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CLASTORTOLOGIA<br />
Deitado sobre uma cama repleta de cópias de livros inscritas<br />
em folhas a4, entregue a congeminações inatingíveis, os dévios<br />
olhos absorvidos no branco do tecto, deixa o tempo passar<br />
como se houvesse para lá do tempo uma outra realidade<br />
atinente a outras formas de um outro tempo. Mas sabe, realista,<br />
que não há. Passar é viver. Antes, pensa ele, deitado<br />
numa cama assertiva que ocupado em afazeres da produção<br />
capitalista. Uma fábrica deve ainda ser, como lhe foi outrora,<br />
um espaço terrível, um tempo destituído. Mas as pessoas querem,<br />
desejam trabalhar. É vê-las em manifestações incalculáveis<br />
lamentando-se do desemprego que as assola. O trabalho<br />
é o sustento de homens e de mulheres, das suas famílias.<br />
O ocidente, medita ele numa desproporção do pensamento,<br />
nada mais tem para oferecer aos seus indígenas. Todo o mundo<br />
pretende subviver a todo o custo. Os falhanços das políticas<br />
humanitárias de outrora explodiram em monstruosidades<br />
inauditas, quem ousaria hoje falar de uma cooperação<br />
entre os povos, entre as gentes, entre as comunidades? Parece<br />
pois que a ordem do dia é a competitividade, a fórmula em<br />
muitos sentidos mágica capaz de enriquecer alguns em detrimento,<br />
é claro, de outros, os menos competitivos. A guerra<br />
foi sempre uma realidade. O real uma crueldade. No canto do<br />
tecto, entre a horizontal e a vertical oriunda das paredes que<br />
se juntam, há uma obscuridade quase imperceptível. Os olhos<br />
distintos que agora o explicitam tentam compreender a razão<br />
de tal facto. Não conseguem compreender. Há ignorâncias<br />
milenárias que ganharam foros de inevitabilidades. Os homens,<br />
dizem os que dizem, são o que são. Sempre foi assim.<br />
Verdade que estar deitado na cama, ouvindo Mark-Antonhy<br />
Turnage, é um privilégio. Ter vivido, ter vindo ao mundo, foi,<br />
não é de hoje que o pensa, um castigo. Tentou alegrar o acontecimento<br />
com exteriorizações idiossincráticas, mas o perigo<br />
sempre esteve, como se nada fosse, a um passo: a loucura não<br />
fará nunca o elogio, nem do prazer nem do sofrimento.<br />
21/9/2012<br />
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