É preciso atentar, sobretudo, para a diferença entre a história do poder judicial no common law e ahistória do direito continental europeu, em particular dos fun<strong>da</strong>mentos do direito francês pósrevolucionário.Na Inglaterra, ao contrário do que ocorreu na França, os juízes não só constituíram umaforça progressista preocupa<strong>da</strong> em proteger o indivíduo e em pôr freios no abuso do governo, como ain<strong>da</strong>desempenharam papel importante para a centralização do poder e para a superação do feu<strong>da</strong>lismo.Naquele país, a unificação do poder se deu de forma razoavelmente rápi<strong>da</strong>, com a eliminação <strong>da</strong>jurisdição feu<strong>da</strong>l e de outras jurisdições paralelas. E os juízes colaboraram para esta unificação, afirmandoo direito de ancestral tradição na nação, sem qualquer necessi<strong>da</strong>de de rejeição à tradição jurídica dopassado. 76A Revolução Francesa, porém, procurou criar um direito que fosse capaz de eliminar o passado e astradições até então her<strong>da</strong><strong>da</strong>s de outros povos, mediante o esquecimento não só do direito francês maisantigo, como também <strong>da</strong> negação <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de do ius commune. 77O direito comum havia de serse então possível poder ver o sentido sobre falar em códigos no direito comparado. É ver<strong>da</strong>de que aCalifórnia possui uma varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quilo que é chamado de códigos, como também os possuem outrosestados dos Estados Unidos, e que o Uniform Commercial Code foi adotado na maioria <strong>da</strong>s jurisdiçõesamericanas. Contudo, mesmo que isso se pareça com códigos em países que aplicam o civil law, a ideologiasubjacente – a concepção do que um código é e <strong>da</strong>s funções que deve desempenhar no processo legal – nãoé a mesma. Existe uma ideologia de codificação completamente diferente funcionando no mundo do civillaw” (No original: “If, however, one thinks of codification not as a form but as the expression of anideology, and if one tries to understand that ideology and why it achieves expression in code form, then onecan see how it makes sense to talk about codes in comparative law. It is true that California has a number ofwhat are called codes, as do some other states in United States, and that the Uniform Commercial Code hasbeen adopted in most American jurisdictions. However, although these look like the codes in civil lawcountries, the underlying ideology – the conception of what a code is and of the functions it should performin the legal process – is not the same. There is an entirely different ideology of codification at work in thecivil law world”) (MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. Op. cit., p. 27-28).76.“Nos Estados Unidos e na Inglaterra, ao contrário, existia um diferente tipo de tradição judicial, na qual os juízesprecisaram ser, muitas vezes, uma força progressiva ao lado do indivíduo contra o abuso do poder pelogovernante, e tiveram um importante papel na centralização do poder governamental e na destruição dofeu<strong>da</strong>lismo. O medo do lawmaking judicial e <strong>da</strong> interferência judicial na administração não existia. Pelocontrário, o poder dos juízes de <strong>da</strong>r forma ao desenvolvimento do common law era uma instituição familiar ebem-vin<strong>da</strong>. Era aceito que as cortes possuíam o poder de man<strong>da</strong>mus (para obrigar funcionários a cumprir seudever legal) e quo warranto (para questionar a legali<strong>da</strong>de de um ato cometido por um funcionário público). Ojudiciário não foi um alvo para a Revolução Americana do mesmo modo como na França” (No original: “In theUnited States and England, on the contrary, there was a different kind of judicial tradition, one in which judgeshad often been a progressive force on the side of the individual against the abuse of power by the ruler, and hadplayed an important part in the centralization of governmental power and the destruction of feu<strong>da</strong>lism. The fear ofjudicial lawmaking and of judicial interference in administration did not exist. On the contrary, the power of thejudges to shape the development of the common law was a familiar and welcome institution. It was accepted thatthe courts had the powers of man<strong>da</strong>mus (to compel officials to perform their legal duty) and quo warranto (toquestion the legality of an act performed by a public official). The judiciary was not a target of the AmericanRevolution in the way that it was in France”) (idem, p. 17).77.Veja-se, nesse sentido, que a teoria do direito, sob a égide do Code Napoleon, era ensina<strong>da</strong> nos moldes <strong>da</strong> Escola <strong>da</strong>Exegese, cujas principais teses “afirmavam que o estatuto e o direito eram idênticos, e as outras fontes de direito– costume, erudição, jurisprudência, direito natural – tinham apenas importância secundária. Para compreender osignificado exato dos códigos, era necessário partir do texto, apenas do texto, e não de suas fontes. A erudição e ajurisprudência tiveram, portanto, de resistir e retroceder em direção a um estágio anterior aos códigos, pois issoconduziria inexoravelmente à incerteza. O legislador escolhera entre diferentes possibili<strong>da</strong>des antigas e modernase, se sua escolha não fosse segui<strong>da</strong>, o direito afun<strong>da</strong>ria na diversi<strong>da</strong>de e na incerteza <strong>da</strong>s velhas fontes e, desse
substituído pelo direito nacional. Tal direito, ao contrário do inglês, tinha que ser claro e completo, paranão permitir qualquer interferência judicial no desenvolvimento do direito e do poder governamental. Nãohavia como confiar nos juízes, que até então estavam ao lado dos senhores feu<strong>da</strong>is e mantendo forteoposição à centralização do poder. Veja-se, então, que o direito francês, além de rejeitar o direito comumdo civil law e de procurar instituir um direito nacional novo, teve a necessi<strong>da</strong>de de legitimá-lo mediante asubordinação do poder do juiz ao poder do Parlamento. O direito contaria com um grave e insuportáveldéficit democrático caso fosse interpretado pelos magistrados. Ou melhor, havia bom motivo para não <strong>da</strong>raos juízes o poder de interpretar as normas traça<strong>da</strong>s pelos representantes do povo.As histórias do poder no common law e no civil law foram as responsáveis pelas diferentes funçõesatribuí<strong>da</strong>s aos juízes desses sistemas jurídicos. Entretanto, há necessi<strong>da</strong>de de sinalizar para a circunstânciade que a dessemelhança entre as funções dos juízes do common law e do civil law restaram, em boamedi<strong>da</strong>, no papel e na intenção dos inspiradores do Estado legislativo francês. A Revolução Francesa,como to<strong>da</strong> revolução, ressentiu-se de forte dose de ilusões românticas e utopias, gerando dogmas como o<strong>da</strong> proibição de o juiz interpretar a lei.11. O problema <strong>da</strong> interpretação <strong>da</strong> lei no civil lawComo dito, a Revolução Francesa pretendeu proibir o juiz de interpretar a lei. Imaginava-se que,com uma legislação clara e completa, seria possível ao juiz simplesmente aplicar a lei, e, desta maneira,solucionar os casos litigiosos sem a necessi<strong>da</strong>de de estender ou limitar o seu alcance e sem nunca sedeparar com a sua ausência ou mesmo com conflito entre as normas. Na excepcionali<strong>da</strong>de de conflito,obscuri<strong>da</strong>de ou falta de lei, o magistrado obrigatoriamente deveria apresentar a questão ao legislativo paraa realização <strong>da</strong> “interpretação autoriza<strong>da</strong>”.Com efeito, a Lei Revolucionária de agosto de 1790 não só afirmou que “os tribunais judiciáriosnão tomarão parte, direta ou indiretamente, no exercício do poder legislativo, nem impedirão oususpenderão a execução <strong>da</strong>s decisões do poder legislativo” (Título II, art. 10), mas também que ostribunais “reportar-se-ão ao corpo legislativo sempre que assim considerarem necessário, a fim deinterpretar ou editar uma nova lei” (Título II, art. 12). 78Afirmou-se que o juiz, ao não poder identificar a norma aplicável à solução do caso, deveriarecorrer ao legislativo. Supunha-se, é claro, que estas situações seriam raras, e que – depois de umtempo de consultas ao legislativo – tenderiam a desaparecer. De qualquer forma, pouca coisa podeexpressar de forma tão marcante a pretensão revolucionária de limitar o poder judicial.modo, nos mesmo erros pelos quais o antigo direito fora criticado. Essa abor<strong>da</strong>gem, muito bem descrita como um‘fetichismo do estatuto escrito’, também eliminava qualquer recurso ao direito natural ou aos ‘princípios gerais dodireito’. Demolombe afirmava que o ‘direito claro’ não requeria comentário e que a lei ‘devia ser aplica<strong>da</strong> mesmoquando não parecesse conformar-se aos princípios gerais do direito ou <strong>da</strong> equi<strong>da</strong>de’” (VAN CAENEGEM, R. C.Uma introdução histórica ao direito privado. Trad. Carlos Eduardo Lima Machado. 2. ed. São Paulo: MartinsFontes, 2000. p. 211-212).78.“Os tribunais judiciários não tomarão parte, direta ou indiretamente, no exercício do poder legislativo, nemimpedirão ou suspenderão a execução <strong>da</strong>s decisões do poder legislativo” (Título II, art. 10); “reportar-se-ão aocorpo legislativo sempre que assim considerarem necessário, a fim de interpretar ou editar uma nova lei”(Título II, art. 12); “as funções judiciárias são distintas e sempre permanecerão separa<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s funçõesadministrativas. Sob pena de per<strong>da</strong> de seus cargos, os juízes de nenhuma maneira interferirão com aadministração pública, nem convocarão os administradores à prestação de contas com respeito ao exercício desuas funções (Título II, art. 12) (Lei Revolucionária de agosto de 1790) (ver CAPPELLETTI, Mauro. RepudiandoMontesquieu..., cit., p. 272).
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