Ponte para a <strong>infância</strong> de Josh e Ben Safdie Dois irmãos, o caos na <strong>infância</strong> e a necessi<strong>da</strong>de de catarse. Dois cineastas, o fi lme do trauma e uma transbor<strong>da</strong>nte fantasia. Que nos rapta. Uma <strong>da</strong>s estreias do ano: “Vão-me <strong>busca</strong>r alecrim”/“Go get some ros<strong>em</strong>ary”. <strong>Em</strong> <strong>busca</strong> <strong>da</strong> <strong>infância</strong> perdi<strong>da</strong> de Joshua e Ben Safdie com a ponte Queensboro <strong>em</strong> fundo. Vasco Câmara (texto) e <strong>Em</strong>manuel Bastien (fotos) <strong>em</strong> Nova Iorque Capa 6 • Sexta-feira 16 Julho 2010 • Ípsilon Joshua e Ben Safdie fizeram a educação sexual na Queensboro Bridge com o carro do pai imobilizado no trânsito e as bujar<strong>da</strong>s de Howard Stern na rádio. Os nova-iorquinos exasperavam com as filas no único acesso grátis a <strong>Manhattan</strong> e desenvolveram uma relação de ódio com a ponte. Mas Paul Simon, por ex<strong>em</strong>plo, gostava e fez-lhe uma serenata <strong>em</strong> an<strong>da</strong>mento : é ouvir “The 59th Street Bridge Song (Feelin’Groovy)” do álbum “Parsley, Sage, Ros<strong>em</strong>ary and Thyme”, de Simon & Garfunkel, 1966. Joshua e Ben passaram a <strong>infância</strong> ali. A entrar<strong>em</strong> e saír<strong>em</strong> de <strong>Manhattan</strong>. Por baixo <strong>da</strong> Queensboro, um Grand Canyon de asfalto – a Primeira Aveni<strong>da</strong> –, o East River, Roosevelt Island e o subúrbio onde eles viviam, Queens. Por cima, um teleférico vermelho. Joshua: “Todos aqueles cabos, e no entanto um el<strong>em</strong>ento de leveza. A liber<strong>da</strong>de que aquelas pessoas que vão no teleférico têm. Como uma espécie de fuga. Tudo parece pesado, e no entanto quando o teleférico levanta...”. Joshua e Ben perguntavam-se quando eram crianças: para onde iam aquelas pessoas? Passaram 15 anos, o teleférico já não levanta – obras de r<strong>em</strong>odelação só voltam a pôr a funcionar o meio de transporte para Roosevelt Island <strong>em</strong> Set<strong>em</strong>bro – mas os irmãos cont<strong>em</strong>plam, numa manhã de Junho com t<strong>em</strong>peratura de Agosto, o cenário onde filmaram a sequência final <strong>da</strong> sua longa-metrag<strong>em</strong> “Vão-me <strong>busca</strong>r alecrim”/“Go get some ros<strong>em</strong>ary”. Cont<strong>em</strong>plam um pe<strong>da</strong>ço <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, e a ver<strong>da</strong>de é que a sequência do filme experimenta-se como uma epifania. Quando <strong>em</strong>barcam no apelo “triunfante” <strong>da</strong>quela hipótese de fuga de <strong>Manhattan</strong>, os Safdie estão a referir-se a um momento no filme <strong>em</strong> que um pai divorciado, Lenny, misto de mágico, aldrabão e disfuncional compulsivo (profissão: projeccionista), encontra finalmente um acordo no seu t<strong>em</strong>po e no t<strong>em</strong>po dos seus dois filhos. Como se só a bordo do teleférico, no ar, afastado <strong>da</strong> terra, os conseguisse raptar ao caos que ele próprio cria. É uma vitória mas também é uma derrota. Eles são Lenny (Ronald Bronstein) e Sage e Frey (na vi<strong>da</strong> real filhos de Lee Ranaldo dos Sonic Youth) e estão, obviamente, no lugar de Alberto, o pai, e dos irmãos Joshua e Ben. Que são também filhos de um casamento que cedo acabou. O pai não era projeccionista mas filmou obsessivamente a <strong>infância</strong> dos filhos. Quando lhes quis explicar o que tinha sido a vi<strong>da</strong> familiar, encurtou o discurso e deulhes como ex<strong>em</strong>plo a batalha entre Dustin Hoffman e Meryl Streep pela posse do filho <strong>em</strong> “Kramer contra Kramer”, o filme de Robert Benton. E um dia depositou-lhes nas mãos as centenas de horas de imagens deles. Portanto, para Joshua e Ben, a vi<strong>da</strong> vive-se para ser documenta<strong>da</strong>. Portanto o cin<strong>em</strong>a tinha de ser o legado. E tinha de ser biografia. Sab<strong>em</strong> que são filhos do trauma. Há anos que os amigos lhes diz<strong>em</strong> que a sua <strong>infância</strong> <strong>da</strong>va um filme e que deviam fazê-lo. Esse pode ser um lugar- comum, mas no caso deles ganha mesmo sinais de vi<strong>da</strong> – cin<strong>em</strong>atográfica. Quando, <strong>em</strong> “Vão-me <strong>busca</strong>r alecrim”, filmam Lenny a pôr os filhos “K.O.”, a dormir com comprimidos, para os miúdos não se assustar<strong>em</strong> com a sua ausência porque teve de substituir um colega na cabine de projecção, Joshua e Ben até podiam esperar que os espectadores do filme se dividiss<strong>em</strong>. Mas não esperavam reacções tão “politicamente correctas” de alguma imprensa americana que os vê como vítimas de abuso. Joshua: “Perceb<strong>em</strong>os que aquela cena podia ser um ponto de virag<strong>em</strong>, mas estávamos sobretudo preocupados com o que aquilo significava para nós e não para a socie<strong>da</strong>de americana.” Talvez pressentindo o pudor do jornalista <strong>em</strong> explicitar a pergunta (“o vosso pai drogava-vos com comprimidos?”), Joshua antecipa-se: “Aquela cena está no lugar de outros dramas que nos aconteceram. Mas a ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong>de é que a relação <strong>da</strong>s pessoas com a in<strong>infância</strong> é culturalmente grosseira. . Pelo menos na socie<strong>da</strong>de americana. a. As excessivas precauções repugnam-me. -me. Interessa-me quando as crianças são trata<strong>da</strong>s como outras pessoas.” Joshua e Ben não (se) olham como omo vítimas. O que aprenderam com m Alberto – e o que os filhos de Lenny provavelmente aprenderão com o pai ai de “Vão-me <strong>busca</strong>r alecrim”, <strong>em</strong>bora bora nunca se vá saber como essa história ória vai acabar... – é que o caos e a disfunfunção pod<strong>em</strong> ser uma explosão de fantasia. “Vão-me <strong>busca</strong>r alecrim” m” “Benny e eu andávamos a precisar disto, e a única forma de fazermos a catarse <strong>da</strong> nossa <strong>infância</strong>, para sabermos como foram os nossos primeiros 11 anos de vi<strong>da</strong>, era ficcionála. Há uma razão para os gregos ter<strong>em</strong> inventado o teatro” Joshua Safdie Josh e Ben Safdie na Queensboro Bridge, uma ponte para a m<strong>em</strong>ória <strong>da</strong> <strong>infância</strong>
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