Revista Criticrtes 6 Ed
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artigo<br />
<strong>Revista</strong> Criticartes | 1º Trimestre de 2017 / Ano II - nº. 06<br />
de areia bem clara, ali, na beira da sanga” (também do livro<br />
Os dragões não conhecem o paraíso, de 1988), estudados<br />
por Souza (2011, p. 83), para quem há um personagem<br />
constante na obra do escritor gaúcho: “o sujeito<br />
moderno que não se insere em nenhum lugar e que está<br />
em permanente situação de desconforto e de desarticulação<br />
com o contexto em que vive”. Para a pesquisadora,<br />
o exílio “é uma experiência relevante para a história do<br />
século XX e largamente tematizada na literatura moderna,<br />
sobretudo por escritores forçados a sair de sua terra<br />
natal, tal como Caio Fernando Abreu” (p. 83).<br />
Ginzburg (2005, p. 39) estudou os contos “Lixo e purpurina”<br />
(já mencionado) e “Os sobreviventes” (do livro<br />
Morangos mofados, de 1982), abordando as relações entre<br />
exílio, memória e história, e vai mais longe em sua<br />
análise, apontando o tema do duplo exílio:<br />
Por um lado o indivíduo sente-se exilado por estar fisicamente<br />
fora de sua cidade natal ou do país de origem<br />
que em grande medida constitui sua identidade. Isso<br />
porque os locais de exílio (...) não acolhem totalmente<br />
o sujeito. Ao contrário, o que permanentemente se reafirma<br />
é essa sensação de não pertencimento, além das vivências<br />
de exclusão, preconceito, violência e dificuldades<br />
materiais largamente narradas (...). Por outro, esse<br />
deslocamento parece definir esses personagens, de tal<br />
modo que não podemos afirmar que ter saído da terra<br />
natal seja a única razão para que eles se sintam permanentemente<br />
cindidos internamente. É [uma] cisão mais<br />
interna, intrínseca ao desejo, que rege a subjetividade<br />
dos personagens e transcende a questão do exílio.<br />
(grifos meus)<br />
Borges (s/d) traz a expressão “estrangeiro de si<br />
mesmo” para falar de personagens de Caio e também<br />
do próprio escritor:<br />
Relacionar o conceito de estrangeiro à novela “Bem longe<br />
de Marienbad”, de Caio Fernando Abreu, aparentemente,<br />
não é adentrar em uma nova discussão acadêmica.<br />
O texto está presente na obra Estranhos estrangeiros,<br />
que já tem em seu título indicações quanto à abordagem<br />
desse tema. Contudo, geralmente para tratar de tal<br />
assunto, associa-se aos personagens de Caio as concepções<br />
de <strong>Ed</strong>ward Said, Stuart Hall e Homi Bhabha, teóricos<br />
ligados aos Estudos Culturais e a abordagens de cunho<br />
prioritariamente histórico-sociais, o que, de certo<br />
modo, vai de encontro à natureza da narrativa em questão,<br />
que prioriza os aspectos subjetivos e psicológicos<br />
do indivíduo, estrangeiro para um novo país, mas também<br />
para si mesmo. Assim, a obra de Julia Kristeva,<br />
Estrangeiros para nós mesmos, adéqua-se a este estudo, pois,<br />
mesmo enfatizando a análise psicanalítica, não esquece<br />
a cultural para descrever características e movimentos<br />
daquele que é estrangeiro. (grifos meus)<br />
A mesma percepção sobre Caio Fernando<br />
Abreu tem Araújo (2012):<br />
Como seus personagens, Caio se sentia estrangeiro<br />
eterno, irremediável, um estranho estrangeiro, sem<br />
paz fora da própria terra, incapaz de viver nela. Em<br />
quase todos os contos, o escritor aborda seus temas preferidos:<br />
o estranhamento, a solidão, a dor e o sentimento<br />
de marginalização. (grifos meus)<br />
Esse estranhamento é percebido em alguns momentos<br />
do conto, que tem cunho autobiográfico, como<br />
já comentado:<br />
A xícara amarela tinha uma nódoa escura no fundo, bordas<br />
lascadas. Ele mexeu o café, sem vontade. De repente,<br />
então, enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis<br />
fugir. Como se volta a fita num videocassete, de costas,<br />
apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de entrada,<br />
ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente<br />
para a ruazinha de casas quase todas brancas. Até<br />
algum táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe do<br />
Passo da Guanxuma, até a outra vida de onde vinha.<br />
Anônima, sem laços nem passado. Para sempre, para<br />
nunca mais. Até a morte de qualquer um dos dois, teve<br />
medo. E desejou. Alívio, vergonha.<br />
A decadência e o desencanto dos personagens<br />
O relacionamento entre mãe e filho no conto é<br />
marcado pela decadência. O encontro entre os dois é desencontro,<br />
em muitos aspectos.<br />
A mãe não se emociona ao recebê-lo:<br />
Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os<br />
olhos para vê-lo melhor. Mediram-se um pouco assim –<br />
de fora, de dentro da casa –, até ela afastar o rosto, sem<br />
nenhuma surpresa. Estava mais velha, viu ao entrar. E<br />
mais amarga, percebeu depois. (grifos meus)<br />
Em outro momento, a falta de jeito entre os dois<br />
é flagrante:<br />
Ela tirou um maço de cigarros do bolso do robe:<br />
– Me dá o fogo.<br />
Estendeu o isqueiro. Ela tocou na mão dele, toque áspero<br />
das mãos manchadas de ceratose nas mãos muito<br />
brancas dele. Carícia torta. (grifos meus)<br />
Em outro trecho, a incomunicabilidade parece<br />
se esvair, por instantes, mas volta à estaca zero. É como<br />
se a mãe, evitando ouvi-lo, evitasse a verdade que ele<br />
tem a dizer. É ela quem quebra o clima do momento e<br />
desvia os olhos, para não ouvir mais. É o clímax do conto,<br />
marcado pelo verso de Ana Cristina Cesar, referenciado<br />
pelo autor em nota de rodapé, numa citação explícita:<br />
Levantou os olhos, pela primeira vez olhou direto nos<br />
olhos dela. Ela também olhava direto nos olhos dele.<br />
Verde desmaiado por trás das lentes dos óculos, subitamente<br />
muito atentos. Ele pensou: é agora, nesta contramão.<br />
Quase falou. Mas ela piscou primeiro. Desviou os<br />
olhos para baixo da mesa, segurou com cuidado a cadela<br />
sarnenta e a trouxe até o colo.<br />
Há outro momento de desencontro de toques:<br />
– Foi boa aquela noite, não foi?<br />
– Foi – ela concordou. – Tão boa, parecia filme. –<br />
Estendeu a mão por sobre a mesa, quase tocou na mão<br />
dele. Ele abriu os dedos, certa ânsia. Saudade, saudade.<br />
Então ela recuou, afundou os dedos na cabeça pelada<br />
da cadela.<br />
– O Beto gostou da senhora. Gostou tanto – ele fechou<br />
os dedos.<br />
Assim fechados, passou-os pelos pelos do próprio braço.<br />
Umas memórias, distância. – Ele disse que a senhora<br />
era muito chique. (grifos meus)<br />
Além dos desencontros afetivos, são muitos os<br />
sinais da decadência. A mãe está mais velha e tem “cheiro<br />
de carne velha, sozinha há anos”, a “voz tão rouca”, o<br />
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