Revista Criticrtes 6 Ed
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artigo<br />
<strong>Revista</strong> Criticartes | 1º Trimestre de 2017 / Ano II - nº. 06<br />
“Linda, uma história horrível” é uma narrativa<br />
de raiz autobiográfica em muitos aspectos: o protagonista<br />
é um “exilado” (saiu de sua cidade natal, Passo da<br />
Guanxuma, uma alusão à cidade do interior onde Caio<br />
nasceu), mora em São Paulo (o que se detecta pela referência<br />
ao restaurante La Cassarole, do Largo do<br />
Arouche, e Caio morou muito tempo e por mais de uma<br />
vez em São Paulo) e está com aids (doença que Caio teve<br />
e que o levou à morte).<br />
A referência ao Passo da Guanxuma no texto é<br />
uma clara alusão às suas origens, pois Caio nasceu em<br />
Santiago (“que era do Boqueirão”), cidade do Rio<br />
Grande do Sul próxima à fronteira com a Argentina.<br />
Essa localidade imaginária aparece em outros textos do<br />
escritor .<br />
“Linda, uma história horrível” quase inaugura<br />
na ficção brasileira o tema da aids, já sugerido anteriormente<br />
em outros textos do autor. Em 1995, este conto<br />
foi incluído na antologia de The Penguin Book of<br />
International Gay Writing. Caio foi tradutor da novela<br />
Assim vivemos agora, de Susan Sontag, escrita em 1986 e<br />
publicada no Brasil em 1995, provavelmente a primeira<br />
história de ficção sobre a aids. No conto analisado, a doença<br />
não se configura propriamente como traço autobiográfico,<br />
mas como metáfora da solidão e do deslocamento<br />
do personagem.<br />
A dicotomia metrópole/cidade natal, recorrente<br />
em alguns textos de Caio e presente em “Linda, uma<br />
história horrível”, refere-se ao tema do exílio, ou autoexílio,<br />
que o personagem experimenta, metáfora do sujeito<br />
desenraizado, deslocado, desajustado.<br />
O desencanto, o irremediável, a decadência, marcas inde<br />
crônicas de jornais). Os últimos textos da década de<br />
90, antes de sua morte, nos dão indícios de algumas novas<br />
escolhas: uma retomada das narrativas mais lineares,<br />
com elementos memorialísticos, e certo vago resgate<br />
de suas raízes, nos temas e na linguagem.<br />
Assim, podemos perceber que sua trajetória literária<br />
nas três décadas tem momentos até distintos. É um<br />
escritor bastante múltiplo, inclassificável, talvez único<br />
na forma como escrevia e que o consagrou como contista.<br />
Para ilustrar o lado memorialístico e de volta às<br />
raízes, podemos ficar com apenas dois parágrafos do primeiro<br />
capítulo do romance que Caio pensou em escrever<br />
sobre o Passo da Guanxuma, onde se pode perceber<br />
até na linguagem a retomada de falares e vivências do<br />
Rio Grande do Sul e também sua veia humorística:<br />
Essa, claro, é a estrada preferida da bagaceirada do<br />
Passo. Nas noites de verão dizem que a soldadesca, os rapazes<br />
e até senhores de família, médicos e vereadores<br />
costumam arrebanhar o chinaredo das pensões de La<br />
Morocha para indescritíveis bacanais na beira dos lajeados,<br />
com muita costela gorda, coração de galinha no espeto,<br />
cachaça, violão e cervejinha em caixa de isopor.<br />
Depois dessas noitadas a areia branca da pequena praia<br />
da sanga Caraguatatá amanhece atulhada de brasas dormidas,<br />
pontas de cigarro, restos de carne mastigada, algum<br />
coração de galinha mais fibroso, camisas-de-vênus<br />
úmidas, tampinhas de garrafa, restos de papel higiênico<br />
com placas duras e, contam em voz baixa para as crianças<br />
não ouvirem, às vezes algum sutiã ou calcinha de cor<br />
escandalosa, dessas de china rampeira, alguma cueca<br />
manchada ou sandália barata de loja de turco com a tira<br />
arrebentada.<br />
Ao cair da tarde, principalmente em janeiro quando as<br />
famílias direitas buscam o frescor da sanga, a tradição<br />
manda os maridos irem na frente para limparem discretamente<br />
as areias, enquanto as senhoras se fingem de<br />
distraídas e diminuem o passo, sacudindo as toalhas sobre<br />
as quais vão sentar, que Deus me livre pegar doença<br />
de rapariga, comentam baixinho entre si, mas algum guri<br />
metido sempre acha alguma coisa nas macegas. Os lajeados<br />
são muitos, a sanga Caraguatatá desdobra-se secreta<br />
e lenta entre pedras, algumas tão altas que podem<br />
ser usadas como trampolim, e para quem tiver coragem<br />
de entrar pelo mato cerrado onde, dizem, até onça tem,<br />
revela praias de águas cada vez mais cristalinas, que pouca<br />
gente viu. Numa delas, certa manhã de setembro,<br />
Dudu Pereira foi encontrado morto e nu, a cabeça espatifada<br />
por uma pedra jogada ao lado, ainda com fios de<br />
cabelo grudados, lascas de ossos e gotas cinzas de cérebro.<br />
(ABREU, 1995, p. 67)<br />
Sintetizando, sua obra aborda os períodos da<br />
contracultura e da abertura política, é um registro da<br />
maneira de viver das gerações 70, 80 e 90. Segundo<br />
Wilson Martins, Caio Fernando Abreu é um “pintor da<br />
vida moderna” (título de Baudelaire), assim como<br />
Rubem Fonseca, Luiz Vilela e Sérgio Sant’Anna, todos<br />
grandes contistas. Assim como eles, Caio inovou no<br />
conto – na temática e na linguagem.<br />
“Linda, uma história horrível”<br />
Conto da maturidade do escritor, “Linda, uma<br />
história horrível” (Os dragões não conhecem o paraíso,<br />
1988) traz a aids como tema de ficção. A narrativa também<br />
tem como temas o exílio ou autoexílio – metáfora<br />
dos sujeitos modernos, deslocados por excelência – e a<br />
consequente decadência ou desencanto que caracterizam<br />
seus personagens. O tema do exílio é caro a grande<br />
parte da literatura do século XX, marcada pelo trânsito,<br />
tanto na vida quanto na ficção, do rural para o urbano.<br />
O protagonista, um homem de meia idade, visita<br />
sua mãe, que mora na pequena Passo da Guanxuma,<br />
uma localidade do interior. Ele mora em São Paulo, capital.<br />
A mãe e a cadela, que se chama Linda, estão velhas<br />
e decadentes, assim como a velha casa da infância. Ele está<br />
doente e a visita deve-se ao intento de contar isso à<br />
mãe. O conto é a história desse encontro e sua impossibilidade,<br />
pois ele não acontece verdadeiramente. No retorno<br />
à casa, filho e mãe conversam sobre lembranças,<br />
pessoas próximas e seus trágicos destinos, passando ao<br />
largo do provável destino trágico do protagonista, que<br />
não é revelado justamente pela falta de diálogo aberto.<br />
Ele não consegue revelar a ela que está com aids. A doença<br />
não é nomeada, mas sugerida.<br />
Raiz autobiográfica e abordagem dos temas<br />
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