ABRIL 2020 - nº 263
Edição Abril, nº 263 Excepcionalmente devido à Pandemia, é distribuída apenas em formato digital.
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COVID-19
Não há ventiladores
para todos
LUÍS OSÓRIO
1.A mortandade instalou-se na Europa. As imagens em Espanha e Itália (tão perto daqui) ferem o entendimento. Médicos têm que
decidir quais os infetados que devem ser ligados a ventiladores e quais os que têm de ser abandonados. Os italianos já o fazem
há pelo menos dez dias. Os espanhóis começaram a fazê-lo há três ou quatro.
2.
O protocolo tenta ser o mais claro possível para desfazer ambiguidades impossíveis de existir num campo de guerra. Acima dos
70 anos, na maioria dos casos, não vale a pena. Em Itália, e agora em Espanha, quem decide tem de levar em linha de conta a
esperança média de vida e o valor social do cidadão. Centenas de pessoas têm assim morrido auxiliados apenas por drogas
que menorizem a dor ou a sensação de asfixia. Não há mais nada que possa ser feito por não existirem ventiladores para todos.
3.
Talvez seja o pior de tudo o que já vi por estes dias. Democracias que não têm condições para resistir a uma ameaça como esta.
Democracias que não cuidaram que os seus sistemas de saúde estivessem equipados com material que prevenisse uma crise
como esta. Que não estão prevenidos para o imprevisível.
Os hospitais públicos não têm ventiladores suficientes porque todo o nosso sistema económico está alicerçado em critérios
economicistas que trataram a saúde como se fosse uma área igual a todas as outras. O desinvestimento não é um exclusivo
português, muito pelo contrário. O que está a acontecer em Itália, Espanha e França prova-o à saciedade.
4.
É muito triste ver os mais velhos serem abandonados à morte porque são mais velhos. É muito triste ver pessoas que são também
deixadas à porta do fim por não terem tido uma vida relevante ou por acrescentarem alguma coisa de palpável à comunidade.
Não me atrevo a criticar os critérios – postos perante tal limitação alguém tem de decidir e os procedimentos têm de ser racionais.
Não é isso que me choca. Quem tem o dever de decir é um verdadeiro herói. O que me escandaliza é a constatação de que
uma democracia jamais deveria ser colocada perante o dilema de escolher entre os mais capazes e os outros ou entre os mais
velhos e os mais novos.
5.
Não consigo evitar pensar que os nazis, nos campos de extermínio, também escolhiam os mais aptos para o trabalho. E deixavam
os outros, mais velhos ou debilitados, morrer nas câmaras de gás. É uma analogia terrível e injusta, sem dúvida. Não há
comparação possível. Porque num caso a decisão parte de uma ideia de mal necessário e tem o pressuposto de salvar vidas. E
na outra a decisão parte de uma ideia de extermínio.
Mas é uma ironia que nos envergonha. E que espero possa levar a uma mudança civilizacional que obrigue as democracias
representativas, em que continuo a acreditar, a fazer opções que coloquem sempre as pessoas no centro das suas políticas.
E que não poupem na saúde, o nosso bem mais precioso. O bem que infelizmente só nos lembramos quando nos toca a nós.
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