Facta #2
Revista de Gambiologia #2 Gambiologia magazine - 2nd issue 10/2013 "Acúmulo, ação criativa" / "Accumulation, a creative action"
Revista de Gambiologia #2 Gambiologia magazine - 2nd issue 10/2013 "Acúmulo, ação criativa" / "Accumulation, a creative action"
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
D
esesperado, um colega psiquiatra
um dia desabafou comigo: "só me
aparece doido!". Não era verdade,
ele estava cansado e às vezes até nós
nos surpreendíamos com a alma humana.
Há anos trabalhávamos na mesma clínica,
cada um em sua sala, atendendo em psicoterapia
os clientes que nos procuravam com
os mais variados problemas, desde os mais
banais aos mais complexos. Entretanto, todo
mundo sabe que as profissões “psi” sempre
foram cercadas de preconceitos e fantasias.
O dono da lanchonete localizada no andar
térreo de nosso prédio e que também era poeta,
com sarcasmo provocava:
“... eles eram doidos, pareciam
normais, mas eram
clientes do doutor, por isto
eu sabia, eram doidos”.
Numa lenta manhã, alguns
dias mais tarde, durante um intervalo entre
clientes, bateram na porta de meu consultório.
Era um sujeito baixinho, careca e com uma
barbinha que lhe emoldurava o queixo e a
boca. Muito simpático, me disse ter vindo
ao prédio e por acaso havia visto minha
plaquinha de psicólogo. Por impulso resolveu
me procurar. Geralmente eu só aceitava
clientes indicados, o que me possibilitava uma
primeira triagem. Talvez por curiosidade e
por estar disponível naquele momento,
resolvi atender o sujeito que me disse seu
nome e insistiu que eu o chamasse pelo
apelido: "Mestre".
Experimentou sensações
incríveis desde o momento
em que pensou pegar para
si o singelo cinzeirinho até o
instante em que o surrupiou
Sua história era cinematográfica. Desde uma
infância carente até a vida adulta suportada
por um alcoolismo severo, havia cenas
comoventes. Era artista, freelancer desenhista
de joias, inteligente, bem informado, mas
um pouco esquisito. Havia acabado de se
separar de uma mulher louca, segundo ele,
e tinha dois filhos que o preocupavam e o
faziam temer o futuro. Surpreendentemente,
nada disto era o motivo de sua consulta.
O que lhe trouxera ali era uma compulsão
atroz que o perseguia desde a adolescência
e que ultimamente tinha se especializado.
"– Como?" Perguntei sem entender.
Aos dezoito anos, sem querer,
aconteceu seu primeiro
furto. Simplesmente sentiu
uma vontade irresistível de
colocar no bolso o cinzeiro
de lata que estava em cima
da mesa do Bar do Português, na esquina de
sua casa. Experimentou sensações incríveis
desde o momento em que pensou pegar para
si o singelo cinzeirinho até o instante em que
o surrupiou. Inicialmente sentiu uma atração
misturada com medo e tensão e depois, alívio
e euforia. Foi andando para casa morrendo de
rir com sua travessura e não havia lugar para
arrependimento ou dúvidas: aquilo tinha que
ser feito, e conseguiu fazer bem feito. Para sua
desdita, a coisa não parou e daí alguns dias
“teve” que se apropriar ilicitamente de uma
colherinha numa lanchonete, e da mesma
forma foi obrigado por uma força interna a
127