precedentes significaria legislar, e, por isso, mantiveram-se adstritosaos precedentes, <strong>da</strong>ndo uma bela demonstração concreta, porque perceptível na história dos precedentes,de que a aceitação <strong>da</strong> natureza declaratória <strong>da</strong> decisão judicial não é incompatível com o stare decisis.Deixe-se bem claro, contudo, que não se está sustentando que a base do stare decisis, na Inglaterra,apenas poderia estar na teoria declaratória, ou que esta teoria justifica de maneira perfeita e adequa<strong>da</strong> ostare decisis. Na ver<strong>da</strong>de, nem a teoria declaratória, tampouco a constitutiva ou positivista, são capazes decoerentemente justificar o stare decisis em seu estado absoluto ou em sua conformação pura. 22Para minar a teoria declaratória, seria possível dizer que o juiz é obrigado a respeitar o direito enão a declaração judicial do que é o direito. Em outras palavras, se o precedente não é direito, mas sima declaração de um juiz acerca do direito, não haveria como impor aos demais juízes o respeito aoprecedente. Isto se tornaria mais fácil ao se supor que o juiz pode criar o direito. 23Na Inglaterra, o juiz só tem capaci<strong>da</strong>de para criar o direito quando não há, acima dele, qualquerCorte que possa tratar <strong>da</strong> matéria que lhe foi submeti<strong>da</strong>. Assim, a noção de que o juiz pode criar o direitoapenas justificaria o chamado efeito vertical do stare decisis, uma vez que o precedente apenas obrigariaos juízes e Cortes inferiores. Ou seja: a teoria constitutiva, na dimensão <strong>da</strong> discussão em que foi inseri<strong>da</strong>diante do stare decisis inglês, não seria capaz de obrigar a própria Corte que firmou o precedente ou opróprio juiz que o proferiu. Isto quer dizer que a ideia de juiz dotado de law-making authority não seriacapaz de <strong>da</strong>r fun<strong>da</strong>mento ao stare decisis exatamente no local em que ele é mais importante. Ora, não épreciso dizer que, antes de se exigir o respeito dos demais, é necessário respeitar-se.Se os precedentes podem ser revogados, é evidente que o respeito devido a eles depende <strong>da</strong> força <strong>da</strong>ssuas razões. Portanto, não é porque a decisão é chama<strong>da</strong> de declaração judicial e não de direito que elaum olhar diferente sobre um mesmo objeto. A despeito de se saber se a Corte Superior descobre ou cria odireito, esse só tem efeito após a decisão. Após a edição <strong>da</strong> norma pela Corte, a sua tese (holding) é lei atéser revoga<strong>da</strong>, também independentemente de se a Corte descobriu ou criou o direito” (No original: “Inexamining whether stare decisis permits anticipatory overruling, a preliminary and oft-debated questionarises concerning the nature of law. Do courts, in deciding cases, ‘discover’ the law, which has existed allalong, or do they ‘create’ law? If courts discover law, a court of appeals, in predicting an action of theSupreme Court and taking that action without waiting for the High Court to do so, arrives, before theSupreme Court does, at an already existing point. If, on the other hand, the Supreme Court creates law whenit overturns a precedent, a court of appeals, in anticipating, fashions what it believes the High Court woulditself wish to create. Attempting to choose between these two concepts may generate unnecessaryconfusion. Each can be considered a different optical device for viewing a single entity. Regardless ofwhether the High Court discovers law or creates law, its decision becomes enforceable only when made andhas no legal effect prior to that moment. After the Court has ruled, its holding is law until overturned,regardless also of whether the holding discovered or created law”) (KNIFFIN, Margaret N. OverrulingSupreme Court precedents: anticipatory action by United States courts of appeals. Fordham Law Review,1982, p. 66).22.“O resultado é que qualquer teoria adota<strong>da</strong> pelos juízes [declaratória ou positivista] é incompatível com o staredecisis” (No original: “The result is that whichever theory [declaratory or positivist] of their function isadopted by judges it is incompatible with stare decisis”) (WESLEY-SMITH, Peter. Op. cit., p. 87).23.“Quando o juiz é reconhecido, contudo, como capaz de criar lei, a noção vertical de stare decisis – de uma corteser obriga<strong>da</strong> a seguir decisões proferi<strong>da</strong>s por Cortes hierarquicamente superiores a ela – é perfeitamenteracional” (No original: “When a judge is recognized, however, as able to make law, the notion of vertical staredecisis – of a court being bound by decisions of courts above it in the hierarchy – is perfectly rational”) (idem,p. 81).


perderá autori<strong>da</strong>de e deixará de merecer deferência. De outra parte, se o respeito aos precedentes dependede estes serem concebidos como direito, na<strong>da</strong> impediria que uma decisão judicial, vista então comodireito, afirmasse que os próprios juízes <strong>da</strong> Corte Superior estão, a partir de determinado instante,submetidos aos seus próprios precedentes, ou que o legislativo editasse lei dizendo que as Cortes devemrespeitar os seus precedentes e os <strong>da</strong>s Cortes superiores. Em relação ao funcionamento e à eficiência dostare decisis, a diferença residiria apenas no aspecto formal. Num caso a obrigatorie<strong>da</strong>de adviria de umprecedente; noutro, a obrigatorie<strong>da</strong>de decorreria <strong>da</strong> lei.Note-se, ademais, que o stare decisis somente se solidificou na Inglaterra ao final do século XIX,muito tempo depois do aparecimento <strong>da</strong>s doutrinas de Bentham e de Austin. 24 London Tramways v.London County Council, decidido em 1898, constitui o cume de uma evolução em direção à vinculação <strong>da</strong>House of Lords 25 às suas próprias decisões, pois o conceito de rules of precedent e a ideia de vinculação(binding effect) foram consoli<strong>da</strong>dos no período entre 1862 e 1900. De fato, quando neste caso foi clara eobjetivamente coloca<strong>da</strong> a questão relativa à possibili<strong>da</strong>de de a House considerar argumentos paracontrariar as suas decisões, não houve hesitação em se decidir que isto não poderia ocorrer. 26 Isto é, avinculação horizontal, na House of Lords, é devedora de um precedente com feição de rule of precedent(de regra concernente à eficácia dos precedentes), e não de direito substancial.Conclua-se, assim, neste tópico, que tanto a teoria declaratória quanto a teoria constitutivaa<strong>da</strong>ptaram-se a um sistema de respeito obrigatório aos precedentes.3. Common law e stare decisisAdemais, não há que se confundir common law com stare decisis. 27Ora, o common law,compreendido como os costumes gerais que determinavam o comportamento dos Englishmen, existiu, porvários séculos, sem stare decisis e rule of precedent.Como escreve Simpson, qualquer identificação entre o sistema do common law e a doutrina dosprecedentes, qualquer tentativa de explicar a natureza do common law em termos de stare decisis,certamente será insatisfatória, uma vez que a elaboração de regras e princípios regulando o uso dosprecedentes e a determinação e aceitação <strong>da</strong> sua autori<strong>da</strong>de são relativamente recentes, para não se falar<strong>da</strong> noção de precedentes vinculantes (binding precedents), que é mais recente ain<strong>da</strong>. Além de o common24.DUXBURY, Neil. Op. cit., p. 114 e ss.25.Recentemente, a House of Lords foi “substituí<strong>da</strong>” pela Supreme Court of the United Kingdom, que assumiu assuas funções judiciais. A Supreme Court of the United Kingdom foi cria<strong>da</strong> pelo Ato de Reforma Constitucionalde 2005 (Part 3, Constitutional Reform Act 2005), tendo iniciado as suas ativi<strong>da</strong>des em 1.º de outubro de 2009.Argumentou-se, em defesa <strong>da</strong> criação <strong>da</strong> Supreme Court, que a histórica aproximação <strong>da</strong> House of Lords como Parlamento e com o Executivo poderia prejudicar o Reino Unido diante <strong>da</strong> Convenção Europeia de DireitosHumanos. Temia-se que as decisões <strong>da</strong> House of Lords pudessem ser mal recebi<strong>da</strong>s (como se nãoconstituíssem fair trial) pela Corte Europeia de Direitos Humanos.26.“Quando, em 1898, em London Tramways Co. v. London County Concil, o problema foi claramente colocadosobre a possibili<strong>da</strong>de de a House ouvir argumentos solicitando que reconsiderasse uma decisão anterior, elanão hesitou em dizer que não poderia” (No original: “When, in 1898, in London Tramways Co. v. LondonCounty Council, the issue was squarely put whether the House could hear argument asking it to reconsider aprevious decision, it had no hesitation in ruling that it could not”) (EVANS, Jim. Precedent in the nineteenthcentury. In: GOLDSTEIN, L. (ed.) Precedent in law. Oxford: Clarendon Press, 1987. p. 58).27.No direito brasileiro, acerca do conceito de stare decisis, ver TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicialcomo fonte do direito. São Paulo: Ed. RT, 2004. p. 159 e ss.


law ter nascido séculos antes de alguém se preocupar com tais questões, ele funcionou muito bem comosistema de direito sem os fun<strong>da</strong>mentos e conceitos próprios <strong>da</strong> teoria dos precedentes, como, porexemplo, o conceito de ratio decidendi. 28O realce <strong>da</strong> distinção entre stare decisis e common law, além de necessário para afastar uma vulgarconfusão, centra-se na preocupação deste livro em sustentar que o sistema de precedentes pode constituirparte do sistema brasileiro. 29 Com efeito, o stare decisis constitui apenas um elemento do moderno commonlaw, que também não se confunde com o common law de tempos imemoriais ou com os costumes gerais, denatureza secular, que dirigiam o comportamento dos Englishmen. É imprescindível ter-se em mente que,muito embora o direito jurisprudencial contemporâneo tenha configuração bem distinta e mais ampla<strong>da</strong>quele <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de, e que o stare decisis seja algo que faz parte <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, não há comoidentificar o common law dos dias de hoje com o stare decisis. 30 Assim, a circunstância de o common lawter iniciado a sua existência muito antes de se falar em stare decisis não é a única distinção entre ambos.Mas, mesmo sendo certo que o stare decisis não é necessário para a existência do sistema de direitomaterial nem para o funcionamento do sistema de distribuição de justiça, alguém poderia dizer que ele é28.“Ao menos para um historiador, qualquer identificação entre o sistema do common law e a doutrina dosprecedentes, qualquer tentativa de explicar a natureza do common law em termos de stare decisis, é condena<strong>da</strong>a parecer insatisfatória, uma vez que a elaboração de regras e princípios que regulam o uso de precedentes e oseu status de ‘lei’ é relativamente moderno, e a ideia de obrigatorie<strong>da</strong>de dos precedentes é mais recente ain<strong>da</strong>.O common law já existia há séculos antes de alguém se interessar por essas questões, tendo funcionado comoum sistema, não obstante carente de fun<strong>da</strong>mentos como o conceito de ratio decidendi; e, diga-se de passagem,funcionou muito bem” (No original: “To a historian at least any identification between the common law systemand the doctrine of precedent, any attempt to explain the nature of the common law in terms of stare decisis, isbound to seem unsatisfactory, for the elaboration of rules and principles governing the use of precedents andtheir status as authorities is relatively modern, and the idea that there could be binding precedents more recentstill. The common law had been in existence for centuries before anybody was very excited about thesematters, and yet it functioned as a system of law without such props as the concept of the ratio decidendi, andfunctioned well enough”) (SIMPSON, A. W. B. The common law and legal theory. In: HORDER, Jeremy (ed.).Oxford essays in jurisprudence. Oxford: Clarendon Press, 1973. p. 77).29.Cruz e Tucci, em trabalho que contém ampla e importante abor<strong>da</strong>gem histórica, demonstra que o uso dosprecedentes obrigatórios não apenas é cíclico na história do civil law como independe <strong>da</strong> época, do sistemajurídico e <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> função <strong>da</strong>s pessoas que o empregam: “Por paradoxal que possa parecer, vemassinalado que, sob o prisma <strong>da</strong> história do direito moderno, os sistemas de direito codificado tambémconheceram, além <strong>da</strong> força natural dos precedentes persuasivos, precedentes com eficácia vinculante, sendocerto que entre estes sobressaía a jurisprudência de cortes superiores (precedentes verticais), como, e.g., osarrêts de règlement do Parlamento francês; os julgamentos <strong>da</strong>s “causas maiores” <strong>da</strong> Rota Romana, <strong>da</strong> Itáliapré-unitária; o regime de assentos <strong>da</strong> Casa de Suplicação em Portugal; o prejulgado trabalhista no Brasil; e,ain<strong>da</strong> hoje, o controle exercido pelo <strong>Tribunal</strong> Constitucional espanhol sobre as decisões que contrariamprecedentes judiciais; e a inusita<strong>da</strong> regra constante do art. 1.º, al. 2, do Código Civil suíço, que outorga ao juiz,diante <strong>da</strong> lacuna <strong>da</strong> lei, o poder de criar a regra aplicável ao caso concreto. (...) Se olharmos ain<strong>da</strong> mais para opassado, iremos verificar que o usus do precedente, acentuado na casuística, constitui um método cujacaracterística fun<strong>da</strong>mental independe <strong>da</strong> época, do sistema jurídico ou <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> função exerci<strong>da</strong> pelaspessoas que o empregam” (TUCCI, José Rogério Cruz e. Op. cit., p. 23-24).30.“Invero il contraporre i sistemi di common law a quelli di civil law solo sulla base del fatto che i primiriconoscono al diritto giurisprudenziale il ruolo ed il rango di fonte del diritto non fa senso alcuno”(GAMBARO, Antonio. Civil law e common law: evoluzione e metodi di confronto. Rivista Trimestrale diDiritto e Procedura Civile, Numero Speciale: Due iceberg a confronto: le derive di common law e civil law,2009, n. 4, p. 12).


De qualquer forma, se, no direito inglês primitivo, havia baixa produção de leis, isso não ocorre nocommon law contemporâneo. A suposição de que, nos Estados Unidos, a produção legislativa do direito ébaixa, o que impõe a sua criação pelos juízes, não só é falsa (eis que calca<strong>da</strong>, ao que parece, emsuposições parti<strong>da</strong>ristas infun<strong>da</strong><strong>da</strong>s), como produz enganos em termos de direito comparado. É provávelque um estado típico dos Estados Unidos tenha tanta legislação quanto um país europeu ou latinoamericano,a qual obviamente deve ser aplica<strong>da</strong> e interpreta<strong>da</strong> pelos juízes. 34Note-se, portanto, que, ain<strong>da</strong> que se possa admitir que o common law, na sua origem inglesa, eracomplementado pelo legislativo, ou que a atuação deste poder era aí pouco intensa, a existência de lei nãose opõe ao common law, ou, mais importante ain<strong>da</strong> e bem mais fácil de ser visualizado, a profusão de leisnão exclui a necessi<strong>da</strong>de de um sistema de precedentes. 35No common law, a autori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei é superior àquela <strong>da</strong>s decisões judiciais, 36 e não o contrário, oque autoriza dizer que a quanti<strong>da</strong>de de leis e o seu grau de autori<strong>da</strong>de constituem critérios absolutamenteinúteis para distinguir este sistema do de civil law.5. Criação judicial do direito como consequência do stare decisis?Quando se diz que o juiz do common law cria o direito, não se está pensando que a sua decisão tem amesma força e quali<strong>da</strong>de do produto elaborado pelo legislativo, isto é, <strong>da</strong> lei. A decisão não se equipara àlei pelo fato de ter força obrigatória para os demais juízes.Porém, seria possível argumentar que a decisão, por ter força obrigatória, constitui direito. Ocommon law considera o precedente como fonte de direito. 37Note-se, contudo, que, quando um34.Idem, p. 27 e ss.35.Como lembra Antonio Gambaro, a experiência continental europeia concedeu, no século passado, grandeespaço ao direito jurisprudencial, enquanto, do outro lado, uma “orgia di legiferazione” deu forma e vestelegislativa a grande parte <strong>da</strong>s regras do common law clássico (GAMBARO, Antonio. Op. cit., p. 11. VerCALABRESI, Guido. A common law for the age of statutes. Cambridge: Harvard University Press, 1982.36.É o que se pode observar, por exemplo, <strong>da</strong> Supremacy Clause [Cláusula de Supremacia], constante do artigoVI, cláusula 2, <strong>da</strong> Constituição do Estados Unidos <strong>da</strong> América, segundo a qual a Constituição, as LeisFederais e os Tratados realizados sob a autori<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quela nação representam a “Lei Suprema do País”,estando os Juízes de todos os Estados a elas subordinados, restando afasta<strong>da</strong> qualquer determinação emcontrário constante <strong>da</strong> Constituição ou <strong>da</strong>s Leis Estaduais (No original: “This Constitution, and the Laws ofthe United States which shall be made in Pursuance thereof; and all Treaties made, or which shall be made,under the Authority of the United States, shall be the supreme Law of the Land; and the Judges in everyState shall be bound thereby; any Thing in the Constitution or Laws of any State to the Contrarynotwithstanding”). Perde efeito, igualmente, conforme anotação de Caleb Nelson (apud Gary Lawson),qualquer interpretação judicial contrária a tais normas (NELSON, Caleb. Stare decisis and demonstrablyerroneous precedents. Virginia Law Review, vol. 87, mar. 2001, p. 01-79). Não se pode negar, to<strong>da</strong>via, quenem mesmo aquilo que Maltz menciona como supremacy of statutes (supremacia dos direitos legislados) écapaz de estancar, por completo, a doutrina constante dos precedentes anteriores à legislação. Ela continua,sim, exercendo influência, ain<strong>da</strong> que como “um dos vários fatores que influenciam a interpretação judicial<strong>da</strong> norma específica” (No original: “The point is that the mere fact the legislature has acted does not totallyextinguish the influence of prestatutory judge-made law. Instead, legislative action simply changes thedynamic, with preexisting doctrine being one of a number of factors that influence judicial interpretation ofthe relevant statute”) (MALTZ, Earl. The nature of precedent. North Carolina Law Review, vol. 66, p. 367-392, jan. 1988).37.Ao menos, esta é a regra geral. Mary G. Algero (The sources of law and the value of precedent: a comparative andempirical study of a civil law state in a common law nation, Louisiana Law Review, vol. 65, 2005, p. 775-785),


precedente interpreta a lei ou a Constituição, como acontece especialmente nos Estados Unidos, há,evidentemente, direito preexistente com força normativa, de modo que seria absurdo pensar que o juiz,neste caso, cria um direito novo. Na ver<strong>da</strong>de, também no caso em que havia apenas costume, existiadireito preexistente, o direito costumeiro.A circunstância de o precedente ser admitido como fonte de direito está muito longe de constituir umindício de que o juiz cria o direito a partir <strong>da</strong> sua própria vontade. Nesta perspectiva, a força obrigatóriado precedente, ou a admissão do precedente como fonte de direito, não significa que o judiciário tempoder para criar o direito.6. Ver<strong>da</strong>deiro significado <strong>da</strong> law-making authorityO que permite dizer que o juiz do common law cria o direito é a comparação do seu papel com o dojuiz <strong>da</strong> tradição do civil law, cuja função se limitava à mecânica aplicação <strong>da</strong> lei. Neste sistema, quandose dizia que ao juiz cabia apenas expressar as palavras dita<strong>da</strong>s pelo legislador, o direito era concebidounicamente como lei. A tarefa do judiciário se resumia à aplicação <strong>da</strong>s normas gerais.O juiz inglês não apenas teve espaço para densificar o common law, como também oportuni<strong>da</strong>de de,a partir dele, controlar a legitimi<strong>da</strong>de dos atos estatais. Neste sentido, Edward Coke – cujo papel foi muitoimportante, ain<strong>da</strong> que em nível doutrinário, para a contenção do arbítrio do rei – decidiu no célebre casoBonham, por volta de 1610, que as leis estão submeti<strong>da</strong>s a um direito superior, o common law, e, quandoisto não acontecer, vale dizer, quando não respeitarem este direito, são elas nulas e destituí<strong>da</strong>s de eficácia.Disse Coke, nesta ocasião, que, “em muitos casos, o common law controlará os atos do Parlamento, ealgumas vezes os julgará absolutamente nulos: visto que, quando um ato do Parlamento for contrário aalgum direito ou razão comum, ou repugnante, ou impossível de ser aplicado, o common law irá controlálose julgá-los como sendo nulos”. 38Esclareça-se que, apesar <strong>da</strong> decisão de Coke estar vincula<strong>da</strong> à teoria declaratória <strong>da</strong> jurisdição, e nãoà teoria que afirma a law-making authority – a teoria constitutiva –, a sua lembrança é pertinente parademonstrar que o juiz do common law realizava espécie de controle dos atos do Parlamento. Vê-se, nadecisão proferi<strong>da</strong> no caso Bonham, o primeiro germe do controle <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s leis, e, assim,é possível <strong>da</strong>í também extrair a noção de que o poder judicial, no common law primitivo, era exercidomediante uma lógica semelhante à que dirige a atuação do juiz submetido à Constituição e aos direitosfun<strong>da</strong>mentais. 39cita<strong>da</strong> por Jor<strong>da</strong>n Wilder Connors, assinala que, com exceção do Estado <strong>da</strong> Louisiana, todos os demaisquarenta e nove Estados que compõem os Estados Unidos <strong>da</strong> América, tal qual o sistema de cortes federais,seguem um modelo próximo àquele operado na Inglaterra no que toca ao stare decisis, o qual toma oprecedente como fonte de direito (No original: “The forty-nine states in the United States, other thanLouisiana, as well as the United States federal court system follow a version of the doctrine of stare decisisthat is similar to the English respect for precedent and its consideration of precedent as a source of Law”)(CONNORS, Jor<strong>da</strong>n Wilder. Treating like subdecisions alike: the scope of stare decisis as applied to judicialmethodology. Columbia Law Review, vol. 108, n. 3, p. 681-715, abr. 2008).38.“E parece que em nossos livros, em muitos casos, o common law controlará os atos do Parlamento, e algumasvezes os julgará absolutamente nulos: visto que, quando um ato do Parlamento for contrário a algum direito ourazão comum, ou repugnante, ou impossível de ser aplicado, o common law irá controlá-lo e julgá-lo comosendo nulo” (No original: “And it appears in our books, that in many cases, the common law will control actsof Parliament, and sometimes adjudge them to be utterly void: for when an act of Parliament is againstcommon right and reason, or repugnant, or impossible to be performed, the common law will control it an<strong>da</strong>djudge such act to be void”) (GROTE, Rainer. Op. cit., p. 2).39.Ver ARGÜELLES, Juan Ramón de Páramo; ROIG, Francisco Javier Ansuátegui. Op. cit., p. 774.


A evolução do civil law, particularmente em virtude do impacto do constitucionalismo, deu aos seusjuízes um poder similar àquele do juiz inglês submetido ao common law e, bem mais claramente, ao poderdo juiz americano, dotado do poder de controlar a lei a partir <strong>da</strong> Constituição. 40 No instante em que a leiperde a supremacia, submetendo-se à Constituição, transforma-se não apenas o conceito de direito, masigualmente o significado de jurisdição. O juiz deixa de ser um servo <strong>da</strong> lei e assume o dever dedimensioná-la na medi<strong>da</strong> dos direitos positivados na Constituição. Se o juiz pode negar a vali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> leiem face <strong>da</strong> Constituição ou mesmo instituir regra imprescindível à realização de direito fun<strong>da</strong>mental, oseu papel não é mais aquele concebido por juristas e processualistas de épocas distantes. 41 Aliás, o juizbrasileiro, hoje, tem poder criativo maior do que o juiz do common law, uma vez que, ao contrário deste,não presta o adequado respeito aos precedentes.Com efeito, se alguém perguntar a qualquer teórico do common law a respeito <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> funçãodo juiz que não aplica a lei por reputá-la inconstitucional, que se vale <strong>da</strong> técnica <strong>da</strong> interpretaçãoconforme a Constituição ou que supre a omissão de uma regra processual que deveria ter sidoestabeleci<strong>da</strong> em virtude de um direito fun<strong>da</strong>mental de natureza processual, certamente se surpreenderá.Tal ativi<strong>da</strong>de obviamente não significa declaração de direito, e assim, na perspectiva <strong>da</strong>s doutrinasproduzi<strong>da</strong>s no common law, certamente revela uma ativi<strong>da</strong>de produtora, ver<strong>da</strong>deira criação judicial dodireito.Quando alguns países <strong>da</strong> Europa continental adotaram “tribunais constitucionais” – entre elesÁustria, Alemanha, Itália e Espanha –, objetivou-se reafirmar o princípio <strong>da</strong> separação de poderes,deixando-se claro que o controle de constitucionali<strong>da</strong>de não seria feito pelos juízes ordinários, mas simpor um corpo formado por membros especialmente selecionados. Aliás, chegou-se a acusar de equivoca<strong>da</strong>a denominação “tribunais”, conferi<strong>da</strong> a tais órgãos, bem como inapropriado chamar de juízes os membrosdessas cortes. Por detrás disso estava a ideia de que o controle <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei não era umaativi<strong>da</strong>de jurisdicional, ou melhor, que declarar a inconstitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei seria uma forma de criar odireito. 42Porém, a concepção dogmática de que o direito se restringe ao produto do legislativo, ancora<strong>da</strong> naideologia <strong>da</strong> Revolução Francesa e no dogma <strong>da</strong> estrita separação dos poderes, 43 não sobreviveu aos fatos40.Deixe-se claro que o sistema de controle difuso <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de é típico dos Estados Unidos e está presenteem diversas antigas colônias inglesas, como Canadá, Índia e Austrália. Na Inglaterra, paradoxalmente, emvirtude <strong>da</strong> supremacy of the Parliament, inadmitiu-se o controle judicial <strong>da</strong> legislação. Ver CAPPELLETTI,Mauro. Il controllo giudiziario di costituzionalità delle leggi nel diritto comparato. Milano: Giuffrè, 1968. p.46 e ss.41.Chioven<strong>da</strong> chegou a dizer que, como a jurisdição significa a atuação <strong>da</strong> lei, “não pode haver sujeição à jurisdiçãosenão onde pode haver sujeição à lei” (CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. SãoPaulo: Saraiva, 1969. vol. 2, p. 55). Essa passagem <strong>da</strong> doutrina chiovendiana é bastante expressiva no sentidode que o ver<strong>da</strong>deiro poder estatal estava na lei, e de que a jurisdição somente se manifestava a partir <strong>da</strong>revelação <strong>da</strong> vontade do legislador. Chioven<strong>da</strong> é um ver<strong>da</strong>deiro adepto <strong>da</strong> doutrina que, inspira<strong>da</strong> noIluminismo e nos valores <strong>da</strong> Revolução Francesa, separava radicalmente as funções do legislador e do juiz, oumelhor, atribuía ao legislador a criação do direito e ao juiz a sua aplicação. Ver BULYGIN, Eugenio. Los juecescrean derecho? XII Seminário Eduardo García Maynez sobre teoria e filosofia do direito, organizado peloInstituto de Investigaciones Jurídicas e Instituto de Investigaciones Filosóficas <strong>da</strong> Unam, p. 8. Ver MARINONI,<strong>Luiz</strong> <strong>Guilherme</strong>. Curso de processo civil – Teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2008. vol. 1,Parte I, item 2.5.42 .MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. Op. cit., p. 37-38.43.Ain<strong>da</strong> que as Revoluções Francesa e Americana tenham em suas raízes a separação dos poderes elabora<strong>da</strong> por


históricos, à conformação diversifica<strong>da</strong> dos sistemas jurídicos dos vários países do civil law e, sobretudo,ao advento do constitucionalismo. Anote-se que John Henry Merrymann, um dos maiores comparatistasestadunidenses, admitindo que o constitucionalismo fez surgir uma nova fonte de direito no civil law,adverte que, na aceitação de que o juiz pode decidir sobre a invali<strong>da</strong>de de uma lei por estar em conflitocom a Constituição, quebra-se o dogma <strong>da</strong> separação estrita entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciárioe, desta forma, abre-se oportuni<strong>da</strong>de para se dizer que o juiz do civil law também cria o direito. 44Nos dias que correm, a diferença entre o magistrado do common law e o do civil law não está naelastici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suas elaborações ou interpretações, mas na importância que eles assumem em ca<strong>da</strong> umdos sistemas, e, por consequência, no respeito que lhes é devotado. E não é equivocado dizer que um dosprincipais responsáveis pelo traço forte <strong>da</strong> figura do juiz do common law é justamente o sistema deprecedentes.7. Da “supremacy of the English parliament” ao “judicial review” estadunidenseNos itens anteriores, comparou-se o juiz do civil law marcado pelo constitucionalismo com o juizamericano – que possui poder para controlar a constitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei –, e, de forma tími<strong>da</strong> e cautelosa,com o juiz inglês, que, nas palavras de Coke, podia controlar a lei a partir do common law. Cabeevidenciar, agora, que o controle dos atos do legislativo tem histórias e feições distintas na Inglaterra enos Estados Unidos.Neste contexto, importa rememorar a disputa entre as teorias declaratória e constitutiva <strong>da</strong>jurisdição. A teoria declaratória não apenas tentou demonstrar que a função do juiz é a de revelar o direito– por ser ele, nas palavras de Blackstone, um “oráculo vivo” 45 –, mas, igualmente, teve o propósito deMontesquieu, o papel dos juízes nos dois países tomou rumos completamente distintos, a ponto de os “pais <strong>da</strong>Revolução Francesa”, entre eles Robespierre e Le Chaplier, terem considerado que tão somente a lei escritaseria váli<strong>da</strong> e que “o judge-made law era a mais detestável <strong>da</strong>s instituições, devendo ser destruído” (Nooriginal: “The fathers of the French revolution, such as Le Chaplier and Robespierre, were convinced thatwritten law alone must dominate and that ‘the judge-made law was the most detestable of institutions, andshould be destroyed’”) (WACHTLER, Sol. Judicial lawmaking. New York University Law Review, vol. 65, p. 1-22, 1990).44.“Esta concepção dogmática <strong>da</strong> lei, como muitas outras implicações dos dogmas deste período revolucionário, temsido corroí<strong>da</strong> pelo tempo e pelos eventos. Talvez a inovação mais espetacular tenha sido o forte movimento emdireção ao constitucionalismo, com sua ênfase na rigidez funcional, e, por conseguinte, a superiori<strong>da</strong>de, comofonte de direito, <strong>da</strong>s constituições escritas. Tais constituições, por eliminarem o poder do legislador de asalterar através de ação legislativa ordinária, prejudicaram o monopólio legislativo sobre a lawmaking. Elesinserem um elemento novo na hierarquia <strong>da</strong>s fontes do direito, a qual agora deve ter em conta ‘constituição,legislação, regulamentos e costume’. Ademais, se uma Corte pode decidir que uma resolução é nula por estarem conflito com a constituição, o dogma <strong>da</strong> separação acentua<strong>da</strong> do poder legislativo em relação ao poderjudicial é prejudicado” (No original: “This dogmatic conception of what law is, like many other implicationsof the dogmas of the revolutionary period, has been eroded by time and events. Perhaps the most spectacularinnovation has been the strong movement toward constitutionalism, with its emphasis on the functionalrigidity, and hence the superiority as a source of law, of written constitutions. Such constitutions, byeliminating the power of the legislature to amend by ordinary legislative action, impair the legislature’smonopoly on lawmaking. They insert a new element into the hierarchy of sources of law, which now mustread ‘constitution, legislation, regulations, and custom’. In addition, if a court can decide that a stature is voidbecause it is in conflict with the constitution, the dogma of sharp separation of legislative power from judicialpower is impaired”) (MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. Op. cit., p. 25).45.Após apontar que alguns estudiosos teriam dividido o common law em “duas bases ou fun<strong>da</strong>mentos principais”,quais sejam os “costumes estabelecidos” (“established customs”) e as “regras e máximas estabeleci<strong>da</strong>s”


permitir ao judiciário declarar ou afirmar o common law contra o soberano e contra o Parlamento,tencionando viabilizar, desta forma, espécie de controle judicial dos atos estatais.A doutrina de Coke afirmou que o common law 46 se sobrepunha ao soberano e ao legislativo, 47 demodo que a teoria de que o juiz apenas declarava o direito também teve uma importante funçãolegitimadora ao admitir o controle dos atos do Parlamento e do monarca.Com a Revolução Gloriosa, de 1688, é estabelecido o instituto <strong>da</strong> supremacy of the parliament. Adoutrina <strong>da</strong> supremacia do legislativo serviu para o Reino inglês controlar os atos <strong>da</strong>s suas colônias e,depois, teve o efeito de fazer surgir, nos Estados Unidos, princípio que, numa visão estrita de civil law,poderia ser tomado como seu oposto, isto é, o <strong>da</strong> supremacy of the judiciary.As colônias inglesas, regi<strong>da</strong>s por Cartas, foram proibi<strong>da</strong>s de editar atos contrários ao direito inglês.A supremacia do parlamento inglês impunha-se, mediante as Cartas, 48 de forma a não permitir a aplicaçãojudicial de leis coloniais contrastantes.Com o controle <strong>da</strong> legislação <strong>da</strong> colônia, surgem as sementes do judicial review. Quer isto dizer que,no momento em que o princípio <strong>da</strong> supremacia do parlamento é transportado para a colônia, surge ocontrole judicial dos seus atos, e, dessa forma, o broto do principio <strong>da</strong> supremacia do judiciário. Nestesentido, o princípio inglês <strong>da</strong> supremacia do parlamento, em vez de obstaculizar, na reali<strong>da</strong>de colaboroupara a solidificação do controle judicial <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s leis nos Estados Unidos.(“established rules and maxims”), questiona o autor: “Como estes costumes e máximas devem ser conhecidos, epor quem sua vali<strong>da</strong>de deve ser determina<strong>da</strong>? A resposta é, pelos juízes nas várias cortes de justiça. Eles são osdepositários <strong>da</strong> lei; os oráculos vivos, que devem decidir em todos os casos de dúvi<strong>da</strong>, e que são obrigados porum juramento a decidir de acordo com a lei <strong>da</strong> terra” (BLACKSTONE, William. Op. cit., p. 68-69).46.De acordo com Coke, os direitos “têm sido, através <strong>da</strong> sabedoria de homens de maior excelência, ao longo desucessivas eras, por longas e continentais experiências (o julgamento de luz e ver<strong>da</strong>de), melhorados erefinados” (COKE, Edward. Seventh reports – Calvin’s case. London: Thomas and Fraser, 1826, vol. 4, p. 6).Cf. POSTEMA, Gerald J. Some roots of our notion of precedent. In: GOLDSTEIN, L. Precedent in law. Oxford:Clarendon Press, 1987. p. 17-18.47.“Al defender el common law frente al Derecho régio, Coke está defendiendo también los derechos de los ingleses,ya que estos derechos están asentados, enraizados en la tradición y en las viejas leyes de Inglaterra. En elplanteamiento de Coke, la defensa del common law está muy vincula<strong>da</strong> a la defensa de uma determina<strong>da</strong>posición de los jueces en el sistema constitucional. En efecto, si para Bacon, teórico defensor de las posicionesde Jacobo I, del que fue Lord Canciller, los jueces son los leones sobre los que se asienta el trono del rey y porlo tanto son los ejecutores de sus decisiones, para Coke los jueces también son leones, pero en este caso sonlos encargados de defender los derechos de los ingleses frente a las intromisiones ilegítimas del Poder real. Enun ambiente político en el cual el ejercicio del Poder por parte del monarca es absoluto, la limitación de esePoder – tarea insoslayable de los jueces – supone un requisito de la garantía de las libertades de los indivíduos”(ARGÜELLES, Juan Ramón de Páramo; ROIG, Francisco Javier Ansuátegui. Op. cit., p. 773-774).48.Tais Cartas podem ser considera<strong>da</strong>s as primeiras Constituições <strong>da</strong>s colônias, seja porque eram vinculantespara a legislação colonial, seja porque regulavam as suas estruturas jurídicas fun<strong>da</strong>mentais. TaisConstituições frequentemente estabeleciam a possibili<strong>da</strong>de de as colônias aprovarem as suas próprias leis,porém sob a condição de serem “razoáveis” e “não contrárias às leis do Reino inglês”, e, assim, nãodestoantes <strong>da</strong> vontade suprema do parlamento. Exatamente em virtude <strong>da</strong> ideia de supremacia <strong>da</strong> lei – emuníssono com a doutrina <strong>da</strong> supremacy of the English parliament – que, em diversos casos (algunstornados célebres), o Privy Council do Rei decidiu que as leis deveriam ser aplica<strong>da</strong>s pelos juízes <strong>da</strong>colônia apenas se não estivessem em contradição com as leis do Reino. Cf. CAPPELLETTI, Mauro. Ilcontrollo giudiziario di costituzionalità..., p. 42.


Anote-se, contudo, que a ideologia <strong>da</strong> imprescindibili<strong>da</strong>de de imposição de limites ao legislativomediante uma lei maior pode ser vista já à época em que os colonizadores <strong>da</strong> América do Norte – que nãotinham representantes no Parlamento inglês – se revoltaram contra os tributos exigidos pelo governo <strong>da</strong>metrópole, mediante a alegação de que qualquer ato do Parlamento, contrário à equi<strong>da</strong>de natural, serianulo. 49 Com a independência <strong>da</strong>s colônias americanas, em 1776, as Cartas foram substituí<strong>da</strong>s pelas novasConstituições, e, como anteriormente os juízes já tinham a consciência e a prática de decretar a nuli<strong>da</strong>de<strong>da</strong>s leis que violassem as Cartas e a legislação do Reino inglês, tornou-se praticamente “natural” controlaras leis que contrariassem as Constituições dos estados que acabavam de adquirir independência. 50Mauro Cappelletti, em seu célebre Il controllo giudiziario di costituzionalità delle leggi nel dirittocomparato, conclui que a doutrina de Coke e, mais especificamente, a submissão do Parlamento aocommon law desapareceram com a Revolução de 1688 e com a instituição do princípio <strong>da</strong> supremacy ofthe parliament. No entanto, esta afirmação não parece correta, particularmente para o efeito queCappelletti tenta extrair desta “transformação” – que, bem vistas as coisas, não ocorreu. Eis o que dizCappelletti: “Tal doutrina [a de Coke] foi abandona<strong>da</strong> na Inglaterra com a Revolução de 1688, quandoentão foi proclama<strong>da</strong> a doutrina contrária – ain<strong>da</strong> hoje respeita<strong>da</strong> naquele país –, <strong>da</strong> supremacia doparlamento. Porém, <strong>da</strong> doutrina de Coke restaram os frutos, ao menos nos Estados Unidos, e estou mereferindo, como é óbvio, aos frutos que hoje são chamados de judicial review e supremacy of thejudiciary” . 51É certo que a doutrina de Coke, no seu particular significado de doutrina que <strong>da</strong>va ao juiz apenas opoder de declarar o common law, foi supera<strong>da</strong> na Inglaterra pela teoria constitutiva – desenvolvi<strong>da</strong>sobretudo por Bentham e Austin. 52 Contudo, com o devido respeito ao mestre italiano, a Revolução de1688 não fez desaparecer a noção de que o Parlamento e a lei são submetidos ao common law. Tambémnão é adequado sustentar que o juiz, a partir desse momento, passou a estar submetido ao legislativo,nem muito menos que o direito <strong>da</strong>s colônias passou a dever respeito unicamente à produção doParlamento.O Parlamento, com a Revolução Gloriosa, venceu longa luta contra o absolutismo do rei. Diante <strong>da</strong>preocupação em conter os arbítrios do monarca, os juízes sempre estiveram ao lado do Parlamento,chegando a com ele se misturar. Assim, aí não houve qualquer necessi<strong>da</strong>de de afirmar a prevalência <strong>da</strong> lei– como produto do Parliament – sobre os magistrados, mas sim a força do direito comum diante do poderreal. Ademais, a Revolução Puritana não objetivou destruir o direito antigo, mas, ao contrário, pautou-sepela afirmação do common law contra o rei.Assim, to<strong>da</strong> e qualquer norma elabora<strong>da</strong> pelo legislativo estaria inseri<strong>da</strong> dentro do common law, nabusca de afirmação dos direitos e liber<strong>da</strong>des do povo inglês contra o rei. 53 A Revolução, bem por isso, nãoteve a pretensão de elevar a lei a uma posição suprema ou a intenção de dotar o Parlamento de um poderabsoluto mediante a produção do direito.Mais do que à lei, foi necessário <strong>da</strong>r destaque ao common law – ou ao direito <strong>da</strong> história e <strong>da</strong>stradições do povo inglês – para conter o poder real. De modo que a ideia de supremacy of the English49 .GROTE, Rainer. Op. cit., p. 3.50.CAPPELLETTI, Mauro. Il controllo giudiziario di costituzionalità..., p. 41 e ss.51.Idem, p. 40.52 .MACCORMICK, Neil. Can stare decisis be abolished?, p. 204.53.ZAGREBELSKY, Gustavo. Il dirito mite – Legge, diritti, giustizia. Torino: Einaudi, 1992. p. 35.


parliament não significou, simplesmente, a submissão do poder real à norma produzi<strong>da</strong> pelo legislativo,mas a submissão do rei ao direito inglês, na sua inteireza. Este direito submetia o monarca, contendo osseus excessos, mas também determinava o conteúdo <strong>da</strong> produção legislativa, que, sem qualquer dúvi<strong>da</strong>,não podia ser desconforme ao common law. 54De qualquer forma, ao contrário do que sugere Cappelletti, é certo que o princípio <strong>da</strong> supremacy ofthe English parliament não teve a menor intenção de submeter o juiz ao Parlamento ou mesmo o objetivode impedir o juiz de afirmar o common law – se fosse o caso, contra a própria lei. Este princípio, aocontrário do que parece sugerir Cappelletti, teve a intenção de passar a noção de supremacia do direitosobre o monarca e não o propósito de significar onipotência <strong>da</strong> lei ou absolutismo do Parlamento.Ademais, a legislação <strong>da</strong>s colônias não era ver<strong>da</strong>deiramente submeti<strong>da</strong> à lei inglesa, mas simvincula<strong>da</strong> ao direito inglês. O controle <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s leis coloniais se <strong>da</strong>va a partir do common law,até porque o Parlamento, como já dito, estava submetido a um metadireito ou a uma metalinguagem (ocommon law), e não simplesmente escrevendo as primeiras linhas de um direito novo, como aconteceucom o poder (legislativo) que se instalou com a Revolução Francesa.Desse modo, o controle <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de dos atos <strong>da</strong> colônia, a partir do direito inglês, e o controle<strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s leis, com base na Constituição americana, não significou uma troca deprincípios ou a subs-tituição do princípio <strong>da</strong> supremacia do parlamento pelo princípio <strong>da</strong> supremacia dojudiciário.Tal troca ou substituição pode ser vista apenas se o raciocínio for pautado pelo significado que asupremacia do parlamento assumiu no civil law, por decorrência <strong>da</strong> Revolução Francesa. Acontece queeste princípio, na Inglaterra, esteve muito longe <strong>da</strong> ideia de supremacia <strong>da</strong> lei sobre o juiz, tendosignificado, na ver<strong>da</strong>de, supremacia do direito sobre o monarca e sobre as próprias leis, inclusive as <strong>da</strong>scolônias. Nesta perspectiva, quando se controlava a legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei colonial a partir do direito inglês,afirmava-se o common law e não a lei (nos moldes do civil law). E o juiz, nesta dimensão, já sesobrepunha ao elaborador <strong>da</strong> lei destoante. Por conseguinte, o controle de constitucionali<strong>da</strong>deestadunidense significou muito mais uma continui<strong>da</strong>de do que uma ruptura com o modelo inglês. 55Fora isto, cabe esclarecer que, se é certo que o poder do juiz do civil law submetido à Constituição épróximo ao do juiz estadunidense, criar a norma do caso concreto a partir <strong>da</strong> Constituição também é algobastante similar a criar a norma jurídica a partir do common law ou mesmo a declarar o direito docommon law, como ocorria no direito inglês primitivo. Daí por que se dizer que a noção de criação dodireito, típica do direito jurisprudencial, opõe-se à aplicação estrita <strong>da</strong> lei, própria à tradição do civil law.8. Um esclarecimento: os diferentes significados de “supremacia do parlamento” naInglaterra e na FrançaA supremacy of the English parliament tem significado completamente distinto do <strong>da</strong> supremacia dolegislativo e do do princípio <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de, tais como vistos pela Revolução Francesa.A afirmação do Parlamento, sublinha<strong>da</strong> pela Revolução Inglesa de 1688, não teve o propósito demarcar o início de um novo direito, como já dito. O seu caráter foi conservador. Afirmou-se que aRevolução não foi dota<strong>da</strong> de ver<strong>da</strong>deiro “espírito revolucionário”, não desejou desconsiderar o passado e54 .ARGÜELLES, Juan Ramón de Páramo; ROIG, Francisco Javier Ansuátegui. Op. cit., p. 786 e ss.55.Sobre as origens do judicial review, ver CORWIN, Edward S. The doctrine of judicial review: its legal andhistorical basis and other essays. Princeton: Princeton University Press, 1914; NELSON, William E. Marburyv. Madison: the origins and legacy of judicial review. Lawrence: University Press of Kansas, 2000.


destruir o direito já existente, mas, ao contrário, confirmá-lo e fazê-lo valer contra um rei que não orespeitava. 56Portanto, em vez de pretender instituir um novo direito mediante a afirmação <strong>da</strong> superiori<strong>da</strong>de – naver<strong>da</strong>de absolutismo – do Parliament, nos moldes <strong>da</strong> Revolução Francesa, a Revolução Gloriosa instituiuuma ordem em que os poderes do monarca estivessem limitados pelos direitos e liber<strong>da</strong>des do povoinglês.Note-se que a noção de rule of law and not of men não significou apenas o topos aristotélico dogoverno <strong>da</strong>s leis em substituição ao governo dos homens, mas, sobretudo, a luta histórico-concreta que oparlamento inglês travou e ganhou contra o absolutismo. 57O ordenamento <strong>da</strong> Revolução Puritana caracterizou-se pela submissão do poder do monarca, em seuexercício e atuação, a determina<strong>da</strong>s condições, assim como pela existência de critérios reguladores <strong>da</strong>relação entre ele e o Parlamento. Neste ordenamento tem destaque o célebre Bill of Rights, editado noprimeiro ano <strong>da</strong> Revolução, em 1689, ao qual <strong>Guilherme</strong> de Orange foi obrigado a se submeter paraascender ao trono, mediante uma espécie de acordo entre o rei e o Parlamento, visto como representantedo povo. Frise-se que o Bill of Rights, embora tenha, entre seus princípios fun<strong>da</strong>mentais, a proteção <strong>da</strong>pessoa e <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de e determina<strong>da</strong>s garantias processuais e dimensões <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de política, émarcado, acima de tudo, pela submissão do soberano à lei. 58Não obstante a Revolução Inglesa tenha vencido o absolutismo, com ela o Parlamento não assumiu opoder absoluto, como aconteceu na Revolução Francesa. Como anota Gustavo Zagrebelsky, na tradição <strong>da</strong>Europa continental a luta contra o absolutismo significou a pretensão de substituir o rei por outro poderabsoluto, a Assembleia Soberana, ao passo que, na Inglaterra, a batalha contra o absolutismo consistiu emopor, às pretensões do rei, os privilégios e liber<strong>da</strong>des tradicionais dos ingleses, representados e defendidospelo Parlamento. 59Assim, enquanto na França o legislativo se revestiu do absolutismo por meio <strong>da</strong>produção <strong>da</strong> lei, na Inglaterra a lei representou, além de critério de contenção do arbítrio real, um elementoque se inseriu no tradicional e antigo regime do common law.Como a lei era imprescindível para a realização dos escopos <strong>da</strong> Revolução Francesa, e os juízes nãomereciam confiança, a supremacia do parlamento aí foi vista como sujeição do juiz à lei, proibido que foi,inclusive, de interpretá-la para não distorcê-la e, assim, frustrar os objetivos do novo regime. Aocontrário, tendo-se em vista que, na Inglaterra, a lei não objetivava expressar um direito novo, masrepresentava mero elemento introduzido em um direito ancestral (o qual, antes de merecer repulsa, eraancorado na história e nas tradições do povo inglês), e ain<strong>da</strong> que o juiz era visto como “amigo” do poderque se instalara (uma vez que sempre lutara, misturado ao legislador, contra o absolutismo do rei), nãohouve qualquer intenção ou necessi<strong>da</strong>de de submeter o juiz inglês à lei.Além de a lei jamais ter anulado o poder do juiz, os próprios princípios <strong>da</strong> Revolução Inglesa<strong>da</strong>vam-lhe condição para controlar os atos legislativos a partir do common law, já que o Parlamento,embora supremo diante do monarca, era àquele submetido. 60 Mas, na França – como ficará ain<strong>da</strong> mais56.ARGÜELLES, Juan Ramón de Páramo; ROIG, Francisco Javier Ansuátegui. Op. cit., p. 787.57.ZAGREBELSKY, Gustavo. Op. cit., p. 36 e ss.58 .ARGÜELLES, Juan Ramón de Páramo; ROIG, Francisco Javier Ansuátegui. Op. cit., p. 787-788.59.ZAGREBELSKY, Gustavo. Op. cit., p. 37.60.“Na base do acordo constitucional de 1688, o poder legislativo estava investido não em um governanteautocrático, mas em um órgão eleito, o que significava que o processo de law-making permanecera sujeitoao controle dos diferentes grupos e interesses representados no Parlamento. Além disso, as leis positiva<strong>da</strong>s[statutory enactments] tiveram um papel de menor importância no desenvolvimento geral do direito, o qual


claro a seguir –, a supremacia do parlamento objetivou amarrar o juiz ao texto <strong>da</strong> lei, transformando-oem alguém destituído de poder criativo e de imperium.9. A superação do jusnaturalismo racionalista pelo positivismo e as concepções dejudge make law e de juge bouche de la loiSabe-se que a superação do jusnaturalismo racionalista pelo positivismo foi marca<strong>da</strong> pela ideia deque o direito depende <strong>da</strong> vontade. Partindo <strong>da</strong> premissa de que o direito se traduz a partir de uma vontade,os teóricos positivistas do common law não tiveram dificul<strong>da</strong>de para demonstrar que o direito não estavana tradição ou nos costumes do povo – como sustentavam Blackstone e os partidários <strong>da</strong> teoriadeclaratória <strong>da</strong> jurisdição 61 –, mas seria constituído ou criado pela decisão judicial.Assim, enquanto no civil law o declínio do jusnaturalismo racionalista deu origem à era <strong>da</strong>Codificação, no common law observou-se o surgimento <strong>da</strong> ideia de criação judicial do direito. Naquelatradição, diante <strong>da</strong> estrita separação entre o legislativo e o judiciário, a vontade apenas poderia estar noParlamento; to<strong>da</strong>via, no common law, em virtude do espaço de poder bem mais amplo deferido aos juízes,a vontade foi confia<strong>da</strong> ao judiciário. Torna-se importante perceber que a conclusão de que, no civil law, odireito estaria no Parlamento foi coerente – a partir de uma visão estritamente marca<strong>da</strong> pela teoriapositivista – com a ideia de que o juiz não criaria o direito.Note-se que isso não apenas demonstra que o common law confiou e apostou no judiciário, enquantoo civil law escravizou os juízes ao Parlamento, mas também que a superação do jusnaturalismoprocedia principalmente dos fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong>s decisões judiciais de interpretação do common law. Em todocaso, os direitos legislados [statutes] adotados pelo Parlamento tiveram de ser reforçados pelas Cortes, que,mesmo reconhecendo o seu dever de acatar a vontade do legislador, iriam interpretar as regras positiva<strong>da</strong>s[statutory rules] de acordo com os direitos e liber<strong>da</strong>des protegidos pelos princípios estabelecidos docommon law, a não ser que o Parlamento explicitamente declarasse que pretendia diminuir a importânciadessas liber<strong>da</strong>des” (No original: “On the basis of the constitutional settlement of 1688 legislative power wasvested not an autocratic ruler but in an elected body which meant that the law-making process remainedsubject to the control of the different groups and interests represented in Parliament. Moreover, statutoryenactments played a minor part in the general development of the law which proceeded mainly on the basisof court decisions interpreting the common law. In any case, the statutes adopted by Parliament had to beenforced by the courts which, although acknowledging their duty to defer to the will of the legislature,would construe the statutory rules in accor<strong>da</strong>nce with the rights and liberties protected by the establishedprinciples of the common law unless Parliament explicitly stated that it wished to derogate from thoseliberties”) (GROTE, Rainer. Op. cit., p. 3).61.“Os textos institucionais dos séculos dezessete e dezoito, tais como aqueles de Blackstone na Inglaterra (e, paramuitos propósitos, nos EUA) ou Stair na Escócia, foram de importância decisiva para <strong>da</strong>r ao common law umaforma e substância inteligíveis em favor de socie<strong>da</strong>des em [processos de] rápi<strong>da</strong> modernização ecomercialização. Porém, eles justificaram a citação de precedentes se referindo ao que eles consideravam ser opeso probatório deste, o common law sendo a encarnação para fins locais <strong>da</strong> lei <strong>da</strong> natureza e <strong>da</strong> razão,operacionalizado através dos costumes gerais do Reino. Esta é a teoria declaratória, de acordo com a qual osprecedentes declaram a lei, mas não a fazem” (No original: “Seventeenth-and eighteenth-century institutionalwritings, such as those of Blackstone in England (and, for many purposes, the USA) or Stair in Scotland, weredecisively important in giving the common law an intelligible form and substance for rapidly modernizing andcommercializing societies. But they justified the citation of precedent by reference to what they considered tobe its evidentiary weight, the common law being the embodiment for local purposes of the law of nature andreason, worked out through the general customs of the realm. This is a declaratory theory, according to whichprecedents declare law but do not make it”) (BANKOWSKI, Zenon; MACCORMICK, Neil; MORAWSKI, Lech;MIGUEL, Alfonso Ruiz. Rationales for precedent. In: MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. Interpretingprecedents: a comparative study. London: Dartmouth, 1997. p. 481-482).


acionalista pelo positivismo teve efeitos completamente diversos nos dois sistemas, tendo colaborado –certamente que em termos essencialmente teóricos – para a formação <strong>da</strong>s concepções antagônicas de jugebouche de la loi (juiz boca-de-lei) e de jugde make law (juiz legislador).Lembre-se, para tanto, que a admissão <strong>da</strong> tese de que o juiz cria o direito teve fun<strong>da</strong>mento nadoutrina positivista de Bentham, que não podia enxergar na decisão judicial a declaração de um direitopreexistente fun<strong>da</strong>do na natureza e na razão <strong>da</strong>s coisas, mas apenas a criação do direito.Neste sentido, para distinguir os sistemas, mesmo em suas origens, não basta falar que em um o juizcria o direito e no outro declara a lei, sendo imprescindível compreender que somente no common law ojuiz mereceu confiança e espaço na esfera de poder e que a afirmação de que o “juiz cria o direito”constitui um slogan de uma <strong>da</strong>s vertentes doutrinárias que se apresentaram neste sistema jurídico.Aliás, no que diz respeito a este último ponto, é bom rememorar que, no common law, ain<strong>da</strong> sediscute a respeito <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> jurisdição, se declaratória ou constitutiva. Tal questão foi objeto derecente e importante debate entre Herbert Hart 62 – que sustenta o papel criativo <strong>da</strong> jurisdição – e RonaldDworkin 63 – que o nega. Na ver<strong>da</strong>de, Dworkin é um dos integrantes de um poderoso e crescente núcleode pensamento engajado em negar a natureza positivista do precedente e em propor uma visão“interpretativista” para se compreender o common law, com a consequente reinserção no debate <strong>da</strong> teoriadeclaratória <strong>da</strong> jurisdição, ain<strong>da</strong> que, obviamente, sob uma roupagem contemporânea. 6410. O juiz como “bouche de la loi”Antes <strong>da</strong> Revolução Francesa, os membros do judiciário francês constituíam classe aristocrática nãoapenas sem qualquer compromisso com os valores <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> fraterni<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de –mantinham laços visíveis e espúrios com outras classes privilegia<strong>da</strong>s, especialmente com a aristocraciafeu<strong>da</strong>l, em cujo nome atuavam sob as togas. Nesta época, os cargos judiciais eram comprados e her<strong>da</strong>dos,o que fazia supor que o cargo de magistrado deveria ser usufruído como uma proprie<strong>da</strong>de particular,capaz de render frutos pessoais. 65Os juízes pré-revolucionários se negavam a aplicar a legislação que era contrária aos interessesdos seus protegidos e interpretavam as novas leis de modo a manter o status quo e a não permitir que asintenções progressistas dos seus elaboradores fossem atingi<strong>da</strong>s. Não havia qualquer isenção para“julgar”.62.HART, Herbert L. A. The concept of law. Oxford: Clarendon Press, 1993 (esp. Formalism and rule-scepticism ePostscrip).63.DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978 (esp. The model of rules eHard cases); e Law’s empire. Cambridge: Harvard University Press, 1978.64.Ver BANKOWSKI, Zenon; MACCORMICK, Neil; MORAWSKI, Lech; MIGUEL, Alfonso Ruiz. Op. cit., p. 485.65.Lembre-se que Montesquieu, ao elaborar a tese de que não poderia haver liber<strong>da</strong>de caso o “poder de julgar” nãoestivesse separado dos poderes legislativo e executivo, partiu <strong>da</strong> sua própria experiência pessoal, pois conheciamuito bem os juízes <strong>da</strong> sua época. Montesquieu nasceu Charles-Louis de Secon<strong>da</strong>t em uma família demagistrados, tendo her<strong>da</strong>do do seu tio não apenas o cargo de Président à mortier no Parlement de Bordeaux,como o nome “Montesquieu”. O jovem Montesquieu, sem se deixar seduzir pelas facili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> sua posiçãosocial, renunciou ao cargo de magistrado e teve a coragem de denunciar as relações espúrias dos juízes com opoder, idealizando a teoria <strong>da</strong> separação dos poderes (ver CAPPELLETTI, Mauro. Repudiando Montesquieu? Aexpansão e a legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> justiça constitucional. Revista <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Direito <strong>da</strong> UFRGS, vol. 20, p.269).


A preocupação em desenvolver um novo direito 66 e permitir o desabrochar de uma nova socie<strong>da</strong>deexigiu a admissão dos argumentos de Montesquieu, 67aceitando-se a necessi<strong>da</strong>de de separação dospoderes e impondo-se, sobretudo, uma clara distinção entre as funções do legislativo e do judiciário. 68Tornou-se imprescindível limitar a ativi<strong>da</strong>de do judiciário, subordinando-o de forma rígi<strong>da</strong> aoParlamento, cujos habitantes deveriam representar os anseios do povo. 69De acordo com Montesquieu, o “poder de julgar” deveria ser exercido através de uma ativi<strong>da</strong>depuramente intelectual, cognitiva, não produtiva de “direitos novos”. Essa ativi<strong>da</strong>de não seria limita<strong>da</strong>apenas pela legislação, mas também pela ativi<strong>da</strong>de executiva, que teria o poder de executar as decisõesque constituem o “poder de julgar”. Nesse sentido, o poder dos juízes ficaria limitado a afirmar o que jáhavia sido dito pelo legislativo, devendo o julgamento ser apenas “um texto exato <strong>da</strong> lei”. 70 Por isso,Montesquieu acabou concluindo que o “poder de julgar” era, de qualquer modo, um “poder nulo” (enquelque façon, nulle). 71Assim, conferiu-se o poder de criar o direito apenas ao legislativo. A prestação judicial deveria serestringir à mera declaração <strong>da</strong> lei, deixando-se ao executivo a tarefa de executar as decisões judiciais. 7266.Na Revolução Inglesa de 1688 não houve desejo de “apagar” o direito antigo, mas apenas intenção de confirmar efazer o direito já existente contra um rei que não o respeitava. Ver ARGÜELLES, Juan Ramón de Páramo; ROIG,Francisco Javier Ansuátegui. Op. cit., p. 787.67.De l’esprit des lois (Do espírito <strong>da</strong>s leis), publicado pela primeira vez em 1748.68.Montesquieu, ao escrever sobre a separação dos poderes, disse o seguinte: “Não haverá também liber<strong>da</strong>de se opoder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do poder executivo. Se estivesse ligado ao poderlegislativo, o poder sobre a vi<strong>da</strong> e a liber<strong>da</strong>de dos ci<strong>da</strong>dãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Seestivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor” – MONTESQUIEU, Barão de(Charles-Louis de Secon<strong>da</strong>t). Do espírito <strong>da</strong>s leis. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 157.69.Ver GROTE, Rainer. Op. cit., p. 4.70.Para Montesquieu, o julgamento não poderia ser “mais do que um texto exato <strong>da</strong> lei”; o juiz deveria ser apenas abouche de la loi, ou seja, um juiz passivo e sem qualquer poder criativo ou de imperium (op. cit., p. 158). Ver,também, TARELLO, Giovanni. Storia della cultura giuridica moderna. Assolutismo e codificazione del diritto.Bologna: Il Mulino, 1976. p. 280.71.Afirmou Montesquieu: “Poderia acontecer que a lei, que é ao mesmo tempo clarividente e cega, fosse em certoscasos muito rigorosa. Porém, os juízes de uma nação não são, como dissemos, mais que a boca que pronunciaas sentenças <strong>da</strong> lei, seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu rigor” (op. cit., p. 160).Ver TARELLO, Giovanni. Op. cit., p. 192.72.Para explicar como funciona uma Constituição na qual o poder controla o poder, Montesquieu deve indicar ospoderes; deve estabelecer quais e quantos são os poderes que, em uma Constituição volta<strong>da</strong> a garantir aliber<strong>da</strong>de do ci<strong>da</strong>dão, são predispostos de modo a propiciar um mútuo controle. Neste momento, ele enunciauma tese extremamente importante na história <strong>da</strong>s doutrinas jurídicas: os poderes não são diversos nosdiferentes Estados, mas são sempre e somente três. São eles: o Poder Legislativo, o Poder Executivo <strong>da</strong>s coisasque dependem do direito <strong>da</strong>s gentes e o Poder Executivo <strong>da</strong>s coisas que dependem do direito civil. O poder“executivo <strong>da</strong>s coisas que dependem do direito civil” também é chamado de “poder de julgar”; é nestemomento, aliás, que a expressão “poder de julgar”, ou “poder judiciário”, incorpora-se ao vocabulário jurídicopolítico.O “poder de julgar” é exercido através de uma ativi<strong>da</strong>de puramente intelectual, e não produtiva de“direitos novos”. Esta ativi<strong>da</strong>de não é apenas limita<strong>da</strong> pela legislação, mas também pela ativi<strong>da</strong>de executivaque, objetivando a segurança pública, abarca igualmente a ativi<strong>da</strong>de de execução material <strong>da</strong>s decisões queconstituem o conteúdo do “poder de julgar” (cf. TARELLO, Giovanni. Op. cit., p. 287-291).


Para que se pudesse limitar o poder do juiz à declaração <strong>da</strong> lei, a legislação deveria ser clara e capazde <strong>da</strong>r regulação a to<strong>da</strong>s as situações conflitivas. Os Códigos deveriam ser claros, coerentes ecompletos. 73 O medo do arbítrio judicial, derivado <strong>da</strong> experiência do Ancien Régime, não apenas exigia aseparação entre o poder de criar o direito e o poder de julgar, como também orientava a arquiteturalegislativa deseja<strong>da</strong>. Além disso, o racionalismo exacerbado, típico <strong>da</strong> época, fazia acreditar que a tarefajudicial poderia ser a de apenas identificar a norma aplicável para a solução do litígio.No entanto, a codificação, por si só, não pode explicar a distinção entre o common law e o civillaw. 74 Não se pense que o civil law é caracterizado pelos Códigos e pela tentativa de completude <strong>da</strong>legislação, enquanto o common law tem uma característica exatamente contrária. O common law tambémtem intensa produção legislativa e vários Códigos. O que realmente varia do civil law para o common lawé o significado que se atribui aos Códigos e à função que o juiz exerce ao considerá-los. No common law,os Códigos não têm a pretensão de fechar os espaços para o juiz pensar; portanto, não se preocupam emter to<strong>da</strong>s as regras capazes de solucionar os casos conflituosos. Isso porque, neste sistema, jamais seacreditou ou se teve a necessi<strong>da</strong>de de acreditar que poderia existir um Código que eliminasse apossibili<strong>da</strong>de de o juiz interpretar a lei. Nunca se pensou em negar ao juiz desta tradição o poder deinterpretar a lei. De modo que, se alguma diferença há, no que diz respeito aos Códigos, entre o civil law eo common law, tal distinção está no valor ou na ideologia subjacente à ideia de Código. 7573.“O paradigma liberal do direito expressou, até as primeiras déca<strong>da</strong>s do século XX, um consenso de fundo muitodifundido entre os especialistas em direito, preparando, assim, um contexto de máximas de interpretação nãoquestiona<strong>da</strong>s para a aplicação do direito. Essa circunstância explica por que muitos pensavam que o direitopodia ser aplicado a seu tempo, sem o recurso a princípios necessitados de interpretação ou a ‘conceitos-chave’duvidosos” (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 313). “Combase em tais premissas, a ciência do direito podia afirmar que as disposições legislativas na<strong>da</strong> mais eram doque partículas constitutivas de um edifício jurídico coerente e que, portanto, o intérprete podia retirar delas,indutivamente ou mediante uma operação intelectiva, as estruturas que o sustentavam, isto é, os seusprincípios. Esse é o fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> interpretação sistemática e <strong>da</strong> analogia, dos métodos de interpretação que,na presença de uma lacuna – isto é, <strong>da</strong> falta de uma disposição expressa para resolver uma controvérsiajurídica –, permitiam individualizar a norma precisa em coerência com o sistema. Portanto, a sistematici<strong>da</strong>deacompanhava a plenitude do direito” (ZAGREBELSKY, Gustavo. Op. cit., p. 43). “Na i<strong>da</strong>de liberal – a i<strong>da</strong>de quese encerra em 1914 entre os esplendores <strong>da</strong> grande guerra –,o sistema normativo gravita completamente em torno ao Código Civil. O Código Civil de 1865 contém osprincípios gerais, que orientam a regulação <strong>da</strong>s particulares instituições ou matérias e que, em últimainstância, servem para colmatar as lacunas do ordenamento” (IRTI, Natalino. Leyes especiales (del monosistemaal poli-sistema). La e<strong>da</strong>d de la descodificación. Trad. Luis Rojo Jauría. Barcelona: Bosch, 1992. p.93).74.Comentando sobre o sistema codificado e a vinculação do magistrado à norma legisla<strong>da</strong>, sobretudo na Alemanha,Winfried Hassemer assinala que “deveria ser produzido um efeito vinculativo (pelo menos fáctico) pelo direitojurisprudencial. Os princípios de decisão, as diferenciações de problemas, a determinação do teor literal denormas e as instituições, elaborados, modificados e, depois, novamente confirmados pela jurisprudência nodecurso de uma longa tradição, não têm de ser tidos em consideração (apenas) porque são constantementeseguidos e confirmados de facto, mas (também) porque eles se têm a si próprios por ‘correctos’, isto é,afirmam representarem princípios jurídicos consentidos – também a par ou até contra a norma codifica<strong>da</strong>”(HASSEMER, Winfried. Sistema jurídico e codificação: a vinculação do juiz à lei. In: KAUFMANN, Arthur;HASSEMER, Winfried (org.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa:Fun<strong>da</strong>ção Calouste Gulbenkian, 2002. p. 281-301).75.“Se, no entanto, se pensa em codificação não como uma forma, mas como a expressão de uma ideologia, e sealguém tenta entender essa ideologia e o motivo pelo qual ela alcança expressão na forma de código, torna-


É preciso atentar, sobretudo, para a diferença entre a história do poder judicial no common law e ahistória do direito continental europeu, em particular dos fun<strong>da</strong>mentos do direito francês pósrevolucionário.Na Inglaterra, ao contrário do que ocorreu na França, os juízes não só constituíram umaforça progressista preocupa<strong>da</strong> em proteger o indivíduo e em pôr freios no abuso do governo, como ain<strong>da</strong>desempenharam papel importante para a centralização do poder e para a superação do feu<strong>da</strong>lismo.Naquele país, a unificação do poder se deu de forma razoavelmente rápi<strong>da</strong>, com a eliminação <strong>da</strong>jurisdição feu<strong>da</strong>l e de outras jurisdições paralelas. E os juízes colaboraram para esta unificação, afirmandoo direito de ancestral tradição na nação, sem qualquer necessi<strong>da</strong>de de rejeição à tradição jurídica dopassado. 76A Revolução Francesa, porém, procurou criar um direito que fosse capaz de eliminar o passado e astradições até então her<strong>da</strong><strong>da</strong>s de outros povos, mediante o esquecimento não só do direito francês maisantigo, como também <strong>da</strong> negação <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de do ius commune. 77O direito comum havia de serse então possível poder ver o sentido sobre falar em códigos no direito comparado. É ver<strong>da</strong>de que aCalifórnia possui uma varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quilo que é chamado de códigos, como também os possuem outrosestados dos Estados Unidos, e que o Uniform Commercial Code foi adotado na maioria <strong>da</strong>s jurisdiçõesamericanas. Contudo, mesmo que isso se pareça com códigos em países que aplicam o civil law, a ideologiasubjacente – a concepção do que um código é e <strong>da</strong>s funções que deve desempenhar no processo legal – nãoé a mesma. Existe uma ideologia de codificação completamente diferente funcionando no mundo do civillaw” (No original: “If, however, one thinks of codification not as a form but as the expression of anideology, and if one tries to understand that ideology and why it achieves expression in code form, then onecan see how it makes sense to talk about codes in comparative law. It is true that California has a number ofwhat are called codes, as do some other states in United States, and that the Uniform Commercial Code hasbeen adopted in most American jurisdictions. However, although these look like the codes in civil lawcountries, the underlying ideology – the conception of what a code is and of the functions it should performin the legal process – is not the same. There is an entirely different ideology of codification at work in thecivil law world”) (MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. Op. cit., p. 27-28).76.“Nos Estados Unidos e na Inglaterra, ao contrário, existia um diferente tipo de tradição judicial, na qual os juízesprecisaram ser, muitas vezes, uma força progressiva ao lado do indivíduo contra o abuso do poder pelogovernante, e tiveram um importante papel na centralização do poder governamental e na destruição dofeu<strong>da</strong>lismo. O medo do lawmaking judicial e <strong>da</strong> interferência judicial na administração não existia. Pelocontrário, o poder dos juízes de <strong>da</strong>r forma ao desenvolvimento do common law era uma instituição familiar ebem-vin<strong>da</strong>. Era aceito que as cortes possuíam o poder de man<strong>da</strong>mus (para obrigar funcionários a cumprir seudever legal) e quo warranto (para questionar a legali<strong>da</strong>de de um ato cometido por um funcionário público). Ojudiciário não foi um alvo para a Revolução Americana do mesmo modo como na França” (No original: “In theUnited States and England, on the contrary, there was a different kind of judicial tradition, one in which judgeshad often been a progressive force on the side of the individual against the abuse of power by the ruler, and hadplayed an important part in the centralization of governmental power and the destruction of feu<strong>da</strong>lism. The fear ofjudicial lawmaking and of judicial interference in administration did not exist. On the contrary, the power of thejudges to shape the development of the common law was a familiar and welcome institution. It was accepted thatthe courts had the powers of man<strong>da</strong>mus (to compel officials to perform their legal duty) and quo warranto (toquestion the legality of an act performed by a public official). The judiciary was not a target of the AmericanRevolution in the way that it was in France”) (idem, p. 17).77.Veja-se, nesse sentido, que a teoria do direito, sob a égide do Code Napoleon, era ensina<strong>da</strong> nos moldes <strong>da</strong> Escola <strong>da</strong>Exegese, cujas principais teses “afirmavam que o estatuto e o direito eram idênticos, e as outras fontes de direito– costume, erudição, jurisprudência, direito natural – tinham apenas importância secundária. Para compreender osignificado exato dos códigos, era necessário partir do texto, apenas do texto, e não de suas fontes. A erudição e ajurisprudência tiveram, portanto, de resistir e retroceder em direção a um estágio anterior aos códigos, pois issoconduziria inexoravelmente à incerteza. O legislador escolhera entre diferentes possibili<strong>da</strong>des antigas e modernase, se sua escolha não fosse segui<strong>da</strong>, o direito afun<strong>da</strong>ria na diversi<strong>da</strong>de e na incerteza <strong>da</strong>s velhas fontes e, desse


substituído pelo direito nacional. Tal direito, ao contrário do inglês, tinha que ser claro e completo, paranão permitir qualquer interferência judicial no desenvolvimento do direito e do poder governamental. Nãohavia como confiar nos juízes, que até então estavam ao lado dos senhores feu<strong>da</strong>is e mantendo forteoposição à centralização do poder. Veja-se, então, que o direito francês, além de rejeitar o direito comumdo civil law e de procurar instituir um direito nacional novo, teve a necessi<strong>da</strong>de de legitimá-lo mediante asubordinação do poder do juiz ao poder do Parlamento. O direito contaria com um grave e insuportáveldéficit democrático caso fosse interpretado pelos magistrados. Ou melhor, havia bom motivo para não <strong>da</strong>raos juízes o poder de interpretar as normas traça<strong>da</strong>s pelos representantes do povo.As histórias do poder no common law e no civil law foram as responsáveis pelas diferentes funçõesatribuí<strong>da</strong>s aos juízes desses sistemas jurídicos. Entretanto, há necessi<strong>da</strong>de de sinalizar para a circunstânciade que a dessemelhança entre as funções dos juízes do common law e do civil law restaram, em boamedi<strong>da</strong>, no papel e na intenção dos inspiradores do Estado legislativo francês. A Revolução Francesa,como to<strong>da</strong> revolução, ressentiu-se de forte dose de ilusões românticas e utopias, gerando dogmas como o<strong>da</strong> proibição de o juiz interpretar a lei.11. O problema <strong>da</strong> interpretação <strong>da</strong> lei no civil lawComo dito, a Revolução Francesa pretendeu proibir o juiz de interpretar a lei. Imaginava-se que,com uma legislação clara e completa, seria possível ao juiz simplesmente aplicar a lei, e, desta maneira,solucionar os casos litigiosos sem a necessi<strong>da</strong>de de estender ou limitar o seu alcance e sem nunca sedeparar com a sua ausência ou mesmo com conflito entre as normas. Na excepcionali<strong>da</strong>de de conflito,obscuri<strong>da</strong>de ou falta de lei, o magistrado obrigatoriamente deveria apresentar a questão ao legislativo paraa realização <strong>da</strong> “interpretação autoriza<strong>da</strong>”.Com efeito, a Lei Revolucionária de agosto de 1790 não só afirmou que “os tribunais judiciáriosnão tomarão parte, direta ou indiretamente, no exercício do poder legislativo, nem impedirão oususpenderão a execução <strong>da</strong>s decisões do poder legislativo” (Título II, art. 10), mas também que ostribunais “reportar-se-ão ao corpo legislativo sempre que assim considerarem necessário, a fim deinterpretar ou editar uma nova lei” (Título II, art. 12). 78Afirmou-se que o juiz, ao não poder identificar a norma aplicável à solução do caso, deveriarecorrer ao legislativo. Supunha-se, é claro, que estas situações seriam raras, e que – depois de umtempo de consultas ao legislativo – tenderiam a desaparecer. De qualquer forma, pouca coisa podeexpressar de forma tão marcante a pretensão revolucionária de limitar o poder judicial.modo, nos mesmo erros pelos quais o antigo direito fora criticado. Essa abor<strong>da</strong>gem, muito bem descrita como um‘fetichismo do estatuto escrito’, também eliminava qualquer recurso ao direito natural ou aos ‘princípios gerais dodireito’. Demolombe afirmava que o ‘direito claro’ não requeria comentário e que a lei ‘devia ser aplica<strong>da</strong> mesmoquando não parecesse conformar-se aos princípios gerais do direito ou <strong>da</strong> equi<strong>da</strong>de’” (VAN CAENEGEM, R. C.Uma introdução histórica ao direito privado. Trad. Carlos Eduardo Lima Machado. 2. ed. São Paulo: MartinsFontes, 2000. p. 211-212).78.“Os tribunais judiciários não tomarão parte, direta ou indiretamente, no exercício do poder legislativo, nemimpedirão ou suspenderão a execução <strong>da</strong>s decisões do poder legislativo” (Título II, art. 10); “reportar-se-ão aocorpo legislativo sempre que assim considerarem necessário, a fim de interpretar ou editar uma nova lei”(Título II, art. 12); “as funções judiciárias são distintas e sempre permanecerão separa<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s funçõesadministrativas. Sob pena de per<strong>da</strong> de seus cargos, os juízes de nenhuma maneira interferirão com aadministração pública, nem convocarão os administradores à prestação de contas com respeito ao exercício desuas funções (Título II, art. 12) (Lei Revolucionária de agosto de 1790) (ver CAPPELLETTI, Mauro. RepudiandoMontesquieu..., cit., p. 272).


Algo similar aconteceu no direito prussiano. O célebre Código Prussiano (Allgemeines Landrecht fürdie Preußischen Staaten), elaborado por Federico II, o Grande, em 1793, continha mais de 17.000 artigos,revelando o intento de regular to<strong>da</strong>s as situações fáticas, por mais específicas que fossem. Do mesmomodo que o Código Napoleão – que tinha 2.281 artigos –, o objetivo de Federico foi o de fazer um direitoà prova de juízes. 79 O primeiro rei <strong>da</strong> Prússia não se deu por contente com os 17.000 artigos do seuCódigo, tendo também proibido os juízes de interpretá-los, e, na mesma sen<strong>da</strong> <strong>da</strong> Lei RevolucionáriaFrancesa de 1790, criou uma comissão legislativa a quem os juízes tinham o dever de recorrer em casosde dúvi<strong>da</strong> sobre a aplicação de uma norma. O juiz que caísse na tentação de interpretar o Código incidiriana “grande ira” de Federico e sofreria severo castigo. 80Ain<strong>da</strong> mais interessante, para o nosso propósito, é a história <strong>da</strong> Corte de Cassação francesa. Estetribunal também foi instituído em 1790, com o nítido objetivo de limitar o poder judicial mediante acassação <strong>da</strong>s decisões que destoassem do direito criado pelo parlamento. 81 É possível dizer que a Cassationfoi instituí<strong>da</strong> como uma válvula de escape contra a aplicação incorreta <strong>da</strong> lei e a não apresentação do caso àinterpretação autoriza<strong>da</strong> do legislativo. Porém, talvez já se vislumbrasse a dificul<strong>da</strong>de prática em se exigirdos juízes a exposição <strong>da</strong>s suas dúvi<strong>da</strong>s ao legislativo, bem como o trabalho excessivo e praticamenteinviável que seria submetido aos legisladores caso to<strong>da</strong>s as dificul<strong>da</strong>des interpretativas lhes fossemanuncia<strong>da</strong>s. 82Embora chamado de Corte, esse órgão não fazia parte do Poder Judiciário, constituindo instrumentodestinado a proteger a supremacia <strong>da</strong> lei. Esta primeira natureza – não jurisdicional – <strong>da</strong> Cassação eracompatível com a sua função de apenas cassar ou anular as decisões judiciais que dessem à lei sentidoindesejado. Sem obrigar o juiz a requerer a devi<strong>da</strong> interpretação, impedia-se que as decisões que não selimitassem a aplicar a lei tivessem efeitos. Em vez de se utilizar o instrumento <strong>da</strong> “consulta interpretativaautoriza<strong>da</strong>”, preferia-se algo mais factível, isto é, cassar a interpretação equivoca<strong>da</strong>.Frise-se que a Cour de Cassation foi instituí<strong>da</strong> unicamente para cassar a interpretação incorreta, enão para estabelecer a interpretação correta ou para decidir em substituição à decisão prolata<strong>da</strong> pelo juizordinário. Lembre-se que ela não era sequer considera<strong>da</strong> um órgão jurisdicional e, por isso mesmo, nãopodia decidir. Dessa forma, a Cassation não se sobrepunha ao órgão judicial ordinário por ter o poder deproferir a última decisão, mas sim por ter o poder para afirmar como a lei não deveria ser interpreta<strong>da</strong>.O tempo fez sentir que o momento para afirmar como a lei não deveria ser interpreta<strong>da</strong> também seriaoportuno para afirmar como a lei deveria ser interpreta<strong>da</strong>. Ou seja, a história mostra que a Cassação, deórgão destinado a simplesmente anular a interpretação erra<strong>da</strong>, passou a órgão de definição <strong>da</strong>interpretação correta. Tal evolução igualmente obrigou à mutação <strong>da</strong> feição do órgão estatal, que assumiua natureza jurisdicional, de órgão incumbido de participar do processo de produção de decisões judiciais.79.MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. Op. cit., p. 39.80.Idem. Ver, ain<strong>da</strong>: MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil – Pressupostos sociais, lógicos e éticos. SãoPaulo: Ed. RT, 2009. p. 70-71; TARELLO, Giovanni. Op. cit., p. 488; DAMASKA, Mirjan. The faces of justiceand state authority. New Haven: Yale University Press, 1986. p. 63. A respeito do direito processual civilprussiano desta época, ver ENGELMANN, Arthur. Modern continental procedure. A history of continental civilprocedure. New York: Kelley, 1969. p. 590 e ss.81.Ver CALAMANDREI, Piero. La cassazione civile – I. Storia e legislazione. Torino: Fratelli Bocca, 1920. p. 426 ess.; TARUFFO, Michele. Il vertice ambiguo – Saggi sulla cassazione civile. Bologna: Il Mulino, 1991. p. 29 ess.82.MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. Op. cit., p. 39 e ss.


Ademais, a Corte de Cassação não apenas adquiriu o semblante de órgão jurisdicional, como passoua constituir o tribunal de cúpula do sistema, sobrepondo-se aos tribunais ordinários. A sua função setornou a de ditar e assegurar a interpretação correta <strong>da</strong> lei, evitando que os tribunais inferioresconsoli<strong>da</strong>ssem interpretações equivoca<strong>da</strong>s.Assim, a Corte chega a um estágio em que não há mais controle não jurisdicional <strong>da</strong>s interpretaçõesjudiciais. Há, agora, preocupação em fixar, através do próprio Judiciário, a uni<strong>da</strong>de do direito, ou, maisprecisamente para aquela época, a uniformi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> interpretação <strong>da</strong> lei no país e nos vários tribunaisinferiores. Basicamente, isto se tornou possível por dois motivos. Primeiramente, adquiriu-se consciênciade que a leitura do texto <strong>da</strong> norma implica um ato de compreensão, que, assim, abre oportuni<strong>da</strong>de paravárias definições e, portanto, interpretações. Outrossim, tornou-se inquestionável que o ato decompreender a lei era de incumbência do judiciário e não do legislativo. O que passou a importar, emver<strong>da</strong>de, foi tão somente se seria conveniente admitir que o Judiciário exprimisse, em um mesmo instantehistórico, várias interpretações para a mesma lei.O ponto tem relevância insuspeita, particularmente em face do sistema brasileiro. Não obstante, cabesublinhar, desde logo, que, se a função do nosso Superior do <strong>Tribunal</strong> de Justiça é zelar pela integri<strong>da</strong>dedo direito infraconstitucional, a sua feição não é muito diferente <strong>da</strong>quela que a Cassação francesa assumiucom o passar do tempo. Também no sistema brasileiro há preocupação em saber como o Judiciário devese exprimir diante <strong>da</strong> inafastabili<strong>da</strong>de de diversas interpretações, sendo a solução para o problema aimposição <strong>da</strong> interpretação do Superior <strong>Tribunal</strong> de Justiça sobre os tribunais ordinários.De qualquer forma, é imprescindível e importante notar que a Corte de Cassação, hoje tribunaljurisdicional voltado a assegurar a uniformi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> interpretação <strong>da</strong> lei, tem origem em um órgão nãojurisdicional, instituído para evitar que a vontade dos juízes se sobrepusesse à vontade dos habitantes doparlamento. De órgão voltado a garantir a supremacia <strong>da</strong> lei para órgão destinado a afirmar e a zelar poruma única interpretação <strong>da</strong> lei: eis a ver<strong>da</strong>deira mutação pela qual a Cassação passou.Contudo, é surpreendente que a cultura jurídica do civil law não tenha se <strong>da</strong>do conta de que talmutação não poderia permitir a manutenção dos dogmas – que deitam raízes na Revolução Francesa – deque a lei constitui a segurança de que o ci<strong>da</strong>dão precisa para viver em liber<strong>da</strong>de e em igual<strong>da</strong>de e de que ojuiz apenas atua a vontade <strong>da</strong> lei. 8312. A certeza jurídica como garantia <strong>da</strong> segurançaPara a Revolução Francesa, a lei seria indispensável para a realização <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de.Por este motivo, entendeu-se que a certeza jurídica seria igualmente indispensável diante <strong>da</strong>s decisõesjudiciais, uma vez que, caso os juízes pudessem produzir decisões destoantes <strong>da</strong> lei, os propósitosrevolucionários estariam perdidos ou seriam inalcançáveis.Assim, manter o juiz preso à lei seria sinônimo de segurança jurídica. O próprio Montesquieu fezcoro pela segurança jurídica fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na estrita aplicação <strong>da</strong> lei quando disse que, se os julgamentos“fossem uma opinião particular do juiz, viver-se-ia na socie<strong>da</strong>de sem saber precisamente oscompromissos que nela são assumidos”. 84 Essa passagem <strong>da</strong> doutrina de Montesquieu, segundo adverteGiovanni Tarello, evidencia uma ideologia que sugere que a liber<strong>da</strong>de política, entendi<strong>da</strong> como segurançapsicológica do indivíduo, realiza-se através <strong>da</strong> certeza do direito. 8583.V. GROSSI, Paolo. Mitologie giuridiche della modernità. 2. ed. Milano: Giuffrè, 2005. p. 55 e ss.84 .MONTESQUIEU, Barão de (Charles-Louis de Secon<strong>da</strong>t). Op. cit., p. 158; ver TARELLO, Giovanni. Op. cit., p. 194.85.TARELLO, Giovanni. Op. cit., p. 294.


A certeza do direito estaria na impossibili<strong>da</strong>de de o juiz interpretar a lei, ou, melhor dizendo, naprópria lei. O ponto tem enorme relevância. Note-se que o civil law não apenas imaginou, utopicamente,que o juiz apenas atuaria a vontade <strong>da</strong> lei, como ain<strong>da</strong> supôs que, em virtude <strong>da</strong> certeza jurídica que <strong>da</strong>ídecorreria, o ci<strong>da</strong>dão teria segurança e previsibili<strong>da</strong>de no trato <strong>da</strong>s relações sociais. Mais, imaginou que alei seria o suficiente para garantir a igual<strong>da</strong>de dos ci<strong>da</strong>dãos.Isso significa, portanto, que, nos países que não precisaram se iludir com o absurdo de que o juiz nãopoderia interpretar a lei, naturalmente aceitou-se que a segurança e a previsibili<strong>da</strong>de teriam de serbusca<strong>da</strong>s em outro lugar. E que lugar foi esse? Ora, exatamente nos precedentes, ou, mais precisamente,no stare decisis.A segurança e a previsibili<strong>da</strong>de obviamente são valores almejados por ambos os sistemas. Porém,supôs-se no civil law que tais valores seriam realizados por meio <strong>da</strong> lei e <strong>da</strong> sua estrita aplicação pelosjuízes, enquanto no common law, por nunca ter existido dúvi<strong>da</strong> que os juízes interpretam a lei e, por isso,podem proferir decisões diferentes, enxergou-se na força vinculante dos precedentes o instrumento capazde garantir a segurança e a previsibili<strong>da</strong>de de que a socie<strong>da</strong>de precisa para se desenvolver.Contudo, a questão pode ser definitivamente desnu<strong>da</strong><strong>da</strong> apenas a partir <strong>da</strong> descoberta do motivo peloqual a doutrina do civil law, mesmo após ter admitido a obvie<strong>da</strong>de de que o juiz interpreta a lei, e, mais doque isso, que os juízes frequentemente divergem e proferem inúmeras decisões diferentes ao aplicarem otexto <strong>da</strong> lei, continuou aceitando que a lei seria suficiente para garantir a segurança e a previsibili<strong>da</strong>de.Trata-se de algo realmente curioso. Embora a praxe tenha constatado que na<strong>da</strong> adianta a lei quando oci<strong>da</strong>dão não sabe o que esperar dos juízes, a única preocupação <strong>da</strong> doutrina tem sido a de demonstrar que,apesar de ter se tornado evidente que o juiz presta a tutela jurisdicional indo muito além <strong>da</strong> mera aplicação<strong>da</strong> lei, isso não significa negação do princípio <strong>da</strong> separação dos poderes. Ou melhor, a doutrina não tomouconsciência de que, diante <strong>da</strong> varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s decisões e <strong>da</strong>s interpretações <strong>da</strong> lei, seria necessária umaelaboração dogmática capaz de garantir a segurança, a previsibili<strong>da</strong>de e a igual<strong>da</strong>de. Há que se dizer, semqualquer pudor, que a doutrina do civil law cometeu pecado grave ao encobrir a necessi<strong>da</strong>de de uminstrumento capaz de garantir a igual<strong>da</strong>de diante <strong>da</strong>s decisões, fingindo crer que a lei seria bastante epreferindo preservar o dogma em vez de denunciar a reali<strong>da</strong>de e a funesta consequência dela deriva<strong>da</strong>.Em resumo: não há como ignorar, tanto no common law como no civil law, que uma mesma normajurídica pode gerar diversas interpretações e, por consequência, varia<strong>da</strong>s decisões judiciais. To<strong>da</strong>via, ocommon law, certamente com a colaboração de um ambiente político e cultural propício, rapi<strong>da</strong>menteintuiu que o juiz não poderia ser visto como mero revelador do direito costumeiro, chegando a atribuir-lhea função de criador do direito, enquanto o civil law permanece preso à ideia de que o juiz simplesmenteatua a vontade do direito. De modo que o common law pôde facilmente vislumbrar que a certeza jurídicaapenas poderia ser obti<strong>da</strong> mediante o stare decisis, ao passo que o civil law, por ain<strong>da</strong> estar encobrindo areali<strong>da</strong>de, nos livros fala e ouve sobre a certeza jurídica na aplicação <strong>da</strong> lei, mas, em outro lugar, sente-seatordoado diante <strong>da</strong> desconfiança <strong>da</strong> população, além de envolto num emaranhado de regras que, deforma não sistemática, tentam <strong>da</strong>r alguma segurança e previsibili<strong>da</strong>de ao jurisdicionado.13. O individualismo do juiz do civil lawEmbora as decisões, no sistema do civil law, variem constantemente de sinal, trocando de sentido aosabor do vento, isso deve ser visto como uma patologia ou como um equívoco que, lamentavelmente,arraigou-se em nossa tradição jurídica.Supôs-se que os juízes não devem qualquer respeito às decisões passa<strong>da</strong>s, chegando-se a alegar quequalquer tentativa de vincular o juiz ao passado interferiria sobre o seu livre convencimento e sobre a sualiber<strong>da</strong>de de julgar.Trata-se de grosseiro mal entendido, decorrente <strong>da</strong> falta de compreensão de que a decisão é oresultado de um sistema e não algo construído de forma individualiza<strong>da</strong> por um sujeito que pode fazervaler a sua vontade sobre todos que o rodeiam, e, assim, sobre o próprio sistema de que faz parte.


Imaginar que o juiz tem o direito de julgar sem se submeter às suas próprias decisões e às dos tribunaissuperiores é não enxergar que o magistrado é uma peça no sistema de distribuição de justiça, e, mais doque isso, que este sistema não serve a ele, porém ao povo.Como é óbvio, o juiz ou o tribunal não decidem para si, mas para o jurisdicionado. Por isso, poucodeve importar, para o sistema, se o juiz tem posição pessoal, acerca de questão de direito, que difere <strong>da</strong>dos tribunais que lhe são superiores. O que realmente deve ter significado é a contradição de o juiz decidirquestões iguais de forma diferente ou decidir de forma distinta <strong>da</strong> do tribunal que lhe é superior. O juizque contraria a sua própria decisão, sem a devi<strong>da</strong> justificativa, está muito longe do exercício de qualquerliber<strong>da</strong>de, estando muito mais perto <strong>da</strong> prática de um ato de insani<strong>da</strong>de. Enquanto isso, o juiz quecontraria a posição do tribunal, ciente de que a este cabe a última palavra, pratica ato que, ao atentarcontra a lógica do sistema, significa desprezo ao Poder Judiciário e desconsideração para com os usuáriosdo serviço jurisdicional.É chegado o momento de se colocar ponto final no cansativo discurso de que o juiz tem aliber<strong>da</strong>de feri<strong>da</strong> quando obrigado a decidir de acordo com os tribunais superiores. O juiz, além deliber<strong>da</strong>de para julgar, tem dever para com o Poder de que faz parte e para com o ci<strong>da</strong>dão. Possui odever de manter a coerência do ordenamento e de zelar pela respeitabili<strong>da</strong>de e pela credibili<strong>da</strong>de doPoder Judiciário. Além disso, não deve transformar a sua própria decisão, aos olhos do jurisdicionado,em um “na<strong>da</strong>”, ou, pior, em obstáculo que precisa ser contornado mediante a interposição de recurso aotribunal superior, violando os direitos fun<strong>da</strong>mentais à tutela efetiva e à duração razoável do processo.De outra parte, é certo que o juiz deixa de respeitar a si mesmo e ao jurisdicionado quando nega as suaspróprias decisões. Trata-se de algo pouco mais do que contraditório, beirando, em termos unicamentelógicos, o inconcebível.Como é evidente, diante de casos distintos o juiz não precisa decidir de acordo com o tribunalsuperior ou em conformi<strong>da</strong>de com decisão que anteriormente proferiu. Cabe-lhe, nesta situação, realizar oque o common law conhece por distinguished, isto é, a diferenciação do caso que está para julgamento.Da mesma maneira, o juiz pode deixar de decidir de acordo com decisão que já prolatou, ain<strong>da</strong> que diantede caso similar, quando tem justificativa para tanto e desde que procedendo à devi<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>mentação domotivo pelo qual está alterando a sua primitiva decisão. Esta é regra que, de certa forma, pode mesmo serconsidera<strong>da</strong> deriva<strong>da</strong> do próprio texto constitucional, a teor do art. 93, IX.Como se vê, o juiz não perde a liber<strong>da</strong>de de julgar por estar submetido ao que já decidiu ou àsdecisões dos tribunais superiores. Ele pode, com a devi<strong>da</strong> justificativa, alterar a sua anterior decisão, ou,demonstrando a diversi<strong>da</strong>de do caso que lhe foi submetido, não aplicar a decisão do tribunal superior. Aproibição só atinge a possibili<strong>da</strong>de de decisão, ain<strong>da</strong> que fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>, em divergência ao tribunalsuperior. Mas isso por uma questão puramente lógica, ancora<strong>da</strong> na própria estrutura do sistema deprodução de decisões.Frise-se que não há poder que não tenha responsabili<strong>da</strong>de pelas suas decisões. Porém, é poucoplausível que alguém possa justificar a sua responsabili<strong>da</strong>de quando decide casos iguais de formadesigual. “Treat like cases alike” é o princípio que, visto em seu significado originário, 86 sempre esteve na86.Não se está considerando, portanto, outras questões já postas em torno do princípio, como a de que auniformi<strong>da</strong>de dita<strong>da</strong> pelo princípio eliminaria a capaci<strong>da</strong>de de os tribunais responderem às necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong>diversi<strong>da</strong>de e do pluralismo. “Para ter certeza, não estou sugerindo que estas razões visando uniformi<strong>da</strong>defutura estão necessariamente presentes em todo e qualquer caso. Longe disso. Mas, normalmente, uma ouambas estão, e isso deve ser tomado em consideração contra a suposição de que o valor de previsibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>sdecisões judiciais deve prevalecer. Assim, tratar casos similares <strong>da</strong> mesma forma não é necessariamentedesejável ou mesmo justificado [warranted]” (No original: “To be sure, I am not suggesting that these reasonsfor forgoing uniformity are necessarily present in each and every case. Far from it. But often one or both ofthem are, and this should count against the assumption that the value of predictability of judicial decisionsought to prevail. Thus, treating like cases alike is not necessarily desirable or even warranted”) (MARMOR,Andrei. Should like cases be treated alike? Legal Theory, vol. 11, issue 01, mar. 2005, p. 27-38). O que se


ase do common law, consistindo uma <strong>da</strong>s principais razões <strong>da</strong> sua coerência, assim como <strong>da</strong> confiança edo respeito nos juízes. Tratar <strong>da</strong> mesma forma casos similares é algo fun<strong>da</strong>mental para a estabili<strong>da</strong>de doPoder.14. O impacto do constitucionalismo no civil lawA noção de norma geral, abstrata, coerente e fruto <strong>da</strong> vontade homogênea do parlamento, típica dodireito <strong>da</strong> Revolução Francesa, não sobreviveu aos acontecimentos históricos. 87Entre outras coisas,vivenciou-se a experiência de que a lei poderia ser cria<strong>da</strong> de modo contrário aos interesses <strong>da</strong> população eaos princípios de justiça.Assim, tornou-se necessário resgatar a substância <strong>da</strong> lei e encontrar os instrumentos capazes depermitir a sua conformação aos princípios de justiça. Esta “substância” e estes “princípios” foram infiltradosnas Constituições, que perderam os seus resquícios de flexibili<strong>da</strong>de para se tornarem “rígi<strong>da</strong>s”, no sentido denão passíveis de modificação pela legislação ordinária. A Constituição é dota<strong>da</strong> de plena eficácia normativae, assim, a lei perde o seu posto de supremacia, passando a se subordinar a ela. 88A lei passa a encontrar limite e contorno nos princípios constitucionais, o que significa que deixa deter apenas legitimação formal, restando substancialmente amarra<strong>da</strong> aos direitos positivados naConstituição. A lei não mais vale por si, porém depende <strong>da</strong> sua adequação aos direitos fun<strong>da</strong>mentais. Seantes era possível dizer que os direitos fun<strong>da</strong>mentais eram circunscritos à lei, torna-se exato, agora,afirmar que as leis devem estar em conformi<strong>da</strong>de com os direitos fun<strong>da</strong>mentais. 89O próprio princípio <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de passa a ter outro significado, deixando de ter conteúdo apenasformal para adquirir conteúdo substancial. O princípio <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de passa a se ligar ao conteúdo <strong>da</strong> lei,ou melhor, à conformação <strong>da</strong> lei com os direitos fun<strong>da</strong>mentais.A mutação do princípio <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de fez com que Ferrajoli aludisse a uma segun<strong>da</strong> revolução,contraposta à que foi cria<strong>da</strong> com a aparição do antigo princípio <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de, o qual provocou, com aafirmação <strong>da</strong> onipotência do legislador, uma alteração de paradigma em relação ao direito anterior ao dopretende, no presente texto, é evidenciar a necessi<strong>da</strong>de de se tratar casos similares <strong>da</strong> mesma maneira, e nãotornar irrevogáveis os entendimentos firmados nos precedentes. Ver, ain<strong>da</strong>, BENDITT, Theodore M. The rule ofprecedent. In: GOLDSTEIN, L. (ed.). Precedent in law. Oxford: Clarendon Press, 1987. p. 92 e ss.;MACCORMICK, Neil. Why cases have rationes and what these are. In: GOLDSTEIN, L. (ed.). Precedent in law.Oxford: Clarendon Press, 1987. p. 160; HART, H. L. A. Op. cit., p. 159.87.Como diz Natalino Irti, “as leis especiais agora estão no centro <strong>da</strong> experiência jurídica contemporânea. Asdefinições, enuncia<strong>da</strong>s pela doutrina do século XIX e <strong>da</strong>s primeiras déca<strong>da</strong>s do nosso, tornaram-seinsuficientes. É necessário revisar as teorias <strong>da</strong>s fontes e redefinir a relação entre Constituição, Código Civil eleis especiais” (IRTI, Natalino. Leyes especiales..., cit., p. 93). Ver CLASSEN, C. D. Gesetzesvorbehalt undDritte Gewalt. Juristenzeitung, vol. 58, issue 14, 2003, p. 693-701; HERMES, G. Grundrechtschutz durchPrivatrecht auf neuer Grundlage? NJW, München/Frankfurt am Main, Beck, 1990, p. 1764-1768.88.Ver PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalità costituzionale. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1991;STÜRMER, Rolf. Einwirkungen der Verfassung auf <strong>da</strong>s Zivilrecht und den Zivilprozessrecht. NJW,München/Frankfurt am Main, Beck, 1979, p. 2334-2338; HÄBERLE, Peter. Leistungsrecht im sozialenRechtsstaat. Recht und Staat – Festschrift für K. Küchenhoff. Berlin: Duncker & Humblot, 1972.89 .ALEXY, Robert. Los derechos fun<strong>da</strong>mentales en el estado constitucional democrático. In: FERRAJOLI, Luigi et al.Los fun<strong>da</strong>mentos de los derechos fun<strong>da</strong>mentales. Madrid: Trotta, 2001. p. 34; SCHEUNER, U. Die Funktion derGrudrechte im Sozialstaat. Die Grundrechte als Richtlinie und Rahmen der Staatstätigkeit. Die öffentlicheVerwaltung – DOV, 1971, p. 505-513.


Estado legislativo. Mas esta segun<strong>da</strong> revolução também implicou em quebra de paradigma, substituindo oprincípio <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de formal pelo princípio <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de substancial. 90Numa primeira visão alguém poderia negar qualquer ruptura de paradigma, preferindo enxergarmera reafirmação <strong>da</strong> supremacia <strong>da</strong> lei, argumentando que a subordinação do Estado à lei teria sidoleva<strong>da</strong> à última consequência, consistente na subordinação <strong>da</strong> própria legislação à Constituição, que seriaa “lei maior”. No entanto, esta leitura constitui um reducionismo injustificável do significado <strong>da</strong>subordinação <strong>da</strong> lei à Constituição ou uma incompreensão <strong>da</strong>s tensões que conduziram à transformação<strong>da</strong> própria noção de direito. Na ver<strong>da</strong>de, a subordinação <strong>da</strong> lei à Constituição não pode ser compreendi<strong>da</strong>como mera “continuação” dos princípios do Estado legislativo, pois significa uma “transformação” queafeta as próprias concepções de direito e de jurisdição. 91Não há duvi<strong>da</strong> que o civil law passou por um processo de transformação <strong>da</strong>s concepções de direito ede jurisdição. Ora, se o direito não está mais na lei, mas na Constituição, a jurisdição não mais se destinaa declarar a vontade <strong>da</strong> lei, mas a conformar a lei aos direitos contidos na Constituição. Tanto é ver<strong>da</strong>deque as jurisdições <strong>da</strong> Europa continental não resistiram à necessi<strong>da</strong>de do controle <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de<strong>da</strong> lei, embora tenham reservado esta função a órgãos que, inicialmente, foram concebidos como nãojurisdicionais, exatamente em homenagem ao princípio de que o juiz não poderia se imiscuir na tarefa dolegislativo. 92Porém, mais importante que convencer a respeito <strong>da</strong> criação judicial do direito é evidenciar que ojuiz do civil law passou a exercer papel que, em um só tempo, é inconcebível diante dos princípiosclássicos do civil law e tão criativo quanto o do seu colega do common law. 93 O juiz que controla aconstitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei obviamente não é submetido à lei. O seu papel, como é evidente, nega a ideiade supremacia do legislativo. Lembre-se que o juiz, mediante as técnicas <strong>da</strong> interpretação conforme aConstituição e <strong>da</strong> declaração parcial de nuli<strong>da</strong>de sem redução de texto, confere à lei sentido distinto do90.FERRAJOLI, Luigi. Derechos fun<strong>da</strong>mentales. In: FERRAJOLI, Luigi et al. Los fun<strong>da</strong>mentos de los derechosfun<strong>da</strong>mentales. Madrid: Trotta, 2001. p. 53.91.ZAGREBELSKY, Gustavo. Op. cit., p. 46; IRTI, Natalino. Codice Civile e società politica. 7. ed. Roma: Laterza,2005.92.Ver PICARDI, Nicola. La vocazione del nostro tempo per la giurisdizione. Rivista Trimestrale di Diritto eProcedura Civile, 2004.93.Realmente não importa alardear que o juiz cria o direito. O que importa é evidenciar que o juiz do Estadoconstitucional exerce papel diverso do juiz caracterizado pela tradição do civil law. Tomando-se em conta asteorias clássicas <strong>da</strong> jurisdição – atuação <strong>da</strong> vontade <strong>da</strong> lei (Chioven<strong>da</strong>) e criação <strong>da</strong> norma individual(Carnelutti) –, não há dúvi<strong>da</strong> que o juiz somente pode proferir a sentença com base em norma cria<strong>da</strong> pelolegislador. Embora, em princípio, a ausência de norma geral não pudesse sequer ser cogita<strong>da</strong> em face de taisteorias, é possível in<strong>da</strong>gar o que poderia ser feito pelo juiz destas teorias diante de ausência de lei. Ora, nessasituação não restaria ao juiz outra alternativa senão criar o direito. Atualmente, entretanto, com atransformação do conceito de direito e com a nova dimensão <strong>da</strong> função jurisdicional, o que realmente interessasaber é como o juiz constrói a norma jurídica do caso concreto quando a norma geral não existe ou não está deacordo com os princípios constitucionais de justiça e com os direitos fun<strong>da</strong>mentais. A construção dessa normajurídica não significa criação de norma individual – até porque esta, por lógica, deve se fun<strong>da</strong>r na norma geral– para regular o caso concreto ou criação de norma geral. A norma jurídica cristaliza<strong>da</strong> mediante aconformação <strong>da</strong> lei à Constituição pode ser dita uma norma jurídica cria<strong>da</strong> para o caso concreto, mas estálonge de ser uma simples norma individual volta<strong>da</strong> a concretizar a norma geral ou mesmo de representar ainstituição de um direito destituído de base no direito já existente. Ver MARINONI, <strong>Luiz</strong> <strong>Guilherme</strong>. Curso deprocesso civil – Teoria geral do processo, cit., vol. 1, p. 104 e ss.).


que lhe deu o legislativo. A feição judicial <strong>da</strong> imposição do direito também é clara – ou ain<strong>da</strong> maisevidente – ao se prestar atenção na tarefa que o juiz exerce quando supre a omissão do legislador diantedos direitos fun<strong>da</strong>mentais. 94 Ora, isso apenas pode significar, aos olhos dos princípios e <strong>da</strong> tradição docivil law, uma afirmação do poder judicial com força de direito, nos moldes do que se concebeu nocommon law.Considerando-se o common law, torna-se fácil constatar a conclusão de que o juiz, na falta de direitopreexistente, realiza ativi<strong>da</strong>de criativa. Na ver<strong>da</strong>de, esta é uma questão que o positivismo de Hart põe ato<strong>da</strong> evidência: “Haverá sempre certos casos juridicamente não regulados em que, relativamente adeterminado ponto, nenhuma decisão em qualquer dos sentidos é dita<strong>da</strong> pelo direito e, nessaconformi<strong>da</strong>de, o direito apresenta-se como parcialmente indeterminado ou incompleto. Se, em tais casos,o juiz tiver de proferir uma decisão, em vez de, como Bentham chegou a advogar em tempos, se declararprivado de jurisdição, ou remeter os pontos não regulados pelo direito existente para a decisão do órgãolegislativo, então deve exercer o seu poder discricionário e criar direito para o caso, em vez de aplicarmeramente o direito estabelecido anteriormente”. 9594.Se há normas que violam os princípios de justiça e os direitos fun<strong>da</strong>mentais, existem também omissões, ou ausênciade normas, que agridem esses mesmos princípios e direitos. Por isso, não há razão para entender possível ocontrole <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei e julgar inviável o controle <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> falta de lei. Ora, se ojuiz deve controlar a ativi<strong>da</strong>de legislativa, analisando a sua adequação à Constituição, é pouco mais do queevidente que a sua tarefa não deve se ater apenas à lei que viola um direito fun<strong>da</strong>mental, mas também à ausênciade lei que não permite a efetivação de um direito desse porte. As omissões que invali<strong>da</strong>m direitos fun<strong>da</strong>mentaisevidentemente não podem ser vistas como simples opções do legislador, pois ou a Constituição tem forçanormativa ou força para impedir que o legislador desrespeite os direitos fun<strong>da</strong>mentais, e assim confere ao juiz opoder de controlar a lei e as omissões do legislador, ou a Constituição constituirá apenas proclamação retórica edemagógica. Deixe-se claro, aliás, que a única dúvi<strong>da</strong> que pode pairar sobre a possibili<strong>da</strong>de de o juiz controlar ainconstitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> omissão no caso concreto diz respeito aos casos em que a norma constitucional atribuiao legislador um dever de legislar. Estes casos, em que o constituinte, de caso pensado, abre uma lacuna nãoofensiva do plano de ordenação constitucional, <strong>da</strong>ndo ao legislador a tarefa de colmatá-la, são completamentediferentes <strong>da</strong>queles em que a ausência de lei não é decorrente <strong>da</strong> não observância de dever de legislar imposto pornorma constitucional, mas ain<strong>da</strong> assim impede a efetivação de um direito fun<strong>da</strong>mental. Ou seja, a omissãoconstitucional não se resume apenas à hipótese em que a norma constitucional outorga ao legislador o dever delegislar, mas também aos casos em que o dever de legislar decorre <strong>da</strong> própria necessi<strong>da</strong>de de proteção de umdireito fun<strong>da</strong>mental, ou melhor, aos casos em que a omissão do legislador nega o próprio direito fun<strong>da</strong>mental. Demodo que, para esses casos, não se pode sequer cogitar sobre os instrumentos técnico-processuais instituídos paraa correção <strong>da</strong> omissão do dever constitucional de legislar, como o man<strong>da</strong>do de injunção (art. 102, I, q, CF). Vejaseque um direito fun<strong>da</strong>mental pode depender de uma regra que lhe dê proteção. Nessa hipótese, configurando-sea omissão legislativa, há ver<strong>da</strong>deira omissão de proteção, devi<strong>da</strong> pelo legislador. Essa omissão pode serreconheci<strong>da</strong> judicialmente, quando o juiz deverá determinar a supressão <strong>da</strong> omissão para <strong>da</strong>r proteção ao direitofun<strong>da</strong>mental. O problema que pode existir, nessa ocasião, relaciona-se com a “forma” mediante a qual o juizdeterminará a proteção. Se o direito fun<strong>da</strong>mental não pode ficar sem proteção, o direito que restou intocado pelaomissão legal certamente só deverá suportar a medi<strong>da</strong> que, <strong>da</strong>ndo proteção ao direito, o sujeite à menor restriçãopossível. Por outro lado, a supressão <strong>da</strong> omissão <strong>da</strong> regra processual é ain<strong>da</strong> mais fácil de ser assimila<strong>da</strong>.Considerando-se a natureza instrumental <strong>da</strong> regra processual, percebe-se sem dificul<strong>da</strong>de quando a sua ausênciaou insuficiência impede a efetiva tutela do direito material. Como o discurso processual, relativo à aplicação <strong>da</strong>regra de processo, recai sobre o discurso que evidencia as necessi<strong>da</strong>des de direito material particulariza<strong>da</strong>s nocaso concreto,basta concluir se o legislador processual deixou de editar regra imprescindível à tutela do direito material. Emcaso positivo, a técnica a ser utiliza<strong>da</strong>, que obviamente deve ser adequa<strong>da</strong> e idônea à proteção <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de dedireito material evidencia<strong>da</strong> na motivação, também deve ser a que causa a menor restrição possível à esferajurídica do deman<strong>da</strong>do (idem, Parte I, item 5.3).95.HART, Herbert L. A. Op. cit., p. 135.


No entanto, percebe-se que há, no civil law, preocupação em negar ou obscurecer – ou talvez tornarirrelevante – o papel que o neoconstitucionalismo impôs ao juiz. Há completo descaso pelo significado <strong>da</strong>nova função judicial. Inexiste qualquer empenho em ressaltar que o juiz, no Estado constitucional, deixoude ser um mero servo do legislativo. Há apenas cui<strong>da</strong>do em demonstrar que o princípio <strong>da</strong> separação dospoderes mantém-se intacto, como se importante fosse apenas a manutenção dos princípios. Como é óbvio,não se quer dizer que o princípio <strong>da</strong> separação dos poderes não mais tem significado ou importância.Deseja-se tão somente demonstrar que, quando se tenta acomo<strong>da</strong>r a reali<strong>da</strong>de na fôrma <strong>da</strong>s regras ou dosprincípios, corre-se o risco de ver surgir algo que mais parece com uma imagem refleti<strong>da</strong> a partir de umespelho de circo. O vezo de acomo<strong>da</strong>r a reali<strong>da</strong>de às regras e aos princípios faz com que a reali<strong>da</strong>de sejadistorci<strong>da</strong> e até mesmo nega<strong>da</strong>. São as regras e os princípios que devem adquirir outra conformação,a<strong>da</strong>ptando-se às novas reali<strong>da</strong>des, e não o contrário.A dificul<strong>da</strong>de em ver o papel do juiz sob o neoconstitucionalismo impede que se perceba que atarefa do juiz do civil law, na atuali<strong>da</strong>de, está muito próxima <strong>da</strong> exerci<strong>da</strong> pelo juiz do common law. 96Ora, é exatamente a cegueira para a aproximação <strong>da</strong>s jurisdições destes sistemas que não permiteenxergar a relevância de um sistema de precedentes no civil law.15. O controle <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei no BrasilSabe-se que, no sistema brasileiro, o controle de constitucionali<strong>da</strong>de pode se <strong>da</strong>r mediante açãodireta, dirigi<strong>da</strong> ao Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong>, ou no curso de qualquer ação volta<strong>da</strong> à solução de umcaso conflitivo concreto. 97 O controle <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de também pode ser feito através <strong>da</strong>s técnicas96.“Não obstante as esperanças iniciais dos codificadores revolucionários, todos os sistemas de codificação têmpor muito tempo plenamente reconhecido a necessi<strong>da</strong>de de interpretação, uma vez que é necessário resolverambigui<strong>da</strong>des emergentes, obscuri<strong>da</strong>des e indeterminações nas disposições dos códigos. Resolvê-las de umaforma racional e responsável, no entanto, revela-se tanto uma questão de eluci<strong>da</strong>r a lei através <strong>da</strong> exposiçãode seus princípios subjacentes no sentido de revelar e preservar ou até mesmo constituir-se como um corporacionalmente coerente do direito, como um problema – ca<strong>da</strong> vez mais urgente – de garantir que as regraslegais e os princípios andem razoavelmente juntos com a evolução ou com o desenvolvimento <strong>da</strong>snecessi<strong>da</strong>des sociais. O papel interpretativo tem atingido seu máximo onde a lei escrita é mais fragmentária[skeletal] e, sem surpresa alguma, tem se tornado particularmente evidente (e urgente) no desenvolvimentodo direito público, primeiro através de tribunais administrativos no século dezenove e começo do séculovinte, e em segui<strong>da</strong> – ain<strong>da</strong> mais fun<strong>da</strong>mentalmente – através de tribunais e cortes constitucionais noperíodo pós 1945” (No original: “Notwithstanding the early hopes of revolutionary codifiers, all codifiedsystems have for long fully acknowledged the need for interpretation, for it is necessary to resolve emergingambiguities, obscurities and indeterminacies in the provisions of the codes. Resolving these in a rational andresponsible way, however, proves to be both a matter of eluci<strong>da</strong>ting the law through expounding itsunderlying principles in a way that reveals and preserves or even constitutes it as a rationally coherent bodyof law and a matter – an increasingly urgent one – of ensuring that legal rules and principles march inreasonable time with evolving or developing societal needs. This interpretational role has been at its mostexpansive where the written law is most skeletal and, not surprisingly, has become particularly evident (andurgent) in the development of public law, first through administrative tribunals in the nineteenth and earliertwentieth centuries, and then additionally and yet more fun<strong>da</strong>mentally through constitutional tribunals andcourts in the post-1945 period”) (BANKOWSKI, Zenon; MACCORMICK, Neil; MORAWSKI, Lech; MIGUEL,Alfonso Ruiz. Op. cit., p. 484).97. Ver MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e naAlemanha. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007; MENDES, Gilmar Ferreira; MÁRTIRES, Inocêncio; BRANCO, PauloGustavo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008; BARROSO, Luis Roberto. Controle deconstitucionali<strong>da</strong>de no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2006; CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalizaçãoabstrata de constitucionali<strong>da</strong>de no direito brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 1995.


<strong>da</strong> “interpretação conforme a Constituição” e <strong>da</strong> “declaração parcial de nuli<strong>da</strong>de (ou deinconstitucionali<strong>da</strong>de) sem redução de texto” (art. 28, parágrafo único, Lei 9.868/1999), seja medianteação direta, seja incidentalmente.Quando o processo, respeitante a caso conflitivo concreto, chega ao Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong> emrazão de recurso extraordinário, o controle <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de continua sendo incidental aojulgamento <strong>da</strong> causa. Porém, a tese de que a decisão proferi<strong>da</strong> em razão de recurso extraordinário atingeunicamente os litigantes tem sido mitiga<strong>da</strong> na prática jurisprudencial do Supremo. Recentemente, surgiuno Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong> orientação que nega expressamente a equivalência entre controle incidentale eficácia <strong>da</strong> decisão restrita às partes do processo. Essa tese sustenta que mesmo decisões toma<strong>da</strong>s emsede de recurso extraordinário – ou seja, em controle incidental –,quando objeto de manifestação do Plenário do Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong>, gozam de efeito vinculante emrelação aos órgãos <strong>da</strong> Administração e aos demais órgãos do Poder Judiciário. 98O fato de o controle <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de poder ser feito por qualquer juiz ou tribunal, e nãoapenas por um <strong>Tribunal</strong> Constitucional, confere ao juiz brasileiro uma posição de destaque no civil law.Ao contrário do que ocorre em grande parte do direito continental europeu, em que o controle <strong>da</strong>constitucionali<strong>da</strong>de não é deferido à “magistratura ordinária”, todo e qualquer juiz brasileiro tem o poderdeverde realizar o controle <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de nos casos concretos.Isso confere ao sistema judicial brasileiro uma grande particulari<strong>da</strong>de, na medi<strong>da</strong> em que o juiz deprimeiro grau de jurisdição, ao decidir os casos concretos, tem o poder de negar a lei desconforme àConstituição, assim como de <strong>da</strong>r sentido judicial à lei através <strong>da</strong>s técnicas <strong>da</strong> interpretação conforme e <strong>da</strong>declaração parcial de nuli<strong>da</strong>de, além de suprir a omissão do legislador em face dos direitos fun<strong>da</strong>mentais.Trata-se de um poder de ampla latitude, que faz do juiz brasileiro uma figura que em na<strong>da</strong> se assemelhaao magistrado <strong>da</strong> tradição do civil law.Embora o controle <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de, ain<strong>da</strong> que deferido apenas aos TribunaisConstitucionais, negue o império do legislativo, a autori<strong>da</strong>de dos juízes no sistema de controle difuso émais intensa. Nesse sistema, o “juiz ordinário” tem poder para controlar a constitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei,enquanto no outro não. Como não poderia deixar de ser, há, por detrás desta diferença, um significado.No sistema de controle concentrado, negando-se poder ao juiz ordinário, ain<strong>da</strong> está presente a doutrina<strong>da</strong> supremacia <strong>da</strong> lei ou <strong>da</strong> estrita separação dos poderes e, mais visivelmente, a presunção <strong>da</strong> vali<strong>da</strong>de<strong>da</strong>s leis sobre to<strong>da</strong> a magistratura, com exceção do <strong>Tribunal</strong> Constitucional. 99Quando o controle <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de é deferido ao Supremo <strong>Tribunal</strong> e à magistratura ordinária,a necessi<strong>da</strong>de de um sistema de precedentes é ain<strong>da</strong> mais evidente, já que não está em jogo apenas aunificação <strong>da</strong> interpretação do direito infraconstitucional, mas também a própria afirmação judicial dosignificado <strong>da</strong> Constituição.Nesta dimensão importa advertir que o sistema judicial brasileiro está mais perto do americano doque <strong>da</strong>quele de controle reservado unicamente ao <strong>Tribunal</strong> Constitucional. O sistema judicial americanocertamente teria tido grande dificul<strong>da</strong>de para se desenvolver se o seu juiz ordinário estivesse autorizado adivergir <strong>da</strong> sua Suprema Corte. Na ver<strong>da</strong>de, há absoluta falta de lógica em se <strong>da</strong>r ao juiz ordinário apossibili<strong>da</strong>de de negar o significado atribuído à Constituição, quando se sabe que os Supremos Tribunaistêm, como principal missão, a definição <strong>da</strong> interpretação <strong>da</strong> Constituição. E tal ausência de lógica é ain<strong>da</strong>mais visível num país de sistema misto de controle <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de, como o Brasil, em que se dá98. STF, RE 376.852, rel. Min. Gilmar Mendes, DJU 24.10.2003, p. 65. Em sede doutrinária, ver MENDES, GilmarFerreira. O papel do Senado <strong>Federal</strong> no controle de constitucionali<strong>da</strong>de: um caso clássico de mutaçãoconstitucional. Revista de Informação Legislativa, n. 162, abr.-jun. 2004, p. 164.99.CAPPELLETTI, Mauro. Il controlo giudiziario di costituzionalità..., cit., p. 66 e ss.


ao Supremo <strong>Tribunal</strong> não só a função de <strong>da</strong>r a última palavra sobre a questão constitucional no processoconcreto, mas igualmente a função de realizar o controle abstrato <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei.16. A adoção do sistema de controle difuso <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de e aimprescindibili<strong>da</strong>de do stare decisisO judicial review, antes de afirmar, ao menos explicitamente, o poder de o judiciário controlar aativi<strong>da</strong>de do legislativo, fundou-se na supremacia <strong>da</strong> Constituição sobre as leis, na ideia de que a lei quenega a Constituição é nula, e, mais enfaticamente, na constatação de que o judiciário é o intérprete final<strong>da</strong> Constituição e, assim, por lhe caber pronunciar o sentido <strong>da</strong> lei, também é dele o poder de dizer se a leié contrária à Carta Magna. 100A partir <strong>da</strong> premissa de que o juiz, para decidir os casos conflitivos, deve analisar a relação <strong>da</strong> leicom a Constituição, entendeu-se que o juiz americano poderia realizar, incidentalmente, o controle <strong>da</strong>constitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s leis. Dessa forma, o poder de afirmação de constitucionali<strong>da</strong>de e deinconstitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei, nos Estados Unidos, sempre esteve nas mãos do juiz do caso concreto.É certo que a doutrina americana tardou a individualizar os precedentes constitucionais – isto é, osprecedentes que tratam de questões constitucionais – diante dos precedentes de common law e deinterpretação legal. 101É provável que isso tenha ocorrido em virtude de a jurisdição constitucionalrepresentar algo absolutamente novo para os juristas <strong>da</strong>s origens do sistema judicial americano. Haviaexperiência com os precedentes de common law, mas não com os precedentes constitucionais. A doutrinaprecisou de tempo – quase um século – para desenvolver uma teoria capaz de esclarecer as relações entreas diferentes espécies de precedentes. 102100. “O conceito de controle judicial [judicial review], de fato, fun<strong>da</strong>menta-se em três bases distintas: (1) que aConstituição vincula to<strong>da</strong>s as partes do governo federal, (2) que ela é assegura<strong>da</strong> pelas Cortes em ações postasdiante dela, e (3) que o judiciário é encarregado <strong>da</strong> interpretação <strong>da</strong> Constituição de forma tão singular quesuas decisões vinculam todos os departamentos do governo. O caso Marbury procura estabelecer os doisprimeiros princípios e apenas pressupõe a existência do terceiro. Os dois primeiros princípios são, na ver<strong>da</strong>de,histórica e logicamente mais fáceis de demonstração que o terceiro”. (No original: “The concept of judicialreview really rests upon three separate bases: (1) that the Constitution binds all parts of the federalgovernment, (2) that it is enforceable by the Courts in actions before it, and (3) that the judiciary is chargedwith interpreting the Constitution in a unique manner so that its rulings are binding on all departments of thegovernment Marbury seeks to establish the first two of these principles and only implies the existence of thethird. The first two principles are, in fact, both historically and logically easier to prove than the third”)(NOWAK, John E.; ROTUNDA, Ronald D. Principles of constitutional law. St. Paul: Thomson West, 2008. p. 8).101. Ver GERHARDT, Michael J. The power of precedent. New York: Oxford University Press, 2008.102. “É plausível que a reticência sobre a proprie<strong>da</strong>de do julgamento constitucional analogizante [analogizingconstitutional adjudication], no common law dos fins do século XVIII e começo do século XIX, possa seratribuí<strong>da</strong> ao fato de a jurisdição constitucional ser nova para os autores. Antes <strong>da</strong> elaboração e ratificação <strong>da</strong>Constituição, os americanos tinham pouca, se alguma, experiência significativa com a jurisdiçãoconstitucional. Os autores e ratificadores tiveram uma experiência originária com os precedentes do commonlaw, porém não com os de natureza constitucional; eles não possuíam precedentes para li<strong>da</strong>r com precedentesconstitucionais. Consequentemente, os advogados e juristas americanos precisaram de tempo – quase umséculo – para desenvolver uma doutrina coerente a fim de eluci<strong>da</strong>r as relações entre os diferentes tipos deprecedentes no sistema legal” (No original: “It is plausible that the reticence about the propriety of analogizingconstitutional adjudication to the common law in the late 18th and early 19th century might be attributable tothe fact that constitutional adjudication was novel to the Framers. Prior to the drafting and ratification of theConstitution, American had little, if any, meaningful experience with constitutional adjudication. The Framersand Ratifiers had firsthand experience with common law precedents, but not with constitutional ones; they had


Não obstante, o stare decisis também se impôs diante dos precedentes constitucionais. 103 Aliás, nãohaveria sentido que, em um sistema fun<strong>da</strong>do no direito à igual<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s decisões, na segurança jurídica ena previsibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s decisões judiciais, 104 os precedentes constitucionais não fossem respeitados. 105É intuitivo que, num sistema que ignora o precedente obrigatório, não há racionali<strong>da</strong>de em <strong>da</strong>r atodo e qualquer juiz o poder de controlar a constitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei. Como corretamente adverteCappelletti, a introdução no civil law do método americano de controle de constitucionali<strong>da</strong>de conduziriaà consequência de que uma lei poderia não ser aplica<strong>da</strong> por alguns juízes e tribunais que a entendesseminconstitucional, mas, no mesmo instante e época, ser aplica<strong>da</strong> por outros juízes e tribunais que ajulgassem constitucional. Ademais – diz o professor italiano –, na<strong>da</strong> impediria que o juiz que aplicassedetermina<strong>da</strong> lei não a considerasse no dia seguinte ou vice-versa, ou, ain<strong>da</strong>, que se formassem ver<strong>da</strong>deirasfacções jurisprudenciais nos diferentes graus de jurisdição, simplesmente por uma visão distinta dosórgãos jurisdicionais inferiores, em geral compostos de juízes mais jovens e, assim, mais propensos a veruma lei como inconstitucional, exatamente como aconteceu na Itália no período entre 1948 e 1956.Demonstra Cappelletti que, desta situação, poderia advir uma grave situação de incerteza jurídica e deconflito entre órgãos do judiciário. 106Além dessas obvie<strong>da</strong>des – que parecem se tornar dignas de nota apenas quando afirma<strong>da</strong>s por umjurista do porte de Cappelletti –, não há como se esquecer <strong>da</strong> falta de racionali<strong>da</strong>de em obrigar alguém apropor uma ação para se livrar dos efeitos de uma lei que, em inúmeras oportuni<strong>da</strong>des, já foi afirma<strong>da</strong>inconstitucional pelo judiciário. Note-se que o sistema que admite decisões contrastantes estimula alitigiosi<strong>da</strong>de e incentiva a propositura de ações, pouco importando se o interesse <strong>da</strong> parte é aconstitucionali<strong>da</strong>de ou a inconstitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei. Ou seja, a ausência de previsibili<strong>da</strong>de, comoconsequência <strong>da</strong> falta de vinculação aos precedentes, conspira contra a racionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> distribuição <strong>da</strong>justiça e contra a efetivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> jurisdição.Este momento, contudo, não se presta ao destaque <strong>da</strong>s várias razões que apontam para a contradiçãoentre o controle difuso <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de e a ausência de precedentes constitucionais de cunhoobrigatório. É aqui suficiente sublinhar a autori<strong>da</strong>de de Cappelletti para demonstrar que o modelo deno precedent for handling constitutional precedents. Consequently, American lawyers and jurists may haveneeded time – almost a century – to develop a coherent doctrine to clarify the relationships among the differentkinds of precedents in the legal system”) (idem, p. 48-49).103. No caso Cooper v. Aaron, em 1958, decidiu-se que “a interpretação <strong>da</strong> 14.ª Emen<strong>da</strong> anuncia<strong>da</strong> por esta Corteno caso Brown é lei suprema do país, e o art. VI <strong>da</strong> Constituição faz com que esta decisão tenha efeitovinculante (binding effect) sobre os Estados”. (No original: “It follows that the interpretation of the FourteenthAmendment enunciated by this Court in the Brown case is the supreme law of the land, and Art. VI of theConstitution makes it of binding effect on the States” – Cooper v. Aaron, 358 U.S. 1, 18, 1958). Aí se fezpresente a ideia de decisão obrigatória e vinculante, binding para todos os demais órgãos do Poder Judiciário epara a Administração Pública, que passou a ser conheci<strong>da</strong> como stare decisis em sentido vertical.104. EISENBERG, Melvin. Op. cit., p. 42 e ss.105. Nos Estados Unidos é inadmissível que um órgão jurisdicional inferior desobedeça àquilo que a SupremaCorte já afirmou ser o direito. Como recentemente afirmou o Justice Kennedy, ao decidir o caso Lawrence v.Texas, “a doutrina do stare decisis é essencial para o respeito devido aos julgamentos <strong>da</strong> Corte e para aestabili<strong>da</strong>de do direito” (No original: “The doctrine of stare decisis is essential to the respect accorded to thejudgments of the Court and to the stability of the law” – Lawrence v. Texas, 559 U.S. 558, 577, 2003).106. CAPPELLETTI, Mauro. Il controlo giudiziario di costituzionalità..., cit., p. 62 e ss.


controle difuso não se a<strong>da</strong>pta ao civil law, ou, mais precisamente, ao sistema que nega a importância derespeito aos precedentes.Que dizer, então, do sistema brasileiro, em que se misturam os controles concentrado e difuso <strong>da</strong>constitucionali<strong>da</strong>de? Nos países que não adotam o stare decisis, a saí<strong>da</strong> racional para o controle <strong>da</strong>constitucionali<strong>da</strong>de apenas pode estar no controle concentrado, adotando-se o modelo de decisão únicacom eficácia erga omnes. O controle difuso, destituído de decisões com eficácia vinculante, não éadequado.Porém, preferindo-se apostar no controle difuso – diante <strong>da</strong> sua superiori<strong>da</strong>de diante do controleconcentrado, particularmente em relação ao Brasil –, torna-se inevitável adotar um sistema de precedentesconstitucionais de natureza obrigatória. 107 O sistema de súmulas vinculantes, instituído pela EC 45/2004,constituiu sinal claro neste sentido - desde que compreendido de forma adequa<strong>da</strong> -, embora normas comoa do parágrafo único do art. 481 do CPC – instituí<strong>da</strong> pela Lei 9.756/1998 – já apontassem para anecessi<strong>da</strong>de de vinculação dos tribunais inferiores. Essa Emen<strong>da</strong> incluiu no texto constitucional o art.103-A, que estabelece a possibili<strong>da</strong>de de o Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong> editar súmula com caráterobrigatório e vinculante para todo o Poder Judiciário e, ain<strong>da</strong>, para a Administração Pública direta eindireta, em to<strong>da</strong>s as suas esferas. Nos termos desta nova norma constitucional, “o Supremo <strong>Tribunal</strong><strong>Federal</strong> poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, apósreitera<strong>da</strong>s decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação naimprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e àadministração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder àsua revisão ou cancelamento, na forma estabeleci<strong>da</strong> em lei”.Na ver<strong>da</strong>de, o sistema de súmulas, como única e indispensável forma para a vinculação dos juízes, écontraditório com o fun<strong>da</strong>mento que, embora não explícito, justifica o respeito obrigatório aosprecedentes constitucionais. O que justifica o respeito aos precedentes é a igual<strong>da</strong>de, a segurança jurídicae a previsibili<strong>da</strong>de.De modo que, em princípio, uma simples decisão toma<strong>da</strong> pelo Pleno do Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong>,não importa a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> maioria obti<strong>da</strong>, não pode deixar de vincular o próprio <strong>Tribunal</strong> e os demaistribunais e juízes. Não há razão lógica para se exigirem decisões reitera<strong>da</strong>s, a menos que se parta <strong>da</strong>premissa de que o Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong> não se importa com a força de ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s suas decisões esupõe não ter responsabili<strong>da</strong>de perante os casos futuros. 108 Tal premissa, ain<strong>da</strong> que pudesse ser váli<strong>da</strong>107. Segundo Cappelletti, o stare decisis acaba conferindo à decisão de inconstitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei, ain<strong>da</strong> queindiretamente, eficácia erga omnes. Fala-se, neste sentido, numa ver<strong>da</strong>deira transformação <strong>da</strong> decisão, queseria simples cognitio incidentalis de inconstitucionali<strong>da</strong>de com eficácia restrita ao caso concreto empronunciamento dotado de eficácia erga omnes (CAPPELLETTI, Mauro. Il controlo giudiziario dicostituzionalità..., cit., p. 64). Embora a afirmação de Cappelletti deva ser vista com reservas, pois há diferençaentre eficácia erga omnes e eficácia vinculante, é ela digna de nota por significar a necessi<strong>da</strong>de de vincular osjuízes às decisões de inconstitucionali<strong>da</strong>de proferi<strong>da</strong>s pelo Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong> no âmbito do controledifuso.108. “Um argumento a partir do precedente parece, a princípio, olhar para trás. A perspectiva tradicional sobre oprecedente, tanto dentro, como fora, <strong>da</strong> lei, tem então focado no uso de precedentes de ontem, nas decisões dehoje. Mas de maneira tão ou mais importante, um argumento a partir do precedente olha também para frente,pedindo-nos que observemos as decisões atuais como precedente para as autori<strong>da</strong>des decisórias[decisionmakers] de amanhã. Hoje não é tão somente o amanhã de ontem; é também o ontem de amanhã. Umsistema de precedente, portanto, implica a responsabili<strong>da</strong>de especial que acompanha o poder de restringir[commit] o futuro antes mesmo de chegarmos lá” (No original: “An argument from precedent seems at first tolook backward. The traditional perspective on precedent, both inside and outside of law, has therefore focusedon the use of yester<strong>da</strong>y’s precedents in to<strong>da</strong>y’s decisions. But in equally if not more important way, anargument from precedent looks forward as well, asking us to view to<strong>da</strong>y’s decision as a precedent fortomorrow’s decisionmakers. To<strong>da</strong>y is not only yester<strong>da</strong>y’s tomorrow; it is also tomorrow’s yester<strong>da</strong>y. A


dentro de um sistema puro de civil law, é incompatível com um sistema estruturado sob o controle difuso<strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de, que, necessariamente, deve contar com uma Corte superior capaz de fazerprevalecer as suas decisões sobre si e os demais juízes para imprimir força à Constituição e coerência àordem jurídica, bem como <strong>da</strong>r segurança jurídica e previsibili<strong>da</strong>de aos jurisdicionados.Ademais, decisão toma<strong>da</strong> por maioria do Pleno do Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong>, ain<strong>da</strong> que não de doisterços, seguramente constitui decisão que não pode deixar de se impor a ele próprio e aos demais juízes.A circunstância de uma Suprema Corte poder revogar os seus próprios precedentes, comocostumeiramente acontece nos Estados Unidos, na<strong>da</strong> tem a ver com o fato de o precedente ser oriundo decaso que se repetiu ou de a decisão ter sido toma<strong>da</strong> por maioria simples ou por maioria qualifica<strong>da</strong>. O quepode justificar a revogação de um precedente, por exemplo, é a mutação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de social que a Corteconsiderou ao decidir. 109A compreensão <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s decisões do Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong> vincular opróprio tribunal e os demais juízes advém <strong>da</strong> premência de se <strong>da</strong>r sentido à função <strong>da</strong> mais alta Cortebrasileira diante do sistema de controle de constitucionali<strong>da</strong>de. Não há racionali<strong>da</strong>de em supor que apenasalgumas <strong>da</strong>s suas decisões, toma<strong>da</strong>s no controle difuso, merecem ser respeita<strong>da</strong>s pelo próprio tribunal epelos demais juízes, como se o jurisdicionado não devesse confiar nas decisões do Supremo antes deserem sumula<strong>da</strong>s. Ora, isso seria o mesmo que supor que a segurança jurídica e a previsibili<strong>da</strong>dedependeriam <strong>da</strong>s súmulas e, por consequência, que o próprio Poder Judiciário, diante do sistema ao qual ésubmetido, não teria capaci<strong>da</strong>de de responder aos seus deveres e aos direitos fun<strong>da</strong>mentais do ci<strong>da</strong>dãoperante a justiça.Perante o Pleno do Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong>, são praticamente idênticos os procedimentos para adeclaração de inconstitucionali<strong>da</strong>de nos modelos concentrado e difuso, não havendo qualquer razão paradiscriminar os efeitos <strong>da</strong>s decisões toma<strong>da</strong>s no recurso extraordinário em face <strong>da</strong>s decisões toma<strong>da</strong>s nocontrole concentrado. 110 Nessa perspectiva, escreve o Ministro Gilmar Mendes que “a natureza idênticado controle de constitucionali<strong>da</strong>de, quanto às suas finali<strong>da</strong>des e aos procedimentos comuns dominantessystem of precedent therefore involves the special responsibility accompanying the power to commit the futurebefore we get there”) (SCHAUER, Frederick. Precedent. Stanford Law Review, vol. 39, n. 3, fev. 1987, p. 571-605). “Como já observei em outra oportuni<strong>da</strong>de, a exigência de justiça formal tem tanto uma utilizaçãoprospectiva, como retrospectiva” (No original: “As I have remarked elsewhere, the requirement of formaljustice has a forward-looking as well as a backward-looking application”) (MACCORMICK, Neil. Why caseshave rationes…, cit., p. 161). Ver MACCORMICK, Neil. Legal reasoning and legal theory. Oxford: ClarendonPress, 1987. p. 75 e ss.109. Ver GERHARDT, Michael. Op. cit., p. 17 e ss.110. O efeito vinculante <strong>da</strong>s decisões do Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong>, no exercício de jurisdição constitucional, éfenômeno contemporâneo ao enriquecimento do sistema brasileiro de controle <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de, com onotório ganho de importância do controle concentrado e abstrato. O efeito vinculante foi consagrado pela EC3/1993, que introduziu a ação declaratória de constitucionali<strong>da</strong>de (ADC). É níti<strong>da</strong> a inspiração no modelotedesco. A jurisprudência do Supremo evoluiu no sentido de também conferir efeito vinculante às decisõesproferi<strong>da</strong>s em ação direta de inconstitucionali<strong>da</strong>de (ADIn). Completou-se o sistema do controle pela via <strong>da</strong>ação com a regulamentação <strong>da</strong> arguição de descumprimento de preceito fun<strong>da</strong>mental (ADPF). To<strong>da</strong>s estasações, bem como suas liminares, são dota<strong>da</strong>s de efeito vinculante. Ver MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdiçãoconstitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998; MENDES, Gilmar Ferreira. O efeito vinculante <strong>da</strong>s decisões doSupremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong> nos processos de controle abstrato de normas. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 43,jul. 2000. Disponível em: . Acesso em: 16 out. 2009.


para os modelos difuso e concentrado, não mais parece legitimar a distinção quanto aos efeitos <strong>da</strong>sdecisões proferi<strong>da</strong>s no controle direto e no controle incidental”. 111Em acórdão paradigmático, relatado pelo Ministro Sepúlve<strong>da</strong> Pertence, entendeu a 1.ª Turma doSupremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong> que a decisão plenária, “declaratória <strong>da</strong> inconstitucionali<strong>da</strong>de de norma, postoque incidente, (...) elide a presunção de sua constitucionali<strong>da</strong>de; a partir <strong>da</strong>í, podem os órgãos parciais dosoutros tribunais acolhê-la para fun<strong>da</strong>r as decisões de casos concretos ulteriores, prescindindo de submetera questão de constitucionali<strong>da</strong>de ao seu próprio plenário”. 112Esse entendimento do Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong>, evidenciando a tendência de enxergar eficáciavinculante nas decisões toma<strong>da</strong>s em recurso extraordinário, só foi transformado em direito positivo com aLei 9.756/1998, que inseriu parágrafo único no art. 481 do CPC. A respeito, advertiu o Ministro GilmarMendes, novamente em sede doutrinária, estar-se diante de uma “evolução no sistema de controle deconstitucionali<strong>da</strong>de brasileiro, que passa a equiparar, praticamente, os efeitos <strong>da</strong>s decisões proferi<strong>da</strong>s nosprocessos de controle abstrato e concreto”. 113Há irreversível processo de objetivação do controle concreto <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de no âmbito <strong>da</strong>mais alta corte brasileira. Na Rcl 2.986, afirmou-se que “o Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong>, em recentesjulgamentos, vem <strong>da</strong>ndo mostras de que o papel do recurso extraordinário na jurisdição constitucionalestá em processo de redefinição, de modo a conferir maior efetivi<strong>da</strong>de às decisões. Recordo a discussãoque se travou na MC no RE 376.852, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes (Plenário, por maioria, DJ27.03.2003). Naquela ocasião, asseverou Sua Excelência o caráter objetivo que a evolução legislativavem emprestando ao recurso extraordinário, como medi<strong>da</strong> racionalizadora de efetiva prestaçãojurisdicional”. 114 No RE 376.852/SC, decidiu-se que “esse novo modelo legal traduz, sem dúvi<strong>da</strong>, umavanço na concepção vetusta que caracteriza o recurso extraordinário entre nós. (...) Trata-se deorientação que os modernos sistemas de Corte Constitucional vêm conferindo ao recurso de amparo e aorecursoconstitucional(Verfassungsbeschwerde). Nesse sentido, destaca-se a observação de Häberle segundo a qual ‘a função <strong>da</strong>Constituição na proteção dos direitos individuais (subjetivos) é apenas uma faceta do recurso de amparo’,dotado de uma ‘dupla função’, subjetiva e objetiva, ‘consistindo esta última em assegurar o DireitoConstitucional objetivo’ (Peter Häberle, O recurso de amparo no sistema germânico, Sub Judice 20/21,2001, p. 33, 49). Essa orientação há muito mostra-se dominante também no direito americano”. 115Note-se que o Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong> afirma textualmente que a atribuição de efeito vinculante àdecisão toma<strong>da</strong> em controle difuso é dominante, há muito, também no direito americano. 116 É precisosublinhar que o direito estadunidense acolheu esta ideia em virtude de adotar o sistema de controle difuso<strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de, enquanto o sistema alemão, embora tenha chegado a resultado práticosemelhante, 117assim se posicionou por <strong>da</strong>r ao juiz ordinário que se depara com lei que reputa111. MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado <strong>Federal</strong> no controle de constitucionali<strong>da</strong>de..., cit., p. 164.112. STF, 1.ª T., RE 191.898/RS, rel. Min. Sepúlve<strong>da</strong> Pertence, DJU 22.08.1997, p. 38.781.113. MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado <strong>Federal</strong> no controle de constitucionali<strong>da</strong>de..., cit., p. 157.114. STF, Informativo 379, 7-11.03.2005.115. STF, RE 376.852, rel. Min. Gilmar Mendes, DJU 24.10.2003, p. 65.116. Idem.117. Afirmando-a no § 31,1, <strong>da</strong> Lei Orgânica do BVerfG: “As decisões do <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong> Constitucionalvinculam os órgãos constitucionais federais e estaduais, bem como todos os Tribunais e autori<strong>da</strong>des


inconstitucional o poder-dever de submeter a questão ao <strong>Tribunal</strong> Constitucional, cuja decisão temeficácia vinculante.Portanto, a eficácia vinculante própria ao direito alemão não se destina a impedir o juiz de decidirde forma contrária, mas simplesmente o desobriga de valorar a questão ou de remetê-la ao <strong>Tribunal</strong>Constitucional. Quer dizer que, no Brasil, onde se adota o sistema difuso de controle <strong>da</strong>constitucionali<strong>da</strong>de, é necessário impedir o juiz de decidir de modo contrário ao tribunal. 118O fato de o juiz ordinário ter o poder-dever de controlar a constitucionali<strong>da</strong>de obviamente nãosignifica que ele não deve respeito às decisões do Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong>. Este respeito decorrelogicamente <strong>da</strong> adoção do sistema de controle difuso e <strong>da</strong> atribuição ao Supremo do dever de <strong>da</strong>r a últimae definitiva palavra acerca <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei federal. Quando se tem claro que a decisão é ummero produto do sistema judicial, torna-se pouco mais do que absurdo admitir a possibili<strong>da</strong>de de o juizordinário contrariar as decisões do Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong>.Registre-se que a eficácia vinculante, deriva<strong>da</strong> <strong>da</strong>s decisões em controle difuso, fun<strong>da</strong>-se unicamentena força peculiar dessas decisões, oriun<strong>da</strong> do local privilegiado em que o Supremo está localizado nosistema brasileiro de distribuição de justiça. Assim, a eficácia vinculante <strong>da</strong>s decisões do Supremo na<strong>da</strong>tem a ver com comunicação ao Senado, certamente ilógica e desnecessária para tal fim. Ora, no controledifuso, a lei declara<strong>da</strong> inconstitucional continua a existir, ain<strong>da</strong> que em estado latente. A comunicação éfeita apenas para permitir ao Senado, em concor<strong>da</strong>ndo com o Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong>, suspender aexecução do ato normativo. A não concordância <strong>da</strong>quele em na<strong>da</strong> interfere sobre a eficácia vinculante <strong>da</strong>decisão deste. Trata-se de planos distintos. Lembre-se que, nos Estados Unidos, existem casos –certamente excepcionais – em que a Suprema Corte “ressuscita” a lei que estava apenas on the books, ouque, mais precisamente, era vista como dead law, exatamente por já ter sido declara<strong>da</strong> inconstitucional.De qualquer forma, há de se responder à pergunta – que não poderia deixar de ser feita – a respeito<strong>da</strong> compatibili<strong>da</strong>de entre a súmula vinculante e a decisão com eficácia vinculante. Melhor dizendo, épreciso esclarecer a razão para se ter um procedimento específico para a criação <strong>da</strong> súmula vinculantediante <strong>da</strong> eficácia, de igual teor, <strong>da</strong>s decisões proferi<strong>da</strong>s pelo Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong> em sede decontrole difuso.O procedimento para criação <strong>da</strong> súmula esconde não apenas uma questão não percebi<strong>da</strong> peladoutrina brasileira, mas, antes de tudo, uma temática nunca estu<strong>da</strong><strong>da</strong> pela doutrina de civil law. Comefeito, essa tradição sempre se preocupou com a interpretação <strong>da</strong> lei, porém nunca dedicou atenção àcompreensão e à interpretação dos precedentes.administrativas” (“Die Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts binden die Verfassungsorgane desBundes und der Länder sowie alle Gerichte und Behörden”).118. “No sistema concentrado, a sentença que aplicou lei posteriormente declara<strong>da</strong> inconstitucional, quandosustenta<strong>da</strong> apenas na lei assim declara<strong>da</strong> pelo <strong>Tribunal</strong> Constitucional, faz surgir uma coisa julga<strong>da</strong>inconstitucional. Mas o mesmo evidentemente não ocorre no Brasil, em que o juiz de primeiro grau tem odever de tratar <strong>da</strong> questão constitucional. No sistema em que todo e qualquer juiz tem o dever-poder decontrolar a inconstitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei, nulificar a sentença transita<strong>da</strong> em julgado que se fundou em leiposteriormente declara<strong>da</strong> inconstitucional pelo Supremo <strong>Tribunal</strong> significa retirar do juiz ordinário opróprio poder de realizar o controle difuso <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de. A tese <strong>da</strong> retroativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> decisão deinconstitucionali<strong>da</strong>de sobre a coisa julga<strong>da</strong> é completamente incompatível com o sistema difuso de controle<strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de. (...) Note-se que isso equivaleria à nulificação do juízo de constitucionali<strong>da</strong>de e nãoapenas à nulificação <strong>da</strong> lei declara<strong>da</strong> inconstitucional. Impedir que a lei declara<strong>da</strong> inconstitucional produzaefeitos é muito diferente do que negar efeitos a um juízo de constitucionali<strong>da</strong>de, legitimado pela própriaConstituição” (MARINONI, <strong>Luiz</strong> <strong>Guilherme</strong>. Coisa julga<strong>da</strong> inconstitucional. São Paulo: Ed. RT, 2008. p. 21-22 e 32).


Ao se pensar em decisão com eficácia vinculante, surge naturalmente a curiosi<strong>da</strong>de de se saber oque, diante do precedente, realmente vincula, assim como quem tem autori<strong>da</strong>de para identificar a porçãodo precedente hábil a produzir o efeito vinculante. Isso se torna fun<strong>da</strong>mental quando o precedente não éclaro ou há dificul<strong>da</strong>de em identificar a tese que efetivamente foi proclama<strong>da</strong> pelo tribunal para a solução<strong>da</strong> questão constitucional.A ratio decidendi nem sempre é imediata e facilmente extraível de um precedente, e, em outrassituações, pode exigir a consideração de várias decisões para poder ser precisa<strong>da</strong>. Nestas hipóteses éimprescindível uma decisão que, sobrepondo-se às decisões já toma<strong>da</strong>s a respeito do caso, individualize aratio decidendi, até então obscura e indecifrável. Foi para tais situações que o constituinte derivadoestabeleceu, no art. 103-A <strong>da</strong> CF, o procedimento para a criação de súmula com efeito vinculante.Quando a ratio decidendi ressai de forma cristalina <strong>da</strong> decisão, a súmula é absolutamente desnecessária.Mas, quando existem decisões de natureza complexa e obscura, deve-se editar súmula para restarprecisa<strong>da</strong> a ratio decidendi. 119Não obstante, decide-se muitas vezes pela edição de súmula vinculante para não pairar dúvi<strong>da</strong> acerca<strong>da</strong> eficácia vinculante que deflui de ratio decidendi claramente delinea<strong>da</strong> em recurso extraordinário.Reprise-se: a súmula vinculante não seria necessária, mas, porque não há pleno consenso de que asdecisões toma<strong>da</strong>s em recurso extraordinário têm eficácia vinculante, encaminha-se a questão para aedição de súmula vinculante para não sobrar dúvi<strong>da</strong> acerca <strong>da</strong> obrigação de respeito à clara ratiodecidendi elabora<strong>da</strong> no recurso extraordinário.17. O juiz diante dos conceitos indeterminados e <strong>da</strong>s regras abertasConsiderando-se o juiz <strong>da</strong> tradição do civil law, isto é, aquele desejado pela Revolução Francesa,torna-se inevitável afastá-lo do julgador que decide com base em conceitos indeterminados e em regrasabertas. Não há dúvi<strong>da</strong> que o juiz que deve decidir pronunciando as palavras <strong>da</strong> lei – como queriaMontesquieu – não pode se confundir com aquele que pode <strong>da</strong>r significado a conceito indeterminado ouconcretizar regra aberta, adotando a solução que lhe parecer oportuna e adequa<strong>da</strong> ao caso concreto.Como advertem Merrymann e Pérez-Perdomo, não se exige muita imaginação para perceber quecláusulas como a <strong>da</strong> boa-fé dão ao juiz grande porção de poder equitativo indefinido, deixando-o quaseque sem responsabili<strong>da</strong>de diante <strong>da</strong> formulação legislativa. 120É interessante verificar, nesta dimensão, o que se passa no processo civil contemporâneo. Na épocado Estado liberal clássico, vigorava no processo civil o princípio <strong>da</strong> tipici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas processuais.Tratava-se, nas palavras de Giuseppe Chioven<strong>da</strong>, de uma garantia de liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s partes contra a119. Sobre o conceito de ratio decidendi, ver MARSHALL, Geoffrey. What is binding in a precedent. In:MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. Interpreting precedents: a comparative study. London: Dartmouth,1997. p. 503 e ss.; STONE, Julius. Precedent and law: the dynamics of common law growth. Sydney:Butterworths, 1985. p. 123 e ss.120. “É ver<strong>da</strong>de que o legislador agiu e que sua ação é expressa como uma regra de direito material, mas os termossão tão amplos (‘boa-fé’, que não é defini<strong>da</strong> no código, possui uma área quase ilimita<strong>da</strong> de potencialaplicação) que o juiz quase não é condicionado pela formulação legislativa. O que aquela norma significadepende do uso que o juiz dela faz no caso concreto. O que os juízes fazem com ela nos casos concretos setorna o direito factual [law in fact], apesar de não teórico [law in theory]” (No original: “It is true that thelegislature has acted and that its action is expressed as a substantive rule of law, but the terms are so broad(‘good faith’, which is not defined in the code, has an almost unlimited area of potential application) that thejudge is hardly constrained by the legislative formulation. What that stature means depends on what judges dowith it in concrete cases. What they do with it in concrete cases becomes the law in fact, although not intheory”) (MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. Op. cit., p. 53).


possibili<strong>da</strong>de de arbítrio do juiz. 121 Medindo-se o poder de atuação do juiz pela lei, eram garanti<strong>da</strong>s asformas mediante as quais a ativi<strong>da</strong>de jurisdicional poderia ser exerci<strong>da</strong>. Deste modo, garantia-se aolitigante que o juiz não ultrapassaria os limites <strong>da</strong>s formas processuais, inclusive dos meios executivostipificados na lei. Havia, então, níti<strong>da</strong> relação entre a lei, a liber<strong>da</strong>de e a contenção do poder judicial.Porém, o passar do tempo mostrou a necessi<strong>da</strong>de de munir os litigantes e o juiz de uma maiorlatitude de poder, seja para permitir que os jurisdicionados pudessem utilizar o processo de acordo com asnovas situações de direito material e com as reali<strong>da</strong>des concretas, seja para <strong>da</strong>r ao magistrado a efetivapossibili<strong>da</strong>de de tutelá-las. Esta necessi<strong>da</strong>de levou o legislador não só a criar uma série de institutosdependentes do preenchimento de conceitos indeterminados – como a tutela antecipatória fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em“abuso de direito de defesa” (art. 273, II, CPC) –, admitindo o seu uso na generali<strong>da</strong>de dos casos, mastambém a fixar normas processuais abertas, como a do art. 461 do CPC, que permite a construção domodelo processual adequado à natureza <strong>da</strong> tutela específica almeja<strong>da</strong>.Essas regras se fun<strong>da</strong>m na compreensão <strong>da</strong> ideia de que a lei não pode vincular as técnicasprocessuais às necessi<strong>da</strong>des de direito material nem desenhar tantos procedimentos quantas forem assituações substanciais carentes de tutela. Além disso, o legislador não pode antever to<strong>da</strong>s as necessi<strong>da</strong>desde direito material, uma vez que estas não apenas se transformam diariamente, como assumem contornosvariados conforme os casos concretos. Assim sendo, chegou-se naturalmente à necessi<strong>da</strong>de de normasdestina<strong>da</strong>s a <strong>da</strong>r aos jurisdicionados e ao juiz o poder de identificar, a partir de conceito jurídicoindeterminado, quando a técnica processual, já defini<strong>da</strong> na lei, pode ser utiliza<strong>da</strong>, bem como o poder deindividualizar, a partir <strong>da</strong>s circunstâncias do caso, o instrumento processual adequado à tutela do direitomaterial.Nesses casos, a concretização <strong>da</strong> norma deve tomar em conta as necessi<strong>da</strong>des de direito materialrevela<strong>da</strong>s no caso, mas a sua instituição se fun<strong>da</strong> no direito fun<strong>da</strong>mental à tutela jurisdicional efetiva. Olegislador atua porque é ciente de que a jurisdição não pode <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong>s varia<strong>da</strong>s situações concretassem a outorga de maior poder e mobili<strong>da</strong>de, ficando o autor incumbido <strong>da</strong> identificação <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>desconcretas para modelar a ação processual e o juiz investido do poder-dever de, mediante argumentaçãoprópria e expressa na fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong> sua decisão, preencher os conceitos jurídicos indeterminados ouindividualizar a técnica processual capaz de lhe permitir a efetiva tutela do direito material.É interessante notar que, nessas hipóteses, o próprio legislador reconhece a sua impotência pararegular to<strong>da</strong>s as situações concretas e, igualmente, o seu dever de permitir a realização de um direitofun<strong>da</strong>mental, no caso, o direito fun<strong>da</strong>mental à tutela jurisdicional efetiva (art. 5.º, XXXV, CF).De qualquer forma, o que realmente importa neste momento é constatar que o juiz que trabalha comconceitos indeterminados e regras abertas está muito longe <strong>da</strong>quele concebido para unicamente aplicar a lei.Aliás, os próprios doutrinadores do common law reconhecem, quando olham para o civil law, que nasdecisões acerca de matéria constitucional, assim como nas que envolvem a aplicação de cláusulas gerais, emque é frequente a necessi<strong>da</strong>de de <strong>da</strong>r concretude ao significado de conceitos jurídicos, não há sequer comoadmitir a distinção, por alguns realiza<strong>da</strong>, entre precedentes interpretativos e precedentes de solução (quecriam o direito). Alega-se que, nesses casos, a interpretação tem tamanho alcance e é guia<strong>da</strong> por argumentostão frágeis e vagos <strong>da</strong> lei escrita que a decisão poderia ser explica<strong>da</strong> tanto pela teoria interpretativista quanto121. As formas do processo sempre foram vistas como “garantia <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des”. Tal relação foi posta às claraspor Vittorio Denti ao advertir que a antiga concepção burocrática <strong>da</strong> função jurisdicional, marca<strong>da</strong> pelaexcessiva racionalização do exercício dos poderes do juiz, foi a responsável pela ideia de criar um modeloúnico de procedimento. Nessa ocasião, Denti lembrou que Chioven<strong>da</strong>, em uma de suas mais famosasconferências, não apenas sublinhou a necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas como garantia contra a possibili<strong>da</strong>de de arbítriodo juiz, como ain<strong>da</strong> deixou clara “a estreita ligação entre a liber<strong>da</strong>de individual e o rigor <strong>da</strong>s formasprocessuais” (DENTI, Vittorio. Il processo di cognizione nella storia delle riforme. Rivista Trimestrale diDiritto e Procedura Civile, p. 808, 1993; ver CHIOVENDA, Giuseppe. Le forme nella difesa giudiziale deldiritto, 1901).


pela teoria positivista <strong>da</strong> criação judicial do direito. 122 Ou seja, tal decisão judicial poderia ser vista comocriação do direito ou como interpretação judicial do direito.Por isso mesmo, o sistema de precedentes, desnecessário quando o juiz apenas aplica a lei, éindispensável na jurisdição contemporânea, pois fun<strong>da</strong>mental para outorgar segurança à parte e permitir aoadvogado ter consciência de como os juízes estão preenchendo o conceito indeterminado e definindo atécnica processual adequa<strong>da</strong> a certa situação concreta.18. Judge make law e decisão judicial, na ausência de lei, no civil lawNo common law, afirma-se que o juiz, na falta de lei, cria o direito. Porém, o fim deste item não éanalisar se o magistrado, na ausência de regra capaz de regular o caso, cria ou não o direito. Deseja-seapenas demonstrar que a ideia de que o juiz cria o direito, peculiar ao common law, não serve para separaros sistemas contemporâneos compreendidos nas duas tradições, nem muito menos para justificar ainexistência de um sistema de precedentes no direito brasileiro.Na ver<strong>da</strong>de, não há sequer unanimi<strong>da</strong>de, no common law, acerca <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> jurisdição, secriadora de direitos ou não. Ressalte-se que a questão de se os juízes criam direito foi um dos focosprincipais do célebre debate travado entre Herbert Hart – que sustenta o papel criativo <strong>da</strong> jurisdição – eRonald Dworkin – que o nega. 123 Enquanto aquele afirma, sem titubear, que o juiz cria o direito na faltade regra a permitir solução ao caso, 124 este, ao tratar dos “hard cases” no conhecido Taking rightsseriously, argumenta que, “mesmo quando nenhuma regra regula o caso, uma <strong>da</strong>s partes pode, ain<strong>da</strong>assim, ter o direito de ganhar a causa”, e “o juiz continua tendo o dever, mesmo nos casos difíceis, dedescobrir quais são os direitos <strong>da</strong>s partes, e não de inventar novos direitos retroativamente”. 125No importante livro Interpreting precedents, em que se faz amplo debate comparatístico sobre osprecedentes no common law e no civil law, encontra-se capítulo intitulado Rationales for precedent,protagonizado por Bankowski, MacCormick, Morawski e Ruiz Miguel. Estes juristas, ao se depararemcom a influência <strong>da</strong>s decisões <strong>da</strong> Corte Europeia de Justiça em face <strong>da</strong>s Cortes dos Estados-membros,inclusive sobre os seus Tribunais Constitucionais, observam que, nas decisões relativas a questõesconstitucionais e cláusulas gerais, a prestação judicial opera construindo princípios e <strong>da</strong>ndo-lhes efeitosconcretos, quando se torna artificial, ou até mesmo fictício, tentar desenhar uma linha demarcatória entreos precedentes interpretativos e os de criação do direito. 126O insight do grupo de juristas, aliado à disputa teórica entre Hart e Dworkin, demonstra que aevolução do civil law, certamente em virtude do impacto do neoconstitucionalismo, aproximousensivelmente o que antes poderia ser visto como criação judicial do direito e interpretação judicial.No direito nacional contemporâneo, no caso em que o juiz interpreta a lei de acordo com aConstituição ou se vale <strong>da</strong>s técnicas <strong>da</strong> interpretação conforme e <strong>da</strong> declaração parcial de nuli<strong>da</strong>de semredução de texto, certamente não há como sustentar que a jurisdição atua a vontade <strong>da</strong> lei, nos termos122. Ver BANKOWSKI, Zenon; MACCORMICK, Neil; MORAWSKI, Lech; MIGUEL, Alfonso Ruiz. Op. cit., p. 485.123. Ver, a esse respeito, HART, Herbert L. A. Op. cit. (esp. Formalism and rule-scepticism e Postscript); DWORKIN,Ronald. Taking rights seriously, cit. (esp. The model of rules e Hard cases).124. HART, Herbert L. A. Op. cit., p. 135.125. DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously, cit., p. 12 e ss.126. BANKOWSKI, Zenon; MACCORMICK, Neil; MORAWSKI, Lech; MIGUEL, Alfonso Ruiz. Op. cit., p. 485.


propostos por Chioven<strong>da</strong>. 127 Também não é cabível dizer que há “criação <strong>da</strong> norma individual do casoconcreto”, na linha carneluttiana, 128 ao menos quando esse argumento é pensado com base na lógica deque a norma individual (a sentença) deve se fun<strong>da</strong>r em uma norma geral (na norma infraconstitucional),à maneira axiomática.A improprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s teorias chiovendiana e carneluttiana <strong>da</strong> jurisdição se torna ain<strong>da</strong> mais marcantediante <strong>da</strong> declaração <strong>da</strong> inconstitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei, do controle <strong>da</strong> inconstitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua omissãoe <strong>da</strong> tutela de um direito fun<strong>da</strong>mental mediante o afastamento de outro no caso concreto, quando asentença não afirma positivamente lei ou norma geral alguma. 129Se nas teorias clássicas o juiz apenas declarava a lei ou criava a norma individual a partir <strong>da</strong> normageral, agora ele constrói a norma jurídica a partir <strong>da</strong> interpretação de acordo com a Constituição, docontrole <strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> adoção <strong>da</strong> regra do balanceamento (ou <strong>da</strong> regra <strong>da</strong> proporcionali<strong>da</strong>deem sentido estrito) dos direitos fun<strong>da</strong>mentais no caso concreto.Lembre-se que alguns juristas de civil law, como Eugenio Bulygin – sucessor de Carlos SantiagoNino na cátedra de Filosofia do Direito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Buenos Aires –, sustentam a tese de que osjuízes, em determina<strong>da</strong>s situações excepcionais, criam o direito. 130Bulygin contesta a doutrina de Kelsen, no sentido de que o juiz, ao criar a norma individual docaso concreto, cria o direito. Segundo o professor radicado na Argentina, ain<strong>da</strong> que se aceite a ideia deque o juiz dita a norma individual nos termos kelsenianos, 131 não se pode admitir – na forma como127. A jurisdição, na concepção de Chioven<strong>da</strong>, é uma função volta<strong>da</strong> à atuação <strong>da</strong> vontade concreta <strong>da</strong> lei.Segundo o autor italiano, a jurisdição, no processo deconhecimento, “consiste na substituição definitiva e obrigatória <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de intelectual não só <strong>da</strong>s partes,mas de todos os ci<strong>da</strong>dãos, pela ativi<strong>da</strong>de intelectual do juiz, ao afirmar existente ou não existente umavontade concreta <strong>da</strong> lei em relação às partes”. Chioven<strong>da</strong> chegou a dizer que, como a jurisdição significa aatuação <strong>da</strong> lei, “não pode haver sujeição à jurisdição senão onde pode haver sujeição à lei”. Essa passagem<strong>da</strong> doutrina chiovendiana é bastante expressiva no sentido de que o ver<strong>da</strong>deiro poder estatal estava na lei, ede que a jurisdição somente se manifestava a partir <strong>da</strong> revelação <strong>da</strong> vontade do legislador. Ele é umver<strong>da</strong>deiro adepto <strong>da</strong> doutrina que, inspira<strong>da</strong> no iluminismo e nos valores <strong>da</strong> Revolução Francesa, separavaradicalmente as funções do legislador e do juiz, ou melhor, atribuía ao legislador a criação do direito e aojuiz a sua aplicação (CHIOVENDA, Giuseppe. Ludovico Mortara. Rivista di Diritto Processuale Civile,1937, p. 101; CHIOVENDA, Giuseppe. L’azione nel sistema dei diritti. Saggi di diritto processuale civile,Roma: Foro Italiano, 1930. p. 3 e ss.).128. Para Carnelutti, a sentença cria uma regra ou norma individual, particular para o caso concreto, que passa aintegrar o ordenamento jurídico, enquanto, na teoria de Chioven<strong>da</strong>, a sentença é externa (está fora) aoordenamento jurídico, tendo a função de simplesmente declarar a lei, e não de completar o ordenamentojurídico. A primeira concepção é considera<strong>da</strong> adepta <strong>da</strong> teoria unitária, e a segun<strong>da</strong>, <strong>da</strong> teoria dualista doordenamento jurídico, sendo que essas teorias também são chama<strong>da</strong>s de constitutiva (unitária) edeclaratória (dualista). Contudo, ao individualizar a norma superior, o juiz a declara. Quando torna a normaconcreta, ou compõe a lide no sentido <strong>da</strong> doutrina de Carnelutti, faz apenas um processo de adequação <strong>da</strong>norma – já existente – ao caso concreto (CARNELUTTI, Francesco. Diritto e processo. Napoli: Morano, 1958.p. 18 e ss.).129. Segundo Sérgio Moro, quando é declara<strong>da</strong> a inconstitucionali<strong>da</strong>de de uma lei, o grau de interferência <strong>da</strong>jurisdição sobre o legislativo é maior do que quando se faz o controle <strong>da</strong> inconstitucionali<strong>da</strong>de por omissão nocaso concreto (MORO, Sérgio. Jurisdição constitucional como democracia. São Paulo: Ed. RT, 2004. p. 244).130. BULYGIN, Eugenio. Los jueces crean derecho? cit., p. 8.131. Para Kelsen, todo ato jurídico constitui, em um só tempo, aplicação e criação do direito, com exceção <strong>da</strong>


corriqueiramente se fala – que o juiz aí cria o direito, pois tal norma individual se fun<strong>da</strong> em uma normageral cria<strong>da</strong> pelo legislador. De acordo com seu raciocínio, a conclusão de Kelsen somente estaria certase o juiz criasse a própria norma geral. 132 De fato, Bulygin, na esteira de H. G. Von Wright, adverte que“o que os juízes criam – se é que criam algo – não são normas individuais, senão normas gerais”, ou,melhor dizendo, “eminentemente gerais”. 133Perceba-se, em abono à análise de Bulygin, que Kelsen, quando trata <strong>da</strong> anulação judicial <strong>da</strong> lei emsede de controle abstrato de constitucionali<strong>da</strong>de, afirma que o tribunal constitucional aí atua como“legislador negativo”. Na terminologia kelseniana, essa expressão sustenta, de forma um tanto ambígua,que o controle judicial de constitucionali<strong>da</strong>de não atenta contra a separação de poderes. Após reconhecerque “anular uma lei é estabelecer uma norma geral, porque a anulação de uma lei tem o mesmo caráter degenerali<strong>da</strong>de que sua elaboração, na<strong>da</strong> mais sendo, por assim dizer, que a elaboração com sinal negativo,e, portanto, ela própria uma função legislativa”, Kelsen volta-se à distinção entre a elaboração e a simplesanulação <strong>da</strong>s leis, para concluir que um tribunal constitucional realiza uma ativi<strong>da</strong>de efetivamentejurisdicional: “A anulação de uma lei se produz essencialmente como aplicação <strong>da</strong>s normas <strong>da</strong>Constituição. A livre criação que caracteriza a legislação está aqui quase completamente ausente.Enquanto o legislador só está preso pela Constituição no que concerne a seu procedimento – e, de formatotalmente excepcional, no que concerne ao conteúdo <strong>da</strong>s leis que deve editar, e, mesmo assim, apenaspor princípios ou diretivas gerais –, a ativi<strong>da</strong>de do legislador negativo, <strong>da</strong> jurisdição constitucional, éabsolutamente determina<strong>da</strong> pela Constituição. E é precisamente nisso que a sua função se parece com ade qualquer outro tribunal em geral: ela é principalmente aplicação e somente em pequena medi<strong>da</strong> criaçãodo direito. É, por conseguinte, efetivamente jurisdicional”. Lembre-se que, de acordo com Kelsen, adiferença entre função jurisdicional e função legislativa consiste em que esta cria normas gerais enquantoaquela cria unicamente normas individuais.Frise-se que Bulygin afirma que Kelsen não aceitou a ideia de que o juiz cria a norma geral quandovalora a norma legislativa ou a sua ausência como muito inadequa<strong>da</strong> ou injusta, mas que, neste caso,Kelsen entendeu que o juiz aplica a norma geral que lhe parece justa e adequa<strong>da</strong>. 134 Embora o eminentejurista austríaco enten<strong>da</strong> que a norma individual (a sentença) somente pode ser justifica<strong>da</strong> por uma normageral, ele não chega a admitir, de forma clara e explícita, que o juiz pode criá-la quando a norma geral éinjusta, tanto é que fala, nesta situação, em “aplicação de norma geral não positiva”.Constituição e <strong>da</strong> execução <strong>da</strong> sentença, pois a primeira seria pura criação e a segun<strong>da</strong> pura aplicação dodireito. Por isso, o legislador aplica a Constituição e cria a norma geral e o juiz aplica a norma geral e criaa norma individual. A teoria de Kelsen afirma a ideia de que to<strong>da</strong> norma tem como base uma normasuperior, até se chegar à norma fun<strong>da</strong>mental, que estaria no ápice do ordenamento. De modo que a normaindividual, fixa<strong>da</strong> na sentença, liga-se necessariamente a uma norma superior. A norma individual fariaparte do ordenamento, ou teria natureza constitutiva, apenas por individualizar a norma superior para aspartes (KELSEN, Hans. Teoria geral do estado. Coimbra: Armênio Amado, 1945. p. 105-109; KELSEN,Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 388; KELSEN, Hans. La garantiejurisdictionnelle de la constitution. La justice constitutionnelle. Revue de Droit Public, 1928, p. 204).132. KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 151-153.133. BULYGIN, Eugenio. Sentencia judicial y creacion de derecho. In: ALCHOURRON, Carlos E.; BULYGIN, Eugenio.Análisis lógico y derecho. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991. p. 355-369.134. BULYGIN, Eugenio. Los jueces crean derecho? cit., p. 12.


Bulygin afirma que isso é uma inconsequência de Kelsen, pois, se a positivi<strong>da</strong>de do direito resultado fato de que as normas são cria<strong>da</strong>s por atos humanos – como reconhece o próprio Kelsen –, não hárazão para se falar em “aplicação de norma geral não positiva”. 135No raciocínio kelseniano, esta norma geral seria aplica<strong>da</strong>, em vez de cria<strong>da</strong>, em razão de que o juiznão pode criar a norma geral, e seria não positiva por não ter sido cria<strong>da</strong> pelo legislador. Mas se apositivi<strong>da</strong>de decorre de a norma ter sido cria<strong>da</strong> por ato humano, na<strong>da</strong> poderia impedir a conclusão de queo juiz, em tal caso, na reali<strong>da</strong>de cria a norma geral, e que essa, por consequência, é dota<strong>da</strong> depositivi<strong>da</strong>de.Embora a ausência de norma geral não pudesse sequer ser cogita<strong>da</strong> pelas teorias clássicas <strong>da</strong>jurisdição de civil law, não há motivo para não se in<strong>da</strong>gar o que poderia ser feito pelo juiz de tais teoriasse admiti<strong>da</strong> fosse a ausência de lei. Nessa situação não lhe restaria outra alternativa senão criar a normageral.Entretanto, após a transformação do conceito de direito e <strong>da</strong> nova dimensão <strong>da</strong> função jurisdicionalimpostas pelo neoconstitucionalismo, o que realmente interessa saber é como o juiz constrói uma normajurídica para o caso concreto quando a norma geral não existe ou está em desacordo com os princípiosconstitucionais de justiça e com os direitos fun<strong>da</strong>mentais.A construção dessa norma jurídica não significa criação de norma individual para regular o casoconcreto ou criação de norma geral. A norma jurídica cristaliza<strong>da</strong> mediante a conformação <strong>da</strong> lei e <strong>da</strong>legislação ou do balanceamento dos direitos fun<strong>da</strong>mentais pode ser dita uma norma jurídica cria<strong>da</strong> diante<strong>da</strong>s peculiari<strong>da</strong>des do caso concreto, mas está longe de ser uma simples norma individual volta<strong>da</strong> aconcretizar a norma geral ou mesmo de representar a criação de um direito.Note-se que, nos casos de interpretação de acordo, de interpretação conforme e de declaração parcialde nuli<strong>da</strong>de sem redução de texto, a norma geral é visivelmente conforma<strong>da</strong> – em menor (no primeirocaso) ou maior medi<strong>da</strong> (nos demais casos) – pelas normas constitucionais. Nessas três hipóteses o juizconstrói a norma jurídica considerando a relação entre o caso concreto, o texto <strong>da</strong> lei e as normasconstitucionais.Nas situações de declaração de inconstitucionali<strong>da</strong>de, de controle de inconstitucionali<strong>da</strong>de por omissão ede tutela de um direito fun<strong>da</strong>mental diante de outro no caso concreto, embora a situação seja mais delica<strong>da</strong>,também não há razão para falar em criação do direito pelo juiz. Esses três casos, se não permitem aconformação <strong>da</strong> norma geral à Constituição, conferem ao juiz a possibili<strong>da</strong>de de fazê-la valer mediante aeliminação <strong>da</strong> norma inconstitucional, do preenchimento do vazio normativo que impede a tutela do direitofun<strong>da</strong>mental e <strong>da</strong> proteção de um direito fun<strong>da</strong>mental que se choca com outro no caso concreto. Em nenhumadessas situações o juiz cria o direito. A jurisdição apenas está zelando para que os direitos sejam tutelados deacordo com as normas constitucionais, para que os direitos fun<strong>da</strong>mentais sejam protegidos e efetivados ain<strong>da</strong>que ignorados pelo legislador e para que os direitos fun<strong>da</strong>mentais sejam tutelados no caso concreto mediante aaplicação <strong>da</strong> regra do balanceamento.O juiz, ao atuar dessa forma, não apenas cumpre a tarefa que lhe foi atribuí<strong>da</strong> no constitucionalismocontemporâneo, como também, diante <strong>da</strong> transformação do próprio conceito de direito, apenas o aplica.Ou seja, no Estado constitucional não há qualquer motivo para se enxergar, nestes casos, exceções àfunção de aplicação do direito, como se a aplicação do direito ou a atuação jurisdicional não estivessesubordina<strong>da</strong> aos princípios constitucionais e aos direitos fun<strong>da</strong>mentais.Porém, quando a norma jurídica fixa<strong>da</strong> pela jurisdição configura precedente obrigatoriamente aplicávela outros casos, há visível aproximação com a norma cria<strong>da</strong> pelo legislador. É certo que a norma cria<strong>da</strong> pelojuiz exige fun<strong>da</strong>mentação, o que obviamente é desnecessário em se tratando de norma legislativa. Seria135. Idem. Ver NINO, Carlos. El concepto de validez jurídica en la teoría de Kelsen. La validez del derecho. BuenosAires: Astrea, 1985. p. 7-27.


possível dizer, ain<strong>da</strong>, que o precedente, e não a lei, pode ser revogado pelo Judiciário. Entretanto, acircunstância de a norma judicial ter de ser fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> decorre <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de ter de se <strong>da</strong>rlegitimi<strong>da</strong>de à decisão, <strong>da</strong>do o déficit de legitimi<strong>da</strong>de originária que caracteriza o poder jurisdicional.Assim, a fun<strong>da</strong>mentação não diferencia a norma judicial <strong>da</strong> legislativa no que diz respeito às suas essências– ambas constituem manifestação positiva do Direito -, mas no que toca a aspectos que lhes são ,necessários à sua legitimação. De outro lado, se o precedente pode ser revogado pelo Judiciário, a lei podeser revoga<strong>da</strong> pelo Legislativo.Relevante é que o precedente obrigatório orienta os ci<strong>da</strong>dãos, pois lhes diz o modo como devem secomportar e lhes dá a previsibili<strong>da</strong>de acerca do resultado dos reclamos jurisdicionais, tendo, nestadimensão, a característica de norma geral que, além disso, é capaz de oferecer maior segurança que aprópria norma legislativa.Não obstante, se nessa perspectiva é possível assemelhar a decisão <strong>da</strong> norma legislativa, isso nãodecorre do fato de aquela ter caráter obrigatório, porém de a decisão judicial não dever respeito estrito ànorma geral, mas resultar <strong>da</strong> conformação do ordenamento infraconstitucional à Constituição.É claro que os limites à decisão judicial estão nos próprios direitos fun<strong>da</strong>mentais, o que tambémsignifica que somente é possível vislumbrar ausência de lei ao se constatar que o legislador deixou deeditar norma necessária à tutela de direito fun<strong>da</strong>mental. Em outros termos, para que o juiz possa atuar aoargumento de falta de lei, o legislador deve ter violado direito fun<strong>da</strong>mental na sua função de man<strong>da</strong>mentode tutela. To<strong>da</strong>via, tal violação não transfere ao juiz o grau de liber<strong>da</strong>de que até então estava nas mãos dolegislador, já que ao juiz cabe não exatamente a tutela normativa do direito fun<strong>da</strong>mental, mas o controle<strong>da</strong> suficiência desta tutela e, assim, uma tutela que satisfaça as exigências mínimas na sua eficiência. 136De modo que o juiz não detém o mesmo poder do legislador, e, portanto, a decisão judicialobrigatória, ain<strong>da</strong> que sob a luz <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de afirmação dos direitos fun<strong>da</strong>mentais, não substituia lei. O que se pode dizer, sem qualquer hesitação, é que o juiz não mais é limitado a afirmar a lei,pois deve resposta à Constituição, e, nessa perspectiva, a sua decisão se insere em um quadro bemmais amplo, dimensionado pelos direitos fun<strong>da</strong>mentais.136. De acordo com Claus-Wilhelm Canaris, “a função dos direitos fun<strong>da</strong>mentais de imperativo de tutela carece,em princípio, para a sua realização, <strong>da</strong> transposição pelo direito infraconstitucional”. Por isso, afirma que“ao legislador ordinário fica aqui aberta, em princípio, uma ampla margem de manobra entre as proibições<strong>da</strong> insuficiência e do excesso”. Contudo, tal margem não é a mesma que está libera<strong>da</strong> à intervenção judicial.Sobre isso é necessário apreender com Canaris que “a proibição <strong>da</strong> insuficiência não coincide com o deverde proteção, mas tem, antes, uma função autônoma relativamente a este. Pois trata-se de dois percursosargumentativos distintos, pelos quais, em primeiro lugar, se controla se existe, de todo, um dever deproteção, e, depois, em que termos deve este ser realizado pelo direito ordinário sem descer abaixo domínimo de proteção jurídico-constitucionalmente exigido. No controle de insuficiência trata-se, porconseguinte, de garantir que a proteção satisfaça as exigências mínimas na sua eficiência” (CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fun<strong>da</strong>mentais e direito privado. Coimbra: Almedina, 2003. p. 138-139). Ao juiz cumpreapenas o controle de insuficiência, não pode ele ir além disso. Por exemplo, a Constituição de 1988 garanteaos empregados urbanos e rurais remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquentapor cento à do normal (art. 7.º, XVI). Isso significa que, caso não haja nenhuma lei trabalhistainfraconstitucional que regule a remuneração <strong>da</strong>s horas extras de trabalho, ou haja uma lei que estabeleçavalores remuneratórios inferiores a cinquenta por cento, cabe ao Poder Judiciário reconhecer a insuficiência<strong>da</strong> proteção legal do trabalhador e assegurar o mínimo de proteção jurídico-constitucionalmente exigido –remuneração <strong>da</strong> hora extra com 50% a mais do que a hora normal. Na<strong>da</strong> mais, na<strong>da</strong> menos. Não pode oJudiciário, por exemplo, determinar, na ausência de norma infraconstitucional, que o pagamento deva ser70% superior. Não cabe aos juízes <strong>da</strong>r aquela proteção que eles considerem ser a melhor para o trabalhoextraordinário, mas apenas garantir o mínimo de proteção determinado pela Constituição. A situação édiferente, porém, no que toca ao legislador. Este pode ampliar a proteção constitucional, desde que nãoatinja o extremo <strong>da</strong> intervenção excessiva.


Contudo, esta amplitude de poder, ao ser compara<strong>da</strong> à <strong>da</strong> tradição do civil law, faz ver um novopoder judicial, que se assemelha ao poder do juiz do common law. Note-se que o juiz do common law, porestar autorizado a decidir a partir do direito costumeiro ou mesmo <strong>da</strong> Constituição, exerce um poderbastante assemelhado ao do juiz do civil law, que atua <strong>da</strong>ndo tutela aos direitos fun<strong>da</strong>mentais.O juiz estadunidense subordinado à força dos direitos fun<strong>da</strong>mentais detém maior legitimi<strong>da</strong>de doque aquele que era concebido como judge make law apenas por estar afirmando algo que não havia sidodito pelo Parlamento. Aliás, vigorosa doutrina estadunidense, lidera<strong>da</strong> por Dworkin, sustenta que adigni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> decisão judicial na<strong>da</strong> tem a ver com o fato de o juiz criar, ou não, o direito, mas sim com acircunstância de o juiz poder decidir a partir de princípios e fun<strong>da</strong>mentos que estão por detrás <strong>da</strong>s própriasdecisões judiciais. 137Nesse sentido, tal doutrina revive (é certo que em nova perspectiva) a teoriadeclaratória – que se opõe à teoria constitutiva, em que o juiz cria o direito –, sustentando que, mesmoquando nenhuma regra regula o caso, a decisão “descobre” o direito.Na reali<strong>da</strong>de, as decisões que afirmam princípios ou direitos fun<strong>da</strong>mentais podem ser vistas comoconstrutivistas ou interpretativistas, dependendo do lugar de onde se parte ao analisá-las. Ora, ao se partir<strong>da</strong> premissa de que não se podem tomar em conta os princípios para afirmar um direito não expresso, adecisão que assim o fizer logicamente será vista como criadora do direito, mas, ao se admitir que o juizdeve considerar princípios e concretizar direitos, a decisão será compreendi<strong>da</strong> como interpretativa.19. O Superior <strong>Tribunal</strong> de Justiça e a uniformi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> interpretação do direito federalNo Brasil, a principal função do Superior <strong>Tribunal</strong> de Justiça é definir a interpretação do direitofederal, evitando que ca<strong>da</strong> estado <strong>da</strong> federação trate <strong>da</strong> lei federal a seu gosto.Embora essa Corte tenha missão bastante níti<strong>da</strong>, a prática tem sido incapaz de permitir a realização<strong>da</strong> função que lhe foi atribuí<strong>da</strong> pela Constituição <strong>Federal</strong>. Lamentavelmente, os tribunais e juízosestaduais e federais não vêm respeitando as decisões do Superior <strong>Tribunal</strong> de Justiça, chegando a negarlhes,até mesmo, eficácia persuasiva, em total afronta ao sistema.Um precedente apenas tem efeito persuasivo quando gera constrangimento ou algum tipo de deverao órgão jurisdicional. Não obstante, a prática demonstra que os Tribunais Federais e Estaduais nãoapenas se sentem autorizados a desconsiderar os precedentes do Superior <strong>Tribunal</strong> de Justiça, como,ain<strong>da</strong>, não justificam as razões pelas quais deixam de aplicá-los. Ora, a circunstância de os juízes etribunais não demonstrarem as razões para a não aplicação dos precedentes do Superior <strong>Tribunal</strong> deJustiça elimina a possibili<strong>da</strong>de de se ver neles qualquer efeito, inclusive persuasivo.O art. 105, III, <strong>da</strong> CF é claro no sentido de que compete ao Superior <strong>Tribunal</strong> de Justiça rever asdecisões que contrariarem tratado ou lei federal ou lhes negarem vigência, julgarem válido ato de governolocal contestado em face de lei federal e, ain<strong>da</strong>, derem a lei federal interpretação divergente <strong>da</strong> que lhehaja atribuído outro tribunal. A suposição de que os juízes e tribunais podem decidir sem considerar osprecedentes do Superior <strong>Tribunal</strong> de Justiça não se coaduna com tal norma constitucional. Se a esta Cortecabe uniformizar a interpretação <strong>da</strong> lei federal e, se for o caso, cassar a interpretação destoante, as suasdecisões certamente devem se impor sobre os tribunais inferiores. Isso quer dizer que, hoje, as decisõesdos tribunais regionais e estaduais, que não consideram os precedentes do Superior <strong>Tribunal</strong> de Justiça,violam, no mínimo, o dever judicial de fun<strong>da</strong>mentação. 138137. O cosmos normativo <strong>da</strong> concepção constitucionalista do direito é mais abrangente do que aqueletradicionalmente concebido pelo positivismo, como bem anota Dworkin, ao descrever aquilo que chama dedireito como integri<strong>da</strong>de: “O direito – os direitos e deveres que decorrem de decisões coletivas toma<strong>da</strong>s nopassado e que, por esse motivo, permitem ou exigem a coerção – contém não apenas o limitado conteúdoexplícito dessas decisões, mas também, num sentido mais vasto, o sistema de princípios necessários a suajustificativa” (DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 273-274).138. Sobre o ponto, merece registro notícia publica<strong>da</strong> recentemente no site do STJ, relativa a questão de ordem


Na ver<strong>da</strong>de, pode-se ir além, uma vez que é tranquilamente possível, em termos lógicos e jurídicos,sustentar que as decisões do Superior <strong>Tribunal</strong> de Justiça devem ter efeito vinculante sobre os juízes etribunais estaduais e federais.20. A aproximação entre os sistemas do civil law e do common law e a imprescindibili<strong>da</strong>dede respeito aos precedentes no direito brasileiroEste capítulo objetivou demonstrar, por meio de um método histórico-crítico, a aproximação entre asjurisdições do civil law – especialmente a brasileira – e do common law, e, tão somente a partir <strong>da</strong>í, aimprescindibili<strong>da</strong>de do respeito aos precedentes no sistema pátrio. Não houve intenção em aprofun<strong>da</strong>r osfun<strong>da</strong>mentos – que são vários – para justificar o respeito às decisões judiciais. Nem, muito menos,interesse em tratar de aspectos técnicos relativos à metodologia do emprego dos precedentes.Ain<strong>da</strong> que os precedentes tenham sido fun<strong>da</strong>mentais para o desenvolvimento do common law, ostare decisis tem sustentação especialmente na igual<strong>da</strong>de, na segurança e na previsibili<strong>da</strong>de. O staredecisis não se confunde com o common law, tendo surgido no curso do seu desenvolvimento para,sobretudo, <strong>da</strong>r segurança às relações jurídicas.É equivocado imaginar que o stare decisis existe porque o juiz do common law cria o direito. Comose verifica na doutrina de MacCormick, especialmente em Retórica e o estado de direito, em “temposrecentes, mesmo nos países do common law, Direito jurisprudencial puro é relativamente raro. Muito doDireito jurisprudencial agora toma a forma de interpretações explicativas (glosses) <strong>da</strong> lei”. 139Os precedentes que interpretam leis ou os precedentes <strong>da</strong> Suprema Corte americana evidenciam, porsi, a razão de ser do stare decisis. Lembre-se que, considerando o valor segurança, a doutrina americanademonstra grande preocupação com o overruling e com a força do stare decisis diante do controle difuso<strong>da</strong> constitucionali<strong>da</strong>de. 140Aliás, voltando-se ao argumento de que o stare decisis só existe em decorrência <strong>da</strong> inação dolegislativo, basta constatar que não há déficit de legislação nos Estados Unidos, sendo descabi<strong>da</strong> asuposição de que o precedente tem força obrigatória por falta de atuação do legislador.De outra parte, a tradição do civil law, ancora<strong>da</strong> nas razões <strong>da</strong> Revolução Francesa, foicompletamente descaracteriza<strong>da</strong> com o passar do tempo. O juiz, inicialmente proibido de interpretar a lei,passou a paulatinamente interpretá-la, logo caindo em desuso as comissões legislativas, instituí<strong>da</strong>s pararesolver as dúvi<strong>da</strong>s de interpretação, e, logo após, a primeira feição <strong>da</strong> Cassação, delinea<strong>da</strong> como órgãode natureza não jurisdicional para cassar as interpretações judiciais incorretas.A evolução do civil law é a história <strong>da</strong> superação de uma ideia instituí<strong>da</strong> para viabilizar a realizaçãode um desejo revolucionário, e que, portanto, nasceu com a marca <strong>da</strong> utopia. Como dogma, esta noçãomanteve-se viva ain<strong>da</strong> que a evolução do civil law a descaracterizasse. Lembre-se que a força doconstitucionalismo e a atuação judicial mediante a concretização <strong>da</strong>s regras abertas fez surgir um modelolevanta<strong>da</strong> pelo Ministro Aldir Passarinho: “A partir de agora, as decisões dos tribunais de justiça e dostribunais regionais federais que discor<strong>da</strong>rem do entendimento do Superior <strong>Tribunal</strong> de Justiça (STJ)estabelecido em julgamento pelo rito <strong>da</strong> Lei dos Recursos Repetitivos (Lei 11.672/2008) terão que serfun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s. Do contrário, o recurso que chegar ao STJ será devolvido à origem pelo Núcleo deProcedimentos Especiais <strong>da</strong> Presidência (Nupre). A determinação é <strong>da</strong> Corte Especial do STJ e foi toma<strong>da</strong> porunanimi<strong>da</strong>de na apreciação de uma questão de ordem levanta<strong>da</strong> pelo Ministro Aldir Passarinho Junior”.139. MACCORMICK, Neil. Rethoric and the rule of law – A theory of legal reasoning. New York: Oxford UniversityPress, 2005. p. 176.140. GERHARDT, Michael J. Op. cit.


de juiz completamente distinto do desejado pela tradição do civil law. De modo que o civil law vive,atualmente, a contradição entre o juiz real e o juiz dos livros ou <strong>da</strong>s doutrinas acriticamente preocupa<strong>da</strong>sapenas em justificar que a nova função do juiz cabe dentro do modelo do princípio <strong>da</strong> separação dospoderes. Na ver<strong>da</strong>de, a doutrina esquece de esclarecer que o juiz <strong>da</strong> Revolução Francesa nasceu natimortoe que o princípio <strong>da</strong> estrita separação dos poderes sofreu mutação com o passar do tempo, tendo, nos diasde hoje, outra figura.Não há dúvi<strong>da</strong> que o papel do atual juiz do civil law e especialmente o do juiz brasileiro, a quem édeferido o dever-poder de controlar a constitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei no caso concreto, muito se aproxima <strong>da</strong>função exerci<strong>da</strong> pelo juiz do common law, especialmente a realiza<strong>da</strong> pelo juiz americano. Acontece que,apesar <strong>da</strong> aproximação dos papéis dos magistrados de ambos os sistemas, apenas o common law devotarespeito aos precedentes.A ausência de respeito aos precedentes está fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na falsa suposição, própria ao civil law, de que alei seria suficiente para garantir a certeza e a segurança jurídicas. Frise-se que essa tradição insistiu natese de que a segurança jurídica apenas seria viável se a lei fosse estritamente aplica<strong>da</strong>. A segurança seriagaranti<strong>da</strong> mediante a certeza advin<strong>da</strong> <strong>da</strong> subordinação do juiz à lei. Contudo, é interessante perceber que acerteza jurídica adquiriu feições antagônicas no civil law e no common law. No common law fun<strong>da</strong>mentouo stare decisis, enquanto no civil law foi utiliza<strong>da</strong> para negar a importância dos tribunais e <strong>da</strong>s suasdecisões.Porém, quando se “descobriu” que a lei é interpreta<strong>da</strong> de diversas formas, e, mais visivelmente, queos juízes do civil law rotineiramente decidem de diferentes modos os “casos iguais”, curiosamente não seabandonou a suposição de que a lei é suficiente para garantir a segurança jurídica. Ora, ao se tornarincontestável que a lei é interpreta<strong>da</strong> de diversas formas, fazendo surgir distintas decisões para casosiguais, deveria ter surgido, ao menos em sede doutrinária, a lógica e inafastável conclusão de que asegurança jurídica apenas pode ser garanti<strong>da</strong> frisando-se a igual<strong>da</strong>de perante as decisões judiciais, e,assim, estabelecendo-se o dever judicial de respeito aos precedentes. Afinal, a lei adquire maiorsignificação quando sob ameaça de violação ou após ter sido viola<strong>da</strong>, de forma que a decisão judicial quea interpreta não pode ficar em segundo plano ou desmerecer qualquer respeito do Poder que a pronunciou.A segurança jurídica, postula<strong>da</strong> na tradição do civil law pela estrita aplicação <strong>da</strong> lei, está a exigir osistema de precedentes, há muito estabelecido para assegurar essa mesma segurança no ambiente docommon law, em que a possibili<strong>da</strong>de de decisões diferentes para casos iguais nunca foi desconsidera<strong>da</strong> e,exatamente por isso, fez surgir o princípio, inspirador do stare decisis, de que os casos similares devemser tratados do mesmo modo (treat like cases alike).Embora deva ser no mínimo indesejável, para um Estado Democrático, <strong>da</strong>r decisões desiguais acasos iguais, estranhamente não há qualquer reação a essa situação na doutrina e na praxe brasileiras. Écomo se estas decisões não fossem vistas ou fossem admiti<strong>da</strong>s por serem inevitáveis. A advertência deque a lei é igual para todos, que sempre se viu escrita sobre a cabeça dos juízes nas salas do civil law,além de não mais bastar, constitui pia<strong>da</strong> de mau gosto àquele que, em uma <strong>da</strong>s salas do <strong>Tribunal</strong> e sob talinscrição, recebe decisão distinta <strong>da</strong> proferi<strong>da</strong> – em caso idêntico – pela Turma cuja sala se localizametros mais adiante, no mesmo longo e indiferente corredor do prédio que, antes de tudo, deveria abrigara igual<strong>da</strong>de de tratamento perante a lei.

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