Em busca da infância perdida em Manhattan - Fonoteca Municipal ...
Em busca da infância perdida em Manhattan - Fonoteca Municipal ...
Em busca da infância perdida em Manhattan - Fonoteca Municipal ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
King Khan<br />
O ritual mágico<br />
King Khan é um herói underground idolatrado pela comuni<strong>da</strong>de garage (e t<strong>em</strong> como fãs Lou<br />
Reed e Laurie Anderson). Encontrámo-lo no Festival Med onde, provocador punk e pregador<br />
soul, nos falou do rock’n’roll como “um ritual mágico”. Mário lopes<br />
Música<br />
Estamos na piscina de um hotel de<br />
Loulé, no terraço do último an<strong>da</strong>r,<br />
aju<strong>da</strong>ndo o hom<strong>em</strong> que será nosso<br />
entrevistado a carregar uma espreguiçadeira<br />
até à sombra. “Não pod<strong>em</strong>os<br />
falar ao sol. O sol deixa-me tonto”,<br />
justifica o hom<strong>em</strong> de calções de<br />
banho e cordões de amuletos índios<br />
pendendo do pescoço. Chama-se King<br />
Khan e instala-se à sombra.<br />
Canadiano de ascendência indiana,<br />
nascido <strong>em</strong> Montreal mas residente<br />
<strong>em</strong> Berlim há vários anos, é um herói<br />
underground que a comuni<strong>da</strong>de garage<br />
idolatra pela música e pela loucura<br />
escatológica e iconoclasta, é figura<br />
subterrânea aos meandros mediáticos<br />
que vai surgindo,<br />
inespera<strong>da</strong>mente, ao lado de GZA,<br />
dos Wu Tang Clan, que o quer como<br />
colaborador, ou de Lou Reed e Laurie<br />
Anderson, que o convi<strong>da</strong>ram recent<strong>em</strong>ente<br />
para um festival australiano<br />
de que foram curadores. É portanto<br />
com este King Khan que falamos. Esse<br />
que nos explicará que, nas cartas<br />
de tarot, “o Louco é a carta mais alta,<br />
mais importante que o rei, a rainha<br />
ou o Papa”. Ele que nos definirá a sua<br />
música e os seus concertos como “um<br />
ritual mágico”. A loucura é parte <strong>da</strong><br />
equação: “O louco é aquele que pode<br />
rir-se <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de e seguir o seu caminho,<br />
é o mais espiritual de todos.”<br />
Horas depois <strong>da</strong> entrevista à beira<br />
<strong>da</strong> piscina, King Khan estava <strong>em</strong> palco<br />
com os Shrines, a ban<strong>da</strong> que fundou<br />
<strong>em</strong> Berlim e que reúne americanos,<br />
al<strong>em</strong>ães ou franceses num super<br />
combo soul-funk-punk’n’roll. Vestia<br />
camisa de lantejoulas doura<strong>da</strong>s e tinha<br />
a cabeça adorna<strong>da</strong> com um moicano<br />
louro. Na mão, um espanador<br />
que abanaria nos momentos certos<br />
para lançar magia vudu sobre a pequena<br />
multidão à sua frente.<br />
King Khan & The Shrines no Festival<br />
Med, <strong>em</strong> Loulé, dia 24 de Junho. Uma<br />
força poderosa. Foram o funk de James<br />
Brown <strong>em</strong> colorido Sun Ra, Sam<br />
& Dave revistos pelos Dirtbombs e a<br />
soul cavernosa de Screamin’ Jay Hawkins<br />
s<strong>em</strong> caixão à vista. No final,<br />
uma descarga de ruído lança<strong>da</strong> sobre<br />
o público como violento mantra zen<br />
e King Khan sentado <strong>em</strong> posição de<br />
Lótus, qual brâmane <strong>em</strong> meditação.<br />
Foi, naturalmente, um dos grandes<br />
concertos do festival. Mas não alterou<br />
<strong>em</strong> na<strong>da</strong> o fascínio e perplexi<strong>da</strong>de<br />
que sentimos perante a sua figura.<br />
S<strong>em</strong>anas antes <strong>da</strong>quele concerto,<br />
víramo-lo no encerramento do festival<br />
Primavera Sound, <strong>em</strong> Barcelona.<br />
Dera ali dois concertos, com o duo<br />
King Khan & BBQ e integrado nos supracitados<br />
Almighty Defenders. Na<br />
Sala Apolo, os Black Lips tinham terminado<br />
a sua actuação, o público<br />
abandonava o clube e, à saí<strong>da</strong>, vimos<br />
um táxi rodeado de gente, o taxista<br />
respectivo fora do automóvel, de<br />
mãos na cabeça, e King Khan saltando<br />
sobre a carroçaria como adolescente<br />
travesso. “Estavas lá?”, perguntarnos-á<br />
<strong>em</strong> Loulé, antes de contar o que<br />
se seguiu.<br />
O caminho do budista<br />
Foi levado para a esquadra e ficou<br />
preso duas horas. Explicou à polícia<br />
que tinha um avião para apanhar, que<br />
tinha um concerto marcado na Austrália,<br />
que tinha sido Lou Reed a convidá-lo.<br />
Num ápice, passou a estrela<br />
King Khan esteve no Festival<br />
Med, <strong>em</strong> Loulé, <strong>em</strong> Junho<br />
<strong>da</strong> esquadra, foi fotografado pelos<br />
agentes, distribuiu autógrafos, chegou<br />
a Sydney. O punk estava livre. “Fui<br />
preso pela primeira vez aos 18 anos,<br />
por roubar um CD dos Velvet Underground.<br />
Passados todos estes anos, o<br />
Lou Reed tira-me <strong>da</strong> prisão. A ver<strong>da</strong>de<br />
é que tudo na vi<strong>da</strong> acontece <strong>em</strong><br />
círculos.” Revela-se o metafísico que<br />
é punk e soulman: “Vivo uma expe-<br />
DR<br />
“O meu objectivo final<br />
é curar o mundo com<br />
a minha música,<br />
como um xamã”<br />
King Khan<br />
riência mais religiosa a ouvir a Alice<br />
Coltrane ou música gospel do que a<br />
ler a Bíblia, o Corão, a Tora ou o Bhagavad<br />
Gita.” Revela-se o mago do<br />
rock’n’roll: “Na música gospel, o pastor,<br />
pela forma como atira as palavras,<br />
leva as pessoas a pegar <strong>em</strong> pandeiretas<br />
e <strong>da</strong>nçar, leva bebés a aprender a<br />
<strong>da</strong>r os primeiros passos. É isso que<br />
quero fazer com a minha música, pegar<br />
numa sala cheia de gente e canalizar<br />
a sua energia para uma força<br />
única. Quer as faça <strong>da</strong>nçar, tirar as<br />
roupas, foder ou cagar, é tudo o mesmo<br />
ritual.”<br />
Pai de dois filhos, acabou com os<br />
King Khan & BBQ porque “d<strong>em</strong>asia<strong>da</strong>s<br />
drogas, bebi<strong>da</strong>s e raparigas” estavam<br />
a torná-lo “um mau ex<strong>em</strong>plo<br />
para os miúdos”. Os Shrines, a ban<strong>da</strong><br />
que lidera há cerca de dez anos, autora<br />
de uma muito respeitável discografia<br />
para a qual “The Supr<strong>em</strong>e Genius<br />
of King Khan & The Shrines”,<br />
compilação de 2008, servirá como<br />
óptima porta de entra<strong>da</strong>, são tudo o<br />
que lhe interessa neste momento.<br />
“Tenho 33 anos, a minha i<strong>da</strong>de Jesus,<br />
e tenho que decidir onde concentrar<br />
as minhas energias. O Lou Reed e a<br />
Laurie Anderson disseram-me que<br />
todos os artistas passam por momentos<br />
<strong>em</strong> que têm de se reinventar e arranjar<br />
um novo disfarce. É isso a magia.<br />
E eu escolhi o meu caminho. O<br />
caminho do budista.”<br />
Depois fala-nos de índios Mohawk<br />
que o ensinaram a não ter medo – “vive<br />
s<strong>em</strong> medo e viverás muito t<strong>em</strong>po”<br />
–, e conta-nos de um pugilista aborígene<br />
australiano que “vai ser o próximo<br />
Muhammad Ali” – “e eu vou largar<br />
o rock’n’roll e o álcool e tornar-me<br />
um promotor de boxe”. Regressa aos<br />
seus Shrines: “O meu objectivo final<br />
é curar o mundo com a minha música,<br />
como um xamã.” Que mais pod<strong>em</strong>os<br />
dizer? Abençoado seja.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Julho 2010 • 35