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Revista Criticrtes 6 Ed

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artigo<br />

O chatólogo<br />

Figueiredo<br />

Cahoni Chufalo<br />

Mogi das Cruzes, SP, Brasil<br />

@: cahoni@gmail.com<br />

No início de seu famoso<br />

Discurso ao Método, Descartes<br />

diz ser o bom senso a coisa do<br />

mundo melhor partilhada. Isso<br />

porque ninguém julgava não<br />

possuí-lo, ou possuí-lo em falta<br />

ou em demasia. Da chatice poderíamos<br />

dizer o mesmo, mas pelo<br />

motivo inverso: ninguém julga<br />

possuí-la. No entanto, a experiência<br />

de qualquer indivíduo<br />

acordado demonstra que ela existe,<br />

é palpável, perceptível, amplamente<br />

disseminada, absolutamente<br />

democrática. Aparece<br />

em qualquer lugar, tempo, pessoa,<br />

objeto. Assim, embora ninguém<br />

assuma ser portador de tal<br />

moléstia, devemos concluir que<br />

a chatice é a coisa mais bem partilhada<br />

do mundo, muito mais<br />

do que o bom senso, quase raridade.<br />

Não é de se estranhar, então,<br />

que patologia tão onipresente<br />

se transforme em objeto<br />

de estudo.<br />

Não sei se Guilherme<br />

Figueiredo foi o inventor da<br />

Chatologia. Seu Tratado Geral<br />

dos Chatos (1962) dá, entretanto,<br />

uma bela contribuição à mat<br />

é r i a . S e r i a c i ê n c i a ?<br />

Dificilmente. O objeto é esquivo<br />

e bastante subjetivo. Basta<br />

pensar que aquilo que me chateia<br />

pode alegrar um outro. Ou<br />

aquele que acho chato pode ser<br />

chateado por alguém que acho<br />

não-chato. Não decorre daí, da<br />

dificuldade da matéria, que devemos<br />

virar as costas ao esforço do<br />

<strong>Revista</strong> Criticartes | 1º Trimestre de 2017 / Ano II - nº. 06<br />

o ecologista, o engajado de<br />

Facebook; temos o intelectual, o<br />

filósofo, o sociólogo, o economista,<br />

o cientista, o matemático<br />

de Facebook; temos os polemistas,<br />

os catequéticos, os cientistas<br />

políticos, críticos literárioplástico-cinematográficos<br />

de<br />

Facebook; temos os místicos, os<br />

religiosos, os ateus, os otimistas,<br />

os pessimistas, os bom-vivants,<br />

os miseráveis de Facebook; temos<br />

os humoristas, artistas, narcisistas,<br />

jornalistas, humanistas,<br />

vanguardistas, tradicionalistas,<br />

carentes, revoltados, terroristas,<br />

puxa-sacos, machões e feministas<br />

de Facebook; temos aqueles<br />

que são uma mistura de alguns<br />

desses predicados e de outros<br />

não citados; e temos os casos extremos,<br />

aqueles que são tudo isso<br />

e mais um pouco. No<br />

Facebook, claro. A democracia<br />

digital permite que cada um de<br />

nós seja aquilo que diz ser. Ou<br />

quer ser. Ou, linguisticamente<br />

falando, se enuncia como sendo.<br />

A internet nos metamorfoseia.<br />

Geralmente, para pior. E toda<br />

essa vasta gama de personagens<br />

e informações que nos chegam<br />

todos os dias, bem ali na palma<br />

de nossas mãos, serve apenas<br />

para uma coisa: nos chatear.<br />

A esfera da chateação virtual<br />

tem uma vantagem: pode<br />

ser abrandada. Com um pouco<br />

de coragem e autodomínio você<br />

poderá exclamar: hoje eu não entrei<br />

na internet; hoje não chequei<br />

meus e-mails nem entrei no<br />

Facebook; hoje, só por hoje, não<br />

fui virtualmente chateado nem<br />

chateei ninguém. A atitude nem<br />

sempre é fácil. Um dos vícios<br />

contemporâneos é justamente o<br />

vício da internet. E vícios são,<br />

justamente, a passagem do prazeroso<br />

à chatice. O viciado preciautor.<br />

Sua tentativa de definição<br />

e classificação do chato é de inegável<br />

valor. Não identificamos<br />

rapidamente o tipo chatopostulante,<br />

sempre a pedir algo a<br />

a l g u é m , o u o c h a t o -<br />

confidencial, sempre a contar<br />

uma nova fofoca imperdível agarrado<br />

aos colarinhos alheios?<br />

Outro vivo observador do comportamento<br />

humano (ou seja,<br />

comportamento do chato),<br />

Millôr Fernandes, tem uma definição<br />

do chato que se encaixa<br />

exatamente no tipo chatoconfidencial.<br />

Diz ele que o chato<br />

é “o sujeito que tem um uísque<br />

numa mão e nossa lapela na outra”.<br />

Será que a coincidência dessas<br />

observações pode abrir caminho<br />

para um estudo mais objetivo<br />

dos chatos? O futuro das pesquisas<br />

nos dirá. O que fica claro<br />

é que o chato é gregário. Com a<br />

exceção, claro, do chato-de-simesmo.<br />

O chato é gregário.<br />

Precisa do outro. Imaginem<br />

quantas novas classificações nosso<br />

especialista não faria nesses<br />

tempos de plena interconectividade?<br />

Guilherme Fiqueiredo<br />

morreu em 1997. Não pôde ver e<br />

analisar a chatice produzida, amplificada<br />

e globalmente disseminada<br />

graças à internet e às redes<br />

sociais. Pois a tecnologia encurta<br />

as distâncias. Aumenta, entretanto,<br />

o raio de ação do chato. O<br />

chato não mais precisa sair de casa<br />

para espalhar sua chatice. Ela<br />

nos chega de tempos em tempos,<br />

apitando ou vibrando nossos<br />

smartphones. E como a internet,<br />

especialmente as redes sociais,<br />

é um espelho do ser humano,<br />

temos todo o espectro da chatice<br />

humana (e mais alguns) sob<br />

a forma virtual. Temos o pacifista,<br />

o revolucionário, o militante,<br />

- 30 -<br />

www.revistacriticartes.blogspot.com.br

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