ARTISTAS UNIDOS - Companhia de Teatro de Almada
ARTISTAS UNIDOS - Companhia de Teatro de Almada
ARTISTAS UNIDOS - Companhia de Teatro de Almada
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Po<strong>de</strong>-se dizer que o próprio Goldoni ficou afectado por esta singular e <strong>de</strong>cisiva<br />
função do teatro <strong>de</strong>ntro do seu teatro, por este <strong>de</strong>sdobramento das personagens, que o<br />
leva a firmar no Prefácio, “nunca noutro sítio retratei mulher mais aduladora e perigosa<br />
como esta”, e a con<strong>de</strong>nar moralmente (mas não sem alguma malícia arguta) a sádica<br />
cruelda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mirandolina no terceiro acto. Mas também é verda<strong>de</strong> que a vítima, o<br />
Cavaleiro, é retratado como exemplo <strong>de</strong> “presunção <strong>de</strong>pressiva”, <strong>de</strong> inconsciência<br />
con<strong>de</strong>nável (“<strong>de</strong>sprezando-a sem a conhecer”). Se a relação <strong>de</strong> Mirandolina e o<br />
Cavaleiro se me<strong>de</strong> com o grau <strong>de</strong> (auto) consciência que um e outro revelam, a<br />
interpretação moral é <strong>de</strong>smontada e ganha relevo a “arte” <strong>de</strong> Mirandolina, <strong>de</strong>smorona-se<br />
a pieda<strong>de</strong> que o Cavaleiro po<strong>de</strong>rá suscitar.<br />
Tais ambivalências, reveladas pela vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> comediante <strong>de</strong> Mirandolina,<br />
nascem <strong>de</strong> uma razão <strong>de</strong> fundo, a bem dizer, essencial no teatro <strong>de</strong> Goldoni: as<br />
personagens revelam-se e mostram-se na relação, que em alguns os <strong>de</strong>smascara<br />
completamente (o Cavaleiro) e noutros nos <strong>de</strong>ixa apenas entrever, por baixo da<br />
sabedoria do seu comportamento, motivações mais secretas (Mirandolina). Em todo o<br />
caso, o mecanismo cómico só nasce das reacções recíprocas: <strong>de</strong> um <strong>de</strong>safio aceite e<br />
infligido no adversário. É, <strong>de</strong> facto, o Cavaleiro a introduzir uma nota dissonante no<br />
acor<strong>de</strong> <strong>de</strong> elogios que envolve Mirandolina: ridiculariza a admiração, que é o único<br />
sentimento comum ao Marquês e ao Con<strong>de</strong>, e propõe-se <strong>de</strong>smascarar a “técnica” (que<br />
<strong>de</strong>pois ele próprio experimentará) <strong>de</strong> Mirandolina. “Artifícios, supremos artifícios.<br />
Pobres néscios!” (I, IV). E a sua sumária filosofia <strong>de</strong> misógino irrompe com um<br />
impulso grosseiro, <strong>de</strong> cavaleiro “bruto que nem um urso”, observará Mirandolina (I,<br />
IX), on<strong>de</strong> coexistem, sem seu conhecimento, a soberba <strong>de</strong> um senhor com dinheiro e a<br />
paixão reprimida <strong>de</strong> um homem vulnerável. “On<strong>de</strong> gasto o meu dinheiro, não tenho <strong>de</strong><br />
me gastar em cerimónias” (I, V). À sua volta, Mirandolina, habituada há muito a<br />
galanterias, sente-se ofendida pela repentina excepção à regra representada pelo<br />
Cavaleiro: e o seu ressentimento <strong>de</strong> mulher, que mesmo assim procura controlar,<br />
colocando-o no âmbito da gestão da sua estalagem, explicitado no famoso monólogo da<br />
cena IX (“Todos os que chegam a esta estalagem, todos <strong>de</strong> mim se enamoram (...) Este é<br />
o primeiro forasteiro que chega à estalagem e que não sente prazer em praticar<br />
comigo”), para ela, isso “revolve terrivelmente com a bílis”, provoca-a e faz-nos pensar<br />
<strong>de</strong> repente na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>de</strong>speito (“Com estes é que eu entro em disputa”). O breve<br />
inci<strong>de</strong>nte leva Mirandolina – e é essa a sua superiorida<strong>de</strong> – a “reconhecer-se” (ou pelo<br />
menos, a tentar fazê-lo), a tornar-se espectadora e juiz <strong>de</strong> si mesma (tédio para com os<br />
galantes, indiferença pela nobreza, interesse racional pela riqueza, prazer-fraqueza <strong>de</strong><br />
ser adorada, gosto pela liberda<strong>de</strong>...) antes <strong>de</strong> representar para os outros.<br />
Claro, as noções <strong>de</strong> Mirandolina serão analisadas, examinadas no texto <strong>de</strong> toda a<br />
comédia: olhando-se mais no fundo da sua psicologia (“Não preciso <strong>de</strong> ninguém (...)<br />
Pratico com todos. Não me enamoro <strong>de</strong> nenhum”), <strong>de</strong>scobre-se nela uma frigi<strong>de</strong>z<br />
intelectual, um capricho <strong>de</strong> Don Giovanni <strong>de</strong> saias, mais afeito à conquista que<br />
interessado na posse; ou talvez, por baixo do jogo <strong>de</strong> galanterias, uma aversão mais<br />
profunda, o indício <strong>de</strong> um sentimento mais escondido, <strong>de</strong> medo, ou <strong>de</strong> outra coisa<br />
Rua <strong>de</strong> Campo <strong>de</strong> Ourique, 120 / 1250 – 062 Lisboa/ Tel: 21 391 67 50<br />
8