CAPITULO XII Do que padece o açúcar desde o seu nascimento na cana até sair <strong>do</strong> Brasil É reparo singular <strong>do</strong>s que contemplam as coisas naturais ver que as que são de maior proveito ao género humano não se reduzem à sua perfeição, sem passarem primeiro por notáveis apertos, e isto se vê bem na Europa, no pano de linho, no pão, no azeite e no vinho, frutos da terra tão necessários, enterra<strong>do</strong>s, arrasta<strong>do</strong>s, pisa<strong>do</strong>s, espremi<strong>do</strong>s e moí<strong>do</strong>s antes de chegarem a ser perfeitamente o que são. E nós muito mais o vemos na fábrica <strong>do</strong> açúcar, o qual, desde o primeiro instante de se plantar até chegar às mesas e passar entre os dentes a sepultar-se no estômago <strong>do</strong>s que o comem, leva uma vida cheia de tais e tantos martírios que os que inventaram os tiranos lhes não ganham vantagem. Porque se a terra, obedecen<strong>do</strong> ao império <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r, deu liberalmente a cana para regalar com a sua <strong>do</strong>çura os paladares <strong>do</strong>s homens, estes, desejosos de multiplicar em si deleites e gostos, inventaram contra a mesma cana, com seus artifícios, mais de cem instrumentos para lhe multiplicarem tormentos e penas. Por isso, primeiramente fazem em pedaços as que plantam e as sepultam assim cortadas na terra. Mas elas, tornan<strong>do</strong> quase milagrosamente a ressuscitar, que não padecem <strong>do</strong>s que as vêem sair com novo alento e vigor? Já abocanhadas de vários animais, já pisadas das bestas, já derrubadas <strong>do</strong> vento e, enfim, descabeçadas e cortadas com foices, saem <strong>do</strong> canavial amarradas e, oh, quantas vezes antes de saírem daqui são vendidas! Levam-se, assim presas, ou nos carros ou nos barcos à vista das outras, filhas da mesma terra, como os réus que vão algema<strong>do</strong>s para a cadeia ou para o lugar <strong>do</strong> suplício, padecen<strong>do</strong> em si confusão e dan<strong>do</strong> a muitos terror. Chegadas à moenda, com que força e aperto, postas entre os eixos, são obrigadas a dar quanto tem de substância? Com que desprezo se lançam seus corpos esmaga<strong>do</strong>s e despedaça<strong>do</strong>s ao mar? Com que impiedade se queimam sem compaixão no bagaço? Arrasta-se pelas bicas quanto humor saiu de suas veias e quanta substância tinham nos ossos; trateia-se e suspendese na guinda, vai a ferver nas caldeiras, borrifa<strong>do</strong> (para maior pena) <strong>do</strong>s negros com decoada; feito quase lama no cocho, passa a fartar as bestas porcos sai <strong>do</strong> parol escuman<strong>do</strong> e se lhe imputa a bebedice <strong>do</strong>s borrachos. Quantas vezes o vão viran<strong>do</strong> e agitan<strong>do</strong> com escumadeiras me<strong>do</strong>nhas?. Quantas vezes o va escumadeiras me<strong>do</strong>nhas? Quantas, depois de passa<strong>do</strong> por coa<strong>do</strong>res, o batem com batedeiras, experimentan<strong>do</strong> ele de tacha em tacha o fogo mais veemente, às vezes quase queima<strong>do</strong> e às vezes desafoguea<strong>do</strong> algum tanto, só para que chegue a padecer mais tormentos? Crescem as bateduras nas temperas, multiplica-se a agitação com as espátulas, deixa-se esfriar como morto nas formas, leva-se para a casa de purgar sem terem contra ele um mínimo indício de crime e nela chora fura<strong>do</strong> e feri<strong>do</strong> a sua tão malograda <strong>do</strong>çura. Aqui, dãolhe com barro na cara e, para maior ludíbrio, até as escravas lhe botam sobre o barro sujo as lavagens. Correm suas lágrimas por tantos rios quantas são as bicas que as recebem e tantas são elas que bastam para encher tanques profun<strong>do</strong>s. Oh, crueldade nunca ouvida! As mesmas lágrimas <strong>do</strong> inocente se põem a ferver e a bater de novo nas tachas, as mesmas lágrimas se estilam à força de fogo em alambique e, quan<strong>do</strong> mais chora sua sorte, então tornam a dar-lhe na cara com barro e tornam as escravas a lançar-lhe em rosto as lavagens. Sai desta sorte <strong>do</strong> Purgatório e <strong>do</strong> cárcere tão alvo como inocente e sobre um baixo balcão se entrega a outras mulheres, para que lhe cortem os pés com facões, e estas, não contentes de lhos cortarem, em companhia de outras escravas, armadas de toletes, folgam de lhe fazer os mesmos pés em migalhas. Daí passa ao último teatro <strong>do</strong>s seus tormentos, que é outro balcão maior e mais alto, aonde, exposto a quem o quiser maltratar, experimenta o que pode o furor de toda a gente sentida e enfadada <strong>do</strong> muito que trabalhou andan<strong>do</strong> atrás dele e, por isso, parti<strong>do</strong> com quebra<strong>do</strong>res, corta<strong>do</strong> com facões, despedaça<strong>do</strong> com toletes, arrasta<strong>do</strong> com ro<strong>do</strong>s, pisa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s pés <strong>do</strong>s negros sem compaixão, farta a crueldade de tantos algozes quantos são os que querem subir ao balcão. Examina-se por remate na balança <strong>do</strong> maior rigor o que pesa, depois de feito em migalhas, mas os seus tormentos gravíssimos, assim como não tem conta, assim não há quem possa bastantemente ponderá-los ou descrevê-los. Cuidava eu que, depois de reduzi<strong>do</strong> ele a este esta<strong>do</strong> tão lastimoso, o deixassem, mas vejo que, sepulta<strong>do</strong> em uma caixa, não se fartam de o pisar com pilões nem de lhe dar na cara, já feita em pó, com um pau. Pregam-no finalmente e marcam com fogo o sepulcro em que jaz e, assim prega<strong>do</strong> e sepulta<strong>do</strong>, torna por muitas vezes a ser vendi<strong>do</strong> e revendi<strong>do</strong>, preso, confisca<strong>do</strong> e arrasta<strong>do</strong> e se se livra das prisões <strong>do</strong> 62
porto, não se livra das tormentas <strong>do</strong> mar, nem <strong>do</strong> degre<strong>do</strong>, com imposições e tributos, tão seguro de ser compra<strong>do</strong> e vendi<strong>do</strong> entre cristãos como arrisca<strong>do</strong> a ser leva<strong>do</strong> para Argel entre mouros. E ainda assim, sempre <strong>do</strong>ce e vence<strong>do</strong>r de amarguras, vai dar gosto ao paladar <strong>do</strong>s seus inimigos nos banquetes, saúde nas mezinhas aos enfermos e grandes lucros aos senhores de engenho e aos lavra<strong>do</strong>res que o perseguiram e aos merca<strong>do</strong>res que o compraram e o levaram degreda<strong>do</strong> nos portos e muito maiores emolumentos à Fazenda Real nas Alfandegas. 63
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