ANDRADE, Carlos Drummond - A Rosa do Povo.pdf - Colégio Dom ...
ANDRADE, Carlos Drummond - A Rosa do Povo.pdf - Colégio Dom ...
ANDRADE, Carlos Drummond - A Rosa do Povo.pdf - Colégio Dom ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Ai piano enguiça<strong>do</strong>, Jesus!<br />
Sua gente está morta,<br />
seu prazer sepulta<strong>do</strong>,<br />
seu destino cumpri<strong>do</strong>,<br />
e uma tecla<br />
põe-se a bater, cruel, em hora espessa de sono.<br />
É um rato?<br />
O vento?<br />
Descemos a escada, olhamos apavora<strong>do</strong>s<br />
a forma escura, e cessa o seu lamento.<br />
Mas esquecemos. O dia per<strong>do</strong>a.<br />
Nossa vontade é amar, o piano cabe<br />
em nosso amor. Pobre piano, o tempo<br />
aqui passou, de<strong>do</strong>s se acumularam<br />
no verniz roí<strong>do</strong>. Floresta de de<strong>do</strong>s,<br />
montes de música e valsas e murmúrios<br />
e sandálias de outro mun<strong>do</strong> em chãos nubla<strong>do</strong>s.<br />
Respeitemos seus fantasmas, paz aos velhos.<br />
Amor aos velhos. Canta, piano, embora rouco:<br />
ele estronda. A poeira profusa salta,<br />
e aranhas, seres de asa e pus, ignóbeis,<br />
circulam por entre a matéria sarcástica, irredutível.<br />
Assim nosso carinho<br />
encontra nele o fel, e se resigna.<br />
Uma parede marca a rua<br />
e a casa. É toda proteção,<br />
<strong>do</strong>cilidade, afago. Uma parede<br />
se encosta em nós, e ao vacilante ajuda,<br />
ao tonto, ao cego. Do outro la<strong>do</strong> é a noite,<br />
o me<strong>do</strong> imemorial, os inspetores<br />
da penitenciária, os caça<strong>do</strong>res, os vulpinos.