Algo similar aconteceu no direito prussiano. O célebre Código Prussiano (Allgemeines Landrecht fürdie Preußischen Staaten), elaborado por Federico II, o Grande, em 1793, continha mais de 17.000 artigos,revelando o intento de regular to<strong>da</strong>s as situações fáticas, por mais específicas que fossem. Do mesmomodo que o Código Napoleão – que tinha 2.281 artigos –, o objetivo de Federico foi o de fazer um direitoà prova de juízes. 79 O primeiro rei <strong>da</strong> Prússia não se deu por contente com os 17.000 artigos do seuCódigo, tendo também proibido os juízes de interpretá-los, e, na mesma sen<strong>da</strong> <strong>da</strong> Lei RevolucionáriaFrancesa de 1790, criou uma comissão legislativa a quem os juízes tinham o dever de recorrer em casosde dúvi<strong>da</strong> sobre a aplicação de uma norma. O juiz que caísse na tentação de interpretar o Código incidiriana “grande ira” de Federico e sofreria severo castigo. 80Ain<strong>da</strong> mais interessante, para o nosso propósito, é a história <strong>da</strong> Corte de Cassação francesa. Estetribunal também foi instituído em 1790, com o nítido objetivo de limitar o poder judicial mediante acassação <strong>da</strong>s decisões que destoassem do direito criado pelo parlamento. 81 É possível dizer que a Cassationfoi instituí<strong>da</strong> como uma válvula de escape contra a aplicação incorreta <strong>da</strong> lei e a não apresentação do caso àinterpretação autoriza<strong>da</strong> do legislativo. Porém, talvez já se vislumbrasse a dificul<strong>da</strong>de prática em se exigirdos juízes a exposição <strong>da</strong>s suas dúvi<strong>da</strong>s ao legislativo, bem como o trabalho excessivo e praticamenteinviável que seria submetido aos legisladores caso to<strong>da</strong>s as dificul<strong>da</strong>des interpretativas lhes fossemanuncia<strong>da</strong>s. 82Embora chamado de Corte, esse órgão não fazia parte do Poder Judiciário, constituindo instrumentodestinado a proteger a supremacia <strong>da</strong> lei. Esta primeira natureza – não jurisdicional – <strong>da</strong> Cassação eracompatível com a sua função de apenas cassar ou anular as decisões judiciais que dessem à lei sentidoindesejado. Sem obrigar o juiz a requerer a devi<strong>da</strong> interpretação, impedia-se que as decisões que não selimitassem a aplicar a lei tivessem efeitos. Em vez de se utilizar o instrumento <strong>da</strong> “consulta interpretativaautoriza<strong>da</strong>”, preferia-se algo mais factível, isto é, cassar a interpretação equivoca<strong>da</strong>.Frise-se que a Cour de Cassation foi instituí<strong>da</strong> unicamente para cassar a interpretação incorreta, enão para estabelecer a interpretação correta ou para decidir em substituição à decisão prolata<strong>da</strong> pelo juizordinário. Lembre-se que ela não era sequer considera<strong>da</strong> um órgão jurisdicional e, por isso mesmo, nãopodia decidir. Dessa forma, a Cassation não se sobrepunha ao órgão judicial ordinário por ter o poder deproferir a última decisão, mas sim por ter o poder para afirmar como a lei não deveria ser interpreta<strong>da</strong>.O tempo fez sentir que o momento para afirmar como a lei não deveria ser interpreta<strong>da</strong> também seriaoportuno para afirmar como a lei deveria ser interpreta<strong>da</strong>. Ou seja, a história mostra que a Cassação, deórgão destinado a simplesmente anular a interpretação erra<strong>da</strong>, passou a órgão de definição <strong>da</strong>interpretação correta. Tal evolução igualmente obrigou à mutação <strong>da</strong> feição do órgão estatal, que assumiua natureza jurisdicional, de órgão incumbido de participar do processo de produção de decisões judiciais.79.MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. Op. cit., p. 39.80.Idem. Ver, ain<strong>da</strong>: MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil – Pressupostos sociais, lógicos e éticos. SãoPaulo: Ed. RT, 2009. p. 70-71; TARELLO, Giovanni. Op. cit., p. 488; DAMASKA, Mirjan. The faces of justiceand state authority. New Haven: Yale University Press, 1986. p. 63. A respeito do direito processual civilprussiano desta época, ver ENGELMANN, Arthur. Modern continental procedure. A history of continental civilprocedure. New York: Kelley, 1969. p. 590 e ss.81.Ver CALAMANDREI, Piero. La cassazione civile – I. Storia e legislazione. Torino: Fratelli Bocca, 1920. p. 426 ess.; TARUFFO, Michele. Il vertice ambiguo – Saggi sulla cassazione civile. Bologna: Il Mulino, 1991. p. 29 ess.82.MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. Op. cit., p. 39 e ss.
Ademais, a Corte de Cassação não apenas adquiriu o semblante de órgão jurisdicional, como passoua constituir o tribunal de cúpula do sistema, sobrepondo-se aos tribunais ordinários. A sua função setornou a de ditar e assegurar a interpretação correta <strong>da</strong> lei, evitando que os tribunais inferioresconsoli<strong>da</strong>ssem interpretações equivoca<strong>da</strong>s.Assim, a Corte chega a um estágio em que não há mais controle não jurisdicional <strong>da</strong>s interpretaçõesjudiciais. Há, agora, preocupação em fixar, através do próprio Judiciário, a uni<strong>da</strong>de do direito, ou, maisprecisamente para aquela época, a uniformi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> interpretação <strong>da</strong> lei no país e nos vários tribunaisinferiores. Basicamente, isto se tornou possível por dois motivos. Primeiramente, adquiriu-se consciênciade que a leitura do texto <strong>da</strong> norma implica um ato de compreensão, que, assim, abre oportuni<strong>da</strong>de paravárias definições e, portanto, interpretações. Outrossim, tornou-se inquestionável que o ato decompreender a lei era de incumbência do judiciário e não do legislativo. O que passou a importar, emver<strong>da</strong>de, foi tão somente se seria conveniente admitir que o Judiciário exprimisse, em um mesmo instantehistórico, várias interpretações para a mesma lei.O ponto tem relevância insuspeita, particularmente em face do sistema brasileiro. Não obstante, cabesublinhar, desde logo, que, se a função do nosso Superior do <strong>Tribunal</strong> de Justiça é zelar pela integri<strong>da</strong>dedo direito infraconstitucional, a sua feição não é muito diferente <strong>da</strong>quela que a Cassação francesa assumiucom o passar do tempo. Também no sistema brasileiro há preocupação em saber como o Judiciário devese exprimir diante <strong>da</strong> inafastabili<strong>da</strong>de de diversas interpretações, sendo a solução para o problema aimposição <strong>da</strong> interpretação do Superior <strong>Tribunal</strong> de Justiça sobre os tribunais ordinários.De qualquer forma, é imprescindível e importante notar que a Corte de Cassação, hoje tribunaljurisdicional voltado a assegurar a uniformi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> interpretação <strong>da</strong> lei, tem origem em um órgão nãojurisdicional, instituído para evitar que a vontade dos juízes se sobrepusesse à vontade dos habitantes doparlamento. De órgão voltado a garantir a supremacia <strong>da</strong> lei para órgão destinado a afirmar e a zelar poruma única interpretação <strong>da</strong> lei: eis a ver<strong>da</strong>deira mutação pela qual a Cassação passou.Contudo, é surpreendente que a cultura jurídica do civil law não tenha se <strong>da</strong>do conta de que talmutação não poderia permitir a manutenção dos dogmas – que deitam raízes na Revolução Francesa – deque a lei constitui a segurança de que o ci<strong>da</strong>dão precisa para viver em liber<strong>da</strong>de e em igual<strong>da</strong>de e de que ojuiz apenas atua a vontade <strong>da</strong> lei. 8312. A certeza jurídica como garantia <strong>da</strong> segurançaPara a Revolução Francesa, a lei seria indispensável para a realização <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de.Por este motivo, entendeu-se que a certeza jurídica seria igualmente indispensável diante <strong>da</strong>s decisõesjudiciais, uma vez que, caso os juízes pudessem produzir decisões destoantes <strong>da</strong> lei, os propósitosrevolucionários estariam perdidos ou seriam inalcançáveis.Assim, manter o juiz preso à lei seria sinônimo de segurança jurídica. O próprio Montesquieu fezcoro pela segurança jurídica fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na estrita aplicação <strong>da</strong> lei quando disse que, se os julgamentos“fossem uma opinião particular do juiz, viver-se-ia na socie<strong>da</strong>de sem saber precisamente oscompromissos que nela são assumidos”. 84 Essa passagem <strong>da</strong> doutrina de Montesquieu, segundo adverteGiovanni Tarello, evidencia uma ideologia que sugere que a liber<strong>da</strong>de política, entendi<strong>da</strong> como segurançapsicológica do indivíduo, realiza-se através <strong>da</strong> certeza do direito. 8583.V. GROSSI, Paolo. Mitologie giuridiche della modernità. 2. ed. Milano: Giuffrè, 2005. p. 55 e ss.84 .MONTESQUIEU, Barão de (Charles-Louis de Secon<strong>da</strong>t). Op. cit., p. 158; ver TARELLO, Giovanni. Op. cit., p. 194.85.TARELLO, Giovanni. Op. cit., p. 294.
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