Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
ANUSIA<br />
Lembra-se, como se não fosse hoje, porque foi há muito, mas<br />
mesmo há muito tempo, noutras paragens da terra, de um amigo<br />
recente, num café sonoro e deiscente, dizer-lhe, com uma<br />
convicção perceptível, quase metafísica: «Il s’agit donc de tirer<br />
de l’oubli un oubli qui s’oublie.» E lembra-se da sua estupefacção<br />
perante tal frase hoje histórica. Nunca compreendeu,<br />
desnecessário é dizer, o que ouviu. Que língua era aquela, não<br />
o francês, obviamente, mas essa língua que permitiu ao seu,<br />
então ainda recente amigo, proferir o que disse? Hoje, compungido,<br />
experimentado nas elucubrações da vida, e passados<br />
tantos anos, arrepende-se de não ter contraditado essa frase<br />
com uma do tipo: «Non, non, il s’agit surtout de tirer du souvenir<br />
un souvenir qui se souvient.» Mas essa afirmação faria<br />
algum sentido? Nenhum. A frase extemporânea do seu amigo,<br />
verdade, não a compreendeu, mas fazia, faz, não sabe porquê,<br />
sentido. Há contrários que não são possíveis. Nascer e morrer,<br />
compreende-se a dicotomia. Mas quando se diz, num apogeu<br />
do truísmo, nascer, viver e morrer, condição humana que ninguém<br />
poderá contestar, onde encontrar, e em que língua, em<br />
que frase lapidar, a palavra oposta de viver? Morrer? Mas então,<br />
pensa ele um pouco confuso, incapaz de lógica, a morrer,<br />
uma palavra, poderá opor-se duas palavras, nascer e viver? O<br />
pensamento é impiedoso com ele. Não consegue, nunca soube<br />
pensar. Olha para todos os lados como se nada tivesse acontecido.<br />
Sente, embora não queira admitir, uma certa vergonha.<br />
Mas qualquer coisa, não fazendo luz, nasce na sua impossibilidade.<br />
Tenta a frase: «Il s’agit donc de tirer de la mort une<br />
naissance de vie». Estupefacto, repete duas ou três vezes a<br />
obscenidade consentida. Não compreende a frase. A frase não<br />
faz sentido. Repete mais uma vez o desconchavo proferido até<br />
visualizá-lo como uma fantasmagoria. Lembra-se de leituras.<br />
Sim, a frase contém um significado. Um significado emitido<br />
por religiões que sobrevivem ainda hoje. E mesmo filósofos<br />
de nomeada já disseram, pensa ele, algo de muito parecido.<br />
3/10/2012<br />
51