Este capítulo pretende demonstrar, mediante um método histórico-crítico, a aproximação entre asjurisdições do civil law e do common law, e, em tal dimensão, a necessi<strong>da</strong>de de se render respeito aosprecedentes no direito brasileiro. Num sistema que, ao expurgar os dogmas, depara-se com a reali<strong>da</strong>deinafastável de que a lei é interpreta<strong>da</strong> de diversos modos, não há outra alternativa para se preservar aigual<strong>da</strong>de perante a lei e a segurança jurídica, elementos indispensáveis a um Estado de Direito.2. O common law: as teorias declaratória e constitutiva <strong>da</strong> jurisdiçãoNo common law, discutiu-se intensamente sobre o significado <strong>da</strong> decisão judicial, ou, maispropriamente, sobre o significado <strong>da</strong> função jurisdicional. Desejava-se esclarecer se a decisão judicialcriava o direito ou somente o declarava e, bem por isto, intuiu-se que se estava discutindo uma teoria <strong>da</strong>jurisdição. 2Inicialmente, sustentou-se, na Inglaterra, a tese de que o juiz apenas declarava o direito, sendo umdos seus principais defensores William Blackstone. 3 Em seu entendimento, existiria a lex non scripta – odireito não escrito ou o common law – e a lei escrita – o direito escrito ou o statute law. O common lawpropriamente dito espelharia tanto costumes gerais (“costumes estabelecidos” e “regras e máximasestabeleci<strong>da</strong>s”), 4quanto os costumes particulares de algumas partes do reino, bem como aquelesobservados apenas em algumas cortes e jurisdições. 5A suposição de que o common law consiste nos costumes gerais faz sentir a teoria declaratória emoutra perspectiva, isto é, a própria teoria declaratória sob disfarce. 6 Partindo-se <strong>da</strong> ideia de que o commonlaw está nos costumes gerais observados entre os Englishmen, o juiz não o cria, mas tão somente odeclara. Daí a conclusão de Blackstone de que as decisões <strong>da</strong>s Cortes constituíam a demonstração do queo common law é. 7Não obstante, a natureza declaratória também era frisa<strong>da</strong> quando a decisão se baseava em anteriorprecedente judicial. Se os precedentes se destinam a desenvolver o common law, decisões iguais sobre umponto de direito significariam, igualmente, common law. Para a teoria em análise, o juiz estava limitado adeclarar o direito fixado nos precedentes. A sua autori<strong>da</strong>de não lhe <strong>da</strong>va poder para criar um novo direito,mas apenas para manter e declarar um direito já conhecido. 82. WESLEY-SMITH, Peter. Theories of adjudication and the status of stare decisis. In: GOLDSTEIN, L. (ed.).Precedent in law. Oxford: Clarendon Press, 1987, p. 73 e ss.3. BLACKSTONE, William. Commentaries on the law of England (fac-símile <strong>da</strong> 1.ª edição, de 1765). Chicago: TheUniversity of Chicago Press, 1979. vol. 1, p. 69.4. Idem, p. 68.5. CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. Precedent in English law. Oxford: Clarendon Press, 1991. p. 168.6. “A ideia de que a common law consiste em costumes gerais é a teoria declaratória sob outro disfarce” (CROSS,Rupert; HARRIS, J. W. Op. cit., p. 168).7. BLACKSTONE, William. Op. cit., p. 86.8. “Assim, enquanto o case-law, no começo do século XIX, constituía uma parcela menor de regras escocesas emcomparação com as leis inglesas, ele era explicado nos mesmos termos em ambos os países. O common lawpauta-se nos costumes de um país no qual as decisões judiciais são declarações de direitos que podem ou nãoser precisas. Essas decisões são dota<strong>da</strong>s de autori<strong>da</strong>de na medi<strong>da</strong> em que são declara<strong>da</strong>s por eles [Câmara dosLordes], mas na<strong>da</strong> além disso” (No original: “Thus while case-law at the beginning of the nineteenth century
Jeremy Bentham e John Austin condenaram de maneira áci<strong>da</strong> e impiedosa a teoria declaratória.Bentham igualou-a ao método adotado para o treinamento de cachorros – chegou a qualificá-la,literalmente, de dog-law 9 –, ao passo que Austin acusou-a de ficção infantil. 10 Para este autor, os juízesteriam a noção ingênua de que o common law não seria produzido por eles, mas se constituiria em algomilagroso feito por ninguém, existente desde sempre e para a eterni<strong>da</strong>de, meramente declarado de tempoem tempo. 11 O common law, na concepção <strong>da</strong> teoria positivista, existia por ser estabelecido por juízes quepossuíam law-making authority, sendo o direito, então, produto <strong>da</strong> vontade dos magistrados: não algomeramente descoberto, porém, criado. 12A fim de ser mais bem compreendi<strong>da</strong> a disputa entre as duas teorias, é importante voltar a atençãopara a questão <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> decisão judicial. O problema, portanto, consiste em saber se o juiz tinhaautori<strong>da</strong>de para criar ou apenas para declarar o direito. Qualquer que seja a justificativa teóricaemprega<strong>da</strong> no intuito de se concluir que o juiz possui autori<strong>da</strong>de para criar o direito, há, antes, anecessi<strong>da</strong>de de conhecer a reali<strong>da</strong>de em que o Estado inglês se formou ao admitir a law-making authority.Aqui, não importa saber se a decisão declara ou cria o direito, mas sim conhecer o motivo pelo qual ocommon law admitiu, ao inverso do civil law, que o juiz pode criar o direito.Não obstante, a natureza declaratória ou constitutiva <strong>da</strong> decisão judicial poderia ter relevância para aquestão do respeito obrigatório aos precedentes ou, em outras palavras, para o stare decisis, enquantotomado em sua acepção corrente no direito estadunidense. 13 Afirmou-se que, se o precedente representaformed a smaller part of Scots than of English law, it was explained in the same terms in both countries. Thecommon law is the custom of the country of which judicial decisions are declarations which may or may not beaccurate. They are authoritative in so far as they declare it, but no further”) (MACCORMICK, Neil. Can staredecisis be abolished? Judicial Review, 1966, p. 203).9. BENTHAM, Jeremy. Truth versus Ashhurst; or law as it is, contrasted with what it is said to be. The works ofJeremy Bentham (published under the superintendence of his executor, John Bowring). Edinburgh: WilliamTait, 1843. vol. 5, p. 231-238.10. AUSTIN, John. Lectures on jurisprudence, or the philosophy of positive law. 5. ed. rev. London: John Murray,1911. vol. 2, p. 634.11.Idem. “O que o impediu [Blackstone] de perceber isto foi a ficção infantil emprega<strong>da</strong> por nossos juízes de que ojudiciary ou common law não é feito por eles, mas é algo milagroso feito por ninguém, existindo, eu imagino,a partir <strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de, e sendo meramente declarado de tempo em tempo pelos juízes” (No original: “Whathindered him from seeing this, was the childish fiction employed by our judges, that judiciary or common lawis not made by them, but is a miraculous something made by nobody, existing, I suppose, from eternity, andmerely declared from time to time by the judges”).12.“A common law, aduzem os positivistas, existia (se é que realmente existia) porque era posta por juízes quepossuíam a law-making authority [autori<strong>da</strong>de de fazer lei]. A lei era um produto <strong>da</strong> vontade judicial. Não eradescoberta, mas cria<strong>da</strong>” (No original: “The common law, said the positivists, existed (if it existed at all)because it was laid down by judges who possessed law-making authority. Law was the product of judicial will.It was not discovered but created”) (WESLEY-SMITH, Peter. Op. cit., p. 74).13.De regra, o termo stare decisis significa tanto a vinculação, por meio do precedente, em ordem vertical (ouseja, como representação <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de uma Corte inferior respeitar decisão pretérita de Corte superior),como horizontal (a Corte respeitar decisão anterior proferi<strong>da</strong> no seu interior, ain<strong>da</strong> que a constituição dosjuízes seja altera<strong>da</strong>). Esta é a posição adota<strong>da</strong>, entre outros, por Neil Duxbury e Melvin Aron Eisenberg. Emoutra sen<strong>da</strong>, há aqueles que optam por distinguir o termo stare decisis de precedent, como FrederickSchauer, para quem, “tecnicamente, a obrigação de uma corte de seguir decisões prévias <strong>da</strong> mesma corte édita como sendo stare decisis (...), e o termo mais abrangente precedente é usado para se referir tanto à stare
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