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Facta #2

Revista de Gambiologia #2 Gambiologia magazine - 2nd issue 10/2013 "Acúmulo, ação criativa" / "Accumulation, a creative action"

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D

esesperado, um colega psiquiatra

um dia desabafou comigo: "só me

aparece doido!". Não era verdade,

ele estava cansado e às vezes até nós

nos surpreendíamos com a alma humana.

Há anos trabalhávamos na mesma clínica,

cada um em sua sala, atendendo em psicoterapia

os clientes que nos procuravam com

os mais variados problemas, desde os mais

banais aos mais complexos. Entretanto, todo

mundo sabe que as profissões “psi” sempre

foram cercadas de preconceitos e fantasias.

O dono da lanchonete localizada no andar

térreo de nosso prédio e que também era poeta,

com sarcasmo provocava:

“... eles eram doidos, pareciam

normais, mas eram

clientes do doutor, por isto

eu sabia, eram doidos”.

Numa lenta manhã, alguns

dias mais tarde, durante um intervalo entre

clientes, bateram na porta de meu consultório.

Era um sujeito baixinho, careca e com uma

barbinha que lhe emoldurava o queixo e a

boca. Muito simpático, me disse ter vindo

ao prédio e por acaso havia visto minha

plaquinha de psicólogo. Por impulso resolveu

me procurar. Geralmente eu só aceitava

clientes indicados, o que me possibilitava uma

primeira triagem. Talvez por curiosidade e

por estar disponível naquele momento,

resolvi atender o sujeito que me disse seu

nome e insistiu que eu o chamasse pelo

apelido: "Mestre".

Experimentou sensações

incríveis desde o momento

em que pensou pegar para

si o singelo cinzeirinho até o

instante em que o surrupiou

Sua história era cinematográfica. Desde uma

infância carente até a vida adulta suportada

por um alcoolismo severo, havia cenas

comoventes. Era artista, freelancer desenhista

de joias, inteligente, bem informado, mas

um pouco esquisito. Havia acabado de se

separar de uma mulher louca, segundo ele,

e tinha dois filhos que o preocupavam e o

faziam temer o futuro. Surpreendentemente,

nada disto era o motivo de sua consulta.

O que lhe trouxera ali era uma compulsão

atroz que o perseguia desde a adolescência

e que ultimamente tinha se especializado.

"– Como?" Perguntei sem entender.

Aos dezoito anos, sem querer,

aconteceu seu primeiro

furto. Simplesmente sentiu

uma vontade irresistível de

colocar no bolso o cinzeiro

de lata que estava em cima

da mesa do Bar do Português, na esquina de

sua casa. Experimentou sensações incríveis

desde o momento em que pensou pegar para

si o singelo cinzeirinho até o instante em que

o surrupiou. Inicialmente sentiu uma atração

misturada com medo e tensão e depois, alívio

e euforia. Foi andando para casa morrendo de

rir com sua travessura e não havia lugar para

arrependimento ou dúvidas: aquilo tinha que

ser feito, e conseguiu fazer bem feito. Para sua

desdita, a coisa não parou e daí alguns dias

“teve” que se apropriar ilicitamente de uma

colherinha numa lanchonete, e da mesma

forma foi obrigado por uma força interna a

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