Revista Criticrtes 6 Ed
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<strong>Revista</strong> Criticartes | 1º Trimestre de 2017 / Ano II - nº. 06<br />
artigo<br />
adjetivo azedo é usado duas vezes para se referir a ela; as<br />
mãos “cheias de manchas escuras, ele viu, como sardas<br />
(ce-ra-to-se, repetiu mentalmente), pintura alguma nas<br />
unhas rentes dos dedos amarelos de cigarros”, “as costas<br />
dela, tão curvas. Parecia mais lenta...”.<br />
Outro personagem decadente é a cadela, sarnenta<br />
e quase cega, apesar do irônico nome “Linda”:<br />
“Uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir, comer e cagar, esperando<br />
a morte.”; “velha que dá medo”.<br />
O protagonista está doente e cansado: “– Tu estás<br />
mais magro – ela observou. Parecia preocupada. –<br />
Muito mais magro. – É o cabelo – ele disse. Passou a<br />
mão pela cabeça quase raspada. – E a barba, três dias. –<br />
Perdeu cabelo, meu filho. – É a idade. Quase quarenta<br />
anos. – Apagou o cigarro. Tossiu. – E essa tosse de cachorro?<br />
– Cigarro, mãe. Poluição.”<br />
O ambiente da casa é decadente. O tapete é puído:<br />
“E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois<br />
apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro –<br />
agora, que cor?”; “Manchadas de gordura, as paredes da<br />
cozinha. A pequena janela basculante, vidro quebrado.<br />
No furo do vidro, ela colocara uma folha de jornal. País<br />
mergulha no caos, na doença e na miséria – ele leu. E sentou<br />
na cadeira de plástico rasgado.”; “A xícara amarela tinha<br />
uma nódoa escura no fundo, bordas lascadas.”<br />
Até o jornal, ironicamente (ou premonitoriamente?)<br />
anuncia a ruína: “País mergulha no caos, na doença<br />
e na miséria”. A doença anunciada pelo jornal certamente<br />
não é a aids, mas o filho percebe os augúrios de<br />
um destino trágico. Quanto tempo teria de vida?<br />
No conto, apesar de tamanha carga de estranhamento,<br />
de desencontro, de solidão e desespero, há momentos<br />
de rara beleza, de possível afeto:<br />
Então fez uma coisa que não faria, antigamente.<br />
Segurou-o pelas duas orelhas para beijá-lo não na testa,<br />
mas nas duas faces. Quase demorada. Aquele cheiro – cigarro,<br />
cebola, cachorro, sabonete, cansaço, velhice.<br />
Mais qualquer coisa úmida que parecia piedade, fadiga<br />
de ver. Ou amor. Uma espécie de amor.<br />
Os personagens de Caio Fernando Abreu, no<br />
conjunto de sua obra, são urbanos, fragmentados, anônimos,<br />
desencantados. Ele é considerado o fotógrafo da<br />
fragmentação contemporânea.<br />
Na orelha (não assinada) de Os dragões não conhecem<br />
o paraíso, encontramos uma síntese sobre todos os temas<br />
referidos:<br />
(...) suas personagens movimentam-se em meio às ruínas<br />
de um mundo em plena decomposição (...) ou a simulacros<br />
de felicidade (...). São homens e mulheres exilados<br />
dentro ou fora de si próprios, em permanente estado<br />
de ameaça por todos os vírus de fim de milênio –<br />
da solidão e violência à própria aids – e permanente<br />
busca de prazer. Os dragões não conhecem o paraíso pode<br />
quem sabe ser lido como um retrato do Brasil de hoje.<br />
Um retrato interior, tirado à beira do abismo, às vezes<br />
impiedosamente realista, mas de onde também podem<br />
brotar inesperados sopros de lirismo. Estas ficções, cenários<br />
e figuras são dragões imperfeitos, como tentativas<br />
de encontrarem-se a si próprios – através do confronto<br />
com o mundo real, do autoconhecimento ou da<br />
REFERÊNCIAS<br />
necessidade cósmica de amor em torno da qual todas as<br />
personagens e textos giram. Concêntricos, perturbadoramente<br />
vivos em sua desamparada atualidade. (grifos<br />
meus)<br />
ABREU, Caio Fernando. Além do ponto e outros contos. Seleção e<br />
organização de Luís Augusto Fischer. São Paulo: Ática, 2009.<br />
ABREU, Caio Fernando. Introdução ao Passo da Guanxuma.<br />
In: _____. Ovelhas negras. Porto Alegre: Sulina, 1995.<br />
ABREU, Caio Fernando. Linda, uma história horrível.<br />
In:_____. Os dragões não conhecem o paraíso. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 1988.<br />
ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. 3. ed. São Paulo:<br />
Brasiliense, 1983. (Cantadas Literárias)<br />
ABREU, Caio Fernando. Ovelhas negras. Porto Alegre: Sulina,<br />
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Paulo: Ática, 1989.<br />
FISCHER, Luís Augusto. Além do ponto e outros contos. São Paulo:<br />
Ática, 2009.<br />
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Paulo, n. 8, p. 36-45, 2005.<br />
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encontra o vírus da aids. Itinerários, Araraquara, n. 13, p.<br />
217-223, 1998.<br />
MOREIRA, Ricardo A. A história horrível para ser contada depois<br />
de agosto: uma análise de dois contos de Caio Fernando Abreu.<br />
<strong>Revista</strong> Literatura e Autoritarismo. Dossiê “Cultura Brasileira<br />
Moderna e Contemporânea”. Dez. 2009.<br />
ROCHA, Hudson Lima Bezerra. Matizes de cultura de massa na<br />
obra de Caio Fernando Abreu. Dissertação (Mestrado em<br />
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da Linguagem (PPgEL) - UFRN, 2014.<br />
D i s p o n í v e l e m :<br />
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20 jun. 2016.<br />
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Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2009.<br />
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areia bem clara, ali, na beira da sanga": narradores e narrativas em<br />
conflito. Itinerários, Araraquara, n. 32, p. 83-98, jan./jun. 2011.<br />
D i s p o n í v e l e m : <<br />
http://seer.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/4578/3980<br />
>. Acesso em: 17 mar. 2016.<br />
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www.revistacriticartes.blogspot.com.br