14.04.2013 Views

LOGO - Silva Carvalho

LOGO - Silva Carvalho

LOGO - Silva Carvalho

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

HETEROCRESE<br />

Na cozinha aberta ao sol matinal, desprendido na absorção do<br />

chá, mastigando com uma concentração aprazível uma tosta<br />

amanteigada, ele permanecia, vendo pela portada adjacente à<br />

varanda, através da vidraça, a frente do seu apartamento. Uma<br />

rua, quase perpendicular à porta do edifício onde habita, divide<br />

o espaço em dois talhões. À esquerda, onde alguns eucaliptos<br />

apontam para o enigma do céu, desnudam-se duas entidades<br />

bem precisas. Um parque para os pequenos, sobressaindo<br />

nele variadas cores camuflando o plástico, e, logo a<br />

seguir, quase em frente, o parque propriamente dito, onde<br />

vários aparelhos metálicos proporcionam aos adolescentes e<br />

aos graúdos a possibilidade de exercitarem o corpo. Neste<br />

preciso momento é-lhe dado ver um velho sobre uma dessas<br />

estruturas capazes de simularem a marcha que o faria percorrer<br />

périplos mínimos nas ruas vizinhas. Nunca teve a coragem,<br />

ele que tanto precisa de exercício, para se lançar numa<br />

dessas máquinas do tempo achado ou perdido. E ser-lhe-ia<br />

mais benéfico e menos perigoso que deambular pelos passeios<br />

desnivelados do bairro. Porquê tanta inibição, tanta timidez?<br />

Não saberia responder. Há coisas, actos e acções, que<br />

lhe estão interditas. Não há, suspeita, nele, uma verdadeira<br />

liberdade. Ou melhor, talvez a liberdade de que falam as sociedades<br />

ocidentais como uma conquista nunca tenha atingido a<br />

sua consciência. Por isso olha com admiração, sentindo mesmo<br />

um certo ciúme, o senhor que persiste em mover-se pela<br />

imaginação de caminhos inexistentes. Não ser capaz! Fingir<br />

é-lhe tão doloroso que nem para o seu bem consegue infringir<br />

uma lei que não advém, sequer, de um imperativo moral. Dizem<br />

que a vida é feita de acontecimentos, dizem o mesmo da<br />

história dos povos. Dizem. Ele pensa que os acontecimentos<br />

são apenas determinações arbitrárias. Há talvez uma necessidade<br />

muito humana de se colocar pontos de viragem no<br />

tempo, como se o tempo fosse um caminho, ora virando para<br />

a esquerda, ora virando para a direita.<br />

24/9/2012<br />

38

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!