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Chicos 55 - 22.12.2018

Chicos é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática. Neste número, o poeta da primeira página é Luiz Ruffato. Dono de uma obra em prosa consagrada em vários idiomas mundo afora, é autor de uma poesia que merece ser lida pela qualidade.

Chicos é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais.
A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.
Neste número, o poeta da primeira página é Luiz Ruffato. Dono de uma obra em prosa consagrada em vários idiomas mundo afora, é autor de uma poesia que merece ser lida pela qualidade.

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Subamos e desçamos a Avenida,<br />

Enquanto esperamos por uma outra<br />

(ou pela outra) vida.<br />

Estou aqui como jurado do Prêmio Camões,<br />

ora veja. E vim com o romancista Márcio Souza<br />

e o poeta Affonso Romano de Sant’Anna. O prêmio<br />

saiu para José Saramago, aquele que me<br />

deu uma carona da casa do nosso amigo Fernando<br />

Santos para a sua, numa noite de fevereiro de<br />

1984, em que fui seu hóspede (outra vez!), por<br />

cinco dias.<br />

Àquela altura, você estava passando a pão e<br />

água, eu me recordo. A ponto de catar tostões<br />

para uma refeição por dia, como me contou. E<br />

remoia-se em atribulações pelo fracasso de um<br />

casamento; um filho com problemas (parece que<br />

veio a se suicidar); nenhuma perspectiva de trabalho.<br />

Ainda assim, você se contorcia em dúvidas:<br />

se devia ou não aceitar uma bolsa mensal<br />

do Instituto Português do Livro, oferecida pelo<br />

presidente daquela instituição, António Alçada<br />

Baptista, seu amigo de todas as horas, até a última.<br />

(Foi ele quem me telefonou um dia, para me<br />

dizer, desolado, que você havia entrado em coma).<br />

- Não achas que essa bolsa é uma espécie de<br />

esmola? – você me perguntou, num daqueles<br />

cinco dias em que me oferecia a sua casa, pela<br />

última vez.<br />

- Aceite-a como um direito. Autoral. Como<br />

um pagamento do que os editores lhe devem. E<br />

isso está vindo em boa hora, não é? – foi o que<br />

lhe respondi, incitando-o a não vacilar mais, para<br />

não continuar se martirizando com a falta de<br />

dinheiro, até para o pão de cada dia.<br />

Fui encontrá-lo no Instituto, depois dos seus<br />

acertos burocráticos com o Alçada Baptista, conforme<br />

o combinado. Quando cheguei lá, vocês<br />

dois conversavam animadamente. Você sorria.<br />

Gostei de vê-lo de novo ânimo, de uma hora para<br />

outra. O Alçada levou-me a um passeio entre<br />

ruas de livros. Estava orgulhoso do trabalho que<br />

vinha fazendo ali. E eu dele, pelo bem que lhe<br />

fizera. A você, Alexandre O’Neill, que por um<br />

momento voltava a sorrir.<br />

Dali fomos almoçar com o bom Irineu Garcia,<br />

o brasileiro dos discos de poesia, amigo de toda<br />

a gente do meio literário nos dois lados do<br />

Atlântico, e que já havia se tornado um lisboeta.<br />

<strong>Chicos</strong><br />

No entanto, confessou-nos estar em dúvida se<br />

deveria ou não voltar para o Brasil. Não teve<br />

muito tempo para se decidir. Acabou sendo encontrado<br />

sem vida, pelo Cardoso Pires, num dia<br />

em que marcara um almoço com ele.<br />

Ainda há pouco o José Carlos de Vasconcelos,<br />

o do JL, em que você tanto colaborou, veio<br />

buscar o Affonso Romano de Sant’Anna e eu<br />

para um jantar de lordes. No caminho para o<br />

restaurante, o carro em que nos levava cruzou a<br />

Rua da Escola Politécnica. Olhei à direita tentando<br />

localizar o prédio onde você morava, mas<br />

não deu para vê-lo. Depois a jornalista brasileira<br />

Norma Couri me levou ao teatro, para assistirmos<br />

a uma peça de Hélder Costa.<br />

Findo o espetáculo, o Hélder me deu uma carona<br />

para o Procópio, onde a atriz (e que atriz!)<br />

Maria do Céu Guerra nos aguardava. E, como<br />

sempre, para cobrar as minhas memórias de você,<br />

que são as do meu tempo de Lisboa, de Portugal,<br />

àquele tempo definido pelo Fernando Santos<br />

como “um doce país fascista”, então a atravessar<br />

uma das ditaduras mais longevas do mundo.<br />

E é esse o país que está ao fundo de seus<br />

poemas.<br />

Agora, Lisboa já não parece a cidade de homens<br />

dos pés redondos, a dar voltas em torno<br />

de si mesmos, tal qual parecia ao meu primeiro<br />

olhar, naquela manhã em que engraxei os sapatos<br />

na calçada do Café de Londres, no dia 25 de<br />

junho de 1965. Agora a cidade está chiquezinha,<br />

engraçadinha, internetadazinha, globalizadazinha.<br />

Agora, sim, é que ela desfila no “luxo blindado<br />

dos seus automóveis”. Importados, pois,<br />

pois! Percebe-se uma nova classe nesse desfile.<br />

Resta saber de onde veio, o que faz e para aonde<br />

vai.<br />

Hoje à tarde parei diante de uma vitrine aqui<br />

ao lado do hotel, atraído por um paletó bacanérrimo.<br />

Recordei-me do nosso primeiro encontro,<br />

na Telecine-Moro. Entrei na loja e perguntei o<br />

preço. 500 dólares! Ora, viva: Lisboa não era a<br />

cidade mais barata da Europa? Pensei: esse não<br />

vou poder permutar com o O’Neill. Desta vez<br />

fico-lhe devendo um novo paletó.<br />

No Procópio, a Maria do Céu estava cercada<br />

de amigos, como o Raul Solnado, o comediante<br />

lendário. De repente me chamam ao telefone.<br />

Era a Leonor Xavier, que amanhã estará lançando<br />

um livro muito bem editado sobre Maria Barroso,<br />

a senhora Mário Soares. Falando nisso, me<br />

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