ABRIL 2020 - nº 263
Edição Abril, nº 263 Excepcionalmente devido à Pandemia, é distribuída apenas em formato digital.
Edição Abril, nº 263
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Do filme, “Novecento”, de Bernardo Bertolucci
pressionante e bela fotografia do thrilller do filme Novecento,
de Bernardo Bertolucci, com os camponeses a avançarem em
direção a nós, à câmara, que representa o futuro.
A imagem é muito romântica, mas não corresponde à realidade
histórica. Atrás daqueles camponeses em revolta existiam
dirigentes, ativistas, pensadores. Existia um trabalho de organização,
de mobilização. Como, aliás, existiu na retaguarda das
“massas” de sans culottes que assaltaram a Bastilha, ou na dos
proletários que entraram no Palácio de Inverno. Ou até na condução
dos camponeses que em Portugal, em 1975, ocuparam
os latifúndios alentejanos. Não existem revoluções selvagens.
É falaciosa a tese de as decisões nas grandes voltas da História
da humanidade terem resultado de “movimentos de massas”,
espontaneamente desencadeados por uma quebra da coesão
social provocada por insuportáveis tensões. Os movimentos de
massas são tão espontâneos como a explosão de uma granada.
Antes da explosão o artefacto teve de ser preparado e de
seguida lançado sobre um objetivo previamente escolhido e os
resultados foram apropriados por alguém. Não há tsunamis sociais.
Mesmo os tsunamis naturais resultam de um processo de
acumulação de energia que obedece às leis da física.
O que vai seguir-se em termos políticos, sociais e económicos
a esta crise causada pela epidemia do coronavírus será conduzido
por alguém que não sabemos quem é — e devíamos
saber. Uma das vantagens dos “grandes homens” nos grandes
momentos é terem rosto, serem identificáveis. Eles não surgem
porque há quem deliberadamente os impeça de se desenvolverem.
Esta é a questão!
É estranho que não perguntemos a razão de ter secado o meio
e de terem sido esterilizadas as condições que tornavam indispensáveis
os “chefes”. A mais conhecida revolta de escravos,
em Roma, teve uma chefia representada por Spartacus. As revoltas
camponesas na Idade Média, as revoltas de cariz ideológico-religioso,
as lutas contra as heresias, a revolução francesa,
a revolução russa, as revoltas dos escravos brasileiros que
originaram os quilombos tiveram sempre em fundo uma ideologia
resultante de um processo de análise de uma situação,
uma hierarquia e um grupo dirigente. O golpe militar do 25 de
abril de 1974, um caso que nos diz diretamente respeito e que
ocorreu com uma geração ainda em parte sobrevivente, não foi
um ato espontâneo, mas sim fruto da organização de um grupo
restrito, com chefias e hierarquias criadas para responder
a uma circunstância de impasse militar e político. O processo
revolucionário, o dito PREC, resultou da ação de personagens
que organizaram e chefiaram vários grupos. Os movimentos de
massas foram, como é historicamente recorrente, peões de um
jogo dirigido por reis, rainhas, bispos. A manifestação da Fonte
Luminosa, as mocas de Rio Maior, ou os assaltos às sedes dos
partidos de esquerda no Norte, foram movimentos tão “espontâneos”
como a criação dos SUV (Soldados Unidos Vencerão),
os desfiles de camponeses alentejanos e de operários da Lisnave
em Lisboa! A realidade é que a humanidade, como uma
espécie gregária, só sobrevive em cooperação dos seus elementos
e com uma direção.
Estamos habituados a definir os “grandes homens” como aqueles
que dirigem os seus povos na “boa direção”, que lhes criam
as melhores condições de sobrevivência. Mas há o reverso, os
“grandes homens negros”, os que conduzem as massas para o
abismo. E são esses “invisíveis grandes homens negros” que
nos têm marcado o destino e nos conduziram ao vazio e à “terra
arrasada” a que se referiu Bolsonaro, um dos mais recentes e
toscos exemplares dessa nova espécie de dirigentes de saque,
como os definiu Voltaire: “Daqueles que comandaram batalhões
e esquadrões só resta o nome. O género humano nada
tem para mostrar de uma centena de batalhas travadas. Mas
os grandes homens de que falo prepararam puros e perenes
prazeres para os homens que ainda vão nascer. Uma eclusa
ligando dois mares, um quadro de Poussin, uma bela tragédia,
uma nova verdade — são coisas mil vezes mais preciosas do
que todos os anais da corte ou todos os relatos de campanhas
militares. Sabem que, comigo, os grandes homens são os primeiros
e os heróis os últimos. Chamo «grandes homens» a todos
aqueles que se distinguiram na criação daquilo que é útil
ou agradável. Os saqueadores de províncias são meros heróis.”
Repugna-me a ideia de estarmos à mercê de saqueadores
de províncias. Apesar do risco, entendo que faltam os “grandes
homens”, os que transmitem grandes esperanças, como
os definiu Thomas Fuller, um religioso e historiador inglês do
século dezassete. “As grandes esperanças fazem os grandes
homens.“ A afirmação pode ser colocada de forma inversa: os
grandes homens são os que motivam grandes esperanças.
Aqueles cujo caráter é sempre grande, sempre igual em todos
os momentos.
Stephen King, um escritor norte-americano de best-sellers, por
isso pouco conceituado entre os intelectuais, mas que é um
“rapaz” da minha idade, com alguns vícios de vida, incluindo o
álcool, e de quem gosto, não por isso, mas pela liberdade de
pensar, distinguiu a grandeza das obras da grandeza do ser:
“Quase sempre admiramos os homens por aquilo que criaram;
e criar é usar uma capacidade que recebemos gratuitamente
e desenvolvemos por nosso esforço. Mas nem todo o valor de
uma pessoa se encontra naquilo que ela cria: o ser humano é
sempre superior ao fruto do seu trabalho.”
Não é certo que o ser humano seja sempre superior ao fruto
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