última página teksomolika/iStock ninguém é uma ilha Claudia Penteado Quando estive na Capadócia, na Turquia, vivi uma experiência que me marcou mais do que muitas outras naquela viagem: na pequena banca <strong>de</strong> rua, <strong>de</strong> uma senhora bem idosa, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> escolher distraidamente alguns colares artesanais para levar <strong>de</strong> presente, na hora <strong>de</strong> pagar ela embrulha apenas dois e profere, com um sorriso tranquilo, mas olhando bem firme nos meus olhos: “Compre os outros da minha colega, ali adiante. Assim, todas ganhamos”. Naquele instante, vivi um exemplo genuíno <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>: o que ganharia ela, afinal <strong>de</strong> contas, se a sua colega não ven<strong>de</strong>sse nada? Depois <strong>de</strong> comprar mais alguns itens da sua colega, eu e meu marido saímos dali em silêncio, numa espécie <strong>de</strong> epifania com o inusitado do que acabávamos <strong>de</strong> vivenciar. O que me marcou foi a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que, para estar bem, é preciso que todos ao redor também estejam, ou não faz sentido. Para uma brasileira, habituada à (falta <strong>de</strong>) lógica da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, ouvir algo assim tem o efeito <strong>de</strong> um tapa na cara. Os estranhos dias que todos vivemos no Brasil durante a greve dos caminhoneiros me fizeram lembrar da senhorinha da Capadócia. Vivemos - e ainda estamos vivendo - um clima <strong>de</strong> falta. Uma falta à qual não estamos habituados, nós oci<strong>de</strong>ntais da classe média privilegiada, com a cega percepção <strong>de</strong> fartura e abundância <strong>de</strong> comida, água e energia. Raramente lidamos com a falta. Como crianças mimadas, mal conseguimos lidar com a falta do aparelho celular durante algumas horas. Nestes dias <strong>de</strong> escassez <strong>de</strong> alguns alimentos e combustíveis, ouvi amigos <strong>de</strong>clarando estarem estocando comida, e o <strong>de</strong>sespero em torno da i<strong>de</strong>ia da falta levou varejistas a terem <strong>de</strong> limitar o número <strong>de</strong> itens comprados por pessoa. Estoques se esvaziaram não só, mas também, pelo medo da falta. Augusto Cury, autor <strong>de</strong> O colecionador <strong>de</strong> lágrimas, escreveu que quando a vida está em risco, o instinto <strong>de</strong> sobrevivência prevalece sobre a solidarieda<strong>de</strong>, referindo-se a experiências <strong>de</strong> guerra. Nossa vida não esteve em risco, e por aqui nunca vivemos guerras: talvez por isso sejamos tão toscos para lidar com a falta. Como cultura, temos muito a apren<strong>de</strong>r com ela. Nossa cultura, americana oci<strong>de</strong>ntal, é classicamente individualista, celebra o controle pessoal e o indivíduo autossuficiente. Nossos livros <strong>de</strong> autoajuda mais vendidos têm títulos como A sutil arte <strong>de</strong> ligar o foda-se ou Seja foda. Muitas outras culturas - como a asiática e a africana - nutrem o chamado coletivismo, aquele que enxerga a inter<strong>de</strong>pendência em <strong>de</strong>trimento da in<strong>de</strong>pendência, “Como Cultura, temos muito a apren<strong>de</strong>r Com a falta” que conjuga com maior frequência o verbo na primeira pessoa do plural do que na primeira pessoa do singular. Basta ver como eles, asiáticos, reagem a gran<strong>de</strong>s crises, como a <strong>de</strong> 2011. Práticas <strong>de</strong> sustentabilida<strong>de</strong> são um bom começo para começar a enxergar as coisas pela perspectiva da inter<strong>de</strong>pendência. Se eu estou bem e a minha vizinhança não, isso não é sustentável. A sustentabilida<strong>de</strong> nada mais é do que o pensamento sistêmico e a boa leitura dos ambientes - a partir da inter<strong>de</strong>pendência entre as coisas. Durante a crise não vi exemplos retumbantes <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>, vi apenas uma marca entrando em cena para fazer algo <strong>de</strong> valoroso: o Itaú, que disponibilizou suas bicicletas ao longo da semana por um valor simbólico <strong>de</strong> 10 centavos. Gostem ou não <strong>de</strong> bancos, ou da marca, ela entrou em cena, em voo solo, pondo em prática o seu propósito, para além do discurso. 58 4 <strong>de</strong> <strong>junho</strong> <strong>de</strong> <strong>2018</strong> - jornal propmark
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