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Chicos 55 - 22.12.2018

Chicos é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática. Neste número, o poeta da primeira página é Luiz Ruffato. Dono de uma obra em prosa consagrada em vários idiomas mundo afora, é autor de uma poesia que merece ser lida pela qualidade.

Chicos é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais.
A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.
Neste número, o poeta da primeira página é Luiz Ruffato. Dono de uma obra em prosa consagrada em vários idiomas mundo afora, é autor de uma poesia que merece ser lida pela qualidade.

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“Amigo” é uma grande tarefa,<br />

Um trabalho sem fim,<br />

Um espaço útil, um tempo fértil,<br />

“Amigo” vai ser, é já uma grande festa!<br />

Claro está que aquele brasileiro ainda não havia<br />

lido isto. E que, até o dia 25 de junho de<br />

1965, não fazia a menor idéia de quem era Alexandre<br />

Manuel Vahia de Castro O’Neill de Bulhões<br />

– por um lado, neto de um irlandês, e, por<br />

outro, parente de Santo Antônio, que também<br />

era um Bulhões. Portanto, não sabia que ele, aos<br />

40 anos, era um dos maiores nomes das letras<br />

portuguesas do século 20, às quais legou páginas<br />

memoráveis, sobretudo em versos, como os<br />

de “Um adeus português”, “A pluma caprichosa”,<br />

“O poema pouco original do medo”, “O<br />

país relativo”, “Portugal”.<br />

Sua obra poética está toda reunida num só<br />

volume, de mais de 500 páginas. Publicou livros<br />

de crônicas, com títulos curiosos, como “As horas<br />

já de números vestidas” e “Uma coisa em<br />

forma de assim”. Amou muitas mulheres (o brasileiro<br />

desta história conheceu algumas delas:<br />

Noêmia, a mãe de seu filho Xaninha, Pâmela e<br />

Teresa, com quem teve outro filho). Mudou de<br />

endereço uma vez, para a Rua da Escola Politécnica,<br />

48. Teve um programa de TV, coluna em<br />

jornal, e muitos patrões, até não achar mais<br />

quem lhe desse emprego. Entre os altos e baixos,<br />

viveu à rasca, ou seja, com problemas de<br />

dinheiro. Viajou ao Brasil em 1983, quando conheceu<br />

o Rio, São Paulo, Salvador e Fortaleza,<br />

fazendo parte de uma delegação de escritores,<br />

que incluía José Saramago, Lídia Jorge, José<br />

Cardoso Pires e Lobo Antunes. (Ao embarcar de<br />

volta a Lisboa, no Galeão, disse: - Quem chega<br />

por este aeroporto pela primeira vez, fica a achar<br />

que está a chegar num dos países mais ricos do<br />

mundo.).<br />

Alexandre O’Neill bebeu e fumou demais.<br />

Sofreu o primeiro enfarto aos 52 anos. Morreu<br />

no dia 21 de agosto de 1986, aos 62.<br />

Em 6 de julho de 82, ele havia publicado no<br />

Jornal de Letras, de Lisboa, a seguinte crônica:<br />

“Quando se está com pane cardíaca o universo<br />

míngua e um sujeito ‘desliga’. Passa para a<br />

categoria de ‘bom doente’ para ver se salva o<br />

canastro, mas não tem propriamente medo. Só<br />

tem medo que se enganem nos remédios e lhe<br />

<strong>Chicos</strong><br />

enfiem os que são para algum vizinho... De resto,<br />

nada mais, a não ser que, quando se volta<br />

para casa, se sente tudo fora do sítio e não se<br />

acredita que o canastro volte à normalidade.<br />

Nem com um jornal na mão se pode andar. Nem<br />

se pode caminhar contra o vento. Nem... Nem...<br />

Nem... Até que um dia um sujeito se sente de<br />

repente melhor que novo e recomeça a fazer asneiras...”<br />

Lisboa, 6 de novembro de 1995.<br />

*<br />

“Numa noite escura da alma são sempre<br />

três horas da manhã”.<br />

Alexandre O’Neill: esta frase aí é de Scott<br />

Fitzgerald (lembra?) e serve à perfeição para revestir<br />

as horas já de números vestidas, sem que<br />

eu consiga pegar no sono. Vem um motorista<br />

me buscar aqui no hotel, às sete, para me levar<br />

ao aeroporto, onde devo embarcar para Roma,<br />

se sobreviver até lá. Que coisa estranha: rodei,<br />

rodei, rodei para, afinal, vir morrer em Lisboa.<br />

Estou com medo. E achando que desta noite não<br />

escapo. Não adianta mudar de posição na cama,<br />

deitar de lado até o ombro doer, esperando que<br />

o sono chegue. Já fui ao banheiro várias vezes,<br />

me olhei no espelho, pra ver se há algum sinal<br />

de morte na minha cara, que parece normal. Já<br />

bebi potes de água, e nada do sono baixar. É<br />

estranho mesmo. Muito estranho. Para piorar as<br />

coisas, vêm-me à memória uns versos da sua<br />

lavra:<br />

Eu estava bom pra morrer<br />

nesse dia.<br />

Não tinha fome nem sede,<br />

nem alarme ou agonia.<br />

Comigo me desavenho nas horas que vão se<br />

vestindo de branco.<br />

Estou no Hotel Tivoli, na Avenida da Liberdade.<br />

Ainda há pouco cheguei à janela e vi as árvores<br />

negras, peladas, desvestidas de folhas, como<br />

em todos os outonos de Lisboa. E pensei:<br />

“Provavelmente um dia eu já tenha vivido aqui.<br />

Mas isso faz muito tempo. Foi no tempo de Alexandre<br />

O’Neill”. O que escreveu:<br />

62

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