Em busca da infância perdida em Manhattan - Fonoteca Municipal ...
Em busca da infância perdida em Manhattan - Fonoteca Municipal ...
Em busca da infância perdida em Manhattan - Fonoteca Municipal ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
começa por parecer um estudo de<br />
personag<strong>em</strong> e de ci<strong>da</strong>de, t<strong>em</strong> momentos<br />
de “screwball comedy” crispa<strong>da</strong>,<br />
mas é permeável pelo fantástico<br />
e pela ficção científica, como uma<br />
energia intrusiva que corrói o edifício<br />
por vários lados (há por lá um insecto<br />
gigante, como um urso polar se<br />
cruzava no “road movie” de uma<br />
cleptomaníaca <strong>em</strong> “The Pleasure of<br />
Being Robbed”, obra a solo de Joshua,<br />
de 2008).<br />
É como um assalto. E qu<strong>em</strong> é assaltado<br />
é o espectador, s<strong>em</strong> possibili<strong>da</strong>de<br />
de se acostumar a um registo, ficando<br />
ao sabor angustiante <strong>da</strong> desord<strong>em</strong><br />
de Lenny. A necessitar de um<br />
momento de descarga, a sequência<br />
final no teleférico. O Ípsilon marcou<br />
encontro com os Safdie no local do<br />
crime, Rua 59, <strong>Manhattan</strong>. O momento<br />
<strong>em</strong> que uma ficção termina <strong>em</strong><br />
ascensão foi o início dos Safdie como<br />
cineastas tal como os conhec<strong>em</strong>os<br />
hoje, autores de longas, curtas e curtíssimas<br />
metragens.<br />
Joshua: “Somos filhos desta personag<strong>em</strong>,<br />
que está dentro de nós. Este<br />
filme foi a forma de entendermos<br />
que há mais de uma déca<strong>da</strong> an<strong>da</strong>mos<br />
a estu<strong>da</strong>r o comportamento<br />
dele. Mas também somos uma espécie<br />
de pai dele. O nosso pai t<strong>em</strong> hoje<br />
50 anos mas não vamos ter com ele<br />
para pedir conselhos. Ele é que v<strong>em</strong><br />
ter connosco para nos pedir conselhos.<br />
A minha mãe e o meu pai já<br />
viram o filme. Ele umas oito vezes.<br />
Ela, que não vive com ele já há uns<br />
20 anos, não t<strong>em</strong> m<strong>em</strong>ória dele por<br />
isso para todos os efeitos, o Lenny<br />
do filme é a cara do meu pai. E claro,<br />
acha que o filme é uma ‘carta de<br />
ódio’ ao ex-marido. Ele, pelo contrário,<br />
acha que os seus defeitos são as<br />
suas quali<strong>da</strong>des. O facto de ca<strong>da</strong> um<br />
ver o filme a partir <strong>da</strong> sua própria<br />
reali<strong>da</strong>de faz sentido para nós.”<br />
O estudo <strong>da</strong> personag<strong>em</strong> continuará,<br />
porque a próxima longa que os<br />
irmãos estão a escrever, “Uncut g<strong>em</strong>s”,<br />
passa-se no mundo <strong>da</strong> indústria<br />
<strong>da</strong> joalharia, “ali para a Rua 47”. A<br />
escolha pode parecer uma guina<strong>da</strong><br />
depois de “Vão-me <strong>busca</strong>r alecrim”,<br />
Josh e Ben, crianças, com o pai<br />
(à esquer<strong>da</strong>). Lenny, o pai de<br />
“Vão-me <strong>busca</strong>r Alecrim”, e os<br />
seus filhos<br />
“Somos filhos desta<br />
personag<strong>em</strong>, que<br />
está dentro de nós.<br />
Este filme foi a forma<br />
de entendermos<br />
que há mais de uma<br />
déca<strong>da</strong> an<strong>da</strong>mos<br />
a estu<strong>da</strong>r<br />
o comportamento<br />
dele”<br />
Joshua Safdie<br />
Josh e Ben com os seus actores<br />
(Ronald Bronstein e Sage e Frey<br />
Ranaldo) na ro<strong>da</strong>g<strong>em</strong> de uma<br />
cena de “Vão-me <strong>busca</strong>r<br />
alecrim”<br />
mas o cin<strong>em</strong>a continua ancorado no<br />
pai: os anos <strong>em</strong> que ele trabalhou no<br />
mundo “obscuro” <strong>da</strong>s jóias.<br />
Joshua: “Benny e eu andávamos a<br />
precisar disto, e a única forma de<br />
fazermos a catarse <strong>da</strong> nossa <strong>infância</strong>,<br />
para sabermos como foram os<br />
nossos primeiros 11 anos de vi<strong>da</strong>, era<br />
ficcioná-la. Há uma razão para os<br />
gregos ter<strong>em</strong> inventado o teatro. Recriar<br />
apenas a nossa <strong>infância</strong> não<br />
t<strong>em</strong> interesse, é mais interessante<br />
como a viv<strong>em</strong>os. Por isso, é como<br />
quando contamos a alguém um sonho:<br />
t<strong>em</strong>os que acrescentar s<strong>em</strong>pre<br />
um ponto para tornar a coisa mais<br />
interessante.”<br />
E os dois olham para os cartazes<br />
que anunciam o novo teleférico r<strong>em</strong>odelado<br />
que vai surgir <strong>em</strong> Set<strong>em</strong>bro.<br />
Já não vai ser como antes.<br />
Ben: “Este filme mostra pela última<br />
vez o teleférico tal como era. Lá vão<br />
outra vez dizer que ‘Vão-me <strong>busca</strong>r<br />
alecrim’ é um filme de época.”<br />
O teatro de uma ci<strong>da</strong>de<br />
É ver<strong>da</strong>de que a pergunta surge insistente:<br />
<strong>em</strong> que época se passa “Vão-me<br />
<strong>busca</strong>r alecrim”?. Há qu<strong>em</strong> jure que<br />
esta Nova Iorque suja só existiu assim<br />
no cin<strong>em</strong>a americano dos anos 70 e<br />
que estas personagens, Lenny sobretudo,<br />
estão sob influência, como nos<br />
filmes de John Cassavetes. Mencionase<br />
o nome e Joshua e Ben ameaçam<br />
revirar os olhos. Diz<strong>em</strong> eles que antes<br />
de se falar de Cassavetes t<strong>em</strong> que se<br />
falar de “Ladrões de Bicicletas” de<br />
Vittorio de Sica (1948) ou de “Bleak<br />
Moments” de Mike Leigh (1971). Mas<br />
se calhar n<strong>em</strong> se deve começar pelo<br />
cin<strong>em</strong>a.<br />
Joshua: “Nunca a referência a filmes<br />
foi um t<strong>em</strong>a nas nossas conversas. E<br />
na ver<strong>da</strong>de não tínhamos visto nenhum<br />
filme de John Cassavetes antes<br />
de fazermos este.”<br />
Ben: “Não é ver<strong>da</strong>de. Tínhamos visto<br />
‘Uma Mulher sob Influência’. E<br />
não te esqueças que tínhamos um<br />
professor na universi<strong>da</strong>de de Boston,<br />
Ray Carney, que escreveu um<br />
livro sobre Cassavetes e sobre a natureza<br />
maníaca <strong>da</strong>s personagens<br />
dele. Essa natureza corresponde a<br />
um certo modo de vi<strong>da</strong> que t<strong>em</strong> a ver<br />
com Lenny. Mas, se se reparar, Cassavetes<br />
estava d<strong>em</strong>ora<strong>da</strong>mente com<br />
as suas personagens, até à exaustão,<br />
e nós obrigamos o espectador a saltar<br />
de situação <strong>em</strong> situação, quase<br />
que o frustrando.”<br />
Joshua: “Sim, não é possível sintetizar<br />
as coisas no nome Cassavetes.<br />
Se t<strong>em</strong> que se falar de filmes que estiveram<br />
antes deste, então t<strong>em</strong>os de<br />
falar de ‘Milestones’ de Robert Kramer<br />
[1975].”<br />
O nome de Cassavetes pode parecer<br />
incontornável, mas novas visões<br />
do filme mu<strong>da</strong>m a forma de engavetar<br />
“Vão-me <strong>busca</strong>r alecrim”. Isso e en-<br />
trar <strong>em</strong> www.redbucketfilms.com, o<br />
sítio <strong>em</strong> que os irmãos apresentam as<br />
várias plataformas do trabalho <strong>da</strong> sua<br />
produtora, Red Bucket Films, que<br />
partilham com três amigos e colegas<br />
<strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de de Boston. É uma<br />
associação de gostos e impulsos individuais<br />
mas disponíveis para a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de:<br />
quando um deles precisa,<br />
os outros põ<strong>em</strong>-se ao serviço do projecto<br />
alheio com a função que for necessária.<br />
E a experiência com a ficção<br />
não se fica só pelos filmes, estende-se<br />
aos livros, fanzines e ambiciona chegar<br />
ao museu, expondo os objectos<br />
que vão coleccionando no seu périplo<br />
pelas ci<strong>da</strong>des – como Lisboa, por<br />
ex<strong>em</strong>plo, onde estiveram a apresentar<br />
o filme no IndieLisboa deste ano<br />
e a receber o prémio principal do festival.<br />
O “twist” é que nesse mostruário<br />
de objectos, histórias e filmes, o<br />
ver<strong>da</strong>deiro está misturado com o falso,<br />
o documental com o ficcional.<br />
Mas entre-se <strong>em</strong> www.redbucketfilms.com,<br />
veja-se a série “Buttons”,<br />
instantâneos, alguns só duram segundos,<br />
de Nova Iorque que Joshua e Ben<br />
roubam à ci<strong>da</strong>de com as suas câmaras<br />
digitais. Ou então as curtas <strong>em</strong> que<br />
Nova Iorque e arredores surg<strong>em</strong><br />
transfigurados, habitando um t<strong>em</strong>po<br />
que não é imediatamente reconhecível,<br />
e entre o burlesco (a presença<br />
“keatoniana” de Ben como actor) e o<br />
onírico, levando o espectador a querer<br />
insistent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong>tá-lo. Isto para<br />
dizer que, afinal, é menos o cin<strong>em</strong>a<br />
e mais a relação com a ci<strong>da</strong>de que<br />
está na base <strong>da</strong>quilo que os Safdie faz<strong>em</strong>.<br />
T<strong>em</strong>os por isso que confessar<br />
que esperávamos encontrar na Rua<br />
59 dois rapazes a ver<strong>em</strong> o mundo avi<strong>da</strong>mente<br />
com as suas câmaras digitais,<br />
como se só elas provass<strong>em</strong> que<br />
“aquilo” aconteceu, mas afinal qu<strong>em</strong><br />
apareceu foram dois ex<strong>em</strong>plares de<br />
uma outra vertig<strong>em</strong>, proustiana, à<br />
mo<strong>da</strong> de <strong>Manhattan</strong>.<br />
Joshua: “Se nos encontrasse há um<br />
ano era assim que nos veria, mas<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Julho 2010 • 9