ARTISTAS UNIDOS - Companhia de Teatro de Almada
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E volto a ele, fonte que é, homem objectivo, aquele que, se soubesse, podia<br />
dizer, com Isherwood, I am a camera. Ou como Nikias Skapinakis, em 1957, “aquilo<br />
que pinto é o meu único ponto <strong>de</strong> partida, por não dispor <strong>de</strong> outro”.<br />
Vive assim quem <strong>de</strong> Goldoni se aproxima (na Aca<strong>de</strong>mia ou nos palcos) uma<br />
tentação dúplice. Ora caem para o lado do Carnaval e fazem vibrar a convencional<br />
mascarada social e italianizante; ora, apanham as personagens <strong>de</strong>pois da festa, no<br />
regresso a casa, com todas as suas mesquinhices, pequenezes, mediocrida<strong>de</strong>, e aquela<br />
italiana noite <strong>de</strong> toda a melancolia, perfumada noite dos sentidos, a mozartiana.<br />
Ele afirmou esse teatro em que o Mundo entra (“tutto è susceptibile di teatro”)<br />
com a <strong>de</strong>licada atenção que foi prestando ao mundo, à oralida<strong>de</strong>, aos dialectos, aos<br />
empregos, às contas, ao dinheiro, aos tratados <strong>de</strong> casamento, acordos <strong>de</strong> negócios e<br />
amor que nasce, como nascem costumes ou beberagens, o café, o chocolate. Se o<br />
Goldoni sentimental da Pamela (adaptação triunfal do romance <strong>de</strong> Richardson) ou da<br />
Putta Onorata soçobrou nas lágrimas que fez verter, penso é no homem que criou as<br />
extraordinárias cenas <strong>de</strong> conjunto do Campiello, que soube <strong>de</strong>senhar o grupo como só<br />
ele fez na Villegiatura. No homem que põe em cena os objectos da vida, ferro <strong>de</strong><br />
engomar <strong>de</strong> Mirandolina, xícaras <strong>de</strong> café para tanta gente, rapé, livranças.<br />
A pouco e pouco, lentamente, ao fim <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> páginas, ele abriu o palco à<br />
cena <strong>de</strong> conjunto, berço que moldou para a vilegiatura <strong>de</strong> Tchekhov, a quem Goldoni,<br />
olhando, atento, <strong>Teatro</strong> e Mundo, abriu as portas.<br />
Não é da literatura que vem o teatro <strong>de</strong> Goldoni, por isso mesmo tratado <strong>de</strong><br />
“pouco culto”, nem a sua prosa simples recorre ao clássico manancial <strong>de</strong> imagens, é do<br />
teatro, que ele conhece bem, por fazê-lo, montá-lo, programá-lo, ensaiá-lo, é do teatro e<br />
das suas convenções que Goldoni nasce, é nele que, limpando-o, instala os alicerces da<br />
sua comédia humana.<br />
E é a este primeiro realismo, esta terna recolha das inquietações humanas que<br />
volto sempre, poesia que é <strong>de</strong> teatro apenas, noite que cai sobre estas personagens em<br />
convívio, esta socieda<strong>de</strong>.<br />
Não é fácil saber que o mundo está a mudar. E Goldoni sabe-o, vai vendo o<br />
velho ruir, o novo afirmar-se, anota, anota sem fim, vê, tudo vai trazendo para o palco,<br />
gente, coisas, contratos, ca<strong>de</strong>iras, é uma sanguessuga da vida, o palco tem um íman a<br />
que ele se oferece. E o seu teatro, teatro novo, será a amável anotação <strong>de</strong>ste tempo que<br />
passa, <strong>de</strong>ste mundo que muda, teatro ele próprio em mudança, forma que se vai<br />
a<strong>de</strong>quando à investigação e ela própria investigada.<br />
Volto sempre a Goldoni, nasceu ali um teatro, nasceu um mundo. Naquela<br />
atenção que ele próprio, arrasado por um real mais real do que o teatro, por um teatro<br />
em <strong>de</strong>composição foi inventando.<br />
E talvez não tenha havido invenção mais duradoura. Ainda hoje o escrevemos<br />
como Goldoni o inventou. E há trezentos anos que andamos nisto. E sorrimos, ah,<br />
sorrimos.<br />
Não terá sido Goldoni a inventar o sorriso, essa forma que ele tem <strong>de</strong> acariciar as<br />
fraquezas dos homens?<br />
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