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CONVERSAÇÃO CATACRÉTICA<br />
Mas tens que compreender, e é para o teu bem que o digo, diz<br />
o amigo compulsivo, todos esses termos que empregas, que<br />
vens empregando ao longo dos anos, são apenas, como dizer,<br />
catacreses, aproximações verbais de uma realidade ou de uma<br />
noção ou de um conceito que procuras vivificar, dar, e desculpa-me<br />
o platonismo implícito, dar à luz. Trazer à língua. Que<br />
interessa, nesse sentido, a exactidão, a precisão, se estás no<br />
campo da hipótese, da possibilidade, da configuração, da proposta?<br />
Iludido na sua desilusão ele deseja contraditar, verdadeiramente,<br />
o que o amigo lhe concede. Mas como? Ouve-o<br />
com uma intensidade que o desfigura em cepticismos mais ou<br />
menos pessimistas. Por exemplo, explicita o amigo convicto,<br />
quando empregas termos como agnóia, e seus derivados. Pois<br />
claro, vão, os que forem, a um dicionário e descobrem que a<br />
palavra agnóia significa muito simplesmente o ‘estado dos doentes<br />
que não conhecem as pessoas que os rodeiam’. E ficam<br />
obstupefactos com a maneira, sem maneiras, com que usas o<br />
vocábulo. Enfim, pelo menos os palermas. Porque os curiosos<br />
(e o mundo é dos curiosos), com alguma coragem e um pouco<br />
de inteligência, quererão ir mais longe, à etimologia. E aí descobrem<br />
o que está em causa. Em certo sentido, ou melhor, em<br />
todos os sentidos, a ignorância, mas uma ignorância outra,<br />
uma ignorância que os poderá lançar para uma infinidade de<br />
significações. Repara. Conhecendo minimamente a tua obra,<br />
como poderão traduzir, interpretar, o lugar comum do dicionário?<br />
Ou, como diria o outro – ele olha-o admirado com<br />
tanta verborreia alucinante e lúcida –, ler o que, para dizer a<br />
verdade, nem sequer está escondido. A importância na tua<br />
vasta obra da doença, da ignorância, da humanidade, do mundo.<br />
Vê só: doentes, não conhecer, pessoas, rodeiam. E ele, que<br />
escutou o discurso com alguma dor, algum desconforto, não<br />
sabe o que dizer. Tenta proferir algumas palavras que coloquem<br />
a acesa opinião numa simetria de avaliações, mas não<br />
consegue. Pensa: não ser o mundo feito e povoado de amigos!<br />
4/10/2012<br />
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