Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
• HISTÓRIAS<br />
H ISTÓRIAS<br />
cURITIBANAS<br />
Meu lugar, seu lugar<br />
A grande verdade<br />
é que não escolhemos<br />
onde moramos.<br />
País, cidade, bairro<br />
ou casa. Apenas nos<br />
permitimos ficar em<br />
determinado local,<br />
por algum motivo,<br />
torpe ou não. Talvez<br />
tenhamos nascido ali,<br />
ou seja onde nossa<br />
família e amigos estão.<br />
Ou ainda o único<br />
local que nos “ofereceu”<br />
um emprego e<br />
nos permite manter o<br />
aluguel em dia.<br />
Outra grande verdade<br />
é que muitos<br />
que afirmam amar a<br />
cidade onde vivem,<br />
amariam outro lugar<br />
em que fossem forçados<br />
a viver alguns<br />
meses ou anos. No<br />
fundo, é o tempo que estabelece esta conexão, embora a<br />
mudança sempre venha acompanhada de boas doses de<br />
receio e, claro, a simples ideia de adotar outra cidade é<br />
assustadora.<br />
Dias atrás, por exemplo, descia a pé a Cândido Lopes.<br />
Esquina com a Dr. Muricy, havia uma velinha tentando<br />
atravessar a rua. Lentamente, quase parando. Olho para<br />
os lados, em busca de um motorista louco e imprudente,<br />
estes que costumam vir à toa sem medir as consequências.<br />
Não há nenhum e a senhora conseguiu chegar a outro<br />
lado, devagar, quase parando – claramente, mais do que<br />
os carros e o movimento intenso do centro às duas da<br />
tarde, seu maior adversário é aquilo que o tempo já impôs<br />
ao seu corpo.<br />
Despeço-me com<br />
o olhar, enquanto<br />
ela sobe a calçada e<br />
vai em direção a um<br />
prédio qualquer. Sigo<br />
meu caminho até um<br />
restaurante próximo<br />
ao bondinho e Palácio<br />
Avenida. Tarde fria<br />
de outono, céu azul,<br />
uma ou outra nuvem,<br />
como aprendi a gostar.<br />
Vou a um dos meus<br />
restaurantes preferidos,<br />
peço o prato que mais<br />
gosto, sento próximo à<br />
rua e fico observando<br />
o ir e vir.<br />
Vejo duas meninas<br />
de mãos dadas, pessoas<br />
aparentemente sem<br />
rumo, um grupo de<br />
idosos rindo como se o<br />
tempo não importasse<br />
– e, para eles, no fundo<br />
pouco ou nada importa. Há tempo também para pedintes e<br />
moças elegantes, já usando cachecol, afinal, o frio chegou.<br />
O claro contraste curitibano. Mais a frente, um jovem casal<br />
aos beijos, e outro casal de velhinhos passando.<br />
Lá no fundo, o que mantém o ser humano vivo, é sua<br />
capacidade de abstração, de observar elementos distintos<br />
e separá-los da realidade, de sentir aquilo que não se vê e<br />
não se toca. E na rua em uma tarde de terça-feira, enquanto<br />
observo pessoas que não conheço aproveito e peço a alguma<br />
entidade divina que não me faça, por qualquer motivo,<br />
um dia precisar ir embora: ao menos por enquanto, ainda<br />
é possível me achar por ali, sentado em algum banco, a<br />
qualquer hora do dia, como se fosse minha casa.<br />
Texto: M.B. / Ilustração: Fernanda Domingues<br />
86