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ARTISTAS UNIDOS - Companhia de Teatro de Almada

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Contactos:<br />

Mafalda Simões<br />

msimoes@artistasunidos.pt<br />

21 387 60 78<br />

A ESTALAJADEIRA<br />

<strong>de</strong> Carlo Goldoni<br />

No TNSJ <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> Fevereiro a 3 <strong>de</strong> Março


A ESTALAJADEIRA <strong>de</strong> Carlo Goldoni Tradução Jorge Silva Melo Com Américo<br />

Silva (Marquês), António Simão (Con<strong>de</strong>), Catarina Wallenstein (Mirandolina), Elmano<br />

Sancho (Cavaleiro <strong>de</strong> Ripafratta), Rúben Gomes (Fabrício), Maria João Falcão<br />

(Hortênsia), Maria João Pinho (Dejanira), João Delgado (criado), Tiago Nogueira<br />

(criado) Cenografia e Figurinos Rita Lopes Alves Luz Pedro Domingos<br />

Assistência Leonor Carpinteiro e João Delgado Encenação Jorge Silva Melo Coprodução<br />

TNSJ/ Artistas Unidos/ CCB com o apoio do Centro Cultural do Cartaxo<br />

No TNSJ <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> Fevereiro a 3 <strong>de</strong> Março<br />

Em Leiria, <strong>Teatro</strong> José Lúcio da Silva, 7 <strong>de</strong> Março<br />

Em Castelo Branco, Cine <strong>Teatro</strong> Avenida, 16 <strong>de</strong> Março<br />

Em Setúbal, <strong>Teatro</strong> Luisa Todi<br />

Em <strong>Almada</strong>, no <strong>Teatro</strong> Municipal <strong>de</strong> <strong>Almada</strong>, 4 a 7 <strong>de</strong> Abril<br />

Em Coimbra, na OMC, 12 e 13 <strong>de</strong> Abril<br />

Em Caldas da Rainha, CCC, 19 e 20 <strong>de</strong> Abril<br />

No CCB <strong>de</strong> 26 <strong>de</strong> Abril a 4 <strong>de</strong> Maio<br />

E vós, senhores, aproveitai <strong>de</strong> tudo o que vistes para vantagem e segurança dos vossos<br />

corações. E se alguma vez estiver<strong>de</strong>s numa ocasião <strong>de</strong> duvidar, quase a ce<strong>de</strong>r, pensai<br />

nos artifícios que vistes. E lembrai-vos da Estalaja<strong>de</strong>ira!<br />

Carlo Goldoni, A Estajala<strong>de</strong>ira<br />

O texto está publicado no <strong>Teatro</strong> Escolhido <strong>de</strong> Carlo Goldoni nos Livros Cotovia.<br />

Documentos 1 :<br />

Jorge Silva Melo: Voltar sempre a Goldoni – e sorrir ----------------------------------- p.3<br />

Mario Baratto: Nota sobre “A Estalaja<strong>de</strong>ira”---------------------------------------------------p.5<br />

Alardyce Nicoll: O crescimento da Comédia Burguesa (págs. 382–389) -----------------p.13<br />

Guido Davico Bonino: Introdução (Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Estudos <strong>de</strong> Turim, Maio 2007) ---------p.19<br />

Luigi Lunari: Introdução ----------------------------------------------------------------------p.26<br />

Roberto Alonge: Da estalagem <strong>de</strong> Goldoni ao interior burguês ------------------------p.43<br />

Roberto Alonge: Da Comedia <strong>de</strong>ll’Arte ao <strong>Teatro</strong> Burguês (2004, pág. 56-94) --------- p.51<br />

Jorge Silva Melo: Carlo Goldoni-------------------------------------------------------------p.70<br />

1 Traduções <strong>de</strong> Pedro Marques<br />

Rua <strong>de</strong> Campo <strong>de</strong> Ourique, 120 / 1250 – 062 Lisboa/ Tel: 21 391 67 50<br />

2


Jorge Silva Melo<br />

VOLTAR SEMPRE A GOLDONI – E SORRIR<br />

“Os dois livros sobre os quais mais meditei, e <strong>de</strong> que nunca me arrepen<strong>de</strong>rei <strong>de</strong><br />

me ter servido, foram o Mundo e o <strong>Teatro</strong>” é uma das mais conhecidas afirmações <strong>de</strong><br />

Goldoni (em 1750, no prefácio à primeira edição das suas obras) e terá sido Mario<br />

Baratto quem, em 1957, e abrindo novo campo nos estudos do seu teatro, chamou a<br />

atenção para essa <strong>de</strong>claração, lapidar arte poética 2 . Com efeito, ele fez soprar o vento (a<br />

brisa nova?) da realida<strong>de</strong> sobre as formas estereotipadas do teatro do seu tempo, essa<br />

Commedia <strong>de</strong>ll´arte tão cheia <strong>de</strong> encantos como <strong>de</strong> preconceitos e abastardamentos,<br />

fórmula que envelhecia na foz.<br />

Mas Goldoni é um reformador cauteloso. Não se pôs a <strong>de</strong>struir as formas velhas,<br />

caducas embora, estudou-as, calçou-as com os sapatos sujos da realida<strong>de</strong>, encontrando<br />

nelas as lentes que lhe permitiram observar a vida, esse segredo escancarado. No<br />

imenso cortejo que ele criou, repleto <strong>de</strong> pais burgueses e filhas casadoiras, criados<br />

espevitados e aristocratas empobrecidos, comerciantes espertos e notários ávidos,<br />

encontramos a reduzida galeria <strong>de</strong> tipos que fizera a comédia popular, os Pantaleões, os<br />

Arlequins, as Colombinas, os Brighella da tradição. Mas, ao volte face permanente<br />

<strong>de</strong>sse teatro <strong>de</strong> todos os efeitos, a que, em O Servidor <strong>de</strong> Dois Amos simultaneamente<br />

ren<strong>de</strong> homenagem e volta costas, contrapõe Goldoni um outro tempo dramático. As<br />

suas peças serão cada vez mais lentas, as intrigas mais <strong>de</strong>snudadas, o enredo rarefaz-se,<br />

as cenas serão mais <strong>de</strong>moradas, as conversas mais importantes do que as reviravoltas da<br />

intriga, é como se o carrossel tivesse que parar e o teatro <strong>de</strong> Goldoni apanhasse as<br />

personagens na volta final e na <strong>de</strong>scida, quando se apoiam umas às outras, <strong>de</strong>pois do<br />

sarrabulho, <strong>de</strong>pois da vertigem.<br />

É que o mundo está a mudar, muda.<br />

E na Itália que ele percorre – Perugia, Pádua, Rimini, Milão, Génova, mas<br />

sobretudo Veneza, a República – há riquezas novas que se fazem, po<strong>de</strong>res que se<br />

conquistam, riquezas que se <strong>de</strong>sfazem, a burguesia avança, instala-se e ao seu po<strong>de</strong>r. E<br />

Goldoni, que foi notário, lidou com certidões, dinheiro, heranças, litígios, não po<strong>de</strong> ver<br />

o mundo como o permanente corrupio da commedia <strong>de</strong>ll´arte, vê o vagaroso<br />

<strong>de</strong>smoronar <strong>de</strong> privilégios, o lento avançar <strong>de</strong> afirmações (o valor do trabalho, o valor<br />

da mulher), é isso que ele vai beber ao Mundo, novo livro que folheia e on<strong>de</strong> se per<strong>de</strong>,<br />

como as gentes se perdiam na leitura dos jornais, moda que começava e on<strong>de</strong> a<br />

burguesia se entendia, com os seus anúncios, notícias, reflexões.<br />

É <strong>de</strong>sse mundo que Goldoni fala.<br />

“Sem poesia”, diriam os românticos, “sem cultura, com uma inegável<br />

indiferença em relação à filosofia, à política, à moral, sem mundo interior”, dirá ainda<br />

De Sanctis na sua Storia Della Letteratura Italiana, que publicou em 1870 3 . Mas será<br />

esse mesmo De Sanctis que reconhece que é no teatro <strong>de</strong> Goldoni que “surge pela<br />

primeira vez a nova literatura”, “atenta à plenitu<strong>de</strong> da vida real, com todos os seus<br />

a<strong>de</strong>reços, numa área histórica e social bem circunscrita, a socieda<strong>de</strong> veneziana na sua<br />

mediania, mais próxima das classes populares do que das mais elevadas.”<br />

Eu, cá por mim, volto sempre a Goldoni. Com tanta pena <strong>de</strong> não ter nunca<br />

levado à cena A Estalaja<strong>de</strong>ira, essa cintilação.<br />

2 Baratto, Mario, “Mondo” e “<strong>Teatro</strong>” nella poetica di Goldoni, Venezia, Stamperia di Venezia, 1957.<br />

3 De Sanctis, Storia Della Letteratura Italiana, Milano, Feltrinelli, 1960.<br />

Rua <strong>de</strong> Campo <strong>de</strong> Ourique, 120 / 1250 – 062 Lisboa/ Tel: 21 391 67 50<br />

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E volto a ele, fonte que é, homem objectivo, aquele que, se soubesse, podia<br />

dizer, com Isherwood, I am a camera. Ou como Nikias Skapinakis, em 1957, “aquilo<br />

que pinto é o meu único ponto <strong>de</strong> partida, por não dispor <strong>de</strong> outro”.<br />

Vive assim quem <strong>de</strong> Goldoni se aproxima (na Aca<strong>de</strong>mia ou nos palcos) uma<br />

tentação dúplice. Ora caem para o lado do Carnaval e fazem vibrar a convencional<br />

mascarada social e italianizante; ora, apanham as personagens <strong>de</strong>pois da festa, no<br />

regresso a casa, com todas as suas mesquinhices, pequenezes, mediocrida<strong>de</strong>, e aquela<br />

italiana noite <strong>de</strong> toda a melancolia, perfumada noite dos sentidos, a mozartiana.<br />

Ele afirmou esse teatro em que o Mundo entra (“tutto è susceptibile di teatro”)<br />

com a <strong>de</strong>licada atenção que foi prestando ao mundo, à oralida<strong>de</strong>, aos dialectos, aos<br />

empregos, às contas, ao dinheiro, aos tratados <strong>de</strong> casamento, acordos <strong>de</strong> negócios e<br />

amor que nasce, como nascem costumes ou beberagens, o café, o chocolate. Se o<br />

Goldoni sentimental da Pamela (adaptação triunfal do romance <strong>de</strong> Richardson) ou da<br />

Putta Onorata soçobrou nas lágrimas que fez verter, penso é no homem que criou as<br />

extraordinárias cenas <strong>de</strong> conjunto do Campiello, que soube <strong>de</strong>senhar o grupo como só<br />

ele fez na Villegiatura. No homem que põe em cena os objectos da vida, ferro <strong>de</strong><br />

engomar <strong>de</strong> Mirandolina, xícaras <strong>de</strong> café para tanta gente, rapé, livranças.<br />

A pouco e pouco, lentamente, ao fim <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> páginas, ele abriu o palco à<br />

cena <strong>de</strong> conjunto, berço que moldou para a vilegiatura <strong>de</strong> Tchekhov, a quem Goldoni,<br />

olhando, atento, <strong>Teatro</strong> e Mundo, abriu as portas.<br />

Não é da literatura que vem o teatro <strong>de</strong> Goldoni, por isso mesmo tratado <strong>de</strong><br />

“pouco culto”, nem a sua prosa simples recorre ao clássico manancial <strong>de</strong> imagens, é do<br />

teatro, que ele conhece bem, por fazê-lo, montá-lo, programá-lo, ensaiá-lo, é do teatro e<br />

das suas convenções que Goldoni nasce, é nele que, limpando-o, instala os alicerces da<br />

sua comédia humana.<br />

E é a este primeiro realismo, esta terna recolha das inquietações humanas que<br />

volto sempre, poesia que é <strong>de</strong> teatro apenas, noite que cai sobre estas personagens em<br />

convívio, esta socieda<strong>de</strong>.<br />

Não é fácil saber que o mundo está a mudar. E Goldoni sabe-o, vai vendo o<br />

velho ruir, o novo afirmar-se, anota, anota sem fim, vê, tudo vai trazendo para o palco,<br />

gente, coisas, contratos, ca<strong>de</strong>iras, é uma sanguessuga da vida, o palco tem um íman a<br />

que ele se oferece. E o seu teatro, teatro novo, será a amável anotação <strong>de</strong>ste tempo que<br />

passa, <strong>de</strong>ste mundo que muda, teatro ele próprio em mudança, forma que se vai<br />

a<strong>de</strong>quando à investigação e ela própria investigada.<br />

Volto sempre a Goldoni, nasceu ali um teatro, nasceu um mundo. Naquela<br />

atenção que ele próprio, arrasado por um real mais real do que o teatro, por um teatro<br />

em <strong>de</strong>composição foi inventando.<br />

E talvez não tenha havido invenção mais duradoura. Ainda hoje o escrevemos<br />

como Goldoni o inventou. E há trezentos anos que andamos nisto. E sorrimos, ah,<br />

sorrimos.<br />

Não terá sido Goldoni a inventar o sorriso, essa forma que ele tem <strong>de</strong> acariciar as<br />

fraquezas dos homens?<br />

Rua <strong>de</strong> Campo <strong>de</strong> Ourique, 120 / 1250 – 062 Lisboa/ Tel: 21 391 67 50<br />

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Mario Baratto<br />

NOTA SOBRE “A ESTALAJADEIRA”<br />

Do programa do espectáculo da reabertura do <strong>Teatro</strong> Goldoni.<br />

Após mais <strong>de</strong> dois séculos <strong>de</strong> sucessos em todo o mundo, parece que já se fez e<br />

disse tudo <strong>de</strong> A Estalaja<strong>de</strong>ira, seja na interpretação das cenas ou na exegese dos<br />

críticos: ao ponto <strong>de</strong>, <strong>de</strong> vez em quando, suscitar ainda surpresa no espectador, ou no<br />

leitor <strong>de</strong> hoje, quando nos revela a sua indiscutível fama <strong>de</strong> obra-prima da comédia, ao<br />

mesmo tempo que nos mostra a límpida simplicida<strong>de</strong> da sua estrutura, e nos<br />

perguntamos se i<strong>de</strong>ntificámos todos os sentidos, ou se pelo contrário, não os<br />

multiplicámos, a partir <strong>de</strong> um material tão facilmente <strong>de</strong>finível.<br />

O próprio Goldoni, quando escreve, muitos anos <strong>de</strong>pois nas suas Mémoires,<br />

parece ainda estupefacto pelo sucesso da comédia, que subiu à cena em Janeiro <strong>de</strong> 1753:<br />

“O sucesso <strong>de</strong>ssa peça foi tão gran<strong>de</strong> que a põem a par, ou mesmo acima <strong>de</strong> tudo o que<br />

eu fiz nesse género, on<strong>de</strong> o artifício substitui o interesse” 4 (II, XVI). A fórmula com que<br />

<strong>de</strong>fine o “género” comédia parece ter um ar redutor: mas ajuda-nos a perceber o seu<br />

verda<strong>de</strong>iro significado, quando ele <strong>de</strong>screve, dois capítulos mais à frente, a chegada da<br />

actriz Maddalena Marliani (a “criada” Corallina, “muito bonita, muito amável,<br />

inteligente e talentosa” 5 , regressada em 1751, com o marido Giuseppe Marliani, o<br />

Brighella da companhia, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> alguns anos <strong>de</strong> ausência por fuga amorosa, on<strong>de</strong> ele<br />

mostra um interesse que não é apenas <strong>de</strong> autor), comparando os diferentes tipos <strong>de</strong><br />

inspiração que nele suscitaram a primeira “namorada” Me<strong>de</strong>bach e Marliani: “A<br />

Me<strong>de</strong>bach <strong>de</strong>u-me i<strong>de</strong>ias interessantes, tocantes, <strong>de</strong> uma comicida<strong>de</strong> simples e inocente;<br />

e a Marliani, alegre e espirituosa, naturalmente graciosa, <strong>de</strong>u uma nova vida à minha<br />

imaginação, encorajou-me a trabalhar em comédias que exigem finesse e artifício” 6 (II,<br />

XVI).<br />

O “artifício” significa portanto um regresso aos elementos específicos do teatro<br />

(se nos reportarmos aos termos do célebre Prefácio <strong>de</strong> 1750), em reacção às exibições<br />

<strong>de</strong>masiado documentais do Mundo <strong>de</strong> muitas das suas comédias dos anos anteriores;<br />

uma prevalência do cómico e espirituoso sobre o patético e virtuoso; uma <strong>de</strong>scolagem<br />

“crítica” mais acentuada em relação às personagens, do que na dita comédia séria e<br />

burguesa experimentada entre 1748 e 1750 (um projecto que entrou em crise após a<br />

ruptura com Me<strong>de</strong>bach, que ele se apresta a abandonar, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> assinar, em Fevereiro<br />

<strong>de</strong> 1752, um contrato com Vendramin para o <strong>Teatro</strong> di San Luca).<br />

4 “Les succès <strong>de</strong> cette Piece fut si brillant qu’on la mit au pair, et au <strong>de</strong>ssus même, <strong>de</strong> tout ce que j’avois<br />

fait dans ce genre, où l’artifice supplée à l’intérêt”. Em francês no original.<br />

5 “Fort jolie, fort aimable, pleine d’esprit et <strong>de</strong> talents”. Em francês no original.<br />

6 “Madame Me<strong>de</strong>bach me fornissont <strong>de</strong>s idées intéressantes, touchantes, ou d’un comique simple et<br />

innocent; et Madame Marliani, vive, spirituelle, et naturallement accorte, donnoit un nouvel essor à mon<br />

imagination, et m’encourageoit à travailler dans ce genre <strong>de</strong> Comédies qui <strong>de</strong>man<strong>de</strong> <strong>de</strong> la finesse et <strong>de</strong><br />

l’artifice”.<br />

Rua <strong>de</strong> Campo <strong>de</strong> Ourique, 120 / 1250 – 062 Lisboa/ Tel: 21 391 67 50<br />

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Nessa perspectiva, ele escreve para Marliani <strong>de</strong> ’51 a ’52, apesar das<br />

“convulsões” e “vapores” <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>bach, La Castalda, Le Donne Gelose, La Serva<br />

Amorosa, nas quais a “criadinha” se torna protagonista, com efeitos notáveis na<br />

estrutura da comédia. A Estalaja<strong>de</strong>ira é o <strong>de</strong>saguar <strong>de</strong>ste novo percurso cómico, a<br />

máxima afirmação “teatral” <strong>de</strong> Marliani; e representa ao mesmo tempo a conquista do<br />

primeiro objectivo importante no estudo da personagem feminina, que está no centro da<br />

comédia, e da homenagem apaixonada dos homens, que tinha iniciado em La Donna di<br />

garbo <strong>de</strong> 1743 e numa primeira e ilustre consagração com La Vedova scaltra <strong>de</strong> 1748,<br />

representada por Me<strong>de</strong>bach. Um percurso que tem por base a experiência <strong>de</strong> Goldoni,<br />

que não escon<strong>de</strong>, no prefácio <strong>de</strong> ’53 à comédia, o elemento autobiográfico que po<strong>de</strong><br />

existir na situação do Cavaleiro (“Se Deus me houvesse concedido um tal espelho no<br />

meu tempo, não teria eu visto rirem-se das minhas lágrimas essas bárbaras<br />

estalaja<strong>de</strong>iras! Oh, quantas cenas me não foram fornecidas pela minha própria<br />

experiência! Mas não é este o local nem para me orgulhar das minhas loucuras nem para<br />

me arrepen<strong>de</strong>r das minhas fraquezas. Basta que alguém me fique grato pela lição que<br />

lhe ofereço”). Quando escreve a comédia, Goldoni liberta-se do fascínio pela sedutora,<br />

que transforma em ódio a sua inclinação por Goldoni: e escreverá para ela, em jeito <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>spedida, La Donna vendicativa. Os papéis inverteram-se: agora é o autor que parece<br />

apropriar-se da parte <strong>de</strong> Mirandolina, exprimindo-a em comédia, subvertendo na vida a<br />

relação <strong>de</strong> sedução.<br />

A Estalaja<strong>de</strong>ira nasce portanto num momento crítico e complexo da activida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Goldoni: quando parece que ele marca uma certa distância com os seus actores e com<br />

a sua temática, e tenta a via do “artifício” refinado, claro, mas também mais <strong>de</strong>sligado,<br />

menos directamente envolto num propósito <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> “reforma”. Mas também se <strong>de</strong>ve<br />

dizer que A Estalaja<strong>de</strong>ira ultrapassa subitamente os limites do simpático projecto <strong>de</strong><br />

Goldoni, sem falar na “lição” que queria dar à “juventu<strong>de</strong>” através da “sereia<br />

encantadora”: reconhece-o satisfeito o próprio Goldoni, nas frases imediatamente<br />

seguintes àquelas já citadas nas Mémoires: “Talvez não acreditemos, sem ler, que os<br />

projectos e abordagens <strong>de</strong> Mirandolina pareçam credíveis no espaço <strong>de</strong> vinte e quatro<br />

horas. Fui lisonjeado, provavelmente, em Itália: mas isso fez-me crer que nunca tinha<br />

feito nada tão natural e tão bem conduzido, e que encontrei a acção perfeitamente<br />

sustentada e completa.” 7 (II, XVI). Surgem assim, com poucas frases <strong>de</strong> distância, as<br />

indicações <strong>de</strong> verosimilhança, do real, da acção bem sustentada, que pareciam pertencer<br />

ao “outro” <strong>Teatro</strong>: e é, pelo menos aparente, uma contradição que Goldoni tinha evitado<br />

no Prefácio <strong>de</strong> ’53, mais próximo à própria elaboração da comédia. Quando afirma a<br />

i<strong>de</strong>ia essencial que anima tal escrita: “Mirandolina faz-nos ver como se apaixonam os<br />

homens” (e prossegue com uma admirável <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> procedimentos <strong>de</strong> sedução<br />

postos em prática pela estalaja<strong>de</strong>ira, numa paráfrase que será citada integralmente e que<br />

<strong>de</strong>monstra a sua inteligibilida<strong>de</strong> dramatúrgica), conclui: “Eu próprio duvidava, a<br />

7 “On ne croira peut-êtres pas, sans la lire, que le projets et les démarches et le triomphe <strong>de</strong> Mirandolina<br />

soient vraisemblables dans l’espace <strong>de</strong> vingt-quatre heures. On ma flatté peut-être en Italie: mais on m’a<br />

fait croire que je n’avois rien fait <strong>de</strong> plus naturel et <strong>de</strong> mieux conduit, et qu’on trouvoit l’action<br />

parfaitment soutenue et complete”.<br />

Rua <strong>de</strong> Campo <strong>de</strong> Ourique, 120 / 1250 – 062 Lisboa/ Tel: 21 391 67 50<br />

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princípio, <strong>de</strong> racionalmente o ver apaixonado no final da comédia, e no entanto,<br />

conduzido passo a passo, pela natureza, como na comédia se vê, consegui dá-lo por<br />

vencido no fim do segundo acto.” I<strong>de</strong>ntificamos uma lógica <strong>de</strong>monstrativa, fundada<br />

numa sapiente exploração das personagens, o que faz <strong>de</strong>ssa “natureza” o selo, ainda<br />

mais evi<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong> uma arte já madura, capaz <strong>de</strong> imprimir aos gestos e às palavras uma<br />

forte carga simbólica, menos oprimida pelos temas do costume que estavam colados a<br />

algumas suas comédias venezianas.<br />

Também por esta via, note-se, Goldoni reforça a consciência <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

uma comédia nacional. Se pensarmos na cena, instalada por livre convenção da comédia<br />

em língua italiana, em Florença: uma estalagem, uma cena comum do teatro da época,<br />

que antecipa uma potencialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aventuras, uma mistura notável <strong>de</strong> personagens e<br />

acontecimentos. Goldoni, em A Estalaja<strong>de</strong>ira, faz <strong>de</strong>ssa cena um uso relativamente<br />

abstracto e indirectamente realista, no sentido em que tal lugar neutro permite mais<br />

facilmente, por um lado, a liberda<strong>de</strong> e surpresa dos encontros e contactos, a<br />

sobreposição <strong>de</strong> hábitos e novida<strong>de</strong>s, permitindo, por outro lado, com maior agilida<strong>de</strong>, a<br />

coexistência <strong>de</strong> personagens <strong>de</strong> diferentes estatutos sociais, todas com motivações<br />

históricas, reunidas fugazmente mas também simbolicamente, para representar um<br />

momento especial <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento dos estratos sociais (giram à volta <strong>de</strong> Mirandolina,<br />

para quem a estalagem significa o local <strong>de</strong> trabalho e ganha-pão, o nobre arruinado, o<br />

novo-rico que comprou o título, o Cavaleiro, gentil e rico, e do outro lado o criado<br />

Fabrício, que aspira a um casamento com a patroa, e os criados dos nobres; para além<br />

das personagens excêntricas e marginais, mas também significativas, das duas<br />

comediantes). “O que há é uma certa diferença entre mim e vós”, a primeira frase da<br />

peça, é dita pelo Marquês ao Con<strong>de</strong> (I, I): e essas diferenças serão respeitadas,<br />

<strong>de</strong>monstradas em toda a comédia, exaltadas <strong>de</strong>ntro do pequeno espaço da estalagem que<br />

reúne todas as personagens à volta da mulher que está no centro da acção. O espaço do<br />

“artifício” teatral não é, e vê-lo-emos ainda, um espaço <strong>de</strong> acção gratuito; é o terreno<br />

para a aventura quotidiana, carregado <strong>de</strong> um forte processo <strong>de</strong> concentração simbólica.<br />

É neste quadro que se <strong>de</strong>senvolve a acção pedagógica <strong>de</strong> Mirandolina:<br />

“Mirandolina faz-nos ver como os homens se apaixonam”. Para este fim, usa o<br />

instrumento da ficção, o teatro: que lhe permite não apenas controlar gestos e palavras<br />

no contacto com as personagens, em cena, mas também anunciar e organizar a própria<br />

comédia dialogando com o público, o qual constitui, <strong>de</strong>ste ponto <strong>de</strong> vista, o seu<br />

verda<strong>de</strong>iro interlocutor. Essa relação, que é o sinal da sua superiorida<strong>de</strong> intelectual,<br />

<strong>de</strong>sdobra a personagem <strong>de</strong> actriz em encenadora da acção. Mirandolina finge,<br />

conscientemente, com todos, mas revela sempre a própria ficção ao público, o qual<br />

po<strong>de</strong>rá pensar, no fim, “nos estratagemas aprendidos”. É uma lição <strong>de</strong> Mirandolina no<br />

teatro, através do teatro: que a distancia, por um breve período <strong>de</strong> tempo, até <strong>de</strong> si<br />

mesma, e a faz “recitar” numa estalagem “<strong>de</strong> teatro”, <strong>de</strong>monstrando, entre outras coisas,<br />

uma original <strong>de</strong>smontagem <strong>de</strong> papéis e a sua superiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> actriz em relação ao<br />

reportório cansado das duas verda<strong>de</strong>iras comediantes.<br />

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Po<strong>de</strong>-se dizer que o próprio Goldoni ficou afectado por esta singular e <strong>de</strong>cisiva<br />

função do teatro <strong>de</strong>ntro do seu teatro, por este <strong>de</strong>sdobramento das personagens, que o<br />

leva a firmar no Prefácio, “nunca noutro sítio retratei mulher mais aduladora e perigosa<br />

como esta”, e a con<strong>de</strong>nar moralmente (mas não sem alguma malícia arguta) a sádica<br />

cruelda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mirandolina no terceiro acto. Mas também é verda<strong>de</strong> que a vítima, o<br />

Cavaleiro, é retratado como exemplo <strong>de</strong> “presunção <strong>de</strong>pressiva”, <strong>de</strong> inconsciência<br />

con<strong>de</strong>nável (“<strong>de</strong>sprezando-a sem a conhecer”). Se a relação <strong>de</strong> Mirandolina e o<br />

Cavaleiro se me<strong>de</strong> com o grau <strong>de</strong> (auto) consciência que um e outro revelam, a<br />

interpretação moral é <strong>de</strong>smontada e ganha relevo a “arte” <strong>de</strong> Mirandolina, <strong>de</strong>smorona-se<br />

a pieda<strong>de</strong> que o Cavaleiro po<strong>de</strong>rá suscitar.<br />

Tais ambivalências, reveladas pela vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> comediante <strong>de</strong> Mirandolina,<br />

nascem <strong>de</strong> uma razão <strong>de</strong> fundo, a bem dizer, essencial no teatro <strong>de</strong> Goldoni: as<br />

personagens revelam-se e mostram-se na relação, que em alguns os <strong>de</strong>smascara<br />

completamente (o Cavaleiro) e noutros nos <strong>de</strong>ixa apenas entrever, por baixo da<br />

sabedoria do seu comportamento, motivações mais secretas (Mirandolina). Em todo o<br />

caso, o mecanismo cómico só nasce das reacções recíprocas: <strong>de</strong> um <strong>de</strong>safio aceite e<br />

infligido no adversário. É, <strong>de</strong> facto, o Cavaleiro a introduzir uma nota dissonante no<br />

acor<strong>de</strong> <strong>de</strong> elogios que envolve Mirandolina: ridiculariza a admiração, que é o único<br />

sentimento comum ao Marquês e ao Con<strong>de</strong>, e propõe-se <strong>de</strong>smascarar a “técnica” (que<br />

<strong>de</strong>pois ele próprio experimentará) <strong>de</strong> Mirandolina. “Artifícios, supremos artifícios.<br />

Pobres néscios!” (I, IV). E a sua sumária filosofia <strong>de</strong> misógino irrompe com um<br />

impulso grosseiro, <strong>de</strong> cavaleiro “bruto que nem um urso”, observará Mirandolina (I,<br />

IX), on<strong>de</strong> coexistem, sem seu conhecimento, a soberba <strong>de</strong> um senhor com dinheiro e a<br />

paixão reprimida <strong>de</strong> um homem vulnerável. “On<strong>de</strong> gasto o meu dinheiro, não tenho <strong>de</strong><br />

me gastar em cerimónias” (I, V). À sua volta, Mirandolina, habituada há muito a<br />

galanterias, sente-se ofendida pela repentina excepção à regra representada pelo<br />

Cavaleiro: e o seu ressentimento <strong>de</strong> mulher, que mesmo assim procura controlar,<br />

colocando-o no âmbito da gestão da sua estalagem, explicitado no famoso monólogo da<br />

cena IX (“Todos os que chegam a esta estalagem, todos <strong>de</strong> mim se enamoram (...) Este é<br />

o primeiro forasteiro que chega à estalagem e que não sente prazer em praticar<br />

comigo”), para ela, isso “revolve terrivelmente com a bílis”, provoca-a e faz-nos pensar<br />

<strong>de</strong> repente na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>de</strong>speito (“Com estes é que eu entro em disputa”). O breve<br />

inci<strong>de</strong>nte leva Mirandolina – e é essa a sua superiorida<strong>de</strong> – a “reconhecer-se” (ou pelo<br />

menos, a tentar fazê-lo), a tornar-se espectadora e juiz <strong>de</strong> si mesma (tédio para com os<br />

galantes, indiferença pela nobreza, interesse racional pela riqueza, prazer-fraqueza <strong>de</strong><br />

ser adorada, gosto pela liberda<strong>de</strong>...) antes <strong>de</strong> representar para os outros.<br />

Claro, as noções <strong>de</strong> Mirandolina serão analisadas, examinadas no texto <strong>de</strong> toda a<br />

comédia: olhando-se mais no fundo da sua psicologia (“Não preciso <strong>de</strong> ninguém (...)<br />

Pratico com todos. Não me enamoro <strong>de</strong> nenhum”), <strong>de</strong>scobre-se nela uma frigi<strong>de</strong>z<br />

intelectual, um capricho <strong>de</strong> Don Giovanni <strong>de</strong> saias, mais afeito à conquista que<br />

interessado na posse; ou talvez, por baixo do jogo <strong>de</strong> galanterias, uma aversão mais<br />

profunda, o indício <strong>de</strong> um sentimento mais escondido, <strong>de</strong> medo, ou <strong>de</strong> outra coisa<br />

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(Mirandolina parece “inimiga” do “outro” sexo como o Cavaleiro...). Por outro lado,<br />

naquele prazer <strong>de</strong> se ver “servida, <strong>de</strong>sejada, adorada”, que ela própria consi<strong>de</strong>ra ser uma<br />

“fraqueza” <strong>de</strong> mulher (mas “<strong>de</strong> quase todas as mulheres”), sendo até natural, se o<br />

relacionarmos com as ofertas que ela afirma, no início do monólogo, ter recebido<br />

(“tantos os que me pe<strong>de</strong>m que logo ali case com eles”), nasce um minúsculo complexo<br />

<strong>de</strong> inferiorida<strong>de</strong>, no plano social. Complexo que projecta, não por acaso, em Fabrício,<br />

que lhe é inferior, enquanto se compensa com os clientes da estalagem, mais homens, na<br />

habilida<strong>de</strong> e talvez na refinação com que executam um trabalho que implica o habitual<br />

código teatral das relações socialmente inconsequentes. Só queremos dizer, com estas<br />

alusões, que a arte teatral da estalaja<strong>de</strong>ira serve, também para Mirandolina, para<br />

mascarar ou revelar uma parte da sua verda<strong>de</strong>ira personalida<strong>de</strong>: é este o enredo das<br />

fugazes insinuações subterrâneas que o projecto <strong>de</strong> Mirandolina, concebido<br />

racionalmente, mas fundado numa provocação psicológica, <strong>de</strong>ixa aflorar pelos gestos e<br />

pelas palavras das cenas que se suce<strong>de</strong>m a um ritmo cada vez mais límpido <strong>de</strong><br />

casualida<strong>de</strong>s: o Marquês e o Con<strong>de</strong> irritam o Cavaleiro; este provoca Mirandolina; e<br />

Mirandolina é levada pela homenagem “normal” dos primeiros a punir a hostilida<strong>de</strong><br />

“excepcional” do segundo.<br />

Mas exactamente porque Mirandolina é, também ela, uma personagem, são mais<br />

admiráveis a sabedoria e a justiça com que encena a sua própria ficção pedagógica. Faz<br />

parte do seu trabalho, da cultura da sua classe, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a cena da “roupa <strong>de</strong> cama” (I, XV):<br />

representando o papel <strong>de</strong> estalaja<strong>de</strong>ira que supervisiona o cliente, escon<strong>de</strong>ndo a mulher<br />

que supervisiona o homem. E se o Cavaleiro procura <strong>de</strong>smascarar a malícia do jogo, ela<br />

encontra nele a <strong>de</strong>núncia da verda<strong>de</strong> (“Vêm para a estalagem para se hospedarem e<br />

<strong>de</strong>pois querem pôr-se <strong>de</strong> amores com a estalaja<strong>de</strong>ira! Há mais na nossa cabeça do que<br />

trela para os ditos <strong>de</strong>les! Procuramos zelar pelos nossos interesses.”), o instrumento <strong>de</strong><br />

uma ficção bem refinada: “Bravo. Apraz-me muito a vossa sincerida<strong>de</strong>” (I, XV),<br />

exclama o Cavaleiro. O tema da sincerida<strong>de</strong> é a primeira vitória <strong>de</strong> Mirandolina: e<br />

consegue fazê-lo imitar, genialmente, a “liberda<strong>de</strong>” <strong>de</strong> uma mulher que não tem medo<br />

dos enganos dos homens. “Agradais-me, que não sois mulherengo, que não sois<br />

daqueles que se enamoram.” (I, XV).<br />

Estabelecida a cumplicida<strong>de</strong> do não-amor entre eles como terreno seguro <strong>de</strong><br />

relação, Mirandolina fez nascer <strong>de</strong> repente o fantasma do amor iminente: “Que eu parta<br />

o nariz se antes <strong>de</strong> amanhã não está apaixonado”, observa ela num àparte. (I, XV). O<br />

Cavaleiro, note-se, não é parvo: intui a subtileza da comédia, mas também é atraído por<br />

“não sei quê <strong>de</strong> extraordinário” que emana <strong>de</strong> Mirandolina. Procura observar, fechado<br />

cada vez mais nestes dois sentimentos contraditórios, enquanto Mirandolina o excita<br />

contradizendo a sua própria coerência, insinuando no seu discurso uma “simpatia” que<br />

ainda assim consegue reclamar do Cavaleiro princípios <strong>de</strong> uma virilida<strong>de</strong> inabalável:<br />

afasta e instiga ao mesmo tempo os problemas, fazendo o “papel” do adversário, numa<br />

atmosfera provisória e perigosa <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> (a cena do vinho <strong>de</strong> Borgonha, II, IV). A<br />

entrada repentina do Marquês irritará o Cavaleiro (II, V), levando-o a uma disputa mais<br />

subtil em àpartes, enquanto Mirandolina, a propósito do vinho <strong>de</strong> Chipre do Marquês,<br />

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apanha o Cavaleiro em flagrante no pecado da mentira: “Quanto a mim, senhor, eu não<br />

sei dissimular. Não me agrada. Acho que é mau e não posso dizer que seja bom. Admiro<br />

aqueles que sabem fingir. Mas os que sabem fingir uma coisa, também sabem fingir nas<br />

outras todas.”.<br />

As intervenções das outras personagens são numerosas, em A Estalaja<strong>de</strong>ira:<br />

suscitadas pelo ambiente único e restrito, lugar <strong>de</strong> inevitável coabitação, entrelaçam-se<br />

os temas, agudizam-se ou <strong>de</strong>sviam-se os sentimentos, agilizam-se ou complicam-se os<br />

estratagemas <strong>de</strong> Mirandolina. Está representado, <strong>de</strong> maneira mais clara, neste momento,<br />

a função do espaço cénico que foi mencionada: no local que indica ao mesmo tempo o<br />

trabalho e a <strong>de</strong>pendência (dos clientes) <strong>de</strong> Mirandolina, todos são obrigados, pelos<br />

galanteios, pelo amor ou pelo interesse, a <strong>de</strong>finirem-se; a indicar, para além do papel<br />

fixado no jogo <strong>de</strong> uma coexistência provisória, os próprios limites subjectivos e<br />

objectivos, que nenhum po<strong>de</strong> <strong>de</strong> facto ultrapassar. O vazio da “estalagem-teatro”<br />

reclama portanto necessida<strong>de</strong>s sociais: o jogo não escon<strong>de</strong> as regras do real, essas são<br />

inquebráveis para todos.<br />

Goldoni trabalha Fabrício (o único, a par <strong>de</strong> Mirandolina, que está ligado à<br />

estalagem pelo trabalho, e aspirante a marido da patroa), através <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong><br />

pedaços fragmentários, mas constantes: manifesta ciúmes doentios, mas também é<br />

calculista e sensato, o que o torna mais submisso. “No fundo, os forasteiros vêm e vão.<br />

Eu fico sempre” (I, X). É excluído do jogo <strong>de</strong> Mirandolina, mas a sua presença é<br />

importante por isso: “agrada pouco” ao Marquês e representa para o Con<strong>de</strong>, mais<br />

céptico e rico, uma solução in<strong>de</strong>sejável (I, I); é posto em relevo pelos ciúmes do<br />

Cavaleiro (“Juro pelos céus que, se esse torna cá, lhe racho a cabeça”; III, VI); é<br />

valorizado no final por aquela espécie <strong>de</strong> medo que assoma a protagonista diante dos<br />

efeitos suscitados pela própria comédia (“Estou só, ninguém tenho que me <strong>de</strong>fenda.<br />

Ninguém, a não ser aquele bom Fabrício (...) Enfim, com este casamento salvarei o meu<br />

interesse e o meu crédito, sem prejudicar a minha liberda<strong>de</strong>.”; III, XIII). O calculismo<br />

burguês e a reserva interna <strong>de</strong> Mirandolina lançam uma sombra <strong>de</strong> equívoco sobre o<br />

<strong>de</strong>sfecho: mesmo na última cena, com o esposo, Mirandolina conserva uma margem <strong>de</strong><br />

ambiguida<strong>de</strong> elusiva, ou melhor, <strong>de</strong> solidão inatingível.<br />

O Marquês é uma figura mais vistosa, muito pela natureza (necessariamente<br />

sempre pelas palavras), da sua vida psicológica: as suas palavras são uma contínua<br />

tentativa <strong>de</strong> negar a realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> substituir a força egocêntrica <strong>de</strong> uma tautologia (“Eu<br />

sou quem sou”), que percorre os discursos com a insistência <strong>de</strong> um tique obsessivo e<br />

<strong>de</strong>sesperado. O Marquês e o Con<strong>de</strong>, <strong>de</strong> resto, são necessários um ao outro, não só na sua<br />

rivalida<strong>de</strong> em relação a Mirandolina, mas na oposição contínua com que acabam por<br />

esgotar a sua existência: esse capricho mecânico leva-os, frase a frase, ao seu estrato<br />

social e à sua pobreza moral. Autómato <strong>de</strong> farsa, um <strong>de</strong>les, “meio-carácter” ignorante e<br />

corrupto, o outro, eles prefiguram, com a classe aristocrática como pano <strong>de</strong> fundo, as<br />

máscaras possíveis <strong>de</strong> um teatro mo<strong>de</strong>rno. As duas comediantes permitem, neste<br />

contínuo eco <strong>de</strong> gestos e frases, que se forme uma nota estranha, mas não heterogénea:<br />

distraem as personagens masculinas, e <strong>de</strong>volvem a Mirandolina um jogo subtilmente<br />

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alegórico; mas não conseguem, perante Mirandolina, “sustentar um carácter numa<br />

estalagem” (I, XVIII), sugerindo uma aproximação maliciosa entre o velho teatro e a<br />

nova comédia.<br />

Em tal intrincado <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendências recíprocas, finalmente, os objectos adquirem<br />

uma luminosida<strong>de</strong> cénica insólita. À roupa da cama, ao guisado, ao vinho <strong>de</strong> Borgonha,<br />

ao ferro <strong>de</strong> engomar, ao espírito <strong>de</strong> melissa, etc., po<strong>de</strong>remos facilmente juntar o elenco<br />

das personagens. Cumprem uma função fundamental <strong>de</strong> transfert, das maneiras mais<br />

complexas e surpreen<strong>de</strong>ntes, ricos em alusões, em atracções, em mal-entendidos: e<br />

também isto, se atentarmos, faz parte daquele cenário concreto, laico, que a estalagem<br />

revela ser – a comédia cumpre o seu reconhecimento observador.<br />

É neste espaço real, ainda, que se recompõem as diversas figuras <strong>de</strong><br />

Mirandolina. Ainda que complexas, nem sempre são claras as motivações profundas da<br />

personagem, ainda que límpido e arguto seja o jogo didáctico da ficção que as regista,<br />

inventa e representa, o seu comportamento é preciso e concreto quando reentra (em<br />

qualquer momento da comédia, note-se) no espaço da estalagem, como se estivesse na<br />

normal e sábia gestão <strong>de</strong> um negócio. “Pronto. Acabou-se o passatempo. Importa agora<br />

cuidar das minhas coisas” (III, I), é a frase que abre o último acto, com a consciência <strong>de</strong><br />

que o jogo tem <strong>de</strong> terminar, que se tem <strong>de</strong> <strong>de</strong>spachar a questão, porque o dinheiro se<br />

conquista com o trabalho que, no fim <strong>de</strong> contas, vale mais que o “divertimento” galante.<br />

Nesta consciência encontra-se, claro, o bom senso burguês da protagonista: mas<br />

também, teatralmente falando, a verda<strong>de</strong>ira solidão da personagem, que <strong>de</strong>ve agora<br />

passar do gran<strong>de</strong> ritual <strong>de</strong> sedução para a escolha compulsiva <strong>de</strong> um casamento mais<br />

lucrativo; e ainda a melancolia, apenas sugerida, mas para nós, provocante, que vem do<br />

realismo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Mirandolina ser apalpada, quase possuída pela explosão irracional<br />

da paixão do Cavaleiro (e talvez até, intimamente provocada, ou mesmo atraída; mas <strong>de</strong><br />

toda a maneira, não apenas aterrorizada pela confissão <strong>de</strong> um sentimento que transgri<strong>de</strong><br />

todos os limites da sensibilida<strong>de</strong> galante).<br />

Mirandolina, paradoxalmente, é a única que não po<strong>de</strong> dissimular senão na<br />

conclusão. Todos, <strong>de</strong> facto, po<strong>de</strong>m fingir <strong>de</strong> várias maneiras naquele lugar <strong>de</strong> passagem<br />

que é a estalagem: ignoram-se, ludibriam-se, enfatizam sentimentos e preconceitos; mas<br />

a única que finge conscientemente, mesmo como uma verda<strong>de</strong>ira actriz, é Mirandolina,<br />

porque é a única que conhece o limite (real, <strong>de</strong> classe) da própria ficção. Por isso está<br />

consciente <strong>de</strong> que ninguém po<strong>de</strong> prescindir, em nenhum momento, do seu estatuto<br />

social, do trabalho próprio: e antes <strong>de</strong> mais, em tudo o que diz respeito ao beco sem<br />

saída a que conduz o “enamoramento”, o tal matrimónio que, ao início, ela afirma lhe<br />

ter sido oferecido por muitos. Conhecendo as convenções sociais, Mirandolina sabe que<br />

nem o Marquês, nem o Con<strong>de</strong>, nem o próprio Cavaleiro po<strong>de</strong>rão transformar as ofertas<br />

<strong>de</strong> matrimónio em ofertas <strong>de</strong> amor. É brutalmente explícito, sob este ponto <strong>de</strong> vista, o<br />

Marquês, quando se vangloria por um instante <strong>de</strong> ser “um con<strong>de</strong> ridículo”, como o rival,<br />

respon<strong>de</strong> a Mirandolina o que faria: “Pelo cornudo!... Casava-me convosco” (I, VIII).<br />

Tudo pesado, Mirandolina, que não é nem uma personagem livre nem o símbolo<br />

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abstracto da mulher sedutora, sabe perfeitamente: o instinto <strong>de</strong> classe é a base da sua<br />

escolha final.<br />

Mas também por isto, Mirandolina força a própria aposta, no terceiro acto,<br />

quando quer obrigar o Cavaleiro a confessar, à frente <strong>de</strong> todos, a sua <strong>de</strong>rrota. Não se<br />

trata <strong>de</strong> cruelda<strong>de</strong>, nem <strong>de</strong> rivalida<strong>de</strong> social (que, contudo, existem), mas sim da<br />

conclusão teatral certa, naquele espaço cénico em que a estalagem se tornou: remetendo<br />

o Cavaleiro à sua filosofia inconsequente e básica, ela não apenas triunfa à frente dos<br />

outros, ela obriga o Cavaleiro a falar, a <strong>de</strong>smentir a filosofia, a <strong>de</strong>clarar o seu carácter<br />

inconsequente, a sua consistência unicamente verbal, à frente do público da estalagem.<br />

A superiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mirandolina sobre o Cavaleiro não é <strong>de</strong> natureza moral, mas<br />

intelectual. Ao contrário <strong>de</strong>la, o Cavaleiro não quer “reconhecer-se”, e assim não<br />

reconhecerá o carácter, possível e potencialmente revelador para ele, do próprio<br />

enamoramento. Basicamente irresponsável, passa, durante toda a aventura, por excessos<br />

verbais, mistificações inconsequentes, que vão da cólera funambulesca à súplica<br />

melodramática: quando Mirandolina, perturbada, lhe pergunta “Que quereis <strong>de</strong> mim?”,<br />

ele respon<strong>de</strong>, vencido, “Amor, compaixão, pieda<strong>de</strong>” (III, VI). “Um homem que ainda<br />

hoje pela manhã não podia ver mulheres, implora agora amor e pieda<strong>de</strong>?”, respon<strong>de</strong><br />

Mirandolina, remetendo-o para a sua “retórica” fantasiosa. Mesmo no fim, mesmo<br />

quando já não po<strong>de</strong> fazer outra coisa senão escolher ser uma personagem que se prova<br />

estar no mundo sem o conhecer e sem se conhecer. É esta a dura e verda<strong>de</strong>ira lição final<br />

<strong>de</strong> Mirandolina: o <strong>de</strong>smascaramento da retórica, da “presunção” <strong>de</strong> que falará Goldoni<br />

no Prefácio.<br />

Bastam estas cenas para mostrar como Goldoni está a preparar, nestes anos, um<br />

teatro mais simples e <strong>de</strong>spido, com personagens e talvez com novas máscaras (po<strong>de</strong>mos<br />

dizer) fortemente tipificadas, carregadas <strong>de</strong> uma forte carga simbólica, e por isso<br />

capazes <strong>de</strong> exprimir uma visão “crítica” mais complexa, em relação a uma socieda<strong>de</strong> em<br />

<strong>de</strong>clínio e sem alternativas claras. Talvez se possa compreen<strong>de</strong>r, então, por que razão A<br />

Estalaja<strong>de</strong>ira é uma comédia muito revisitada e nunca esgotada: ela revela claramente,<br />

e ao mesmo tempo problematiza, o núcleo essencial do melhor teatro <strong>de</strong> Goldoni:<br />

constituído por um tecido intrincado <strong>de</strong> relações sociáveis, on<strong>de</strong> as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada<br />

grupo social não excluem (pelo contrário), o recorrente imprevisto do comércio<br />

quotidiano dos indivíduos. As personagens, no fundo condicionadas pelo próprio<br />

estatuto social, só no momento <strong>de</strong> contacto com as outras é que nascem realmente: no<br />

teatro (e po<strong>de</strong>remos dizer, na vida, dada a constância sistemática, digna <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong><br />

filósofo empirista, que Goldoni consegue obter no seu estudo <strong>de</strong> comportamentos<br />

intersubjectivos; <strong>de</strong> modo que as personagens parecem não existir fora da cena on<strong>de</strong><br />

acontecem tais relações). Neste encontro <strong>de</strong> lógica e surpresa, <strong>de</strong> inevitável e<br />

imprevisto, Goldoni chega a uma limpeza cénica que po<strong>de</strong> parecer superficial, mas que<br />

nunca esgota a sua própria lição. A Estalaja<strong>de</strong>ira, neste sentido, ainda é exemplar.<br />

NB.: Todas as transcrições do Prefácio – Do Autor a Quem Ler e A Estalaja<strong>de</strong>ira são <strong>de</strong> Jorge<br />

Silva Melo, Carlo Goldoni, Peças Escolhidas, volume 1. Cotovia, 2008.<br />

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Alardyce Nicoll<br />

O CRESCIMENTO DA COMÉDIA BURGUESA<br />

Carlo Gozzi era um filósofo irónico. Carlo Goldoni tinha tendência para ser um<br />

filósofo sentimental. O primeiro era um aristocrata, que se teria sentido melhor um<br />

século antes do seu tempo; misturava na sua cabeça os i<strong>de</strong>ais cortesãos <strong>de</strong> uma era<br />

passada e as crenças hipócritas da burguesia que animavam os intelectuais do século<br />

<strong>de</strong>zoito. O outro nasceu no seio da burguesia num período burguês. Tal como Gozzi,<br />

começou a sua carreira dramática a escrever para actores <strong>de</strong> commedia <strong>de</strong>ll’arte, mas<br />

muito cedo percebeu que essas mascaradas e contos fantásticos maravilhosos, embora<br />

encantassem os companheiros, não mereciam atenção séria. Toda a sua propensão<br />

estava voltada para o teatro realista; ele chegou a <strong>de</strong>sprezar a tradição popular italiana<br />

(mesmo quando a influência se fazia sentir mais fortemente nele) e procurou mo<strong>de</strong>los<br />

em França e noutros sítios; apesar do seu bom humor transbordante, ele sentia-se<br />

melhor no território do drama sentimental do que naqueles habitados por Pantalone e os<br />

seus companheiros. O próprio facto <strong>de</strong> que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma aprendizagem em Veneza e<br />

Roma, se mudou para França em 1762 e passou muitos anos a escrever para o “Théâtre<br />

Italien” <strong>de</strong> Paris, é indicativo da propensão do seu talento.<br />

É difícil medir os talentos do autor Goldoni. A sua pena estava sempre em<br />

movimento, e no meio das duzentas e cinquenta estranhas peças <strong>de</strong> sua autoria, há<br />

muitas que não merecem atenção. Mesmo os seus melhores trabalhos não se equiparam<br />

a obras-primas escritas por aqueles – especialmente Molière – que ele via como<br />

mo<strong>de</strong>los. Possui um agudo sentido <strong>de</strong> diversão, que dá vivacida<strong>de</strong> às cenas, mas o po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> observação é frívolo. Ele pressente a força das novas i<strong>de</strong>ias filosóficas que estão a<br />

transformar a Europa, contudo a moralização que faz é vulgar, e as soluções que sugere<br />

para os problemas são muitas vezes absurdas. Fundamentalmente optimista, ele fracassa<br />

naquilo que é substantivo no trabalho <strong>de</strong> Molière. Ao mesmo tempo, é difícil encontrar<br />

um dramaturgo que mostre tanta fertilida<strong>de</strong> na invenção; poucos enriqueceram o palco<br />

com cenas <strong>de</strong> genuíno espírito cómico, poucos <strong>de</strong>ram uma panorâmica tão variada e<br />

<strong>de</strong>lineada, com tanta vitalida<strong>de</strong>, da sua era.<br />

Os seus objectivos principais foram <strong>de</strong>lineados claramente no ensaio crítico que<br />

publicou em 1750 – O <strong>Teatro</strong> Cómico, on<strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> atores, sob a chefia <strong>de</strong> Orazio,<br />

ensaia uma farsa intitulada O pai rival do filho. Nesta peça, são enumerados os diversos<br />

problemas do teatro, tal como o autor os via – as queixas estúpidas e perturbadoras dos<br />

actores, a troca <strong>de</strong> frases improvisadas, a introdução <strong>de</strong> boçalida<strong>de</strong>s sem sentido, apenas<br />

por pura diversão, a falta <strong>de</strong> propósitos morais nas peças suas contemporâneas. Por tudo<br />

isto, vê-se que Goldoni, embora forçado a ter <strong>de</strong> escrever peças para actores com<br />

tradição <strong>de</strong> commedia <strong>de</strong>ll’arte, sonhava com um palco on<strong>de</strong> o dramaturgo escrevia<br />

palavras para os actores, on<strong>de</strong> o espírito cómico era convocado para fins nobres e on<strong>de</strong><br />

o puramente fantástico era substituído por cenas baseadas na observação da vida.<br />

A apresentação <strong>de</strong>sta sua atitu<strong>de</strong> crítica em relação ao palco concretizou-se,<br />

claro, algum tempo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ele ter entrado no teatro, e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito cedo conseguiu<br />

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impor algumas das suas reformas aos actores e esboçar o estilo que queria seguir. Em<br />

1743, já tinha escrito a sua primeira comédia com diálogos, La Donna di Garbo, e as<br />

peças seguintes <strong>de</strong>monstram os seus principais interesses. Em La Putta Onorata (1748),<br />

a socieda<strong>de</strong> do seu tempo é o pano <strong>de</strong> fundo da história da <strong>de</strong>voção da heroína Bettina,<br />

por um cavalheiro, apesar <strong>de</strong> todos os males que a ro<strong>de</strong>iam. Embora não se atreva a ir<br />

<strong>de</strong>masiado longe, o dramaturgo acredita claramente que a virtu<strong>de</strong> se encontra mais<br />

vezes <strong>de</strong>baixo das vestes <strong>de</strong> um pobre do que sob os brocados da aristocracia.<br />

É um conceito que percorre gran<strong>de</strong> parte do seu trabalho e que atinge o seu<br />

culminar numa peça como La Famiglia <strong>de</strong>ll’ Antiquario (1749), on<strong>de</strong> a reescrita que<br />

Goldoni faz da personagem Pantalone é mais incisiva. Antes disso, Pantalone nunca<br />

tinha sido mais que a caricatura cómica <strong>de</strong> um mercador veneziano, rico mas<br />

estupidamente apaixonado, um bom rabo para os pontapés dos espertos. Em La<br />

Bancarotta, ossia Il Mercante Fallito (1741), Goldoni retratou-o assim, e em La Putta<br />

Onorata ainda se viam resquícios da personagem original, mas na sequela <strong>de</strong>ssa mesma<br />

peça, La Buona Moglie (1748), eles começam a <strong>de</strong>saparecer: por causa dos ditosos<br />

esforços <strong>de</strong> Pantalone é restaurada a harmonia num lar antes <strong>de</strong>spedaçado pela<br />

dissonância. Daqui em diante, Pantalone surgirá, pelas mãos <strong>de</strong> Goldoni, uma<br />

personagem <strong>de</strong>senhada sentimentalmente, <strong>de</strong>monstrando, muitas vezes, que os meios<br />

usados para os finais felizes são fruto <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> cenas confusas potencialmente<br />

trágicas. Em La Famiglia <strong>de</strong>ll’ Antiquario, embora muitas das acções tenham a ver com<br />

as loucuras do apaixonado <strong>de</strong>voto coleccionador <strong>de</strong> antiguida<strong>de</strong>s, o tema principal tem a<br />

ver com o <strong>de</strong>stino da filha <strong>de</strong> Pantalone, Doralice, casada numa família aristocrata<br />

empobrecida e <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte. É apenas a virtu<strong>de</strong>, o senso comum e a magnanimida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Pantalone que corrige tudo mesmo ao cair do pano. É apenas o auxílio simpático <strong>de</strong><br />

Pantalone que impe<strong>de</strong> que a acção <strong>de</strong> Il Giocatore (1750) se torne um drama infeliz.<br />

Noutra comédia produzida no mesmo ano, L’Avvocato Veneziano, os objectivos<br />

sérios do autor são claros. O herói é o advogado Alberto, que foi contratado para<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r Florindo num processo contra Rosaura: ele apaixona-se por ela e fica, por isso,<br />

dividido entre a paixão e o <strong>de</strong>ver. Felizmente, para ele, Rosaura per<strong>de</strong> o processo, mas<br />

encontra nele um marido <strong>de</strong>voto e sincero. Embora Goldoni não consiga resistir à<br />

inclusão <strong>de</strong> piadas complexas e sinceras, em muitas das cenas, o tema principal lida<br />

obviamente com um assunto mo<strong>de</strong>radamente sério que envolve um problema moral.<br />

Se estas comédias nos apresentam algumas características fundamentais do estilo<br />

<strong>de</strong> Goldoni, os elementos em conflito nesta sua abordagem cómica da vida ainda são<br />

mais abertamente exemplificados na visão panorâmica que nos oferece no famoso grupo<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>zasseis obras que, com uma facilida<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iramente extraordinária, produziu<br />

numa temporada apenas (1750-51). Entre elas estão peças encantadoras como O<br />

Mentiroso e O Café, on<strong>de</strong> a diversão que advém do enredo se mistura com uma<br />

<strong>de</strong>lineação audaz <strong>de</strong> maneirismos da época. Diálogos inteligentes dão cor às cenas <strong>de</strong> Il<br />

Cavaliere di Buon Gusto: Ottavio, nesta peça, e Don Marzio, o escandaloso aristocrata<br />

<strong>de</strong> O Café, são personagens <strong>de</strong>senvolvidas e diversificadas em I Pettegolezzi <strong>de</strong>lle<br />

Donne, on<strong>de</strong> o retrato alegre da vida social tem um ligeiro toque sentimental. Em<br />

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contrapartida, este sentimento torna-se mais patente no enredo <strong>de</strong> L’Avventuriero<br />

Onorato, e finalmente é responsável pelas cores <strong>de</strong> Pamela Nubile, baseada no famoso<br />

romance <strong>de</strong> Samuel Richardson. Se po<strong>de</strong>mos notar a influência <strong>de</strong> Richardson nesta<br />

peça, a influência <strong>de</strong> Molière ainda é mais forte. Apesar <strong>de</strong> tudo, Goldoni era um<br />

dramaturgo do riso, e não nos surpreen<strong>de</strong> encontrarmos nestas <strong>de</strong>zasseis comédias – e<br />

em La Finta Ammalata, baseada em L’Amour Mé<strong>de</strong>cin <strong>de</strong> Molière – uma confissão da<br />

influência que Goldoni sentia pelo seu mestre francês.<br />

Talvez o espírito que inva<strong>de</strong> esta extraordinária ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> peças, on<strong>de</strong> Goldoni<br />

percorre toda a gama <strong>de</strong> sentimentos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o sério ao divertimento <strong>de</strong> pura farsa, seja<br />

melhor expresso em La Castalda (1751), e no seu retrato sedutor <strong>de</strong> Corallina, e na<br />

comédia imediatamente posterior, A Estalaja<strong>de</strong>ira (1753), com o seu ainda mais sedutor<br />

retrato <strong>de</strong> Mirandolina, que beneficia inteligentemente das atenções <strong>de</strong> um nobre<br />

<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte, o Marquês <strong>de</strong> Forlipopoli, do rico parvenu Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Albafiorita, e sacrifica<br />

alegremente o misógino Cavaleiro <strong>de</strong> Ripafratta, oferecendo, finalmente, a mão ao seu<br />

humil<strong>de</strong> e fiel criado. Esta última é vista, e com razão, uma das suas verda<strong>de</strong>iras obrasprimas.<br />

Em A Estalaja<strong>de</strong>ira vemos outra, e verda<strong>de</strong>iramente significativa, marca da arte<br />

<strong>de</strong> Goldoni. É dada atenção às personagens, mas a personagem principal é a própria<br />

estalagem. Depois <strong>de</strong> notarmos isto, lembremo-nos que nas peças mencionadas<br />

anteriormente, como em O Café, o local assume um <strong>de</strong>sempenho teatral equivalente às<br />

personagens que o frequentam. Em certo sentido, po<strong>de</strong>mos dizer que as comédias <strong>de</strong><br />

Goldoni pegam em Veneza como assunto principal, e que é nas suas diferentes cenas<br />

que ele dá ênfase a um edifício e a um grupo social <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> maior,<br />

em vez <strong>de</strong> se concentrar, como Molière, em indivíduos. Os próprios títulos <strong>de</strong> peças<br />

subsequentes, como O Campiello (1756), Il Festino (1754), e A Villeggiatura (1756),<br />

<strong>de</strong>monstram como explorou consistentemente esta noção dos sítios, e a estas peças<br />

<strong>de</strong>vem ser adicionadas outras, on<strong>de</strong> o efeito principal advém do retrato <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados<br />

segmentos da socieda<strong>de</strong> veneziana: o lar do futuro cavalheiro <strong>de</strong> Le Femmine<br />

Puntigliose (1750), a vida num quarto <strong>de</strong> casal <strong>de</strong> Il Cavaliere e la Dama (1749), e <strong>de</strong><br />

La Dama Pru<strong>de</strong>nte (1750), a vida fervilhante da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> O Cavaleiro Alegre,<br />

representado originalmente como I Viaggiatori (1750), os esboços rústicos <strong>de</strong> Il<br />

Feudatario (1752), as diversões carnavalescas <strong>de</strong> Le Morbinose (1758), ou os bastidores<br />

do palco em La Figlia Ubbidiente (1752). Uma cena habitual, <strong>de</strong> La Putta Onorata:<br />

Vista para o Gran<strong>de</strong> Canal com gôndolas. De um dos lados, uma casinha <strong>de</strong><br />

ma<strong>de</strong>ira à entrada do teatro. Mais para <strong>de</strong>ntro, a porta <strong>de</strong> saída do teatro e uma<br />

janelinha por on<strong>de</strong> se ven<strong>de</strong>m os bilhetes para a comédia. De vez em quando, um<br />

rapaz grita: “Venham buscar os vossos bilhetes, senhoras máscaras, <strong>de</strong>z soldos<br />

cada, a bilheteira é aqui, senhoras máscaras.” Do outro lado, um banco para quatro<br />

pessoas. E aqui e ali, lampiões, como é normal perto dos teatros.<br />

Passam várias máscaras, algumas vão buscar os seus bilhetes e entram no teatro,<br />

outras seguem sem bilhete; <strong>de</strong>pois passa NANE, o gondoleiro, com um lampião<br />

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que leva máscaras para o teatro, <strong>de</strong>pois o criado com um lampião, conduzindo a<br />

MARQUESA BEATRICE, BETTINA e CATE ao teatro. A seguir aparece<br />

MENEGO CAINELLO com o MARQUÊS OTTAVIO e quatro homens que<br />

entram no teatro. O rapaz, <strong>de</strong> vez em quando, grita: “Venham buscar os vossos<br />

bilhetes, etc. ; <strong>de</strong>pois ouve-se gritar <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro: “A saída é por aqui.” A porta abrese<br />

e MENEGO e NANE saem com lampiões.<br />

MENEGO: Amigo Nane, tudo?<br />

NANE: Bem, amigo Menego.<br />

MENEGO: Já te passou atão?<br />

NANE: O quê?<br />

MENEGO: Aquela discussão.<br />

NANE: Não me lembro <strong>de</strong> nada, varreu-se-me.<br />

MENEGO: No barco somos inimigos, em terra somos amigos e irmãos.<br />

NANE: Às vezes é preciso criar reputação, mas não quer dizer nada.<br />

MENEGO: Por que é que pensaste que eu não te <strong>de</strong>ixei passar? Por causa do<br />

patrão? Nem penses. Foi só porque tinha cinquenta gondoleiros a olhar para mim e<br />

eu tinha <strong>de</strong> fazer alguma coisa.<br />

NANE: Trouxeste o patrão à comédia?<br />

MENEGO: Trouxe, amigo.<br />

NANE: Eu vim com um estrangeiro que chegou hoje <strong>de</strong> manhã. Já o servi outras<br />

vezes, ele trata-me bem.<br />

Enquanto conversam, o ar frio da noite começa a entrar-lhes nos ossos, e enquanto os<br />

seus patrões se divertem, eles pensam nos seus próprios prazeres.<br />

NANE: Está frio.<br />

MENEGO: Com uma garrafa <strong>de</strong> vinho a gente trata disso. (Para o Rapaz.) Ó<br />

menino dos bilhetes, anda cá.<br />

RAPAZ: O que é que querem?<br />

MENEGO: Está vento aqui, vai-nos buscar uma garrafa <strong>de</strong> vinho. Diz ao homem<br />

que vais da parte do Cainello e que ele te <strong>de</strong>ve dar aquilo que dá aos seus amigos.<br />

Percebeste?<br />

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É vigoroso este hábil retrato da fervilhante vida às portas <strong>de</strong> um teatro veneziano<br />

e também o modo como o pano <strong>de</strong> fundo é usado como cenário animado para as<br />

personagens da peça – os servos e os gondoleiros, os cavalheiros e as damas.<br />

Ainda assim, há mais uma característica geral do trabalho <strong>de</strong> Goldoni que se<br />

po<strong>de</strong> observar nas comédias referidas. Os próprios nomes das peças <strong>de</strong>monstram como<br />

ele estava interessado na representação cómica das mulheres: mulher e dama são duas<br />

palavras que profere muitas vezes. As pequenas futilida<strong>de</strong>s que acompanham o<br />

feminino, a coscuvilhice no quarto, o contraste entre galanteios abertos e ciúmes<br />

sentidos – tudo isto é capturado pelo seu olhar atento, e algumas das suas cenas mais<br />

representativas têm mulheres como personagens principais. Em Le Smanie per la<br />

Villegiatura (As Manias da Villegiatura, 1761), por exemplo, os episódios mais<br />

<strong>de</strong>licados e vívidos são os que mostram as farpas que se espetam por baixo dos<br />

galanteios afectivos <strong>de</strong> Victoria e Giacinta. O arrebatamento e surpresa das qualida<strong>de</strong>s<br />

do coração feminino são responsáveis pelo enredo e interesse <strong>de</strong> Le Donne Curiose<br />

(1753), on<strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> mulheres faz tudo o que po<strong>de</strong> para entrar num clube<br />

exclusivamente para homens dirigido por Pantalone e seus amigos; o título Mulheres<br />

Ciumentas (1752) diz tudo sobre a história, e o mesmo tema dos ciúmes femininos<br />

aparece em Os Apaixonados (1759); o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> uma senhora <strong>de</strong> ter uma corte <strong>de</strong><br />

admiradores mais pequena é o tema principal <strong>de</strong> La Donna Bizarra (1758). Quando<br />

reparamos na atmosfera <strong>de</strong>stas peças, contudo, temos <strong>de</strong> as contrapor a uma outra<br />

atmosfera menos satírica. Se Goldoni via as futilida<strong>de</strong>s femininas, ele também não<br />

fechava os olhos às suas virtu<strong>de</strong>s, e os seus homens são muitas vezes mais obtusos que<br />

as mulheres. Já na Corallina <strong>de</strong> La Castalda e na Mirandolina <strong>de</strong> A Estalaja<strong>de</strong>ira ele<br />

tinha <strong>de</strong>senhado figuras simpáticas <strong>de</strong> heroínas capazes, atractivas e trabalhadoras; e<br />

estas figuras são espelhadas por outras, como a Giulia <strong>de</strong> La Donna di Maneggio<br />

(1760). Para além disto, o sentimentalismo que percorre o autor levou-o a retratar a<br />

honestida<strong>de</strong> e sincerida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma Eleonora em Il Cavaliere e la Dama, tal como os<br />

quase patéticos sofrimentos <strong>de</strong> Corallina em La Donna Vendicativa (1753).<br />

O período <strong>de</strong> mais rica invenção <strong>de</strong> Goldoni foi durante os anos quarenta e<br />

cinquenta do século <strong>de</strong>zoito. Em 1758, <strong>de</strong>ixou Veneza e foi para longe, primeiro para<br />

Roma e <strong>de</strong>pois para Paris. Algumas das suas peças escritas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sta data, como a<br />

farsa La Donna di Governo (1758), sugerem que os seus talentos estão a <strong>de</strong>saparecer,<br />

mas outras testemunham que mesmo <strong>de</strong>pois da sua activida<strong>de</strong> mais prolífica, ele ainda<br />

tinha força para uma invenção cómica consi<strong>de</strong>rável. Em Os Rústicos (1760), ele mostranos<br />

figuras extremamente bem <strong>de</strong>senhadas no opinativo Simon, no estúpido obstinado<br />

Lunardo, e no velho Canciano. Em A Casa Nova (1761) ele continua o plano <strong>de</strong> pegar<br />

num local e <strong>de</strong> o animar: o enredo aqui conta a história dos problemas <strong>de</strong> Anzoletto,<br />

quando a sua <strong>de</strong>smiolada noiva, Cecilia, o enche <strong>de</strong> dívidas porque quer que a sua casa<br />

nova seja elegante e da moda, mas, <strong>de</strong> alguma maneira, é menos o casal mas mais a<br />

personalida<strong>de</strong> da própria casa que ganha vida. Em La Buona Madre (1761), com a sua<br />

história da viúva Barbara e do modo como protege os filhos, levando-os a contraírem<br />

bons casamentos em termos sociais, o sentimentalismo inerente do tema é amenizado<br />

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por um <strong>de</strong>senho das personagens simpático; enquanto que no “dialecto-veneziano” As<br />

Zaragatas em Chiozza (1762), Goldoni leva aos limites o seu interessante<br />

experimentalismo <strong>de</strong> tecer uma comédia a partir <strong>de</strong> um todo social – neste caso, os<br />

habitantes <strong>de</strong> uma al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> pescadores.<br />

Em França, o autor envelhecia, continuando a sua activida<strong>de</strong>. O Leque (1765) é<br />

uma das suas comédias mais conhecidas, on<strong>de</strong> ele usa um mecanismo do romance:<br />

tornar um objecto inanimado – neste caso, o próprio leque – o próprio núcleo da acção.<br />

Ao passar <strong>de</strong> mão em mão, o leque liga as personagens e dá vivacida<strong>de</strong> ao complexo<br />

enredo. Em Le Bourru Bienfaisant (1771), ele ainda conseguiu escrever em francês,<br />

retratando um velho raquítico Géronte, que, contudo, escon<strong>de</strong> um coração<br />

sentimentalista e patético por baixo do seu exterior ru<strong>de</strong>. Noutra peça em francês,<br />

L’Avare Astucieux, em 1773, o sentimentalismo triunfa no <strong>de</strong>stino do <strong>de</strong>sgraçado con<strong>de</strong><br />

que é a sua figura principal.<br />

Com esta peça, a carreira <strong>de</strong> Goldoni chegava ao fim. É óbvio que <strong>de</strong>ixou a sua<br />

marca no teatro, mas fora <strong>de</strong> Itália permanece – e provavelmente está <strong>de</strong>stinado a que<br />

assim seja – um nome, e não uma presença viva no teatro. Ele possuía verda<strong>de</strong>ira<br />

habilida<strong>de</strong> e uma invenção extraordinariamente fecunda, mas no seu trabalho não se<br />

encontram as qualida<strong>de</strong>s mais profundas que marcam as verda<strong>de</strong>iras obras <strong>de</strong> arte. Nas<br />

suas comédias encontra-se sedução e não força. A sedução, contudo, não é transitória:<br />

nasce directamente da personagem extrovertida do próprio autor, irradia todos os seus<br />

trabalhos com excepção dos dramas tediosos e sérios, tão contrários ao seu génio, que<br />

escreveu no princípio da sua carreira. O sol do século <strong>de</strong>zoito em Veneza ainda brilha<br />

para aqueles que se <strong>de</strong>rem ao trabalho <strong>de</strong> o procurar.<br />

Tanto Gozzi como Goldoni tiveram pouca sorte nas circunstâncias. Ambos<br />

possuíam génio: em ambos, esse génio era contraproducente. Gozzi encontrou o teatro<br />

que queria na commedia <strong>de</strong>ll’arte – reconheceu, ainda que sem querer, que o estilo<br />

<strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> comédia estava ultrapassado. Os filósofos sérios nutriam pouca simpatia<br />

pelos contos fantásticos que ele tão bem sabia narrar. Na commedia <strong>de</strong>ll’arte, para quem<br />

Goldoni foi forçado a escrever peças, ele via apenas um impedimento ao<br />

<strong>de</strong>senvolvimento daquilo que queria dar ao mundo. Se tal aspecto tão histriónico não<br />

existisse na Veneza do seu tempo, talvez não tivesse <strong>de</strong>sperdiçado tanta energia a<br />

efectivar as suas “reformas”, que expôs solenemente no <strong>Teatro</strong> cómico. Assim, em vez<br />

<strong>de</strong> alcançar aquilo que po<strong>de</strong>ria ter sido facilmente uma série <strong>de</strong> obras-primas<br />

proeminentes, cada uma <strong>de</strong>las <strong>de</strong>ixa pouco mais que uma <strong>de</strong>liciosa memória do riso,<br />

numa época que se estava a tornar sombriamente séria.<br />

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Guido Davico Bonino<br />

INTRODUÇÃO<br />

Esperamos não ter aborrecido o leitor, ao levá-lo quase pela mão, com um<br />

qualquer excesso <strong>de</strong> minúcia, pelas pegadas da carreira <strong>de</strong> Maddalena-Corallina, no<br />

fundo, uma anagrama <strong>de</strong> Mirandolina. Mas, ao começarmos por aquele diminutivo, que<br />

surpresa ele nos reserva? Po<strong>de</strong> parecer um fácil (e fútil) jogo <strong>de</strong> palavras, mas, se<br />

virmos bem, o núcleo interpretativo <strong>de</strong>sta gran<strong>de</strong> comédia está todo aqui. Por outras<br />

palavras: qual é a verda<strong>de</strong>ira relação <strong>de</strong> Goldoni com esta sua personagem?<br />

Para nos aproximarmos com alguma clareza racional do texto, talvez seja útil<br />

dizer aquilo que a comédia não é: não é <strong>de</strong> certeza uma comédia <strong>de</strong> amores, apesar do<br />

peso <strong>de</strong> uma tradição mais cénica que crítica, que foi sendo (sobretudo no século XVIII)<br />

preguiçosamente estabelecida, nos quatro cantos da Europa (a Rússia e os países eslavos<br />

não foram menos influenciados que os “quentes” países mediterrâneos) com os termos<br />

da sedução amorosa.<br />

Esta comédia é, em primeira instância, uma comédia sobre o egotismo. Se ainda<br />

estivesse na moda ce<strong>de</strong>r às sugestões superficiais <strong>de</strong> um certo pensamento à Freud <strong>de</strong><br />

trazer por casa, até podíamos dizer que é uma comédia sobre o narcisismo. Mas<br />

limitemo-nos a observar as tentações egocêntricas da protagonista. Proprietária, por<br />

herança paterna, <strong>de</strong> uma pequena estância <strong>de</strong> repouso (Goldoni insiste em esclarecer<br />

que a estalagem “correspon<strong>de</strong> ao hotel garni francês”, uma pensão com algum fascínio<br />

para os poucos habitués escolhidos a <strong>de</strong>do), a nossa Maddalena-Mirandolina tem, numa<br />

socieda<strong>de</strong> como a <strong>de</strong> Veneza clássica (que o estabelecimento da acção seja em Florença<br />

não tem qualquer pertinência), um status <strong>de</strong> pequeno-burguesa. Alberga aristocratas <strong>de</strong><br />

valor oposto (do proto-aristocrático arruinado ao rico e recente parvenu), mas é sempre<br />

<strong>de</strong> lençóis e toalhas, guisados e molhos que se ocupa, como o seu trabalho, <strong>de</strong> certa<br />

forma prosaico, exige. Que outra <strong>de</strong>sforra tem uma mulher <strong>de</strong>ste tipo, inevitavelmente<br />

con<strong>de</strong>nada pelo seu status social aos próprios clientes, senão <strong>de</strong>sembainhar todas as<br />

armas das assim chamadas “mulheres atraentes”, das tão temidas “sereias<br />

encantatórias”? Habituada, quando ninguém a ouve, ou seja, nos àpartes ou nos<br />

monólogos, a falar “baixo”, isto é, pela sua própria noção pequeno-burguesa (“O<br />

avarento! Nada para mim há-<strong>de</strong> ter!”, em I, 5; e o “todos me dizem lindas coisas”, em I,<br />

9), não tem nenhum alívio para as prováveis pequenas frustrações quotidianas se não<br />

ver-se “servida, <strong>de</strong>sejada, adorada” (ainda em I, 9).<br />

É o mesmo enredo <strong>de</strong> sempre, sujeito talvez, cada caso é um caso, a variações<br />

imperceptíveis, até que – e aqui está a surpresa que faz explodir toda a invenção – se<br />

encontra frente a frente com um “rústico”, que não sente minimamente o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong><br />

prestar qualquer obséquio ao seu próprio culto. “Este é o primeiro forasteiro que chega à<br />

estalagem e que não sente prazer em praticar comigo...” (ainda em I, 9). O pasmo é tão<br />

<strong>de</strong>vastador que lhe “revolve terrivelmente com a bílis...”: neste ponto ela quase que é<br />

obrigada a fazer com que se enamore <strong>de</strong>la aquele cavaleiro <strong>de</strong> Pisa (<strong>de</strong> notar: mais uma<br />

vez vem <strong>de</strong> uma classe superior, como “ca<strong>de</strong>te” <strong>de</strong> grau nobiliárquico), que sempre<br />

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ousou crer que “para o homem, é a mulher uma insuportável enfermida<strong>de</strong>”, para o qual<br />

a pequena estalaja<strong>de</strong>ira vale um quarto <strong>de</strong> “um bom cão <strong>de</strong> caça” (I, 4): é obrigada, para<br />

mitigar a sua própria dolorosa frustração. Enquanto ele se abandona, no seu primeiro<br />

monólogo, a grosseiras proclamações <strong>de</strong> beligerância (“Mulher para mim? Antes a febre<br />

quartã!”, I, 11), ao ponto <strong>de</strong> recusar até um casamento <strong>de</strong> interesse, sugerido pela carta<br />

<strong>de</strong> um amigo (chama-se, é <strong>de</strong> notar, Taccagni 8 e a prometida chama-se Manna 9 !),<br />

Mirandolina <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> entrar em acção, isto é, iniciar a representação do amor.<br />

Esta é, <strong>de</strong> facto, em segundo plano, a comédia da ficção, uma ficção que se serve<br />

do amor como puro condutor e não como uma componente afectiva: é neste ponto que<br />

os nossos antepassados (as nossas avós, em especial) erravam quando chegavam a<br />

idolatrar Mirandolina por ser uma “rainha dos corações” (por quem se apaixonou um<br />

leitor fino como Momigliano, mas também nascera em 1883...). Maddalena-<br />

Mirandolina era, como actriz e como personagem, uma excepcional interpretação da<br />

ficção: Goldoni faz <strong>de</strong> tudo, a posteriori, para que se compreenda, quando sublinha nas<br />

Mémoires que, em francês, esta comédia se intitularia La femme adroite, isto é, a<br />

mulher dotada <strong>de</strong> uma certa <strong>de</strong>streza: e permitam-me recordar que num célebre binómio<br />

<strong>de</strong> Racine, o adjectivo vem acoplado a um substantivo inequívoco: “adroit mensonge”.<br />

Mirandolina mente quando representa, isto é, fingindo: “cumprimenta” com os seus<br />

lençóis <strong>de</strong> cambraia (“cada vara <strong>de</strong>z escudos”) aquele cavaleiro <strong>de</strong> “qualida<strong>de</strong>”, faz<br />

cócegas à garganta com ninharias culinárias, finge-se adulta e inoportuna (“Não sou<br />

uma rapariguinha”, e “não sou bonita”), faz-se <strong>de</strong> homem, viril (“Esta é a primeira vez<br />

que tenho a honra <strong>de</strong> segurar na mão <strong>de</strong> um homem que como verda<strong>de</strong>iro homem<br />

pensa”): mas é uma “mulher-homem” que respeita o autoritarismo macho e clássico:<br />

“No que eu vos pu<strong>de</strong>r servir, dai-me as vossas or<strong>de</strong>ns com dignida<strong>de</strong>”.<br />

Sintetizámos a primeira gran<strong>de</strong> cena em que os dois se encontram (I, 15), mas<br />

não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> referir os àparte <strong>de</strong> Marliani, que <strong>de</strong>viam ser relevantes (as<br />

representações <strong>de</strong>sse tempo eram muito mais marcadas do que as <strong>de</strong> hoje, pelo que<br />

sabemos): “O sátiro a pouco e pouco se domestica” e “Que eu parta o nariz se antes <strong>de</strong><br />

amanhã não está apaixonado”. Enquanto Ripafratta no seu monólogo (I, 16) oscila<br />

perigosamente entre pasmo e <strong>de</strong>speito (está surpreendido por aquele “não sei quê <strong>de</strong><br />

extraordinário” da mulher, mas ao mesmo tempo maliciosamente <strong>de</strong>cidido a resistir-lhe:<br />

“Esta era daquelas que me havia <strong>de</strong> fazer cair mais <strong>de</strong>pressa do que as outras”), Goldoni<br />

tem <strong>de</strong> ter tempo para introduzir neste episódio a outra ficção, a pulverulenta e húmida<br />

ficção do teatro: tem <strong>de</strong>, em parcas palavras, fazer subir ao palco as verda<strong>de</strong>iras<br />

“comediantes”. Estamos a falar <strong>de</strong> Hortênsia e Dejanira, com os seus epítetos batidos da<br />

comédia e tragédia (a segunda mexe com o mito da fúria <strong>de</strong> Hércules), e sobretudo com<br />

a sua ficção <strong>de</strong> segunda, que necessita dos velhos pesos pesados do jargão <strong>de</strong> classe (o<br />

“tudo num repente se <strong>de</strong>sfaz”, os “fundos”, o “a ver se se arranjava dinheiro”, em I, 18).<br />

(...) No princípio do século XX ainda se usava a má prática <strong>de</strong> suprimir estas duas<br />

personagens e com elas todas as cenas que lhes eram reservadas: com o resultado <strong>de</strong><br />

8 Taccagni – Mesquinho, sovina. Nota da tradução.<br />

9 Manna – Maná, alimento milagroso. Nota da tradução.<br />

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amputar onze cenas à comédia (nessa altura ia-se para a cama cedo), para além <strong>de</strong> lhe<br />

<strong>de</strong>sfazer o significado. Afastar do texto as duas pé <strong>de</strong>scalço equivalia a <strong>de</strong>pauperá-lo <strong>de</strong><br />

um confronto fundamental: entre a medíocre ficção do teatro das duas peripatéticas (em<br />

todos os sentidos) comediantes e a superior – tanto em rendimentos como em resultados<br />

– ficção social <strong>de</strong> Mirandolina. “Habituadas como estamos a fazer nos palcos <strong>de</strong><br />

con<strong>de</strong>ssas, <strong>de</strong> marquesas e princesas”, as duas não darão luta no <strong>de</strong>sigual confronto com<br />

Mirandolina, “amadora” na vida, mas actriz <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> profissionalismo na área restrita<br />

do seu hotel <strong>de</strong> charme. Face a estas frases, cansada com o prontuário dos seus papéis –<br />

as assim chamadas generalida<strong>de</strong>s do seu tempo –, Mirandolina não hesita em julgar<br />

estas duas mulheres <strong>de</strong>masiado “cerimoniosas” e a intuir impulsivamente que não são<br />

“damas”, mas “duas que andam a pé” (I, 20): <strong>de</strong>scem da ribalta para a plateia, não<br />

sabem exprimir-se senão com “frases da comédia” (I, 21), enquanto Mirandolina, que<br />

ainda agora subiu à ribalta, <strong>de</strong>cidiu ficar mais tempo e cumprir o seu plano: “Tenho o<br />

empenho <strong>de</strong> namorar o Cavaleiro <strong>de</strong> Ripafratta e não troco prazer tal por um anel, nem<br />

que fosse duas vezes maior que este.” (I, 23).<br />

E vemo-la em acção no segundo acto, que será – e nisto Goldoni era<br />

extremamente respeitoso das convenções teatrais – o acto basilar para a sedução do<br />

misógino. O qual, ao ouvir que o seu criado gostaria <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong> “cachorrinho” à<br />

estalaja<strong>de</strong>ira, enquanto ostenta segurança (“Antes que supere a aversão que tenho pelas<br />

mulheres, são precisas muitas coisas...”), confessa começar a hesitar: “Era <strong>de</strong> rir se<br />

também me enfeitiçava a mim” (II, 1); enquanto, pobre ingénuo, assume como “bela<br />

sincerida<strong>de</strong>” a mestria dissimulada da sua anfitriã (II, 2), mas remói novamente os seus<br />

propósitos <strong>de</strong> fuga: “Tratá-la bem, mas partir <strong>de</strong>pressa.”<br />

Ela, com o “prato na mão”, <strong>de</strong> subalterna (aliás, <strong>de</strong> “criada que serve na sua<br />

estalagem”), <strong>de</strong>pois do frango e do pombo, que chegam bem quentes da cozinha, trazlhe<br />

pessoalmente, “por gosto <strong>de</strong> o tratar” apenas a ele, carne guisada, preparada pelas<br />

suas próprias “mãos” que “sabem fazer coisas belas”, segundo certos “segredos<br />

especiais” (a nossa perspicácia, hoje, não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> intuir que nesta quarta cena do<br />

segundo acto, a gula substitui a luxúria): e, entretanto, beija-o através do copo, e –<br />

aquilo que mais lhe importa a ela – com a <strong>de</strong>sculpa <strong>de</strong> uma refeição rápida, senta-se<br />

como igual à mesa com ele (“Para lhe obe<strong>de</strong>cer”) e faz, prosaicamente, “sopa com o<br />

vinho”. Não é preciso confessá-lo, esta é, falando em termos clássicos, uma gran<strong>de</strong><br />

vitória para Maddalena-Mirandolina. Ele “fala-lhe ao ouvido” (tchii, um cavaleiro), e<br />

ela como se tivesse lido a Mandrágora (“...o teu sangue que se harmoniza com o<br />

meu” 10 ), <strong>de</strong>ixa-se ficar em reflexões, “às vezes se dão estes encontros entre os sangues”.<br />

Depois entra o gaffeur Forlipopoli sem bater à porta, e o Cavaleiro, que já estava<br />

“escaldado” ao ponto <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r fazer uma perífrase audaz (“Vós fostes a primeira<br />

mulher neste mundo com que tive a paciência <strong>de</strong> praticar com prazer.”), é como um<br />

daqueles pequenos nobres <strong>de</strong> Sa<strong>de</strong>, surpreendidos por um amigo inoportuno com a<br />

vítima que estava quase a ce<strong>de</strong>r. Mas, Mirandolina, mesmo que lhe conceda àpartes <strong>de</strong><br />

10 I, 3. A Mandrágora, <strong>de</strong> Nicolau Maquiavel. Tradução <strong>de</strong> Gino Saviotti. Obras Primas do <strong>Teatro</strong><br />

Italiano. Biblioteca Cosmos.<br />

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velha cúmplice (II, 6), é tudo menos submissa: assim que ficam sós (II, 8), ele tenta<br />

<strong>de</strong>scarregar em cima <strong>de</strong>la o próprio “po<strong>de</strong>r” (“Esperai, já vos disse”), e ela volta-se para<br />

ele, aliás, revolta-se contra ele com toda a sua “altivez”: “Que preten<strong>de</strong>is <strong>de</strong> mim?”, e<br />

eclipsa-se <strong>de</strong>ixando-o aborrecido a <strong>de</strong>cifrar um brin<strong>de</strong>-enigma. Ripafratta está como que<br />

encan<strong>de</strong>ado por um lampião diabólico, por um Lúcifer <strong>de</strong> saia, que abate e assassina: se<br />

tivesse coragem para fugir naquele instante, salvar-se-ia (“Malditíssimas sejam todas as<br />

mulheres! On<strong>de</strong> haja mulheres, aí juro que não mais entrarei.”): mas o <strong>de</strong>miurgo<br />

Goldoni já <strong>de</strong>cidiu que o seu tormento apenas acabou <strong>de</strong> começar.<br />

Dotada daquele “gran<strong>de</strong> espírito”, que finalmente o não muito perspicaz<br />

Albafiorita lhe reconhece, a “patroa da estalagem” (<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Hortência e Dejanira<br />

fracassarem miseravelmente no cerco que fazem ao misantropo, em II, 12-13: ele, com<br />

o seu orgulhoso “Vivo só para mim”, maltrata-as “com o maior prazer <strong>de</strong>ste mundo.”)<br />

apresta-se a voltar à carga. O Cavaleiro toma “uma resolução <strong>de</strong> homem” (a conta, as<br />

malas, o espadim e o chapéu, e uma partida para o precipício, em II, 14-16): basta que<br />

Mirandolina apareça “tristemente” à porta “com um papel na mão”, enxugando “os<br />

olhos com o avental” (I, 17), e pronto, aquele “novo <strong>de</strong>sprazer”, que “nunca tinha<br />

experimentado”, readapta-o, a própria “força incógnita” que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início o oprimia.<br />

Ao princípio, ela “finge conter-se para não chorar”, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> que é melhor um<br />

<strong>de</strong>smaio silencioso. Sem dúvida, estamos diante <strong>de</strong> um estratagema teatral conhecido (é<br />

um lazzo habitual da apaixonada secundária na Commedia <strong>de</strong>ll’Arte): mas que aqui é<br />

preenchido com o realismo da mercadora, generosa, nos seus cálculos, para com o<br />

pouco generoso (e vil) cliente preferido (II, 17): o qual, daqui a pouco, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> a<br />

tornar “bendita” e pela primeira vez ter acreditado que ela é frágil (“Ai que esta <strong>de</strong><br />

certeza que me ama!”), é sujeito, pela sua escolha <strong>de</strong> um in<strong>de</strong>coroso volte-face, ao<br />

escárnio geral. (“Bravo! O senhor, que não podia ver mulheres” diz o Marquês, em II,<br />

19, em nome <strong>de</strong> todos). No proscénio, sozinha com o seu público, Maddalena já se po<strong>de</strong><br />

vangloriar da “vitória”, aliás, do “triunfo”, “para <strong>de</strong>sengano dos homens presunçosos”:<br />

mas, queremos sublinhar: o gen<strong>de</strong>r aqui pouco conta, aqui está em jogo o egoísmo <strong>de</strong><br />

uma pequena burguesa, que não vê a hora <strong>de</strong> cobrar ao enésimo nobre <strong>de</strong> trazer por casa<br />

que ousou provocá-la.<br />

Da provisória <strong>de</strong>spedida dos nobres (<strong>de</strong> Ripafratta, ao Albafiorita, ao<br />

Forlipopoli, que comem, bebem e <strong>de</strong> vez em quando galanteiam nos palcos <strong>de</strong><br />

Sant’Angelo, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> possuem invejosamente as chaves), advém todo o terceiro acto,<br />

que se abre com um dobre <strong>de</strong> sinos premonitório (“Pronto. Acabou-se o passatempo.”) e<br />

com certezas bem azedas: “E aquele caro senhor Cavaleiro que tão gran<strong>de</strong> inimigo era<br />

das mulheres? Se agora eu quisesse, era senhora <strong>de</strong> o obrigar a qualquer asneira!” (III, 1<br />

e 2). Ao constatar quão pateticamente ele segue os seus passos (a oferta <strong>de</strong> um<br />

frasquinho <strong>de</strong> ouro <strong>de</strong> doze moedas que chega tão tar<strong>de</strong> que lhe parece uma “afronta”),<br />

Mirandolina, sozinha, abandona-se ao sarcasmo: “Pronto! Cozido, recozido e assado!”<br />

(III, 3). Depois dá-se ao luxo <strong>de</strong> receber o Cavaleiro, obstinando-se em lhe mostrar as<br />

mais prosaicas e domésticas acções (passar a ferro, com raiva e no recusar “com<br />

<strong>de</strong>sprezo” a oferta, que <strong>de</strong>ita “para a cesta da roupa), enquanto mostra uma ternura<br />

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inusitada para com o seu criado-enamorado: “Quero-lhe bem, sabeis? É <strong>de</strong> todos o que<br />

eu prefiro.” (III, 5). Quanto às reacções do Cavaleiro, que agora não hesita nas palavras<br />

e no tom <strong>de</strong> se mostrar “apaixonado”, Mirandolina parece não o valorizar mais do que<br />

uma vulgar mudança <strong>de</strong> clima: “A que horas é a lua nova, senhor Cavaleiro?”.<br />

Digamo-lo então: nesta progressiva agressivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mirandolina, na evi<strong>de</strong>nte<br />

vulgarização da sua linguagem, Goldoni quer marcar a sua distância. O terceiro acto,<br />

que se dirige a passos largos e esclarecidos para o seu epílogo, é o acto do<br />

“distanciamento” <strong>de</strong> Goldoni em relação a Mirandolina. A sua pequeno-burguesa, se até<br />

aqui fez muita e boa coisa (se, <strong>de</strong> facto, reivindicou justamente o seu próprio orgulho <strong>de</strong><br />

classe), agora é <strong>de</strong>masiado teimosa na sua orgulhosa competição: e Goldoni preten<strong>de</strong>,<br />

ao refrear-lhe a vitalida<strong>de</strong>, mostrar-nos também, não apenas nas frases, como discorda<br />

(ou discordaria) dos seus possíveis êxitos extremos. Claro, falamos <strong>de</strong> uma criatura da<br />

sua fantasia, foi ele que a i<strong>de</strong>alizou, e sabe, obviamente, a que êxitos a <strong>de</strong>ve conduzir:<br />

mas, entretanto, é oportuno que o leitor-espectador perceba que ele não se i<strong>de</strong>ntifica<br />

completamente nela, que Mirandolina não é uma personagem programática, que não se<br />

trata <strong>de</strong> um “manifesto”.<br />

Isto explica também, se especularmos, a melancólica solidarieda<strong>de</strong> que nestas<br />

últimas cenas fundamentais Goldoni exprime, imperceptivelmente, por Ripafratta. Deve<br />

custar muito a um misógino, que também se pune a si próprio, confessar que aquilo que<br />

lhe vai acontecendo “é um prodígio da vossa... beleza”, da “graça” <strong>de</strong> uma mulher (III,<br />

4); <strong>de</strong>ve ser horrível para um nobre sofrer <strong>de</strong> ciúmes por causa das “gran<strong>de</strong>s finezas”<br />

mostradas ao criado (III, 6); ou saber que é menos importante que um monte <strong>de</strong> roupa;<br />

ou terminar, como por acaso, queimado pelo ferro em brasa da amada, quando,<br />

perseguindo-a como um cãozinho com cio, lhe implora, pela primeira vez na vida,<br />

“amor, compaixão, pieda<strong>de</strong>”. Mas ela, Mirandolina, não se <strong>de</strong>ixa abater, pelo contrário,<br />

fica mais teimosa: a frase “Nunca ninguém me <strong>de</strong>u or<strong>de</strong>ns”, “insígnia” quase orgulhosa<br />

<strong>de</strong> uma pequeno-burguesa sem brasão, prece<strong>de</strong> uns instantes aquele lívido àparte:<br />

“Rebenta, estoira, apren<strong>de</strong> a <strong>de</strong>sprezar as mulheres” (III, 6).<br />

Forlipopoli, em III, 8, ainda se permite <strong>de</strong>sabafar um escárnio: “Senhor inimigo<br />

das mulheres, caístes, foi?”, e quatro cenas mais tar<strong>de</strong> (III, 12) Albafiorita ainda o<br />

recalca mais, através <strong>de</strong> uma penetrante confirmação (“O selvático Cavaleiro, o<br />

castigador das mulheres, namorou-se <strong>de</strong> Mirandolina?”). Mas Goldoni quer mostrar-nos<br />

em cena em que condições físicas e psicológicas se encontra agora aquele “sátiro... com<br />

as suas fúrias”. É a gran<strong>de</strong> sequência <strong>de</strong> cenas (III, 14-17) da “sala com três portas”,<br />

on<strong>de</strong> Ripafratta quer entrar a todo o custo, <strong>de</strong>cidido a encontrar aquela “celerada” da<br />

estalaja<strong>de</strong>ira e fazê-la pagar: “juro pelos céus que ela terá <strong>de</strong> se haver comigo.”<br />

Encontrar-se-á, não entre os seus braços, mas entre Albafiorita e Forlipopoli (III, 17).<br />

Vingativo na sua mesquinhez, o Con<strong>de</strong> ridiculariza as suas “obsessões” amorosas, as<br />

suas “fraquezas”, típicas <strong>de</strong> que tem “um débil coração”. O Cavaleiro, pronto a esbanjar<br />

“todo o ouro do mundo” para que não seja revelado, nega <strong>de</strong>sesperadamente, e cada vez<br />

mais: “Envergonho-me é <strong>de</strong> continuar a escutar-vos sem vos dizer que me mentis”; e<br />

ainda: “Com que fundamento po<strong>de</strong>is vós dizer?...”; e por fim: “Eu, amar? Não é<br />

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verda<strong>de</strong>. Mente quem o disser”. Não percebe, o infeliz, que teimando assim ele se<br />

entrega, já con<strong>de</strong>nado, ao “processo” que o espera. Na cena coral conclusiva em III, 19,<br />

on<strong>de</strong> Goldoni lembra ter feito (e bem) <strong>de</strong> advogado em Pisa (em 1745 entra na Arcádia,<br />

com o pseudónimo Polisseno Fegejo), atribui a Maddalena-Mirandolina (e parece que<br />

Marliani se <strong>de</strong>stacava aqui) o duplo papel <strong>de</strong> magistrado inquisidor e testemunha. A<br />

estalaja<strong>de</strong>ira admite, pela primeira vez, ter agido com base em “lágrimas” “fingidas”, e<br />

“<strong>de</strong>smaios fingidos”: mas isto não evita que ela confronte Ripafratta com a prova <strong>de</strong><br />

fogo do ciúme: “Se o senhor Cavaleiro me amasse não po<strong>de</strong>ria sofrer que eu fosse <strong>de</strong><br />

um outro...”. Ao sentir-se preterido por um criado, um “patife”, a quem gostaria <strong>de</strong> ter<br />

rachado a cabeça, Ripafratta – com uma tira<strong>de</strong> <strong>de</strong> drama sério, e Goldoni escreveu pelo<br />

menos <strong>de</strong>zoito <strong>de</strong>les – sai <strong>de</strong> cena, cruelmente torturado: “Maldita! Casai com quem tu<br />

quiseres! Sei que me enganaste, sei que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> ti mesma triunfas <strong>de</strong> me haveres<br />

humilhado...”.<br />

Goldoni usa palavras “caras”, <strong>de</strong> tragicomédia, para pintar com cores grotescas a<br />

<strong>de</strong>rrota do misógino: mas, por trás do esforço tonal bem calculado, quer <strong>de</strong>ixar-nos<br />

perceber que não é mau que isto aconteça: apesar <strong>de</strong> tudo, um gentilhomme campagnard<br />

<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um nobre, e não é bom que exceda, ainda por cima para<br />

baixo, os limites da própria classe. Oportuna, ainda que um pouco punitiva, é, pelo<br />

contrário, a escolha <strong>de</strong> Mirandolina que lhe estava <strong>de</strong>stinada pelo seu pai: estamos a<br />

falar <strong>de</strong> Fabrício.<br />

Já há muito (<strong>de</strong>ntro da comédia e das suas sessenta e duas cenas ao longo das<br />

quais se esten<strong>de</strong>m os três actos canónicos) que Goldoni nos leva, quase sem parecer, a<br />

atentarmos em Fabrício: o qual, é bom frisá-lo ao chegarmos a este ponto, está presente,<br />

pelo contrário, muitas e variadas vezes: em <strong>de</strong>z cenas, com várias personagens, nas<br />

quais às vezes aparece Mirandolina; para além <strong>de</strong> quatro cenas em que aparece sozinho<br />

com ela (I, 10; III, 1; III, 3; III, 14). Nesse conjunto <strong>de</strong> cenas, a sua presença, mesmo<br />

quando fugaz, nunca é trivial: pelo contrário, transparece uma espécie <strong>de</strong> ru<strong>de</strong><br />

materialida<strong>de</strong> típica do proletário, atento ao seu interesse (“Fora da terra <strong>de</strong>le, não são as<br />

nobrezas que arranjam as estimas, são as moedas”, a propósito da sovinice do Marquês,<br />

em II, 2) e sensível ao fascínio feminino: “Da Sicília? Sangue ar<strong>de</strong>nte”, diz ele <strong>de</strong><br />

Hortênsia em I, 19; “Não po<strong>de</strong> ver as mulheres? Forte tolo, que não sabe o que é<br />

bom...”, em II, 1, a propósito <strong>de</strong> Ripafratta.<br />

Mas quando está sozinho com Mirandolina, a personagem ganha tons <strong>de</strong><br />

ressentimento, como se tivesse “a pele <strong>de</strong>licada” e houvesse “coisas que não soubesse<br />

sofrer”. É atraído por Mirandolina (“Ela agrada-me”), sente por ela o mesmo afecto dos<br />

humil<strong>de</strong>s (“quero-lhe bem”), que nunca está <strong>de</strong>sligado do interesse: “... a ela juntarei os<br />

meus interesses para todo o tempo da minha vida”. Estamos na cena 10 do primeiro<br />

acto: daqui, que é a primeira cena entre os dois, até “Fabrício, chega-te cá, querido, dáme<br />

a tua mão”, em III, 19, Mirandolina não faz mais do que alimentar-lhe alusões, num<br />

carrossel <strong>de</strong> frases truncadas que fazem inveja ao retórico mais conhecedor: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> “mas<br />

a mim é que ninguém me conhece... Basta, Fabrício. Enten<strong>de</strong> o que te digo, se é que<br />

po<strong>de</strong>s.”, em I, 10, até “Engano! Se te pu<strong>de</strong>ra dizer o tudo!”, em III, 1. Ao qual Fabrício<br />

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correspon<strong>de</strong> com a hesitação das mais ar<strong>de</strong>ntes incertezas: “Quem a pu<strong>de</strong>r enten<strong>de</strong>r há<br />

<strong>de</strong> ser mesmo sábio. Ora parece que ela me quer, ora que não me quer”, em I, 10; “Nada<br />

entendo. Ora me dá para cima, ora me dá para baixo. Nada entendo.”. Quando a<br />

estalaja<strong>de</strong>ira chega, <strong>de</strong>pois, para surpresa <strong>de</strong> todos, a pedir-lhe casamento, Fabrício<br />

parece hesitar por um instante: “A mão? Devagar, senhora. Divertis-vos em enamorar as<br />

gentes <strong>de</strong>ste modo, e julgais que convosco me queira casar?”. É pela elegância e<br />

profundida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma frase <strong>de</strong>stas que percebemos como Goldoni é um verda<strong>de</strong>iro<br />

dramaturgo europeu. Uma pequeno-burguesa, para dar liberda<strong>de</strong> à frustração do próprio<br />

ego, <strong>de</strong> quem está o dia todo atrás do balcão a fazer contas ao negócio (não o confirma<br />

pois Fabrício ao Cavaleiro em II, 15: “Oh, sempre ela. Mesmo quando o pai <strong>de</strong>la era<br />

vivo. Escreve e sabe fazer as contas melhor do que um moço <strong>de</strong> negócios”?), põe-se a<br />

“simular” a conquista <strong>de</strong> um nobre. Mas este, que levou tudo terrivelmente a sério, está<br />

“en<strong>de</strong>moninhado”. A simuladora começa a arrepen<strong>de</strong>r-se daquilo que fez (por um lado<br />

citamos, por outro parafraseamos o monólogo conclusivo em III, 13, que é, na verda<strong>de</strong>,<br />

o ponto <strong>de</strong> viragem <strong>de</strong> todo o enredo): teme pela sua “reputação” e pela sua “própria<br />

vida”, confessa a si mesma sentir-se “só”, “ninguém tem que a <strong>de</strong>fenda”. E escolhe in<br />

extremis fazer um casamento que salve o seu interesse e reputação, “sem prejudicar a<br />

sua liberda<strong>de</strong>”. Mas é da própria liberda<strong>de</strong> que quer ouvir falar Fabrício sobre o acordo<br />

<strong>de</strong>ste contrato precipitado. E é agora que Mirandolina, que <strong>de</strong>sta vez não mente, revela<br />

aquilo que será, uma esposa-patroa sem meios-termos: “Que pacto? Este é o pacto. Ou<br />

me dais a mão ou i<strong>de</strong> para a vossa terra.”<br />

Pelo menos – parece que Goldoni nos quer fazer perceber – não irá ce<strong>de</strong>r à<br />

tentação <strong>de</strong> sair da própria classe: “Nestes empenhos é que nunca me torno a meter...<br />

Até agora me an<strong>de</strong>i a divertir, e fiz mal, e <strong>de</strong>masiado me arrisquei. E mais não quero<br />

fazer”. Dos vários divertimentos a que os dramaturgos se autorizam, há ainda aquele <strong>de</strong><br />

imaginar a “segunda vida” <strong>de</strong> algumas heroínas teatrais célebres, da Antígona <strong>de</strong><br />

Sófocles à Nora <strong>de</strong> Ibsen. Se algum quisesse imaginar a segunda existência, post<br />

nuptias, <strong>de</strong> Mirandolina, po<strong>de</strong>ria talvez colocá-la atrás <strong>de</strong> um balcon serai <strong>de</strong> um<br />

qualquer varandim no Canal Gran<strong>de</strong>, como uma “salva<strong>de</strong>ga” <strong>de</strong> saias.<br />

Nota: Todas as transcrições <strong>de</strong> A Estalaja<strong>de</strong>ira são <strong>de</strong> Jorge Silva Melo, Carlo Goldoni, Peças<br />

Escolhidas, volume 1. Cotovia, 2008.<br />

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Luigi Lunari<br />

INTRODUÇÃO<br />

A Estalaja<strong>de</strong>ira estreou no teatro <strong>de</strong> Sant’Angelo <strong>de</strong> Veneza, a 26 <strong>de</strong> Dezembro<br />

<strong>de</strong> 1752, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Goldoni ser o dramaturgo da companhia <strong>de</strong> Guglielmo Me<strong>de</strong>bach<br />

durante quase cinco anos. Há já <strong>de</strong>z meses – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia 15 <strong>de</strong> Fevereiro, exactamente –<br />

que Goldoni tem no bolso o contrato que o obrigará a cumprir, a partir do primeiro dia<br />

da quaresma <strong>de</strong> 1753, o papel <strong>de</strong> dramaturgo da companhia <strong>de</strong> teatro <strong>de</strong> San Luca,<br />

proprieda<strong>de</strong> da família nobre Vendramin, com a obrigação <strong>de</strong> lhes fornecer oito<br />

comédias novas por ano, sob o pagamento <strong>de</strong> seiscentos ducados: mais cento e<br />

cinquenta do que o anterior contrato que tinha com Sant’Angelo.<br />

A ruptura com Me<strong>de</strong>bach – com o teatro e a companhia com a qual tinha<br />

realizado a sua “reforma” e vivido a extraordinária temporada <strong>de</strong> 1750-51, com<br />

<strong>de</strong>zasseis novas comédias – <strong>de</strong>ve-se, não apenas a um <strong>de</strong>sgaste natural e inevitável das<br />

relações após muitos anos <strong>de</strong> convivência assídua, mas também a um par <strong>de</strong> razões<br />

precisas e circunstanciáveis. Na origem, talvez esteja a <strong>de</strong>silusão que sentiu quando<br />

Me<strong>de</strong>bach o proibiu <strong>de</strong> utilizar editorialmente as suas próprias obras, com o pretexto <strong>de</strong><br />

que elas tinham sido escritas para a sua companhia e que para todos os efeitos lhe<br />

pertenciam. Estávamos em 1751: Goldoni saíra cansado, doente e a precisar <strong>de</strong> dinheiro<br />

do exaustivo tour <strong>de</strong> force das <strong>de</strong>zasseis comédias (o dobro do que estava previsto no<br />

contrato), pelas quais – convém sublinhá-lo – não recebera nem um tostão a mais do<br />

que tinha sido acordado. Este comportamento ingrato e obtuso ferira-o profundamente,<br />

mas ele tinha reagido <strong>de</strong> acordo com a sua índole pacífica e pouco mesquinha: “ainda<br />

tinha <strong>de</strong> trabalhar com ele bastante tempo e não podia, ou melhor, não queria entrar em<br />

conflito com pessoas que teria <strong>de</strong> ver continuamente; amava <strong>de</strong>masiado a paz para a<br />

sacrificar ao interesse” 11 . Contentou-se, portanto, com a permissão <strong>de</strong> publicar não mais<br />

do que um volume por ano para a Bettinelli, o que dava a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que Me<strong>de</strong>bach<br />

consi<strong>de</strong>rava que estava ligado a Goldoni para toda a vida. De facto, Goldoni não fará<br />

mais do que esperar o vencimento do seu contrato com Sant’Angelo para correr a<br />

Florença para tratar com Paperini, “editor com muitos créditos e gran<strong>de</strong> fidalgo” 12 , a<br />

edição em <strong>de</strong>z volumes das suas comédias. Me<strong>de</strong>bach e Bettinelli recorreram a<br />

amiza<strong>de</strong>s e influências para proibir a introdução <strong>de</strong> edições estrangeiras no território da<br />

república <strong>de</strong> San Marco, mas isto não impedirá os quinhentos subscritores venezianos<br />

da obra <strong>de</strong> receber pontualmente os volumes que saíam das prensas em mão:<br />

“encontraram perto do Rio Pó um escon<strong>de</strong>rijo on<strong>de</strong> os guardavam: um grupo <strong>de</strong> nobres<br />

venezianos ia até à fronteira e <strong>de</strong>pois metia-os como contrabando na capital, on<strong>de</strong> eram<br />

distribuídos <strong>de</strong>baixo do olhar <strong>de</strong> todos; pois o Governo não se preocupava com questões<br />

<strong>de</strong>stas, mais ridículas que interessantes” 13 . Uma pequena história que ilustra bastante<br />

bem a personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Goldoni, que com a sua <strong>de</strong>sconfiança pelas acções legais e o seu<br />

11 Mémoires, Pt. II, cap. XII, in Tutte le opere <strong>de</strong> C. G. A cira <strong>de</strong> Guiseppe Ortolani, Vol I, pp. 294-95.<br />

12 Id. Pt. II, cap. XVII, in op. Cit., Vol. I, p. 318.<br />

13 Id. Pt. II, cap. XVII, in op. Cit., Vol. I, p. 319.<br />

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saber viver concreto, <strong>de</strong>monstra que tirou dos estudos judiciais todos os ensinamentos<br />

que pô<strong>de</strong>.<br />

Entre as várias causas que tornaram impossível a atmosfera em Sant’Angelo,<br />

seria igualmente importante, no final <strong>de</strong> 1751, a entrada na companhia da criadita<br />

Marliani e a consequente <strong>de</strong>struição da sua relação com Me<strong>de</strong>bach, a primeira actriz,<br />

“Beatrice” na arte e mulher do director. Teodora Me<strong>de</strong>bach era uma “excelente actriz,<br />

bastante ligada à profissão, mas era uma mulher dada às volatilida<strong>de</strong>s; estava muitas<br />

vezes doente, outras vezes acreditava estar e às vezes estava doente à or<strong>de</strong>m” 14 . Foi<br />

durante anos a principal inspiradora <strong>de</strong> Goldoni, para ela tinha escrito La vedova<br />

scaltra, La buona moglie, e Pamela, e todos os gran<strong>de</strong>s papéis femininos <strong>de</strong><br />

Sant’Angelo, até o retrato irónico <strong>de</strong> Finta ammalata. Para Goldoni, que construía as<br />

suas personagens através dos actores, usando as suas características físicas, psicológicas<br />

e técnicas, Me<strong>de</strong>bach tinha sido um instrumento i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> uma reforma fundada na<br />

pesquisa do natural e verosímil e tinha-lhe inspirado “i<strong>de</strong>ias interessantes, patéticas, ou<br />

<strong>de</strong> uma comicida<strong>de</strong> simples e inocente” 15 . Maddalena Marliani era <strong>de</strong> um género bem<br />

diferente e Goldoni – como ele diz, com inestimável expressivida<strong>de</strong> – “não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> se<br />

interessar” 16 . Jovem e bela, brilhante e vivaz, era casada com Guiseppe Marliani, um<br />

óptimo Brighella da companhia <strong>de</strong> Sant’Angelo e houve um tempo em que <strong>de</strong>ixou o<br />

marido por uma loucura <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong>; no final <strong>de</strong> 1751 tinha voltado para ele e<br />

Me<strong>de</strong>bach tinha-a recrutado para os papéis <strong>de</strong> “criadita”. Para Goldoni, tratava-se <strong>de</strong><br />

uma nova e diferente fonte <strong>de</strong> inspiração: “<strong>de</strong>u um novo impulso à minha fantasia e<br />

encorajou-me a <strong>de</strong>dicar-me àquele género <strong>de</strong> comédias que exigem fineza e<br />

habilida<strong>de</strong>” 17 . Goldoni não diz quais são as comédias que exigem “fineza e habilida<strong>de</strong>”;<br />

<strong>de</strong> facto, Marliani era a nova mulher do seu teatro e reanimava nele aquele interesse e<br />

aquela vonta<strong>de</strong> que Teodora Me<strong>de</strong>bach já não lhe sabia suscitar. Goldoni escreveu para<br />

ela La serva amorosa, Le donne gelose, A estalaja<strong>de</strong>ira; e esboçou um retrato irónico<br />

<strong>de</strong>la em Donna vendicativa, como fazia sempre – evi<strong>de</strong>ntemente – com as próprias<br />

musas, passados os momentos <strong>de</strong> entusiasmo. Me<strong>de</strong>bach ressentiu-se bastante com os<br />

sucessos <strong>de</strong> Marliani e Goldoni <strong>de</strong>screve-nos com pouca generosida<strong>de</strong> nas suas<br />

Mémoires “os vapores cada vez mais cansativos e ridículos” 18 da primeira actriz,<br />

alheado do facto <strong>de</strong> que Me<strong>de</strong>bach esteja realmente morta, aos trinta e sete anos,<br />

consumida pelo seu próprio mal.<br />

É neste clima que nasce A estalaja<strong>de</strong>ira, na última temporada <strong>de</strong> Goldoni no<br />

Sant’Angelo: às inevitáveis tensões <strong>de</strong> relacionamento entre o autor e o director e à<br />

dramática ciumeira <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>bach, juntavam-se a raiva frenética <strong>de</strong> Marliani pela partida<br />

<strong>de</strong> Goldoni, <strong>de</strong> quem ela se jurou vingar <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter feito tudo para que ele ficasse. É<br />

difícil ajuizar bem o que significava para Goldoni mudar-se para o San Luca e a<br />

gravida<strong>de</strong> que constituiu – malgrado a inevitabilida<strong>de</strong> – a sua ruptura com Sant’Angelo.<br />

14 Id. Pt. II, cap. X, in op. Cit., Vol. I, p. 286.<br />

15 Id. Pt. II, cap. XIV, in op. Cit., Vol. I, p. 303.<br />

16 Ibid.<br />

17 Ibid.<br />

18 Id. Pt. II, cap. XVI, in op. Cit., Vol. I, p. 312.<br />

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É verda<strong>de</strong> que a situação pessoal <strong>de</strong> Goldoni se tornava com isto “muito mais<br />

recompensante e infinitamente mais honrada” 19 : cento e cinquenta ducados a mais por<br />

ano, nenhuma obrigação <strong>de</strong> juntar às verda<strong>de</strong>iras comédias outras obras <strong>de</strong> género<br />

diferente e vulgar, pagamentos imediatos, antes ainda das comédias serem lidas e<br />

nenhuma obrigação <strong>de</strong> seguir a companhia para fora <strong>de</strong> Veneza. Mas do ponto <strong>de</strong> vista<br />

artístico, para Goldoni era quase como começar tudo do início. A sala <strong>de</strong> San Luca,<br />

entre outras coisas, era <strong>de</strong>masiado gran<strong>de</strong>: “as acções simples e <strong>de</strong>licadas, as subtilezas,<br />

o humor, a comicida<strong>de</strong> verosímil” – em resumo, todas as conquistas da reforma –<br />

“perdiam-se muito” 20 . Mas sobretudo a companhia não tinha nenhuma experiência<br />

naquele novo realismo e parecia completamente presa aos velhos modos e aos antigos<br />

vícios: uma companhia <strong>de</strong> sócios, sem um director que assumisse um mínimo <strong>de</strong> rotinas<br />

<strong>de</strong> encenação ou que, pelo menos, contemporizasse os vários caprichos em conflito;<br />

com uma primeira actriz <strong>de</strong> cinquenta anos (Gandini) e Caterina Bresciani – melhor,<br />

mais jovem, mais bonita; a única personalida<strong>de</strong> excepcional em San Luca – na<br />

qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> segunda actriz; queria dizer que <strong>de</strong> vez em quando, segundo os costumes,<br />

Gandini fizesse o Capuchinho Vermelho e Bresciani a Avó.<br />

Recomeçar do princípio significava educar gradualmente os actores para os<br />

modos e finalida<strong>de</strong>s do teatro da reforma, mas ao mesmo tempo dar-lhes aqueles temas<br />

vigorosos, complicados, romanescos, já não credíveis porque se passavam fora <strong>de</strong><br />

contexto, que tanto agradavam ao gosto da altura. É o período <strong>de</strong> Sposa persiana, <strong>de</strong><br />

Ircana in Julfa, <strong>de</strong> Ircana in Ispaan, um Goldoni medieval que a crítica costumava,<br />

entre o século XIX e XX, vilipendiar tristemente, como se ele tivesse traído<br />

gratuitamente os i<strong>de</strong>ais da reforma. Mas Goldoni sabia o que fazia e nunca correu o<br />

risco <strong>de</strong> a situação lhe fugir das mãos: trabalhará com os actores <strong>de</strong> San Luca<br />

pacientemente, persistentemente, como já tinha feito com os <strong>de</strong> Sant’Angelo. Servir-seá<br />

da facilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>les para recitar versos – com súbita e extraordinária invenção – para<br />

escrever os versos à la Martelli 21 <strong>de</strong> Le massere, e Le donne <strong>de</strong> casa soa, e dos versos<br />

livres <strong>de</strong> O Campiello; e quando todos os elementos confluem numa completa e segura<br />

maturida<strong>de</strong>, será a vez <strong>de</strong> Os Rústicos e <strong>de</strong> A Casa Nova, da trilogia da Villegiatura, <strong>de</strong><br />

As Zaragatas em Chiozza, <strong>de</strong> Uma das Últimas Tar<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Carnaval.<br />

No aviso aos leitores, Goldoni <strong>de</strong>clara que A Estalaja<strong>de</strong>ira se mantém, entre as<br />

comédias escritas até aquela altura “a mais moral, a mais útil, a mais instrutiva”; e nas<br />

Mémoires sublinha o sucesso da sua primeira representação: “o sucesso <strong>de</strong>ssa peça foi<br />

tão gran<strong>de</strong> que a põem a par, ou mesmo acima <strong>de</strong> tudo o que eu fiz nesse género, on<strong>de</strong> o<br />

artifício substitui o interesse” 22 , e isto quer dizer, a evidência objectiva, a<br />

espectacularida<strong>de</strong> do enredo. Não <strong>de</strong>monstra ter-se apercebido <strong>de</strong> que escreveu uma<br />

obra-prima, ou pelo menos, não se vangloria disso; a única coisa <strong>de</strong> que se vangloria é<br />

<strong>de</strong> ter conseguido fazer com que o Cavaleiro <strong>de</strong> Ripafratta se enamore <strong>de</strong> Mirandolina<br />

19 Id. Pt. II, cap. XVII, in op. Cit., Vol. I, p. 317.<br />

20<br />

Id. Pt. II, cap. XVII, in op. Cit., Vol. I, p. 320.<br />

21 Ludovico Martelli (1499-1527), autor <strong>de</strong> versos melancólicos e <strong>de</strong> lírica amorosa e <strong>de</strong> uma tragédia<br />

Tullia.<br />

22 Id. Pt. II, cap. XVI, in op. Cit., Vol. I, p. 313.<br />

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28


no espaço <strong>de</strong> dois actos e vinte e quatro horas sem trair a credibilida<strong>de</strong> psicológica da<br />

personagem e o discorrer natural dos acontecimentos. Um orgulho muito profissional e<br />

compreensível, pois este problema <strong>de</strong>veria apresentar-se-lhe como um verda<strong>de</strong>iro<br />

<strong>de</strong>safio, até aí <strong>de</strong>masiado fácil <strong>de</strong> realizar com os instrumentos do teatro tradicional,<br />

mas não com os instrumentos do novo realismo.<br />

As razões para a sua utilida<strong>de</strong> e moralida<strong>de</strong> estão, para Goldoni, na <strong>de</strong>núncia da<br />

hipocrisia feminina e do seu perigo: “Quis dar um exemplo <strong>de</strong>sta bárbara cruelda<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>ste injurioso <strong>de</strong>sprezo com que se riem dos <strong>de</strong>sgraçados que venceram, para mostrar o<br />

horror da escravidão que esses infelizes procuram e tornar odioso o carácter das<br />

encantadoras sereias. (...) Oh, que belo espelho aos olhos da juventu<strong>de</strong>! Se Deus me<br />

houvesse concedido um tal espelho no meu tempo, não teria eu visto rirem-se das<br />

minhas lágrimas essas bárbaras estalaja<strong>de</strong>iras! Oh, quantas cenas me não foram<br />

fornecidas pela minha própria experiência! Mas não é este o local para me orgulhar das<br />

minhas loucuras nem para me arrepen<strong>de</strong>r das minhas fraquezas. Basta que alguém me<br />

fique grato pela lição que lhe ofereço. As mulheres que são honradas rejubilarão<br />

também por se <strong>de</strong>smascararem estas simuladoras que <strong>de</strong>sonram o seu sexo, e essas<br />

mulheres aduladoras corarão ao encontrar-me e não importa que me digam: maldito<br />

sejas tu!” 23 .<br />

Não falta um bocadinho <strong>de</strong> ironia neste excerto; tal como falta, pelo contrário –<br />

<strong>de</strong> forma a salvá-lo da suspeição <strong>de</strong> moralismo fácil – a mais pálida intenção <strong>de</strong> fazer<br />

ren<strong>de</strong>r o sábio ensinamento em termos pessoais. Mas mesmo tirando <strong>de</strong>sta página todas<br />

as sugestões que contém, isso não chega para duvidar que Goldoni julgue severamente<br />

Mirandolina; e tal severida<strong>de</strong> foi lamentada por muitos críticos que a interpretaram<br />

como uma <strong>de</strong>claração moral pragmática, na qual “Mirandolina é uma mulher, acima <strong>de</strong><br />

tudo mulher e pertence, como Manon, ao século do triunfo feminino: só que nela não há<br />

nenhuma corrupção, nenhuma <strong>de</strong>formação moral, exceptuando a arte do fingimento.<br />

Saudável, alegre, espirituosa, quer ser “servida, <strong>de</strong>sejada, adorada” 24 .<br />

Mais uma vez convém distinguir entre aquela que é a intenção moral e<br />

i<strong>de</strong>ológica do autor e a realida<strong>de</strong> da obra realizada. A intenção <strong>de</strong> Goldoni, claro, não é<br />

a mesma <strong>de</strong> um autor medieval, <strong>de</strong> um agitador <strong>de</strong> almas convencido que a mulher é um<br />

instrumento do <strong>de</strong>mónio, como se po<strong>de</strong>ria pensar se levássemos à letra a advertência ao<br />

leitor; é antes a <strong>de</strong> um Don Giovanni escaldado que se envolve numa daquelas<br />

maldições do teatro às quais os <strong>de</strong>uses, como num juramento <strong>de</strong> amor, não dão ouvidos.<br />

Intenção com duplo objectivo: <strong>de</strong>nunciar um aspecto do comportamento feminino sem<br />

lhe negar o fascínio, mas também sem o aprovar. E é <strong>de</strong> nos perguntarmos se <strong>de</strong>ste<br />

diálogo <strong>de</strong> Goldoni consigo próprio, entre a consciente intenção <strong>de</strong> acusar Mirandolina<br />

e a também consciente intenção <strong>de</strong> retratar o seu fascínio, Mirandolina tenha nascido<br />

mais fascinante ou mais censurável, ou mesmo – mais exactamente – em que medida ela<br />

seja uma ou outra coisa.<br />

23 “Do autor a quem ler”. Tradução <strong>de</strong> Jorge Silva Melo. Carlo Goldoni, Peças Escolhidas, volume 1.<br />

Cotovia, 2008.<br />

24 Guiseppe Ortolani em Nota alla Locandiera, em Tutte le opere <strong>de</strong> C. G., cit., Vol IV, p. 1255.<br />

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Entre o século XIX e XX – os exegetas do “bom pai Goldoni” – não tiveram<br />

dúvidas a esse propósito: Mirandolina é uma Manon sem vícios, uma Eva sem serpente,<br />

uma Armida responsável por uma casa; está sempre certa e os seus inimigos sempre<br />

errados; a própria <strong>de</strong>streza na simulação não tem nada <strong>de</strong> maquiavélico, é antes uma<br />

“simulação honesta” usada para o bem, com o único intento <strong>de</strong> confundir o “mau”, neste<br />

caso, o Cavaleiro <strong>de</strong> Ripafratta. A história cénica <strong>de</strong>sta personagem está completamente<br />

<strong>de</strong> acordo com esta interpretação, on<strong>de</strong> se alicerçaram todas as gran<strong>de</strong>s actrizes <strong>de</strong>sses<br />

dois séculos, <strong>de</strong> Carlotta Marcionni a A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Ristori, <strong>de</strong> Eleonora Duse a Tatiana<br />

Pavlova: entre uma estalaja<strong>de</strong>ira suportada pelo fascínio <strong>de</strong> diva e um Cavaleiro <strong>de</strong><br />

Ripafratta ligado a uma característica entre o carrancudo e o grotesco, a balança não<br />

podia pen<strong>de</strong>r mais para o lado <strong>de</strong> Mirandolina. Da intenção moral e instrutiva do autor,<br />

tão explicitamente afirmada na apresentação da obra, não ficou outro traço que o<br />

pequeno sermão final com que Mirandolina exorta: “se alguma vez estiver<strong>de</strong>s numa<br />

ocasião <strong>de</strong> duvidar, quase a ce<strong>de</strong>r, pensai nos artifícios que apren<strong>de</strong>stes, e lembrai-vos<br />

da estalaja<strong>de</strong>ira!” 25 . Mas é evi<strong>de</strong>nte que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> três actos <strong>de</strong> total solidarieda<strong>de</strong> com<br />

os artifícios <strong>de</strong> Mirandolina, isto não podia surgir como um pequeno pensamento<br />

pragmático, uma hipocrisia benigna <strong>de</strong> um pensador, que a Duse e os colegas<br />

interpretavam sem dúvida como um namorico malicioso.<br />

Que o pequeno sermão final seja assim, não teremos dificulda<strong>de</strong> em aceitá-lo;<br />

mas que o juízo moral <strong>de</strong> Goldoni sobre Mirandolina seja uma pura convenção<br />

pragmática sem justificação na personagem, não nos parece sustentável <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma<br />

leitura objectiva do texto. No fundo, o objectivo da acção encontra-se na <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong><br />

Mirandolina <strong>de</strong> fazer com que o Cavaleiro se enamore <strong>de</strong> si: o único que parece<br />

insensível ao seu fascínio. Mas o Cavaleiro – para além do gesto <strong>de</strong> sobranceria, que o<br />

i<strong>de</strong>ntifica mais com o seu património familiar que com o seu sexo – não faz nada<br />

objectivamente reprovável e reivindica simplesmente o direito <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>ixado em paz e<br />

<strong>de</strong> não se interessar por mulheres se elas não o satisfizerem. Na primeira cena a sós com<br />

Mirandolina (cena I, 15), ele comporta-se correctamente e com estima, e Goldoni tem<br />

<strong>de</strong> colar às didascálias (“áspero”, “sério”) uma indicação <strong>de</strong> agressivida<strong>de</strong> e ofensa que,<br />

se nos ativermos à realida<strong>de</strong> do texto e à lógica da situação, não têm nenhuma razão<br />

especial <strong>de</strong> ser. Quanto às suas <strong>de</strong>clarações antifeministas, se as equipararmos aos<br />

comportamentos dos outros dois nobres, não nos parece que a situação <strong>de</strong> misógino<br />

inveterado seja então mais censurável ou exagerada que a assiduida<strong>de</strong> esbanjadora ou<br />

mesquinha, mas sempre ofensiva, com que o Marquês e o Con<strong>de</strong> cortejam Mirandolina;<br />

se a equiparamos <strong>de</strong>pois às <strong>de</strong>clarações e ao comportamento da estalaja<strong>de</strong>ira, não se vê<br />

em que aspectos tanto um como o outro refutem a opinião do Cavaleiro que as mulheres<br />

são perigosas, infiéis, frívolas, falsas e mentirosas.<br />

O Cavaleiro “quatro vezes mais que ela estima um bom cão <strong>de</strong> caça” 26 ; mas qual<br />

é a opinião que Mirandolina tem dos homens? “Todos os que chegam a esta estalagem,<br />

todos <strong>de</strong> mim se enamoram, todos me dizem lindas coisas. E são tantos, tantos os que<br />

25 Última cena <strong>de</strong> A Estalaja<strong>de</strong>ira.<br />

26 I, cena 4.<br />

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me pe<strong>de</strong>m que logo ali me case com eles! E este senhor Cavaleiro, bruto que nem um<br />

urso, trata-me tão bruscamente? Este é o primeiro forasteiro que chega à estalagem e<br />

que não sente prazer em praticar comigo. Não digo que todos se <strong>de</strong>vam enamorar assim,<br />

<strong>de</strong> um pulo. Mas <strong>de</strong>sprezar-me? É uma coisa que me revolve terrivelmente a bílis! (...)<br />

Com estes é que eu entro em disputa. Os que correm atrás <strong>de</strong> mim, logo, logo me<br />

aborrecem. A nobreza não me impressiona. A riqueza estimo-a e não a estimo. Todo o<br />

meu prazer consiste em ver-me servida, <strong>de</strong>sejada, adorada. (...) Casar-me, não penso<br />

nisso. Não preciso <strong>de</strong> ninguém. Vivo com honestida<strong>de</strong> e gozo a minha liberda<strong>de</strong>.<br />

Pratico com todos, não me enamoro <strong>de</strong> nenhum. Quero é divertir-me com estas<br />

caricaturas <strong>de</strong> apaixonados. E hei-<strong>de</strong> usar todos os artifícios para vencer, para <strong>de</strong>struir,<br />

para conquistar aqueles corações bárbaros e duros que são nossos inimigos, que nós<br />

somos a coisa melhor que já criou no mundo a bela Mãe Natureza!” 27<br />

Se, portanto, o Cavaleiro parece ligado a uma misoginia obtusa e ultrapassada,<br />

Mirandolina – com a sua ambição <strong>de</strong> se ver “servida, <strong>de</strong>sejada, adorada” – também não<br />

parece ter uma concepção particularmente mo<strong>de</strong>rna da mulher: a mulher é um enfeite<br />

precioso, o animal <strong>de</strong> luxo que os homens <strong>de</strong>sejam e servem para sua satisfação e<br />

prazer. Mas nesta equivalência <strong>de</strong> posições antagónicas – que fazem do Cavaleiro e <strong>de</strong><br />

Mirandolina duas personagens dignas uma da outra – o Cavaleiro <strong>de</strong>verá ter sempre<br />

uma réstia <strong>de</strong> “razão” a mais, quanto mais não seja porque se <strong>de</strong>ixa ficar no seu canto,<br />

<strong>de</strong>ixando os outros em paz, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> nunca sairia se a estalaja<strong>de</strong>ira não lhe <strong>de</strong>clarasse<br />

guerra.<br />

Tudo isto pertence logicamente ao tema moral e educativo da acção, e justifica o<br />

juízo severo que Goldoni faz <strong>de</strong> Mirandolina: mulher fascinante, mas também frívola –<br />

e um pouco cruel –, provocadora; e não justifica nem a interpretação do século XIX<br />

nem a opinião consequente que o juízo do autor seja uma <strong>de</strong>claração formal, moral, sem<br />

correspondência na realida<strong>de</strong> do texto.<br />

Mas Mirandolina não existe apenas nas <strong>de</strong>clarações a que fizemos referência;<br />

não está apenas na sua frívola concepção das relações com os homens: ela também é<br />

uma estalaja<strong>de</strong>ira eficiente e auto-suficiente, prática, activa, diligente, inteligentemente<br />

atenta a tudo o que diz respeito à gestão do negócio, que <strong>de</strong>senvolve as suas próprias<br />

relações públicas com uma elasticida<strong>de</strong> exemplar e flexibilida<strong>de</strong> no comportamento:<br />

sempre cortês, suficientemente submissa, inflexível quando é preciso. E mesmo isto,<br />

obviamente, faz parte do tema programático, <strong>de</strong>sejado e calculado por Goldoni: o<br />

fascínio <strong>de</strong> Mirandolina não está apenas na sua sedução, mas também e sobretudo na<br />

sua mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, no seu “ser diferente das outras”, exactamente porque para além <strong>de</strong><br />

mulher ela é patroa do seu negócio. E a ela se liga, por consequência, também o lado<br />

“político” do negócio, que no casamento entre Mirandolina e Fabrício sublinha a<br />

superiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma nova concepção burguesa do matrimónio, fundada num sólido e<br />

realista bom senso, alheia às sugestões dos marqueses e con<strong>de</strong>s; e que revela – como<br />

veremos – uma ampla e reveladora discussão do assunto.<br />

27 I, cena 9.<br />

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Mas, como se conciliam, na mesma personagem, tanta mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e<br />

positivida<strong>de</strong> no comportamento público com uma concepção tão superficial e negativa<br />

nas relações privadas e afectivas? Na minha opinião, a única interpretação possível é<br />

que Mirandolina seja essencialmente uma “estalaja<strong>de</strong>ira” perfeita. A estalagem é o<br />

centro do seu mundo e é o seu único verda<strong>de</strong>iro interesse, e toda a sua cativante<br />

habilida<strong>de</strong> nas relações com os homens é dirigida ao lucro no negócio, à sua volta todos<br />

são entendidos como clientes (Marquês, Con<strong>de</strong>, Cavaleiro) ou como instrumentos e<br />

colaboradores (Fabrício). A disputa fascinante e cortês entre os homens é portanto uma<br />

empresa pura e fria, on<strong>de</strong> a aventura com o Cavaleiro se insere como se fosse umas<br />

férias, ou então, mais exactamente, acolhida como um <strong>de</strong>safio. É verda<strong>de</strong> que daqui<br />

resultará um dano objectivo para a estalagem (pois o Cavaleiro ir-se-á embora<br />

<strong>de</strong>sagradado e Mirandolina terá <strong>de</strong> pedir aos outros dois instrumentos do seu jogo – o<br />

Marquês e o Con<strong>de</strong> – para procurarem outro alojamento), mas isto não contradiz o facto<br />

<strong>de</strong> que ela faz tudo no interesse da sua estalagem, tanto quanto a ruína a que conduz a<br />

se<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Lady Macbeth contradiz o facto <strong>de</strong> que Lady Macbeth estivesse<br />

se<strong>de</strong>nta <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. A ambição, sabe-se, é perniciosa; e o homem-cliente insensível ao seu<br />

fascínio – e por isso, potencialmente, um cliente incerto – perturba a segurança <strong>de</strong><br />

Mirandolina: é uma fenda na sua satisfação, uma sombra no céu límpido da gestão do<br />

seu negócio, a fonte <strong>de</strong> uma sensação <strong>de</strong> perigo, tal como seria para Ricardo III a<br />

presença dos sobrinhos: por esta ambição, Mirandolina não hesita em per<strong>de</strong>r – não digo<br />

a vida ou o reino – mas claro, três bons clientes.<br />

A prova <strong>de</strong> tudo isto é a absoluta ausência <strong>de</strong> implicações e complicações<br />

sentimentais que caracteriza o comportamento <strong>de</strong> Mirandolina: “Os que correm atrás <strong>de</strong><br />

mim, logo, logo me aborrecem. (...) Casar-me, não penso nisso. (...) Não preciso <strong>de</strong><br />

ninguém. (...) Pratico com todos, não me enamoro <strong>de</strong> nenhum”. É provável que nas<br />

intenções <strong>de</strong> Goldoni estas <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong>vessem garantir ao público a honestida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Mirandolina e preparar o honesto casamento com Fabrício; mas a realida<strong>de</strong> na página<br />

escrita <strong>de</strong>ixa perceber mais qualquer coisa mais precisa, que com certeza vai para além<br />

das intenções do autor: pelas frases acima mencionadas, por tudo o que ela faz ou diz,<br />

Mirandolina parece mais indiferente que honesta, mais insensível ao fascínio masculino<br />

que <strong>de</strong>srespeitosa <strong>de</strong> si própria, mais frígida que virtuosa.<br />

É completamente provável – repito – que esta “frigi<strong>de</strong>z” não tenha sido<br />

calculada nem querida por Goldoni; mas assim que uma personagem nasce <strong>de</strong> certa<br />

maneira é característico <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> dramaturgo aceitá-la em todas as suas<br />

implicações, <strong>de</strong>senvolvê-la com o rigor <strong>de</strong> um teorema, sem trair – por amor da sua tese<br />

e intenção – a sua íntima e humana coerência. Assim, não é muito importante que<br />

Goldoni tivesse a intenção <strong>de</strong> conduzir Mirandolina incólume por entre tantas disputas<br />

amorosas para <strong>de</strong>pois a fechar, no fim, no amor a Fabrício: a segura e intangível<br />

indiferença com que Mirandolina passa por entre os homens-clientes condu-la, com<br />

absoluta credibilida<strong>de</strong> e coerência, a um casamento “estranho”, ou – melhor –<br />

<strong>de</strong>masiado claro: com um homem-colaborador, ligado aos negócios, suficientemente<br />

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velho para não ser <strong>de</strong>masiado fogoso 28 ; aos comandos estará Mirandolina, mais por<br />

força da sua personalida<strong>de</strong> do que por direito <strong>de</strong> proprietária, mas Fabrício certamente<br />

que po<strong>de</strong>rá contar com a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> da sua consorte: Mirandolina não está sujeita a<br />

tentações.<br />

Leiamos um pouco da última cena:<br />

MIRANDOLINA (...) Mais não quero saber. Fabrício, chega-te cá, querido, dá-me a tua<br />

mão.<br />

FABRÍCIO A mão? Devagar, senhora. Divertis-vos em enamorar as gentes <strong>de</strong>ste modo,<br />

e julgais que convosco me queira casar?<br />

MIRANDOLINA Vá! Não te faças tolo! Foi um fingimento, uma galanteria, um<br />

capricho! Era solteira, não tinha ninguém que em mim mandasse. Quando me casar, sei<br />

o que farei.<br />

FABRÍCIO Que fareis?<br />

Seria muito interessante conhecer a resposta <strong>de</strong> Mirandolina, mas o diálogo é<br />

interrompido por um criado que entra com as saudações do Cavaleiro. Depois o diálogo<br />

é retomado:<br />

MIRANDOLINA Senhores, agora que me caso, não quero protectores, não quero<br />

empenhos, nem presentes. Até agora me an<strong>de</strong>i a divertir, e fiz mal, e <strong>de</strong>masiado me<br />

arrisquei. E mais não quero fazer. Este é o meu marido...<br />

FABRÍCIO Devagar, senhora...<br />

MIRANDOLINA Qual <strong>de</strong>vagar! O que é? Qual é a dificulda<strong>de</strong>? Vá! A mão!<br />

FABRÍCIO Gostaria <strong>de</strong> primeiro fazer o nosso pacto.<br />

MIRANDOLINA Que pacto? Este é o pacto. Ou me dais a mão ou i<strong>de</strong> para a vossa<br />

terra.<br />

FABRÍCIO Aqui ten<strong>de</strong>s a mão... mas <strong>de</strong>pois...<br />

MIRANDOLINA Mas <strong>de</strong>pois... sim, querido, serei toda tua. Não duvi<strong>de</strong>s <strong>de</strong> mim, para<br />

sempre te amarei. Serás a minha alma!<br />

FABRÍCIO (dando-lhe a mão) Aqui a ten<strong>de</strong>s. Não posso mais!<br />

MIRANDOLINA (à parte) Também esta já está pronta!<br />

28 Convém lembrar que o intérprete <strong>de</strong> Fabrício em Sant’Angelo foi Giuseppe Marliani, o Brighella da<br />

companhia e marido <strong>de</strong> Maddalena, <strong>de</strong> carácter mo<strong>de</strong>rado e paciente, pelo menos, a julgar o seu<br />

comportamento em relação ao da mulher. Para que conste, lembre-se que na sua primeira encenação, o<br />

papel <strong>de</strong> Fabrício – “para comodida<strong>de</strong> da personagem, habituado ao falar <strong>de</strong> Brighella” (Mèmoires) – foi<br />

escrito em veneziano, e rescrito em italiano apenas aquando da publicação.<br />

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Fabrício, que ao contrário do público não ouviu o monólogo programático da<br />

cena 9 do I acto, pe<strong>de</strong>, naturalmente, garantias, e Mirandolina <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> lhe ter dito<br />

claramente que se assim não lhe agrada se po<strong>de</strong> ir embora, não tem nada contra<br />

satisfazer também esta formalida<strong>de</strong>, lançando-se numa <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> amor tão pública<br />

quanto excessiva, que as divas do século XIX diluiriam provavelmente num tom<br />

lânguido, comovido e sentimental. E também isto não faz mais do que provar a<br />

repentina transformação da personagem no palco e nas páginas da crítica, e quão<br />

profunda <strong>de</strong>ve ser a activida<strong>de</strong> da montagem se se fizer uma leitura simplesmente<br />

objectiva do texto.<br />

Mas como dissemos anteriormente, A estalaja<strong>de</strong>ira também tem um significado<br />

político e social: história <strong>de</strong> uma mulher que entre um Con<strong>de</strong>, um Marquês e um<br />

Cavaleiro, acaba a casar com o humil<strong>de</strong> Fabrício, para que ele a aju<strong>de</strong> na gestão da<br />

estalagem, A estalaja<strong>de</strong>ira exemplifica <strong>de</strong> modo altamente característico e significativo<br />

o problema das relações entre a burguesia e a nobreza, num momento histórico em que a<br />

nova classe se apoia e substitui a antiga no papel <strong>de</strong> classe dominante. Consi<strong>de</strong>rada a<br />

esta luz, A estalaja<strong>de</strong>ira surge como um exemplo <strong>de</strong> pesquisa <strong>de</strong> conteúdos, on<strong>de</strong> o<br />

teatro <strong>de</strong> Goldoni e a literatura dramática do género são justapostos <strong>de</strong> maneira<br />

proveitosa.<br />

De todos os géneros literários, o teatro é aquele que mais se presta a uma análise<br />

sociológica sobre o património cultural e moral, sobre os mitos, crenças, i<strong>de</strong>ais e<br />

convenções <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada socieda<strong>de</strong>. O teatro, <strong>de</strong> facto, muito mais do que a<br />

narrativa e a poesia, ou o pensamento filosófico, está ligado, pela sua natureza, à<br />

satisfação imediata do público e reflecte sempre, com rapi<strong>de</strong>z tempestiva o modo <strong>de</strong><br />

viver e <strong>de</strong> pensar da socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> se insere. Isto não significa que todas as novas<br />

exigências que chegam à realida<strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolvam primeiramente como expressão<br />

literária no teatro; significa o contrário: isto é, significa que o teatro assinala o momento<br />

em que certos princípios morais, i<strong>de</strong>ias, convenções políticas, num sentido lato – já<br />

bastante antecipados pelo pensamento filosófico e científico – se afundam em estratos<br />

bastante vastos da socieda<strong>de</strong> e se difun<strong>de</strong>m o suficiente para serem consi<strong>de</strong>rados – e que<br />

se diga isto sem qualquer conotação negativa – “lugares comuns”. O teatro está sempre<br />

em “atraso” em relação ao pensamento filosófico e científico, pois enquanto estes<br />

reflectem hipóteses produtivas, antecipações iluminadas <strong>de</strong> uma élite do pensamento,<br />

prontas a enten<strong>de</strong>r e a instalar os primeiros sintomas <strong>de</strong> uma evolução da realida<strong>de</strong>, o<br />

teatro reflecte a mentalida<strong>de</strong> difundida e preeminente da socieda<strong>de</strong> em que se insere; e a<br />

medida do atraso está ligada ao tempo que dura este fenómeno <strong>de</strong> divulgação. Ao dizer<br />

isto, não se quer significar que o autor dramático <strong>de</strong>va necessariamente obe<strong>de</strong>cer à<br />

mentalida<strong>de</strong> dominante, reflectindo-a servilmente; ele até po<strong>de</strong> opor-se-lhe, mas não<br />

po<strong>de</strong> não a ter em consi<strong>de</strong>ração; e isso será sempre evi<strong>de</strong>nte, quanto mais não seja como<br />

força interlocutora ou antagonista.<br />

O teatro <strong>de</strong> Goldoni, com a sua enorme varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ambientes, acções,<br />

personagens, interesses, constitui um fresco minucioso da socieda<strong>de</strong> do seu tempo,<br />

capturado no momento em que Veneza – adiantada em relação a todo o calendário<br />

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europeu – alberga uma burguesia mercantil que impõe a sua própria hegemonia,<br />

inserindo-se por entre uma população que ainda não tem voz autónoma e uma<br />

aristocracia exaurida e sempre, evi<strong>de</strong>ntemente, parasitária. (...) Já vimos como, em que<br />

medida e com que êxito Goldoni se i<strong>de</strong>ntifica com esta burguesia em ascensão, unindo<br />

as aspirações e os i<strong>de</strong>ais, e conduzindo a figura emblemática <strong>de</strong> Pantalone <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu<br />

antigo papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezível traficante, sordidamente amarrado à carteira e às ná<strong>de</strong>gas<br />

das criadas, até ao papel <strong>de</strong> mercador honrado, bom pai <strong>de</strong> família e estrutura da<br />

socieda<strong>de</strong> e do Estado. Mas nesta enorme quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> temas e assuntos, um <strong>de</strong>les<br />

surge como dominante, ou pelo menos omnipresente: o tema do amor e do casamento.<br />

Os motivos inspiradores ou a finalida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m ser vários e articulados e vão, <strong>de</strong> facto,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a <strong>de</strong>núncia da curiosida<strong>de</strong>, do ciúme, do namoro feminino, aos retratos irónicos<br />

<strong>de</strong> arrogantes, rústicos, mentirosos e avaros; dos acontecimentos instrutivos com<br />

mercadores esbanjadores, aduladores e jogadores, à edificante exaltação da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong><br />

dos criados, da amiza<strong>de</strong>, da prudência doméstica; mas estes interesses e ensinamentos<br />

serão sempre inseridos, entrecruzados, enquadrados numa história <strong>de</strong> amor que termina<br />

com um casamento.<br />

E este facto não é um acaso: o tema do amor – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre fundamental no<br />

teatro – também estava no centro da dramaturgia que prece<strong>de</strong> a dramaturgia burguesa e<br />

que po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>finir como aristocrática, naquilo que reflecte a sensibilida<strong>de</strong> e i<strong>de</strong>ologia<br />

<strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> fundada num privilégio <strong>de</strong> origem feudal. Mas na fase <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência<br />

<strong>de</strong>sta socieda<strong>de</strong>, este limitou-se a reflectir o hedonismo vazio e frívolo <strong>de</strong> uma classe<br />

esgotada da sua função histórica (como na comedy of manners <strong>de</strong> Shakespeare ou <strong>de</strong><br />

Congreve), ou mesmo a representar os titânicos <strong>de</strong>sencontros <strong>de</strong> paixões dos exercícios<br />

literários (como no drama neoclássico ou na comédie larmoyante). As histórias <strong>de</strong> amor<br />

no teatro aristocrático – seja ele cómico ou trágico – não têm outro objectivo que<br />

conduzir os protagonistas à satisfação dos sentidos, à satisfação do <strong>de</strong>sejo físico que os<br />

atrai um para o outro; é assim na comédia que imita os clássicos do Renascimento, on<strong>de</strong><br />

as disputas dos enamorados não vêem outra coisa, mesmo quando – e não dizemos que<br />

seja o caso mais frequente – os dois enamorados se <strong>de</strong>verão unir e falam <strong>de</strong> casamento;<br />

é assim na comédia pastoril do século XVII e também assim na comédia <strong>de</strong> salão do<br />

século XVII, on<strong>de</strong> pelo menos um dos protagonistas já é casado e on<strong>de</strong> o sentimento<br />

amoroso leva mais vezes ao adultério que ao casamento.<br />

O novo espírito burguês opõe a esta concepção meramente individualista e<br />

hedonista uma concepção muito mais construtiva e positiva: longe <strong>de</strong> ser uma simples<br />

atracção e satisfação dos sentidos, o amor é a via que conduz ao casamento, à<br />

constituição <strong>de</strong> uma família, isto é, do núcleo social fundamental. E isto é tão verda<strong>de</strong><br />

que – diferentemente do que suce<strong>de</strong> no teatro aristocrático – as histórias <strong>de</strong> amor da<br />

dramaturgia burguesa, nesta sua primeira e positiva fase, têm sempre como<br />

protagonistas pares <strong>de</strong> namorados, nunca pares <strong>de</strong> esposos. Como se percebe, o amor<br />

juntou ao casamento o seu objectivo e <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser tema possível do drama: o homem<br />

casado e a esposa entram como protagonistas no teatro burguês apenas com os papéis <strong>de</strong><br />

“pai” e “mãe” e nunca com funções autónomas. O Senhor To<strong>de</strong>ro é obviamente o<br />

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protagonista da comédia com o seu nome, mas a presença é justificada pela história <strong>de</strong><br />

amor que ele condiciona e com que se confronta: e a acção conclui-se não com o fim, o<br />

arrependimento, o suicídio ou a prisão do Senhor To<strong>de</strong>ro, mas simplesmente e<br />

consequentemente com as bodas da sua sobrinha Zanetta.<br />

Esta necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma finalida<strong>de</strong> do amor com um sentido socialmente<br />

construtivo é tão forte que se encontra não apenas nas obras novas, como também nas<br />

obras do passado, que serão reapresentadas ao público burguês apenas se<br />

correspon<strong>de</strong>rem a esta nova sensibilida<strong>de</strong>, ou então se se transformarem em<br />

consequência disso. Entre os muitos exemplos possíveis na dramaturgia europeia do<br />

século XVIII, o mais sensacional e divertido é talvez aquele que diz respeito à tragédia<br />

<strong>de</strong> Shakespeare António e Cleópatra. Para a mentalida<strong>de</strong> positiva burguesa da primeira<br />

fase, nada po<strong>de</strong> ser mais estranho, irreconhecível e improdutivo como a história <strong>de</strong> uma<br />

paixão tórrida <strong>de</strong> um comandante romano e <strong>de</strong> uma rainha do Egipto; mas ao ser<br />

reescrita por um tal Henry Brooke em 1780 e – po<strong>de</strong>remos dizer – “reciclada” segundo<br />

o novo sentimento ético e civil, a história segue o único caminho possível, mostrandonos<br />

António e Cleópatra não tanto com amantes, mas como pais. O objecto do drama <strong>de</strong><br />

Brooke não é a satisfação da paixão amorosa dos dois, mas a conservação do seu núcleo<br />

familiar; António não está dividido entre o sentido do <strong>de</strong>ver e uma paixão incontrolável,<br />

mas entre o primeiro e a atmosfera familiar burguesa da sua cônjuge egípcia.<br />

Igualmente, Cleópatra não se serve do seu fascínio para <strong>de</strong>ter António mas recorre a<br />

duas crianças que nunca po<strong>de</strong>riam ter tido em Shakespeare a importância que aqui<br />

possuem: “Não queres dar um beijinho aos teus companheiros <strong>de</strong> jogos, meu António?<br />

(...) Vamos, meus meninos, aju<strong>de</strong>m-me a <strong>de</strong>ter aqui este esposo <strong>de</strong>sobediente”. E um<br />

dos filhos: “Nós ajudamos-te mamã. Põe-te <strong>de</strong>sse lado, Patty, eu fico <strong>de</strong>ste; e se ele<br />

tentar fugir penduramo-nos nele como dois contrapesos”. E António, ce<strong>de</strong>ndo: “Oh, se<br />

estivessem aqui pais, eles iriam compreen<strong>de</strong>r-me”.<br />

No momento histórico em que a nova classe burguesa entra em contacto e em<br />

conflito com a velha classe aristocrática, a história <strong>de</strong> amor e <strong>de</strong> casamento é muitas<br />

vezes a história <strong>de</strong> amor e <strong>de</strong> casamento entre um representante da burguesia e um<br />

representante da nobreza. O teatro burguês tratará naturalmente este tema através do seu<br />

próprio ponto <strong>de</strong> vista e com o rigoroso objectivo <strong>de</strong> que já falámos; mas o teatro<br />

aristocrático e o popular tinham em consi<strong>de</strong>ração esta relação e a maneira como ela é<br />

abordada mostra claramente o aperfeiçoamento da relação recíproca das duas classes e a<br />

passagem <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista aristocrático para um ponto <strong>de</strong> vista burguês.<br />

O teatro aristocrático – e o teatro popular – têm em consi<strong>de</strong>ração muitos<br />

representantes da nova classe: trata-se, em geral, <strong>de</strong> um velho abastado a quem é<br />

prometido pelo pai ou por um tutor uma rapariga para esposa que, naturalmente, numa<br />

escolha <strong>de</strong>ste género, tem em maior consi<strong>de</strong>ração a carteira do que a formosura ou a<br />

ida<strong>de</strong>; o jogo, como é óbvio, não chega ao fim; a jovem casa com um belo cavaleiro que<br />

sempre amou e o mercador é normalmente ridicularizado, e às vezes espancado, por<br />

entre as risadas dos nobres e do povo, solidários e em harmonia contra a classe<br />

perturbadora. Exemplos <strong>de</strong>sta situação dramática abundam entre o século XVI e XVIII<br />

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e oferecem uma vastíssima gama <strong>de</strong> tons e contrastes: o mercador é às vezes<br />

representado como um velho inócuo culpado apenas <strong>de</strong> sentir ainda paixões amorosas<br />

ina<strong>de</strong>quadas à sua ida<strong>de</strong>, ou é um velho obsceno com os vícios mais sórdidos: para<br />

encontrar alguns exemplos típicos, po<strong>de</strong>remos ver os anónimos Ingannati dos Intronati<br />

<strong>de</strong> Siena (1531), L’avare <strong>de</strong> Molière (1668), e não poucos cenários <strong>de</strong>ll’arte marcados<br />

por este esquema e, por uma versão tardia e refinada, um indício, pelo seguimento que<br />

teve, <strong>de</strong> O barbeiro <strong>de</strong> Sevilha <strong>de</strong> Beaumarchais (1775).<br />

Mas muito rapidamente os termos da questão assumem características bem<br />

diferentes. De um lado os burgueses, por muito velhos e babados que nos sejam<br />

mostrados na comédia do renascimento, representam sempre e cada vez mais uma força<br />

sólida e segura, por outro lado os nobres, surgem <strong>de</strong>masiadas vezes reduzidos apenas à<br />

aparência, vítimas das suas próprias refinadas exigências, fundando a sua supremacia na<br />

força artificiosa dos privilégios. Privilégio <strong>de</strong> um lado e riqueza do outro, não tardam a<br />

encontrar o modo <strong>de</strong> se porem <strong>de</strong> acordo: o rico mercador que aspira à mão da menina<br />

da nobreza já não é rejeitado no ridículo tout court: às vezes (é assim agora, na nova<br />

situação dramática típica) obtém aquilo que quer, mas a nobreza vinga-se <strong>de</strong>ste<br />

indubitável malogro <strong>de</strong> classe fazendo-o pagar duramente as próprias ambições. Em<br />

George Dandin <strong>de</strong> Molière (1668) encontramos um perfeito exemplo <strong>de</strong>sta situação:<br />

George Dandin é o rico camponês que “para se fazer maior”, como ele próprio afirma,<br />

casa com uma menina da nobreza, com o resultado <strong>de</strong> ser encornado e espancado no<br />

final, obra, naturalmente, <strong>de</strong> um jovem fidalgo. Mesmo em George Dandin, a situação é<br />

exposta do ponto <strong>de</strong> vista dos nobres: Dandin pronuncia, é verda<strong>de</strong>, frases que<br />

<strong>de</strong>monstram como Molière percebia bem o valor concreto e positivo da nova classe e o<br />

significado histórico daquela aliança não natural: “Conheço bem o estilo dos nobres<br />

quando fazem entrar gente como nós nas suas famílias. O parentesco que abraçam<br />

connosco é pouca coisa, casam-se apenas com o nosso dinheiro; e teria feito melhor,<br />

rico como sou, se ficasse com um simples camponês do que agarrar-me a uma mulher<br />

que pensa que é superior a mim, ofen<strong>de</strong>-se por ficar com o meu nome e pensa que,<br />

apesar <strong>de</strong> todo o dinheiro que tenho, não paguei suficientemente o meu lugar <strong>de</strong><br />

marido” 29 . Mas, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> dizer isto – que mais uma vez se equipara à irrecusável<br />

justiça da gran<strong>de</strong> poesia – todas as situações da acção mostram que a principal intenção<br />

do autor é a punição do pretensioso parvenu. Os populares, artesãos e lojistas que<br />

aplaudiam o George Dandin em Paris <strong>de</strong>pois da mesma comédia ter sido representada<br />

em Versalhes diante do rei, faziam o jogo da classe para quem a obra tinha sido escrita e<br />

<strong>de</strong> quem reflectia o ponto <strong>de</strong> vista: um caso <strong>de</strong> mistificação bastante frequente na<br />

história do teatro.<br />

A sátira contra a figura do novo rico burguês que <strong>de</strong>seja dar brilho ao seu pé <strong>de</strong><br />

meia permanecerá muito popular durante todo o século XVIII; em 1765, o<br />

comediógrafo inglês Henry Foote escarnecerá em Commissario, do mercador Fungus<br />

que elabora assim o seu pedido <strong>de</strong> casamento a uma senhora nobre: “Senhora,<br />

sinceramente, se permitis, alteza! Caso a gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> vossa alta genealogia queira<br />

29 A. I, cena 1.<br />

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inclinar-se perante a mercantil mesquinhez da minha esquálida <strong>de</strong>scendência...”; e as<br />

rentiers fixas que se apreen<strong>de</strong>m no capricho do título da obra encontrar-se-ão mesmo no<br />

teatro <strong>de</strong> Labiche (Le Baron <strong>de</strong> Fourchevif, 1859), quando a nobreza já <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> existir<br />

enquanto classe concorrente e a burguesia <strong>de</strong>tém <strong>de</strong> maneira sólida o intrincado <strong>de</strong><br />

privilégios em que baseia a sua hegemonia.<br />

Todavia, a partir <strong>de</strong> um certo momento, que não se consegue datar com precisão,<br />

mas que constitui o momento lógico em que a nova mentalida<strong>de</strong> burguesa ganha<br />

vantagem para o público, o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> on<strong>de</strong> é observada esta situação dramática é<br />

completamente <strong>de</strong>struído: a partir <strong>de</strong>sse momento, o burguês que olha para o brasão já<br />

não é consi<strong>de</strong>rado um ser socialmente inferior que quer <strong>de</strong>sajeitadamente subir <strong>de</strong> classe<br />

e se cobre <strong>de</strong> ridículo, mas sim uma boa pessoa, parecida com aquelas que estão na<br />

plateia, que contudo tem a obsessão, às vezes inocente, às vezes até perigosa, <strong>de</strong> um<br />

título nobiliárquico, <strong>de</strong> um adorno que já foi esvaziado <strong>de</strong> significado.<br />

O próprio Goldoni, em Famiglia <strong>de</strong>ll’antiquario (1750), dirige a sua crítica ao<br />

rico Pantalone, que “por causa do catarro da nobreza” quer casar a filha com um nobre.<br />

Mas, diferentemente <strong>de</strong> George Dandin, que puxava para si todo o ridículo da situação,<br />

Pantalone divi<strong>de</strong> o ridículo com a nobre donzela cujo filho <strong>de</strong>verá tornar-se como ela,<br />

na excitação daquele pensamento <strong>de</strong> que o sangue da casa possa ser enlameado com as<br />

bodas “com uma mercadora”: no tempo <strong>de</strong> Goldoni, a relação entre as duas classes<br />

mudou profundamente e entre o burguês que por snobismo <strong>de</strong>seja tornar-se nobre e o<br />

nobre que se entrincheira na <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> um privilégio, autor e público castigam-nos<br />

indiferentemente. Se pensamos na breve troca <strong>de</strong> palavras no início <strong>de</strong> A estalaja<strong>de</strong>ira<br />

(“Eu sou o Marquês <strong>de</strong> Forlipópoli.” – “E eu sou o Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Albafiorita.” – “Con<strong>de</strong>,<br />

sim. Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> condado comprado.” – “Comprei o condado. Mas, na mesma ocasião,<br />

vendíeis vós o marquesado.”) compreen<strong>de</strong>mos quanto, pelo menos na Veneza <strong>de</strong>sse<br />

tempo, se não mesmo na Europa, a divisão entre as duas classes estava esvaziada <strong>de</strong><br />

qualquer significado concreto. Mas o casamento entre burgueses e nobres visto como<br />

negócio entre capital e brasão não é o único modo <strong>de</strong> nos acercarmos do tema, nem que<br />

seja porque havia sempre burgueses pobres e nobres ricos e o problema <strong>de</strong> um<br />

casamento entre eles não se podia resolver nos termos acima referidos. Se bem que o<br />

caso <strong>de</strong>vesse ser raro, na literatura dramática encontramo-lo tratado numa medida a<br />

todos os títulos surpreen<strong>de</strong>nte: por baixo da tendência das concepções iluministas, há<br />

uma série <strong>de</strong> peças mais ou menos pequenas no século XVIII que nos apresentam um<br />

jovem nobre e rico a casar com uma pobre menina <strong>de</strong> origens humil<strong>de</strong>s, com base numa<br />

série <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rações humanitárias e igualitárias que recriam, na convenção dramática<br />

e talvez até na realida<strong>de</strong>, o estado mítico e utópico da natureza. O estado comum do<br />

filho <strong>de</strong> Deus, o carácter aci<strong>de</strong>ntal da riqueza e da honra, a igualda<strong>de</strong> dos homens<br />

perante a doença e a morte; são as premissas <strong>de</strong> um convite a não medir as chances<br />

matrimoniais <strong>de</strong> um jovem ou <strong>de</strong> uma menina num plano da nobreza ou do registo, mas<br />

num plano <strong>de</strong> honra e <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>. “Um só / foi o princípio <strong>de</strong> todos”, sentencia Goldoni<br />

em Giustino (1734): “igual matéria / forma os membros <strong>de</strong> um monarca, e forma / os <strong>de</strong><br />

um vil pastor.” E não florescem apenas os casamentos entre nobres e burgueses neste<br />

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clima idílico, mas até <strong>de</strong> reis e pastoras: é mais uma vez o Rei Celidoro <strong>de</strong> Goldoni que,<br />

em Portentosi effetti di natura (1752), respon<strong>de</strong> à pastora que lhe mostra a<br />

anormalida<strong>de</strong> do próprio dote: “Que dote? A natureza fez-nos todos iguais!”.<br />

Naturalmente, como <strong>de</strong>monstram já estes exemplos, as concepções humanitárias<br />

abstractas encontram-se expressas em géneros dramáticos abertamente literários e<br />

artificiosos, tais como melodramas, intermezzi musicais, dramas jocosos em verso,<br />

dramas pastoris, os burlesques, as comédies larmoyantes, as zauberspiele; e as<br />

personagens que os apresentam chamam-se mesmo Rei Celidoro e nunca se po<strong>de</strong>riam<br />

chamar Pantalone ou Fabrício. Mas a postura que está na base <strong>de</strong>stas composições<br />

empresta ainda assim uma notável importância ao tema que nos interessa, porque, por<br />

um lado, representa um paternalista embrassons nous da classe aristocrática dirigente<br />

que, prevendo a imagem <strong>de</strong> inacessível estado natural, ten<strong>de</strong> obviamente a conservar as<br />

coisas como elas estão; e por outro lado, po<strong>de</strong> ser vista como ingénua a afirmação <strong>de</strong><br />

princípio <strong>de</strong> uma classe obstaculizada na sua ascensão a um conjunto <strong>de</strong> privilégios não<br />

naturais. A mesma postura, seja ela expressa em termos mais mo<strong>de</strong>rados e com uma<br />

casuística mais possível, encontra-se, no mesmo período, em obras com uma orientação<br />

realista clara, que propunham realizar aqueles casamentos não na atmosfera <strong>de</strong> fábula<br />

do drama pastoril, mas nas circunstâncias concretas da vida real. Entre estas obras,<br />

nomeamos como exemplo típico Le préjugé vaincu <strong>de</strong> Marivaux (1746), on<strong>de</strong> Angelica,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter recusado Dorante porque “lhe falta o nascimento”, casa com ele<br />

ultrapassando os preconceitos das divisões <strong>de</strong> classe. (...)<br />

Mas a mais importante e interessante das obras com este clima e que reflecte<br />

esta postura é Pamela or Virtue rewar<strong>de</strong>d (1740), romance do inglês Samuel<br />

Richardson que teve imediatamente inúmeras adaptações teatrais e que mesmo nessa<br />

forma teatral sofreu significativas e interessantes transformações. Um ano <strong>de</strong>pois da sua<br />

publicação teve duas adaptações cénicas em Inglaterra (obras <strong>de</strong> Dance e <strong>de</strong> Giffard) e<br />

em 1743 serviu <strong>de</strong> base em La Chaussée a uma comédie larmoyante que não obteve<br />

sucesso algum, a par com uma outra adaptação francesa representada nesse mesmo ano<br />

em Boissy. Gran<strong>de</strong> sucesso tiveram, pelo contrário, a adaptação <strong>de</strong> Voltaire – Nanine,<br />

ou le préjugé vaincu (1749) – e Pamela <strong>de</strong> Goldoni.<br />

Na imaginação <strong>de</strong> Richardson, Pamela é uma pobre rapariga <strong>de</strong> origens<br />

humil<strong>de</strong>s que uma senhora da alta classe acolhe em sua casa, mantém junto <strong>de</strong> si e faz<br />

educar como uma donzela da melhor socieda<strong>de</strong>. O filho da senhora nobre apaixona-se e<br />

no fim casa com ela, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter ultrapassado a hostilida<strong>de</strong> da família, os sábios<br />

conselhos dos velhos amigos e as suas próprias hesitações. Tal como a comédia <strong>de</strong><br />

Marivaux acima citada, Pamela não reclama um estado da natureza on<strong>de</strong> rei e pastor<br />

são iguais, mas afirma – ou <strong>de</strong>seja – que em presença <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados dons morais ou<br />

<strong>de</strong> circunstâncias particulares (Pamela, lembre-se, tinha tido uma educação<br />

aristocrática), ser <strong>de</strong> origens humil<strong>de</strong>s não po<strong>de</strong> constituir um impedimento sério para<br />

um casamento do género: postura mais realista, mais que não seja porque sublinha a<br />

excepcionalida<strong>de</strong> do caso. Mas, enquanto todos os adaptadores – <strong>de</strong> Dance a Voltaire –<br />

seguem fielmente o romance, Goldoni altera o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um modo à primeira<br />

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vista <strong>de</strong>sconcertante. A sua Pamela não discute sentenças e sermões inspirados nos<br />

belos conceitos igualitários <strong>de</strong> que falámos: “O sangue nobre é um acaso da sorte, as<br />

acções nobres caracterizam os gran<strong>de</strong>s”; “Eu sou uma pobre criada, vós o meu patrão,<br />

mas duas coisas iguais temos e são estas: razão e honra”; “Quem tenha morrido para<br />

salvar a honra, entendo; que seja <strong>de</strong>sonra casar com uma pobre rapariga honesta, não<br />

percebo. Ouvi dizer tantas vezes que o mundo seria muito mais belo se os homens não o<br />

tivessem estragado, os quais por causa da soberba abalaram a belíssima or<strong>de</strong>m da<br />

natureza...”. Todavia, apesar <strong>de</strong>stas premissas e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muitas discussões e<br />

monólogos a favor e contra a coisa, a <strong>de</strong>cisão do Milord Bonfil é <strong>de</strong> renunciar a Pamela<br />

e renunciaria, <strong>de</strong> facto, se Goldoni não inventasse no fim um reconhecimento fantástico<br />

na base do qual Pamela se revela não menos nobre que o seu namorado. Não nos<br />

<strong>de</strong>ixemos enganar pelo final, evi<strong>de</strong>ntemente aborrecido e gentil (“Gosto <strong>de</strong> imaginar”,<br />

escreverá, <strong>de</strong> facto, Goldoni no aviso aos leitores, “uma aventura vantajosa para os dois<br />

amantes e ao mudar as condições <strong>de</strong> Pamela recompenso as suas virtu<strong>de</strong>s sem ultrajar o<br />

sangue puro <strong>de</strong> um Cavaleiro, que a par dos estímulos <strong>de</strong> amor também tem em atenção<br />

os da honra”), e obe<strong>de</strong>çamos àquela que é a conclusão racional da comédia, aquela que<br />

emerge das premissas da acção e das personagens, antes que uma preocupação <strong>de</strong><br />

carácter oportunista obrigue Goldoni – por uma vez – a dar menos atenção aos critérios<br />

da verda<strong>de</strong> e da justiça poética. O Lor<strong>de</strong> Bonfil – ao contrário do que suce<strong>de</strong> no<br />

romance – <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> não casar com Pamela; não na base <strong>de</strong> uma recusa dos conceitos <strong>de</strong><br />

igualda<strong>de</strong>, mas ren<strong>de</strong>ndo-se – para além <strong>de</strong> qualquer utopia abstracta – à opinião<br />

comum codificada pelos costumes: “Pamela”, escreve ainda Goldoni, “embora vil e<br />

abjecta merece casar com um Cavaleiro; um Cavaleiro que recompense o mérito <strong>de</strong><br />

Pamela e, não obstante a vileza do nascimento, a toma como esposa. É verda<strong>de</strong> que em<br />

Londres têm pouco escrúpulo por tais bodas (...) Não tenho intenção <strong>de</strong> reprovar aquilo<br />

que eles não con<strong>de</strong>nam (...) mas tal como <strong>de</strong>vo mostrar no <strong>Teatro</strong> a moral que advém<br />

das práticas comuns aprovadas por todos, perdoar-me-ão a necessida<strong>de</strong> em que me<br />

encontrei <strong>de</strong> não ofen<strong>de</strong>r os costumes mais louvados”; em Veneza, <strong>de</strong> facto, “a verda<strong>de</strong><br />

é que ninguém gostará (...) que o filho, o irmão, um familiar case com uma mulher <strong>de</strong><br />

baixa condição e sim com um dos seus pares, por muito que seja, mais do que esta,<br />

virtuosa e gentil” 30 .<br />

Não vale a pena <strong>de</strong>rramar lágrimas sobre estas afirmações. Sem dúvida, aquela<br />

sólida i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> Goldoni com o próprio público a que fizemos referência é, neste<br />

caso, rebaixada a uma anuência ao lugar comum mais conservador e reaccionário, como<br />

acontece não poucas vezes – ou mesmo sempre! –, quando o homem mais baixo, que<br />

existe até em Shakespeare, se sobrepõe ao poeta, e as razões da utilida<strong>de</strong> quotidiana e<br />

privada sufocam a rigorosa verda<strong>de</strong> da arte. Goldoni escreve Pamela em 1750 e tem<br />

diante <strong>de</strong> si muito tempo para modificar e actualizar as suas próprias opiniões pessoais.<br />

Mas para além do inútil truque do reconhecimento, para além das afirmações gerais<br />

contidas no aviso ao leitor, examinemos a conclusão racional do que acontece a<br />

Pamela. Como é hábito, a dignida<strong>de</strong> da família, o futuro dos filhos, as conversas sobre<br />

os outros são os temas que emergem do texto e acabam por influenciar a <strong>de</strong>cisão do<br />

30 L’autore a chi legge. In Tutte le opere cit. Vol. III, p. 131.<br />

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Lor<strong>de</strong> Bonfil. Decisão que Goldoni aceita ter sido <strong>de</strong>terminada por um dado, <strong>de</strong> facto,<br />

indiscutível: aquilo que é do senso comum e que ele torna seu, não tanto com base nas<br />

consi<strong>de</strong>rações gerais <strong>de</strong> que falámos, mas como um “dado <strong>de</strong> facto”, absolutamente<br />

palpável e claro, que não se po<strong>de</strong> ignorar ou suplantar sem consequências fatais. Se<br />

quisermos ver bem, esta escolha é mais realista e corajosa que entrincheirar-se atrás <strong>de</strong><br />

uma afirmação genérica <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> tout court: Goldoni não recusa os conceitos<br />

humanitários <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong>, mas afirma realisticamente que na socieda<strong>de</strong> do seu tempo<br />

não é possível – sem um superior heroísmo – traduzi-los na prática: é a similar relação<br />

entre liberda<strong>de</strong> e necessida<strong>de</strong> sobre as quais, dois séculos mais tar<strong>de</strong>, Bertolt Brecht<br />

construirá o seu próprio diagnóstico do condicionamento capitalista. Lor<strong>de</strong> Bonfil trai<br />

os i<strong>de</strong>ais igualitários do iluminismo porque não é um herói; mas a quem o repreen<strong>de</strong>sse<br />

ele po<strong>de</strong>ria facilmente respon<strong>de</strong>r como Galileu respon<strong>de</strong> a Andrea Sarti <strong>de</strong>pois da<br />

abjura 31 .<br />

De facto, como são concretas e corajosamente mesquinhas as razões que<br />

Goldoni contrapõe ao entusiasmo abstracto das gran<strong>de</strong>s palavras <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m iluministas!<br />

“Ouvi, Milord – diz o porta-voz do autor na peça – ouvi aquilo que não teríeis coragem<br />

<strong>de</strong> sofrer: os ultrajes que se farão a vossa esposa. As senhoras nobres não se rebaixarão<br />

a ela; os ignóbeis não serão dignos <strong>de</strong>la. Vereis em breve um sogro <strong>de</strong> mãos calejadas e<br />

uma série <strong>de</strong> familiares vilãos que vos farão corar... os vossos parentes lamentar-se-ão<br />

ironicamente <strong>de</strong> vós... e <strong>de</strong>clarar-se-ão para sempre <strong>de</strong>vedores do seu prejudicado<br />

<strong>de</strong>coro. Nos seus círculos <strong>de</strong> amigos, nos serões, às refeições, nos teatros, falar-se-á <strong>de</strong><br />

vós com pouca estima... ouvi as infalíveis consequências que não se po<strong>de</strong>m evitar e<br />

preparai-vos para sofrer, se ten<strong>de</strong>s coragem para tanto... O gran<strong>de</strong> amor, aquele que<br />

cega e que faz tudo parecer belo, não dura muito tempo...” 32 Lor<strong>de</strong> Bonfil age<br />

razoavelmente, por isso, quando recusa casar com Pamela: o público po<strong>de</strong>rá censurá-lo<br />

por não ser herói, mas não po<strong>de</strong>rá não se sentir cruamente convocado para a causa,<br />

reconhecendo a justiça do quadro traçado.<br />

Mas se Lor<strong>de</strong> Bonfil tem todo o interesse em não casar com uma rapariga <strong>de</strong><br />

classe inferior, também para Pamela é muito melhor não casar com Lor<strong>de</strong> Bonfil. Esta<br />

segunda conclusão não nasce da peça (na qual Goldoni estuda o problema unicamente<br />

do ponto <strong>de</strong> vista do nobre), mas nasce inequivocamente das muitas outras situações das<br />

peças <strong>de</strong> Goldoni on<strong>de</strong> uma pessoa, casada com outra <strong>de</strong> classe superior, se encontra<br />

numa situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> se igualar, talvez até maior que aquele <strong>de</strong> Lor<strong>de</strong> Bonfil.<br />

Rosaura, filha do mercador Pantalone, tem o louvável trabalho, em Moglie saggia<br />

(1752), <strong>de</strong> se salvar do casamento com o frívolo Con<strong>de</strong> Ottavio. E o Pantalone da já<br />

falada Famiglia <strong>de</strong>ll’antiquario terá <strong>de</strong> se arrepen<strong>de</strong>r amargamente <strong>de</strong> ter dado a sua<br />

própria filha Doralice em casamento a um Con<strong>de</strong> Giacinto, que terá <strong>de</strong> pensar em<br />

corrigir as suas finanças. E se Pamela <strong>de</strong>monstra acreditar que a sua felicida<strong>de</strong> seja com<br />

o Lor<strong>de</strong> Bonfil, Mirandolina – como vimos – já apren<strong>de</strong>u que é mais conveniente para<br />

ela, apesar dos nobres com dinheiro, dar a mão ao mais útil Fabrício. As duas classes<br />

31 SARTI – Infeliz a terra que não tem heróis! GALILEU – Errais! Infeliz a terra que precisa <strong>de</strong> heróis.<br />

32 A. II, cena 2 em Tutte le opere... cit., Vol. III, p. 336.<br />

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não estão portanto em tal posição recíproca on<strong>de</strong> seja uma “honra” para um burguês<br />

casar com um nobre: eles não são iguais, porque o mundo moral é diferente, são<br />

diferentes os usos e costumes, mas já não no sentido em que não o eram há um século<br />

atrás. A nobreza per<strong>de</strong>u valor, foi esvaziada <strong>de</strong> conteúdo e até se embruteceu: não é só o<br />

Marquês <strong>de</strong> Floripópoli, que arrasta mais ou menos dignamente a sua própria nobreza<br />

sem substância, mas é também o brusco cinismo do Con<strong>de</strong> Anselmo Terrazzani que na<br />

Famiglia <strong>de</strong>ll’antiquario põe <strong>de</strong> parte qualquer snobismo <strong>de</strong> classe e que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter<br />

dado o próprio filho como marido a Doralice, lamenta não ter outro para po<strong>de</strong>r<br />

“enlamear outra vez a pureza do sangue com mais vinte mil ducados” 33 . Destruído o<br />

privilégio, primeiro na teoria e <strong>de</strong>pois nos factos, ou vice-versa, cumprindo-se em todas<br />

as terras, a nobreza conserva apenas o fascínio do brasão; mas é um fascínio tal que o<br />

burguês prefere sempre o seu sólido pé-<strong>de</strong>-meia do capital e do seu trabalho. E <strong>de</strong> agora<br />

em diante o espírito da classe nobre surgirá ultrapassado, grotesco e ridículo, tanto<br />

quanto diante da <strong>de</strong>cadência da classe aristocrática, e na <strong>de</strong>sautorização da sua função<br />

histórica se <strong>de</strong>senhará o reforço da nova classe burguesa, e também o público, também<br />

já “burguês”, adquirirá uma consciência exacta da própria superiorida<strong>de</strong> moral e<br />

histórica e cessará <strong>de</strong> olhar para a nobreza como uma classe on<strong>de</strong> os privilégios – já<br />

esvaziados <strong>de</strong> conteúdo – valem mais que a indústria ou um comércio próspero.<br />

Nota: Todas as transcrições do Prefácio – Do Autor a Quem Ler e A Estalaja<strong>de</strong>ira são <strong>de</strong> Jorge Silva<br />

Melo, Carlo Goldoni, Peças Escolhidas, volume 1. Cotovia, 2008.<br />

33 A. I, cena 3.<br />

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Roberto Alonge<br />

DA ESTALAGEM DE GOLDONI AO INTERIOR BURGUÊS<br />

Em relação à dramaturgia do século XVII <strong>de</strong> Shakespeare e Molière, Goldoni<br />

propõe-nos uma boa tipologia <strong>de</strong> transição. Peguemos no seu texto mais conhecido (se<br />

não mesmo a sua obra-prima), A Estalaja<strong>de</strong>ira. Como diz claramente o título, a acção<br />

<strong>de</strong>corre numa estalagem, lugar anónimo, quase público, obviamente zona <strong>de</strong> passagem.<br />

A proprietária, Mirandolina, obriga-se a entreter clientes aristocráticos (ainda que mais<br />

ou menos sólidos financeiramente). Des<strong>de</strong> as primeiras cenas que a vemos lidar com o<br />

Marquês <strong>de</strong> Floripopoli e o Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Albafiorita. Mas – como procurei assinalar noutro<br />

lugar 34 – Mirandolina opera <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> complexa <strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> material, <strong>de</strong><br />

atenção ao dinheiro e ao lucro da estalagem. Sabe perfeitamente que os dois a cortejam,<br />

e <strong>de</strong>ixa-os prosseguir, mas mantém-nos sob controle, no interesse do seu negócio,<br />

porque gosta, exactamente, que a sua estalagem seja frequentada por gente <strong>de</strong> classe.<br />

Ela move-se nesta lógica mesmo com o Cavaleiro <strong>de</strong> Ripafratta, ainda que se continue –<br />

por parte da crítica – a repetir a entediante lenda <strong>de</strong> uma Mirandolina rainha das<br />

atenções, das lisonjas, dos namoros, planeados principalmente para enamorar o<br />

Cavaleiro, como <strong>de</strong>speito da sua presunçosa misoginia – esquecendo que o título da<br />

comédia não seja Mirandolina, mas sim A Estalaja<strong>de</strong>ira. No centro da acção não está a<br />

mulher, a fêmea sedutora, mas sim a estalaja<strong>de</strong>ira, uma profissional do comércio, dos<br />

serviços. É preciso sermos cautelosos, mesmo na alegada misoginia do Cavaleiro. As<br />

suas primeiras falas (<strong>de</strong> comentário, tanto ao ouvido do Marquês como ao ouvido do<br />

Con<strong>de</strong>) parecem não a pôr completamente em jogo. De gran<strong>de</strong> interesse é aquilo que diz<br />

ao Marquês em I, 5, quando Mirandolina se recusa a segui-lo para o seu quarto:<br />

MARQUÊS (para o CAVALEIRO) Que dizeis <strong>de</strong>ste recato?<br />

CAVALEIRO (para o MARQUÊS) Aquilo a que vós chamais recato, chamo eu ousadia,<br />

impertinência.<br />

“Ousadia” e “impertinência” porque a estalaja<strong>de</strong>ira se recusa a ir ao quarto do<br />

Marquês. Estamos habituados a pensar no Cavaleiro como um senhor carrancudo,<br />

misógino, mas mesmo assim, fidalgo, não selvagem, não dominado pela jactância<br />

aristocrática. Esquecemo-nos que o Cavaleiro é a conjunção do Marquês e do Con<strong>de</strong>. O<br />

Marquês tem sangue nobre mas já não tem a riqueza; o Con<strong>de</strong> tem a riqueza mas não<br />

tem o sangue nobre (o seu condado é um condado comprado, como se sabe). O<br />

Cavaleiro exprime respeito pelos outros dois, o máximo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, porque tem ao<br />

mesmo tempo tanto uma como a outra dimensão que marcam a sua elite social. A sua<br />

primeira frase é, por isso, uma reacção instintiva <strong>de</strong> classe. Acha insuportável e<br />

inaceitável que o humil<strong>de</strong> burguês não se mostre disponível, isto é servil, para com o<br />

representante da aristocracia. O Cavaleiro consi<strong>de</strong>ra normal, sacrossanta, a pretensão<br />

nobiliárquica do Marquês <strong>de</strong> ter a estalaja<strong>de</strong>ira à sua disposição, no seu quarto. A<br />

34 Cfr. R. Alonge, Approcci goldoniani. Il sistema di Mirandolina, in “Il castello di Elsinore”, 12, 1991,<br />

pp. 11-39.<br />

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atitu<strong>de</strong> não servil <strong>de</strong> Mirandolina é sinalizada como “ousadia”, como “impertinência”,<br />

isto é, como rebeldia social, infracção dos códigos hierárquicos. Há no Cavaleiro uma<br />

presunção social, uma violência <strong>de</strong> classe, que será clara mais à frente, no terceiro acto,<br />

mas que existe a partir <strong>de</strong>ste ponto introdutório da peça. Aquilo que indigna o<br />

Cavaleiro, na atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mirandolina, não é, na verda<strong>de</strong>, o côtè feminino, mas a falta <strong>de</strong><br />

respeito social. Aquilo que o <strong>de</strong>sgosta é o comportamento plebeu (e não tanto o<br />

comportamento feminino) <strong>de</strong> Mirandolina. “Sabida!” diz o Cavaleiro <strong>de</strong>la a propósito<br />

da má-criação com que ela mete ao bolso os brincos que o Con<strong>de</strong> lhe oferece nesta<br />

mesma cena. E ainda: “Linda agu<strong>de</strong>za! Devora-lhe os diamantes e nem ao menos lhe<br />

agra<strong>de</strong>ce”. De novo, aquilo que vemos assinalado é a indisciplina social, a contenção<br />

ru<strong>de</strong>, vulgar, trivial. (...)<br />

Importa-me reforçar que em quase todas as abordagens chama-nos à atenção o<br />

contrário da alegada misoginia do Cavaleiro. Isto tem a ver com o seu monólogo em I,<br />

16 on<strong>de</strong> fala <strong>de</strong> Mirandolina: “Tem não sei quê <strong>de</strong> extraordinário. Mas nem por isso me<br />

<strong>de</strong>ixarei enamorar. Para um nada <strong>de</strong> divertimento, sempre gosto mais <strong>de</strong>sta do que <strong>de</strong><br />

qualquer outra. Mas para os amores? Para per<strong>de</strong>r a liberda<strong>de</strong>? Não há perigo. Tolos,<br />

tolos os que se enamoram das mulheres”. É evi<strong>de</strong>nte que o Cavaleiro faz sexo, tem<br />

relações com mulheres, mas são relações ocasionais, com rameiras ou putas. São<br />

contactos fugazes, não são relações que se prolongam. Pegue-se na oposição entre “para<br />

fazer amor”, estável, durante um certo tempo, um período, e o “para um nada <strong>de</strong><br />

divertimento”, isto é, a prática rápida, com um parceiro sexual ocasional. O Cavaleiro<br />

conhece e pratica as oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ste segundo género, e tem aversão, com uma<br />

<strong>de</strong>terminação obstinada, às do primeiro género. Provavelmente não suporta o jogo<br />

galante do homem que corteja a mulher; parecer-lhe-á uma perda <strong>de</strong> virilida<strong>de</strong>. Em todo<br />

o caso, observe-se como – ao pon<strong>de</strong>rar a hipótese <strong>de</strong> uma relação com Mirandolina –<br />

sinta necessário que Mirandolina esteja disponível. Nem sequer lhe passa minimamente<br />

pela cabeça que Mirandolina possa não correspon<strong>de</strong>r. Como autêntico nobre, pensa<br />

como o Marquês, que “preten<strong>de</strong> correspondência, como tributo à sua nobreza”, segundo<br />

<strong>de</strong>finição do Con<strong>de</strong> em I, 4. O Cavaleiro torna-se escudo do próprio papel social <strong>de</strong><br />

nobre, porque isto o insere numa certa tradição <strong>de</strong> comportamentos. Sabemos bem<br />

como, até à Revolução Francesa, era habitual a aristocracia pilhar e violentar as crianças<br />

do povo. Em II, 13 é significativo o diálogo do Cavaleiro com as comediantes, a<br />

brutalida<strong>de</strong> com que ele as trata: arranca-lhes os topetes da cabeça e expulsa-as. Há um<br />

tom mal intencionado no Cavaleiro, que nos conduz a um gosto secreto <strong>de</strong> se<br />

amesquinhar com prostitutas e mulheres <strong>de</strong> má vida (entre as quais estão, obviamente,<br />

as actrizes, que são sempre um pouco semi-prostitutas, como se sabe). Existe, no fundo,<br />

uma prática <strong>de</strong> frequentação <strong>de</strong>ste universo baixo. O que explica, <strong>de</strong> facto, aquilo que<br />

pelo contrário seria pouco explicável, o facto <strong>de</strong> ele conhecer o jargão (“Também eu sei<br />

a vossa língua” diz, <strong>de</strong> facto, ele às actrizes).<br />

Mas é sobretudo no terceiro acto – já o dissemos – que explo<strong>de</strong> a violência<br />

aristocrática do Cavaleiro, a começar pela gran<strong>de</strong> cena do passar a ferro. Em geral,<br />

sublinha-se o sadismo <strong>de</strong> Mirandolina que queima com o ferro o pobre Cavaleiro. Mas,<br />

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na realida<strong>de</strong>, é o Cavaleiro que procura encurtar as distâncias, que procura agarrar-lhe a<br />

mão, obrigando assim a mulher a uma reacção <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> proporcional. Veja-se a<br />

rubrica: “Quer pegar-lhe na mão e ela queima-o com o ferro”. Depois a virulência é<br />

crescente. Começa por ameaçar Fabrício (“Juro pelos céus que, se esse torna cá, lhe<br />

racho a cabeça”), e passa portanto a ameaçar Mirandolina que procura expulsá-lo do<br />

quarto com a promessa <strong>de</strong> ser ela a ir ter com ele (“Já me vou! Pobre <strong>de</strong> vós se não<br />

for<strong>de</strong>s logo”).<br />

Exactamente para aproveitar melhor este clima geral <strong>de</strong> agressão do Cavaleiro<br />

nos confrontos com Mirandolina, Goldoni inventa uma situação espacial precisa. O<br />

momento culminante (da cena treze até à última cena <strong>de</strong>sse acto) <strong>de</strong>corre – como indica<br />

a rubrica – numa “sala com três portas”. É a primeira (e única vez) que Goldoni nos dá<br />

uma <strong>de</strong>finição <strong>de</strong>ste género. Indica que a sala tem três portas para mostrar que aquelas<br />

portas são (po<strong>de</strong>riam ser...) limites <strong>de</strong> autonomia, fronteiras <strong>de</strong> um território privado<br />

on<strong>de</strong> a intimida<strong>de</strong> do patrão (da patroa) <strong>de</strong>verá ser garantida e protegida: “Ó mofina <strong>de</strong><br />

mim! Estou num terrível empenho! Se o Cavaleiro aqui vem dar comigo, estou fresca.<br />

Maldito, que anda en<strong>de</strong>moninhado. Não queria que o trouxesse aqui o diabo! Quero<br />

fechar esta porta (Fecha a porta por on<strong>de</strong> entrou.)”. Mirandolina tem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

fechar a porta à chave porque não se sente segura. A patroa da estalagem já nem é<br />

patroa, nem está tranquila em sua própria casa. O Cavaleiro bate à porta, pe<strong>de</strong> que a<br />

abra, quer entrar. Recordamo-nos do início da comédia, do espanto com que o Cavaleiro<br />

acolhia a recusa <strong>de</strong> Mirandolina <strong>de</strong> ir ao quarto do Marquês. O jogo da violência<br />

masculina (e nobre) sobre a mulher (socialmente inferior) começa e acaba no espaço<br />

canónico do “quarto”. Mas se aí, no primeiro acto, nos ficava uma violência apenas<br />

esboçada, apontada, aqui, no continuum das cenas a partir <strong>de</strong>ste ponto, Goldoni realiza<br />

uma autêntica encenação da agressão e do assalto que se apresentam, preliminarmente,<br />

como agressão e assalto a um lugar que é antes <strong>de</strong> mais uma proprieda<strong>de</strong>. A estalagem<br />

<strong>de</strong> Mirandolina <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser aquilo que era inicialmente, simples lugar <strong>de</strong> passagem,<br />

zona anónima <strong>de</strong> trânsito, <strong>de</strong> qualquer maneira, um espaço público; e torna-se território<br />

pessoal, antecipação daquilo que será um salão burguês do teatro do século XIX. A<br />

violência sexual sobre a burguesa Mirandolina, <strong>de</strong>ve fazer ruir a casa burguesa <strong>de</strong><br />

Mirandolina (ou melhor, a sua estalagem, que coinci<strong>de</strong> com a sua casa, segundo uma<br />

tipologia que une espaço <strong>de</strong> trabalho e espaço doméstico <strong>de</strong>stinada a perdurar até<br />

meados do século XIX).<br />

Por enquanto, Mirandolina consegue mandar o Cavaleiro para o seu quarto com<br />

a garantia que se disse, mas é evi<strong>de</strong>nte que o ataque foi apenas adiado. As rubricas<br />

engrossam à volta <strong>de</strong>ste bailado dramático das portas. Mirandolina “espreita pelo buraco<br />

da fechadura” para se assegurar que o Cavaleiro se foi embora mesmo, <strong>de</strong>pois vai a<br />

“uma outra porta”, isto é, a uma das outras duas, esperando que lá esteja Fabrício, e por<br />

fim, “chama por outra porta”, ou seja, a uma terceira. A estalagem tornou-se uma<br />

armadilha. Esta “sala com três portas” é um castelo sitiado. De uma porta vem um<br />

perigo, mas das outras talvez se possa comunicar com possíveis aliados e <strong>de</strong>fensores.<br />

Mirandolina examina ansiosamente as outras duas esperando que <strong>de</strong> lá venha auxílio. E<br />

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vem, <strong>de</strong> facto, Fabrício, (da porta oposta e simétrica aquela a que volta a bater o<br />

Cavaleiro) mas nem assim se modifica a situação estratégica. O Cavaleiro, enganado<br />

por Mirandolina, bate com renovada e maior violência à porta, grita e quer que a abram<br />

e, <strong>de</strong>parado com a negação, “ouve-se o Cavaleiro a tentar arrombar a porta”. Começa a<br />

arrombar a porta esperando po<strong>de</strong>r arrombar a patroa. Mirandolina escapa pela porta<br />

por on<strong>de</strong> entrou Fabrício. Desconfiando da porta que fechou à chave, interpõe entre si e<br />

o Cavaleiro, a barreira <strong>de</strong> um fiel servidor, que portanto tomou objectivamente o lugar<br />

<strong>de</strong> Mirandolina e se encontra em primeira linha a resistir ao ataque. Mas a sua força<br />

contratual é ainda menor que a <strong>de</strong> Mirandolina. Ela era a patroa da estalagem, ele é<br />

apenas um servo. “Cruzes! Não quero arruinar-me! Olá, rapazes? Não está aí<br />

ninguém?”. Fabrício não quer “arruinar-se”, isto é, comprometer-se, precipitar-se,<br />

fazendo qualquer <strong>de</strong>spropósito. Porque é um <strong>de</strong>spropósito um servo opor-se a um<br />

nobre. Tomou o lugar <strong>de</strong> Mirandolina, mas acaba por se comportar exactamente como<br />

Mirandolina: explora a terceira porta; em vez <strong>de</strong> ser ele o auxílio, pe<strong>de</strong> ajuda para si. E<br />

da terceira porta, surgem imediatamente novos e <strong>de</strong>cisivos aliados: “O Marquês <strong>de</strong><br />

Forlipopoli e o Con<strong>de</strong> Albafiorita à porta do meio”. A rubrica não é por acaso. Goldoni<br />

<strong>de</strong>senhou um campo <strong>de</strong> batalha perfeito, esquematizou as geometrias do ataque e da<br />

<strong>de</strong>fesa. Dos dois lados, dos dois extremos, em posições opostas e simétricas, nos dois<br />

pontos horizontalmente mais longínquos, a porta a que o Cavaleiro vai batendo e até<br />

agora procura <strong>de</strong>cididamente arrombar, e a porta por on<strong>de</strong> entrou Fabrício e fugiu<br />

Mirandolina: da “porta do meio” acercam-se, como é claro, aqueles que se metem no<br />

meio da disputa, os mediadores, os intermediários. Goldoni insiste na posição dos dois<br />

novos chegados em relação à <strong>de</strong>slocação das portas fulcrais.<br />

CONDE (à porta) Quem é?<br />

MARQUÊS (à porta) Que rumor é este?<br />

FABRÍCIO (baixo, para que o CAVALEIRO não o ouça) Senhores, por favor. É o<br />

senhor Cavaleiro <strong>de</strong> Ripafratta que quer arrombar aquela porta.<br />

CAVALEIRO (fora) Abri, ou <strong>de</strong>ito-a abaixo!<br />

Fabrício consi<strong>de</strong>ra-os seus aliados. O Con<strong>de</strong> assegura-o mas obriga-o a abrir<br />

(“Nada receeis. Estamos nós aqui”). Até porque, encorajado por aquela presença –<br />

observa Guido Davico Bonino no seu cuidadoso comentário à comédia – “Fabrício fala<br />

não como se fosse um servo, mas como um estalaja<strong>de</strong>iro ante litteram que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a<br />

honra da mulher”. Fabrício respon<strong>de</strong>, <strong>de</strong> facto, ao Cavaleiro: “Vossa Senhoria paga o<br />

seu dinheiro para que lhe obe<strong>de</strong>çam nas coisas lícitas e honestas. Mas não po<strong>de</strong><br />

preten<strong>de</strong>r, perdoe-me dizer-lho, que uma mulher honrada...”. O resultado, contudo, é<br />

bem diferente daquele que Fabrício esperava:<br />

CAVALEIRO Que dizes? Que sabes tu? Nada tens a ver com os meus assuntos! Sei eu<br />

as or<strong>de</strong>ns que lhe <strong>de</strong>i!<br />

FABRÍCIO Or<strong>de</strong>naste-lhes que fosse ao vosso quarto!<br />

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CAVALEIRO Vai-te, mesquinho, que te racho a cabeça!<br />

FABRÍCIO Admiro-me <strong>de</strong> vós.<br />

MARQUÊS (para FABRÍCIO) Cala-te!<br />

CONDE (para FABRÍCIO) Vai-te!<br />

CAVALEIRO (para FABRÍCIO) Vai-te daqui!<br />

FABRÍCIO (exaltado) O que eu digo, meus senhores...<br />

MARQUÊS e CONDE (mandando-o embora) Vai-te! Vai-te!<br />

FABRÍCIO (à parte) Ai meu Deus! Que tenho vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> me arruinar! 35 (Vai-se.)<br />

Exactamente quando Fabrício dirige a maior infâmia ao Cavaleiro, o Marquês e<br />

o Con<strong>de</strong>, em vez <strong>de</strong> o apoiarem, solidarizam-se <strong>de</strong> repente com o Cavaleiro. Para além<br />

da rivalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> amor entre os três fidalgos explo<strong>de</strong> uma cruel recomposição <strong>de</strong> classe.<br />

Ainda segundo Davico Bonino, numa análise penetrante: “É significativo o constante<br />

controle <strong>de</strong> Goldoni sobre o comportamento social das suas personagens que, perante a<br />

impetuosida<strong>de</strong> <strong>de</strong>scontrolada e fora das regras <strong>de</strong> um plebeu, os três aristocratas se<br />

reencontrem, por um instante, solidários e o expulsem para fora <strong>de</strong> cena”. O primeiro a<br />

calar Fabrício, o primeiro a alinhar-se automaticamente com o Cavaleiro, é o Marquês, e<br />

não é por acaso: entre dois verda<strong>de</strong>iros nobres a cumplicida<strong>de</strong> é gran<strong>de</strong>. E repare-se que<br />

o Marquês e o Con<strong>de</strong> antecipam o Cavaleiro nesta imposição <strong>de</strong> silêncio ao servo<br />

insolente. Fabrício resiste, por um instante (“O que eu digo, meus senhores...”), mas<br />

diante <strong>de</strong>le constituiu-se uma frente aristocrática. E são o próprio Marquês e o Con<strong>de</strong> a<br />

expulsá-lo. No fim, Fabrício fica novamente sozinho, fraco, <strong>de</strong>sconfiado. Regressa a<br />

linguagem da impotência, <strong>de</strong> quem percebe a própria irremediável inferiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

classe (o mesmo verbo “arruinar” que vimos anteriormente). Mas o sentimento <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sespero total parece <strong>de</strong>spoletar uma explosão <strong>de</strong> energia da vonta<strong>de</strong>, mesmo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />

uma escolha suicida (primeiro dizia “Não quero arruinar-me”, e agora diz, “Tenho<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> me arruinar”).<br />

Resta o facto <strong>de</strong> a sala das três portas ter sido conquistada. Os <strong>de</strong>fensores<br />

uniram-se ao assaltante e agora toda a estalagem está em risco <strong>de</strong> ser violada (a<br />

estalagem e a sua patroa, naturalmente...). Fabrício foi expulso; Mirandolina já tinha<br />

escapado sozinha. É a ruína do sistema – perigoso, problemático, dinamicamente<br />

sempre em equilíbrio – <strong>de</strong> Mirandolina. O Cavaleiro, uma vez enamorado, faz ruir o<br />

difícil equilíbrio que marca a gestão da estalagem. Para além dos fenómenos <strong>de</strong><br />

enamoramento, emergem os dados brutais das relações <strong>de</strong> força, das presunções<br />

nobiliárquicas. O Cavaleiro crê ter direito <strong>de</strong> vergar a humil<strong>de</strong> proprietária às suas<br />

vonta<strong>de</strong>s. Quer ela queira ou não queira, sejam elas boas ou más. Lemos na edição <strong>de</strong><br />

Paperini o monólogo do Cavaleiro em III, 7 (entre parênteses rectos o excerto <strong>de</strong>pois<br />

35 Tradução <strong>de</strong> Pedro Marques.<br />

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suprimido na edição <strong>de</strong>finitiva): “Maldita seja a hora em que comecei a olhar para esta<br />

mulher! Caí-lhe no laço! E já não lhe vejo remédio! Nasça quem nascer, daqui não me<br />

vou sem qualquer conforto para a minha paixão. Compro-o a qualquer preço, mesmo a<br />

custo da minha própria vida, e se Mirandolina, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> me ter enamorado <strong>de</strong> tal<br />

maneira, for cruel comigo, juro pelos céus, serei assertivo com ela”. O Cavaleiro está<br />

<strong>de</strong>terminadíssimo a obter um “qualquer conforto” para a sua paixão. Pronto a pagar<br />

(como o Con<strong>de</strong>, riquíssimo ex-burguês), mas pronto também para a violência carnal,<br />

segundo a tradição aristocrática, como nos revela a frase, apenas implícita, “serei<br />

assertivo com ela”.<br />

O terceiro acto, longe <strong>de</strong> ser o triunfo <strong>de</strong> Mirandolina, assinala antes <strong>de</strong> mais a<br />

hora do xeque-mate, da <strong>de</strong>rrota. A comédia <strong>de</strong>veria exaltar a porta-voz da nova classe<br />

social em ascensão, a da burguesia, mas a violência do erotismo surge e quase esmaga o<br />

lugar geométrico da proprieda<strong>de</strong> burguesa. Aquilo que salva Mirandolina, in extremis, é<br />

que os conquistadores da estalagem discutem uns com os outros. O Cavaleiro não<br />

consegue dar seguimento à sua própria pulsão violenta. Não conseguiu arrombar a<br />

porta, e agora “arromba para satisfazer um <strong>de</strong>sejo a bainha da espada”, mas não chega<br />

a <strong>de</strong>sembainhar a espada. Quando finalmente o faz, <strong>de</strong>scobre que se trata apenas <strong>de</strong><br />

“meia lâmina”. É a lei <strong>de</strong> talião para um violador mal sucedido. Resta-lhe a violência<br />

verbal, o direito que se arroga <strong>de</strong> tutoyer Mirandolina na blasfémia final (“Maldita!<br />

Casai com quem quiseres”).<br />

A humilhação do Cavaleiro não nos <strong>de</strong>ve cegar ao ponto <strong>de</strong> não nos fazer ver a<br />

<strong>de</strong>rrota <strong>de</strong> Mirandolina, a sua cedência. Fabrício esteve sempre presente, como hipótese<br />

matrimonial, claro, mas também como solução <strong>de</strong> recurso, faute <strong>de</strong> mieux. Fabrício é a<br />

sua trincheira na retaguarda. Ainda em III, 3, está <strong>de</strong>scaradamente pronta a elogiar o seu<br />

jogo duplo, quando <strong>de</strong>volve ao Cavaleiro o presente do frasquinho <strong>de</strong> ouro (fazendo crer<br />

a Fabrício que o fez por amor a si): “Também esta é boa! Arranjo crédito com Fabrício<br />

por ter recusado o frasquinho <strong>de</strong> ouro do Cavaleiro! É a isto que se chama saber viver,<br />

saber agir, saber <strong>de</strong> tudo tirar proveito, com boas graças, com <strong>de</strong>coro, com um pouco <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvoltura!” Mirandolina teoriza a bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> “saber <strong>de</strong> tudo tirar proveito”;<br />

confessa aquilo que é, uma aproveitadora. É apenas o pesa<strong>de</strong>lo daquilo que se<br />

<strong>de</strong>senrola na sala <strong>de</strong> três portas que a empurra para os braços <strong>de</strong> Fabrício, que po<strong>de</strong>rá<br />

significar, provavelmente, um redimensionamento da sua <strong>de</strong>sembaraçada prática <strong>de</strong><br />

estalaja<strong>de</strong>ira com nobres e outras personalida<strong>de</strong>s. Embora seja evi<strong>de</strong>nte que é<br />

Mirandolina sempre a manter o fio do discurso. Fabrício, perante a <strong>de</strong>cisão da mulher,<br />

procura ganhar tempo, reflectir (“A mão? Devagar, senhora”), mas inutilmente:<br />

MIRANDOLINA (...) Este é o meu marido...<br />

FABRÍCIO Devagar, senhora...<br />

MIRANDOLINA Qual <strong>de</strong>vagar! O que é? Qual é a dificulda<strong>de</strong>? Vá! A mão!<br />

FABRÍCIO Gostaria <strong>de</strong> primeiro fazer o nosso pacto.<br />

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48


MMIRANDOLINA Que pacto? Este é o pacto. Ou me dás a mão ou voltas para a tua<br />

terra. 36<br />

Estamos diante <strong>de</strong> um implacável show down, com uma <strong>de</strong>liciosa inversão que<br />

reforça o lado másculo <strong>de</strong> Mirandolina, que se encontra a pedir a mão a Fabrício,<br />

tratando-o – numa outra repentina e brusca variação – por tu. É evi<strong>de</strong>nte uma evi<strong>de</strong>nte<br />

alusão às origens campesinas <strong>de</strong> Fabrício, que passou <strong>de</strong> vilão a servidor na cida<strong>de</strong>, e<br />

agora está próximo a dar um segundo salto <strong>de</strong> classe, <strong>de</strong> servidor a patrão da estalagem.<br />

A não-aceitação do ultimato imposto por Mirandolina porá em causa a sua legitimida<strong>de</strong><br />

como servidor, reabrirá a maldição <strong>de</strong> um regresso à terra, uma viagem para trás, na<br />

direcção da “terra” <strong>de</strong> nascimento.<br />

A comédia termina assim. De forma pungente, grosseira. O resto é conversa. O<br />

véu <strong>de</strong> conversa e amabilida<strong>de</strong>s fingidas que Goldoni é obrigado a aplicar sempre nos<br />

seus textos. Para escon<strong>de</strong>r a camada dura, cruel, que está muitas vezes por baixo da sua<br />

escrita. Resta-nos o facto <strong>de</strong> que Goldoni não consegue, ainda assim, dar-nos aquele<br />

género teatral novo, intermédio entre o mo<strong>de</strong>lo da commedia e o da tragedia, que se<br />

fixará finalmente no termo dramma. Por isto, convém olhar para Di<strong>de</strong>rot, ele, sim,<br />

verda<strong>de</strong>iro e autêntico inventor <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo dramatúrgico mo<strong>de</strong>rno, fundado na<br />

absoluta centralida<strong>de</strong> da sala <strong>de</strong> estar da casa burguesa, como lugar cénico privilegiado.<br />

De Goldoni a Di<strong>de</strong>rot, <strong>de</strong> A estalaja<strong>de</strong>ira a O filho natural, fica marcado um<br />

movimento fundamental <strong>de</strong> cedência do exterior para o interior, a singularização <strong>de</strong> um<br />

espaço fechado que exalta a separação institucional entre privado e público, o afirmar e<br />

interiorizar <strong>de</strong> temáticas privadas da família burguesa. Em Goldoni, o ambiente preserva<br />

ainda qualquer coisa aberta, ou talvez in<strong>de</strong>terminada, genérica. Os Enamorados são<br />

colocados “numa sala comum, em casa <strong>de</strong> Fabrício”; o primeiro acto <strong>de</strong> A Casa Nova é<br />

situado numa “sala <strong>de</strong> visitas”. Mas, mais frequentemente, as indicações – confiadas a<br />

rubricas muito vagas – são muitas vezes incerta, limitam-se a assinalar uma qualquer<br />

“sala em casa <strong>de</strong>” uma ou outra personagem. Em Os Rústicos há uma i<strong>de</strong>ia<br />

extraordinária e intensa: dois dos rústicos, Lunardo e Simon, confessam<br />

reciprocamente, em II, 5, – para além <strong>de</strong> uma frase misógina – o culto <strong>de</strong> uma<br />

erotização conjugal na redoma do interior doméstico, na penumbra da intimida<strong>de</strong><br />

familiar.<br />

LUNARDO Quem diz dona, diz dano. As coisas são como são.<br />

SIMON (rindo e abraçando LUNARDO) Está muito bem dito.<br />

LUNARDO Contudo, para dizer a verda<strong>de</strong>, não me <strong>de</strong>sagradam.<br />

SIMON Nem a mim, na verda<strong>de</strong>.<br />

LUNARDO Mas em casa.<br />

SIMON E sozinhas.<br />

36 Tradução <strong>de</strong> Pedro Marques.<br />

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LUNARDO E <strong>de</strong> portas trancadas.<br />

SIMON E varandas barricadas.<br />

LUNARDO E mantê-las pianinho.<br />

SIMON E pô-las a fazer à nossa maneira.<br />

LUNARDO E quem for homem é assim que faz. (Sai.)<br />

SIMON E quem não faz assim, não é homem (Sai.) 37<br />

Por um instante, abre-se uma passagem na cena interdita que se concretiza num<br />

cone <strong>de</strong> sombra <strong>de</strong> um quotidiano burguês protegido, reprimido, mas exactamente por<br />

causa disto mais vivo, mais estimulante. Mas é apenas por um instante. A comédia não<br />

segue neste sentido, não nos mostra uma falha no interior burguês, transforma-se,<br />

contudo, na <strong>de</strong>scrição da cida<strong>de</strong> e do social vividos pelos rústicos como uma invasão, e<br />

por isso coisa para experimentar com medo, com horror, como se se tratasse <strong>de</strong> uma<br />

obsessão persecutória. Muito diferente <strong>de</strong> Di<strong>de</strong>rot que fala sempre, exactamente, <strong>de</strong><br />

“salon”, isto é, “sala”, (Em O filho natural) ou <strong>de</strong> “salle <strong>de</strong> compagnie”, isto é, “sala <strong>de</strong><br />

estar”, (em O pai <strong>de</strong> família) e que, sobretudo, engrossa <strong>de</strong> particularida<strong>de</strong>s as<br />

<strong>de</strong>finições <strong>de</strong>ste espaço cénico peculiar (pensamos na minuciosa precisão da rubrica <strong>de</strong><br />

abertura <strong>de</strong> O pai natural que nos mostra uma atenta <strong>de</strong>slocação em profundida<strong>de</strong> dos<br />

actores, aos quais são finalmente assinalados os seus movimentos específicos) 38 . Mas<br />

tudo isto não chega para recuperar minimamente a modéstia da escrita dos textos <strong>de</strong><br />

Di<strong>de</strong>rot. Os seus novos espaços cénicos, <strong>de</strong>finidos e articulados revolucionariamente,<br />

não possuem a ressonância que evi<strong>de</strong>nciámos nos espaços formalmente vazios,<br />

aparentemente sem qualida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> A Estalaja<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Goldoni.<br />

Nota: Todas as transcrições <strong>de</strong> A Estalaja<strong>de</strong>ira foram traduzidas por Jorge Silva Melo, Carlo Goldoni,<br />

Peças Escolhidas, volume 1. Cotovia, 2008, exceto quando indicação em contrário.<br />

37 Tradução <strong>de</strong> José Peixoto, Carlo Goldoni, Peças Escolhidas, volume 2. Cotovia, 2009.<br />

38 Cfr. Oeuvres complètes <strong>de</strong> Di<strong>de</strong>rot, Belles-Lettres, Iv, Théâtre, critique dramatique, par J. Assèzat,<br />

Garnier, Paris 1875, tome septième, rispettivamente p. 22 e p. 187.<br />

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Roberto Alonge<br />

DA COMEDIA DELL’ARTE AO TEATRO BURGUÊS<br />

Primeiro acto, cena cinco. É a entrada da protagonista. Mirandolina absorta no<br />

seu papel profissional <strong>de</strong> estalaja<strong>de</strong>ira. Cortês, serviçal, ela sabe que o cliente é o cliente<br />

(“Saúdo Vossas Senhorias. Qual <strong>de</strong> vós me enviou a chamar?”), mas também<br />

minuciosa, obstinada. A estalagem tem regras. O cliente é o cliente, mas o cliente não<br />

tem sempre razão, sobretudo se ele acha que a estalagem é um bor<strong>de</strong>l. Ao Marquês<br />

contrapõe secamente “E on<strong>de</strong> me quer Vossa Senhoria? (...) No vosso quarto? Se nele<br />

necessitais <strong>de</strong> alguma coisa, po<strong>de</strong> ir um dos moços aten<strong>de</strong>r-vos”. Mirandolina está<br />

fechada, <strong>de</strong>cidida, muito convencida da sua moralida<strong>de</strong>. Mas vejamos o que suce<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>pois.<br />

Se o Marquês lhe quer falar no seu quarto, o Con<strong>de</strong> está disposto a falar em<br />

público (“Querida Mirandolina, falar-vos-ei publicamente. Nem quero dar-vos o<br />

incómodo <strong>de</strong> ir<strong>de</strong>s ao meu quarto. Ve<strong>de</strong>s estes brincos! Gostais?”). Em público,<br />

acontece uma cena obscena, <strong>de</strong>sagradável. Uma espécie <strong>de</strong> venda do encanto. O Con<strong>de</strong><br />

mostra os brincos, que são <strong>de</strong> diamantes, claro (“São <strong>de</strong> brilhantes, sabíeis?”).<br />

Mirandolina é <strong>de</strong>sembaraçada (“Bem os conheço. Também me entendo em<br />

brilhantes.”). O Con<strong>de</strong> oferece-lhos publicamente, à frente do Marquês e do Cavaleiro.<br />

O Con<strong>de</strong> permite-se comprar a estalaja<strong>de</strong>ira à frente <strong>de</strong> todos, como se fosse uma<br />

meretriz pública. O Marquês tem algumas razões para protestar (mas só algumas,<br />

porque na realida<strong>de</strong> o seu problema é a inveja <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r fazer o mesmo) por esta<br />

absoluta falta <strong>de</strong> maneiras: “Na verda<strong>de</strong>, senhor Con<strong>de</strong>, que ten<strong>de</strong>s feito uma acção<br />

sumamente heróica! Presentear uma mulher diante <strong>de</strong> toda a gente! Isso é que é<br />

vaida<strong>de</strong>!”. O presente galante, o presente <strong>de</strong> amor, pressupõe discrição, a <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za do<br />

contacto, a intimida<strong>de</strong>. O Con<strong>de</strong>, como ex-burguês novo-rico, homem vulgar, pensa que<br />

é apenas uma questão <strong>de</strong> preço, que é preciso pagar mais.<br />

Na edição original <strong>de</strong> Paperini, <strong>de</strong> 1753 (que foi, em boa hora, realçada pela<br />

antologia <strong>de</strong> Goldini <strong>de</strong> Marzia Peri, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> transcrevo), existem, a propósito da cena 4<br />

do I acto, um par <strong>de</strong> variantes <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> contraste: “Não teria gasto mais <strong>de</strong> mil escudos<br />

em poucos meses, se não soubesse que são bem empregados”. Esta frase <strong>de</strong>saparece<br />

completamente, por razões morais, na edição Pasquali, supervisionada por Goldoni.<br />

Igualmente brutal e apressado, na Paperini, o segundo excerto: “Eu estava habituado a,<br />

com poucas moedas, bater a muitas portas. Gastei tanto com elas e não lhes pu<strong>de</strong> sequer<br />

tocar com um <strong>de</strong>do.”. Que na versão <strong>de</strong> Pasquali passa a: “Eu sempre me acostumei a<br />

lidar com mulheres; conheço-lhes os <strong>de</strong>feitos e as fraquezas <strong>de</strong>las. Mesmo assim, apesar<br />

dos meus longos galanteios e das muitas <strong>de</strong>spesas que por elas fiz, não lhes consegui<br />

tocar nem com um <strong>de</strong>do”. Mas, não menos sintomática – para voltar à cena 5 do I acto,<br />

que estávamos a analisar – é a resposta <strong>de</strong> Mirandolina, que tem apenas uma brevíssima<br />

hesitação (puramente fingida, po<strong>de</strong>remos argumentar):<br />

CONDE (...) Peço-vos que os aceiteis por amor <strong>de</strong> mim.<br />

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CAVALEIRO (à parte) Tolo!<br />

MIRANDOLINA Não, na verda<strong>de</strong>, senhor...<br />

CONDE Se os não aceitais, muito me <strong>de</strong>sgostais.<br />

MIRANDOLINA Não sei que diga... gosto <strong>de</strong> fazer amigos dos clientes da minha<br />

estalagem. Para não <strong>de</strong>sgostar ao senhor Con<strong>de</strong>, aceito.<br />

CAVALEIRO (à parte) Sabida!<br />

CONDE (para o CAVALEIRO) Que dizeis daquela agu<strong>de</strong>za <strong>de</strong> espírito?<br />

CAVALEIRO (para o CONDE) Linda agu<strong>de</strong>za! Devora-lhe os diamantes e nem ao<br />

menos lhe agra<strong>de</strong>ce!<br />

O objectivo <strong>de</strong> Mirandolina é este: o cálculo, a utilida<strong>de</strong> económica, o dinheiro.<br />

Mas por trás existe também a altivez <strong>de</strong> uma nova classe social. O interesse, o dinheiro,<br />

mas não a todo o custo. Não o dinheiro que vem da prostituição. O segredo <strong>de</strong><br />

Mirandolina está todo aqui: persegue o mito do dinheiro, mas aceita não passar os<br />

limites do abismo; atenta, não se <strong>de</strong>ixa cair nunca na voragem. É atrevida, cínica, quase<br />

obscena, no uso instrumental que faz da beleza, mas não ce<strong>de</strong>. Ven<strong>de</strong>-se<br />

psicologicamente, mas não se ven<strong>de</strong> fisicamente. Deixa-se comprar publicamente, mas<br />

apenas em sentido metafórico. Usa o seu corpo para manter os clientes ligados ao seu<br />

sítio. O Marquês está há três meses na estalagem porque espera, mais cedo ou mais<br />

tar<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>r levá-la para a cama 39 . Não sabemos se o Con<strong>de</strong> está ali há tanto tempo (se<br />

bem que a primeira variação da Paperini a que fizemos referência nos dê a enten<strong>de</strong>r que<br />

também está na estalagem há alguns meses). Seja como for, é inequívoco que o Con<strong>de</strong> a<br />

presenteia amiú<strong>de</strong>. Em I, 5 são brincos; em I, 22 é um “pequeno anel <strong>de</strong> brilhantes”.<br />

Mesmo em I, 22, Mirandolina aceita com uma total indiferença, para além do (rápido)<br />

cerimonial do costume (“Não o aceito <strong>de</strong> maneira nenhuma / Ai, <strong>de</strong>scortesias não, que<br />

nunca as faço. Para vos não <strong>de</strong>sgostar, fico com ele”).<br />

Percebe-se que entre o Marquês e o Con<strong>de</strong>, Mirandolina prefere o Con<strong>de</strong>. Di-lo<br />

claramente. Dissocia-se do Marquês mesmo quando este está do seu lado, quando<br />

repreen<strong>de</strong> o Con<strong>de</strong> pela vulgarida<strong>de</strong> daquela oferta pública dos brincos. O àparte <strong>de</strong><br />

Mirandolina em relação à frase do Marquês é, <strong>de</strong> facto: “O avarento! Nada para mim há<br />

<strong>de</strong> ter!” (o que significa “Que avareza! Nenhum dinheiro há <strong>de</strong> ter para mim”). O<br />

Marquês põe em causa o estilo, isto é, o mau gosto do Con<strong>de</strong>, mas Mirandolina põe em<br />

causa o dinheiro, que o Marquês não tem, nem nada há <strong>de</strong> ter. Mirandolina é muito<br />

atenta à linguagem interpessoal, muito polida, mas quando fala sozinha não usa epítetos<br />

sarcásticos e vulgares. O pobre Marquês – nobre mas pobre – torna-se o “excelentíssimo<br />

senhor Marquês da Sovinice”. Mas <strong>de</strong> vez em quando, a insolência aflora até nos<br />

diálogos <strong>de</strong> voz viva. Referindo-se às pessoas como o Con<strong>de</strong>, o Marquês diz que<br />

“julgam que uma dama como vós se lhes há-<strong>de</strong> ren<strong>de</strong>r à força <strong>de</strong> presentes”, e<br />

39 “Há três meses que o sabes”, diz o Marquês a Fabrício, em I, 2.<br />

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Mirandolina, respon<strong>de</strong>ndo, fulmina: “Os presentes não fazem mal à barriga”. E ainda,<br />

ao pobre Marquês, que se exprime com frases feitas (“Mas dispon<strong>de</strong> <strong>de</strong> mim até on<strong>de</strong> eu<br />

pu<strong>de</strong>r”), Mirandolina respon<strong>de</strong>, traduzindo em sentido literal: “Era preciso que eu<br />

soubesse até on<strong>de</strong> po<strong>de</strong> Vossa Senhoria”. A brutalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mirandolina nas disputas<br />

com o Marquês é total, isto é, radical. Similar ao <strong>de</strong>sprezo que os burgueses têm pelos<br />

po<strong>de</strong>rosos que gastaram todo o seu dinheiro. Para um leitor mo<strong>de</strong>rno, o Marquês é<br />

ridículo, patético, mas não maldoso, enquanto que o Con<strong>de</strong> é sem dúvida uma figura<br />

mais sinistra (Baratto, por exemplo, <strong>de</strong>fine-o como “grosseiro e corrupto” 40 ). Mas para<br />

Mirandolina não há dúvidas nenhumas <strong>de</strong> que o Con<strong>de</strong> é melhor do que o Marquês. A<br />

sua medida <strong>de</strong> juízo e valor advém unicamente do dinheiro (mesmo que ela use uma<br />

metáfora culinária: “Gosto do fumo, mas do assado não sei o que fazer”). No final do<br />

primeiro acto, no monólogo, é ainda mais explícita: “Com todas as suas riquezas, com<br />

todos os seus presentes, que nunca <strong>de</strong>le do Con<strong>de</strong> me enamore! E muito menos o<br />

conseguirá o Marquês com a sua ridícula protecção. Se houvesse que ligar-me a um<br />

<strong>de</strong>stes dois, certamente o faria com aquele que mais <strong>de</strong>spen<strong>de</strong>”.<br />

Mas andámos <strong>de</strong>masiado para a frente. Voltemos à cena fulcral em I, 5. O Con<strong>de</strong><br />

exibe os brincos, esclarecendo bem, num tom didascálico, que se tratam <strong>de</strong> brilhantes.<br />

Mirandolina – já o dissemos – não o <strong>de</strong>ixa sem resposta: “Bem os conheço. Também<br />

me entendo em brilhantes.”. Há um orgulho <strong>de</strong> classe em Mirandolina. O Con<strong>de</strong> po<strong>de</strong><br />

pensar que a popular não viu nunca diamantes e tem medo – como revela a sua pergunta<br />

– que ela não saiba apreciar o valor do seu presente (“São <strong>de</strong> brilhantes, sabíeis?”), mas<br />

Mirandolina não é uma popular normal, é mesmo uma comerciante, uma representante<br />

do comércio burguês. A burguesia conhece o valor do dinheiro e o valor das jóias.<br />

Porque é para o ouro e para as jóias que olha, que faz pontaria. O seu objectivo <strong>de</strong> classe<br />

em ascensão é esse mesmo. Há um <strong>de</strong>sejo burguês <strong>de</strong> ascensão social que a predispõe,<br />

rapidamente, a perceber e apreciar o valor das coisas. Será o nobre <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte e sem<br />

dinheiro – sem dinheiro <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, e que por isso, qualquer um diz 41 que nunca viu<br />

ouro e jóias – a não compreen<strong>de</strong>r nada (o frasquinho <strong>de</strong> ouro adquirido pelo Cavaleiro<br />

para Mirandolina e que o Marquês não conseguirá reconhecer como tal e o trocará por<br />

pechisbeque, ouropel).<br />

Enfim, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras frases, Mirandolina age <strong>de</strong> acordo com um complexo<br />

padrão <strong>de</strong> interesse material, <strong>de</strong> atenção ao dinheiro e ao lucro da estalagem. Não temos<br />

razões para pensar que não seja também assim na relação com o Cavaleiro. Continua a<br />

repetir-se a lenda da crítica <strong>de</strong> uma Mirandolina rainha da cortesia, das lisonjas, dos<br />

namoros, com o plano <strong>de</strong> enamorar o Cavaleiro, como <strong>de</strong>speito pela sua presunçosa<br />

misoginia. Se fosse assim, abrir-se-ia uma dicotomia problemática: <strong>de</strong> um lado,<br />

Mirandolina que impõe às relações com os seus clientes (Con<strong>de</strong> e Marquês) uma base<br />

unicamente <strong>de</strong> cálculo económico; e do outro lado uma Mirandolina que esquece o seu<br />

próprio papel profissional <strong>de</strong> gerente <strong>de</strong> uma estalagem, para se mostrar exclusivamente<br />

40 M. Baratto, “”Mondo e “teatro” nella poetica <strong>de</strong>l Goldoni”, in Tre Studi sul teatro (Ruzante, Aretino,<br />

Goldoni), Neri Pozza, Venezia 1964, p. 206 (o ensaio sobre Goldoni <strong>de</strong> Baratto remonta a 1957).<br />

41 Diz, <strong>de</strong> facto o Marquês: “(...) Quem não pratique com o ouro havia <strong>de</strong> se enganar. Porém, eu logo o<br />

conheço”.<br />

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na pele <strong>de</strong> mulher sedutora. A nós, parece-nos mais simples seguir o fio condutor do<br />

texto, verificar como, falando cronologicamente, a mulher aparece apenas numa<br />

segunda ocasião, e como inicialmente domina unicamente a estalaja<strong>de</strong>ira, a<br />

comerciante da arte da estalagem. (...)<br />

É sempre uma distorção nossa, <strong>de</strong> leitores mo<strong>de</strong>rnos, consi<strong>de</strong>rar o Marquês uma<br />

personagem ridícula. O Cavaleiro leva-o a sério, como verda<strong>de</strong>iro nobre, ainda que<br />

indigente. O Cavaleiro tem tendência para se solidarizar mais com o Marquês do que<br />

com o Con<strong>de</strong> (como adverte o Marquês com razão que não per<strong>de</strong> uma ocasião para se<br />

comprazer: “Pelo menos entre mim e vós po<strong>de</strong>mos praticar com confiança. Aquela<br />

besta do Con<strong>de</strong> é que não é digno <strong>de</strong> entrar nas nossas conversas”). Mas também o<br />

Cavaleiro respon<strong>de</strong>rá da mesma maneira (lembre-se que ele se dirige apenas ao<br />

Marquês e não ao Con<strong>de</strong> em III, 17 e III, 18, o que po<strong>de</strong> parecer cómico, mas que não é<br />

apenas isso). (...)<br />

Atentemos por outro lado à articulação do discurso quando finalmente, em I, 5,<br />

começa o diálogo directo entre o Cavaleiro e Mirandolina: “Ei, patroa! (Com <strong>de</strong>sprezo.)<br />

Não me agrada a roupa <strong>de</strong> cama que me mandastes. E ou me venha outra melhor, ou eu<br />

me irei”. O Cavaleiro trata-a pelo seu nome profissional (“patroa”). A relação não é<br />

entre homem (misógino ou não) e mulher. A relação é entre cliente da estalagem e<br />

patroa da estalagem. A querelle tem a ver com a qualida<strong>de</strong> da roupa da cama. O<br />

Cavaleiro apanha a estalaja<strong>de</strong>ira numa faute professionelle. Nem po<strong>de</strong>mos dizer que o<br />

Cavaleiro exagere, que esteja <strong>de</strong> má fé. Quando em I, 15, Mirandolina chega com os<br />

lençóis “<strong>de</strong> cambraia”, isto é, <strong>de</strong> linho muito fino, o Cavaleiro não tem dificulda<strong>de</strong> em<br />

reconhecer-lhe o valor: “Tanto não pretendia eu. Bastava-me qualquer coisa melhor do<br />

que aquilo que me <strong>de</strong>stes”. O Cavaleiro po<strong>de</strong>rá ser vaidoso mas é leal, correcto. Em I, 5,<br />

não faz provocações. Protesta porque a qualida<strong>de</strong> da roupa da cama <strong>de</strong>ixa a <strong>de</strong>sejar. Mas<br />

eis que – e quase que não nos apercebíamos – nos cai <strong>de</strong> mão beijada uma preciosa<br />

indicação do método <strong>de</strong> Mirandolina. A nossa estalaja<strong>de</strong>ira é bela, é boa, mas é<br />

sobretudo uma calculadora atenta, uma economista habilíssima, que sabe como<br />

aumentar o lucro da estalagem. Nas suas arcas tem “lençóis <strong>de</strong> cambraia” e “roupa da<br />

Flandres” para serviço das mesas, mas só os usa quando é obrigada, pela queixa <strong>de</strong> um<br />

qualquer cliente. Entre o luxo e a miséria há uma terceira via, como sugere o Cavaleiro<br />

em I, 15, mas Mirandolina, se pu<strong>de</strong>r, rebaixa-se. Na routine habitual não se coíbe <strong>de</strong><br />

oferecer roupa <strong>de</strong> cama <strong>de</strong> terceira ou quarta classe. O método <strong>de</strong> Mirandolina consiste<br />

exactamente nisto, especula dissimuladamente sobre a sua beleza e o seu charme para<br />

fazer com que os clientes proeminentes aceitem um tratamento <strong>de</strong> acolhimento mo<strong>de</strong>sto,<br />

abaixo do preço pago. E não é só no que diz respeito à roupa da cama; passa-se o<br />

mesmo com a alimentação. Para o Cavaleiro po<strong>de</strong>rão ser confusões pontuais, mas tratase<br />

ainda <strong>de</strong> uma excepção que confirma a regra espartana. Quando se sentem colocados<br />

em segundo plano em relação ao Cavaleiro, tanto o Con<strong>de</strong> como o Marquês dão-nos<br />

informação crua sobre o tratamento quotidiano da estalagem. “Para ele, roupa especial”,<br />

protesta o Con<strong>de</strong>, dando-nos a enten<strong>de</strong>r que no seu caso a roupa não é particularmente<br />

“especial”. E o Marquês: “Como? Para o Cavaleiro roupa <strong>de</strong> mesa lavada, e para mim<br />

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guardanapos cheios <strong>de</strong> buracos? Para ele se fazem mimosos guisados e para mim carne<br />

dura <strong>de</strong> vaca e sopa <strong>de</strong> arroz com bispo? Sim, é verda<strong>de</strong>, isto é um opróbrio à minha<br />

nobreza, à minha condição” (em parênteses rectos o excerto da edição Pasquali, que<br />

cobre o cinismo mercantil da protagonista). Com estas frases do Con<strong>de</strong> e do Marquês<br />

estamos diante da prova que Mirandolina engana clientes, avança com as suas graças<br />

para po<strong>de</strong>r poupar a roupa <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> (ou apenas a que é bem feita). Aliás, é ainda<br />

mais bem sucedida; ven<strong>de</strong> a ilusão da sua beleza. Lembremos o comentário do<br />

Cavaleiro: “Claro que, se a Mirandolina fizer sempre assim, lhe não faltarão forasteiros.<br />

Bela roupa, asseada mesa”. E a obra-prima <strong>de</strong> Mirandolina é conseguir ter “forasteiros”,<br />

oferecendo-lhes apenas mesa e roupa <strong>de</strong> cama <strong>de</strong> nível normal e até <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte, como<br />

nos é revelado pelo Con<strong>de</strong> e pelo Marquês. É muito surpreen<strong>de</strong>nte que a crítica não se<br />

tenha apercebido <strong>de</strong> tudo isto, sobretudo porque não se poupou ao trabalho <strong>de</strong> fazer<br />

tantas pequenas observações que são, vistas uma a uma, extremamente pontuais. Manlio<br />

Dazzi sublinha, por exemplo, como verda<strong>de</strong> dolorosa, que “é ela que engoma a roupa da<br />

cama, e é assim que se apercebe do seu estado e trata da apresentação”. 42 É exactamente<br />

por causa disto, então, que ela <strong>de</strong>veria ter visto que os guardanapos do Marquês estavam<br />

“cheios <strong>de</strong> buracos”...<br />

Mas voltemos ao ponto a que <strong>de</strong>vemos pren<strong>de</strong>r o primeiro anel <strong>de</strong>sta ca<strong>de</strong>ia<br />

interpretativa. O Cavaleiro ataca Mirandolina num plano profissional, como gestora da<br />

estalagem (e não como mulher, com o ódio <strong>de</strong> um misógino). Mas Mirandolina<br />

respon<strong>de</strong>-lhe no mesmo nível:<br />

MIRANDOLINA Haveis <strong>de</strong> ter outra melhor, senhor. Hão-<strong>de</strong> vo-la levar. Mas creio que<br />

podíeis pedir com mais agrado.<br />

CAVALEIRO On<strong>de</strong> gasto o meu dinheiro, não tenho <strong>de</strong> me gastar em cerimónias.<br />

CONDE (para MIRANDOLINA) Ten<strong>de</strong> pena <strong>de</strong>le. Das mulheres é inimigo total!<br />

CAVALEIRO Ei, não preciso que ela tenha pena <strong>de</strong> mim!<br />

MIRANDOLINA Pobres mulheres! Que coisa fizeram elas? Que motivo há <strong>de</strong> tanta<br />

cruelda<strong>de</strong> para connosco, senhor Cavaleiro?<br />

CAVALEIRO Basta! Escusemos as confianças! Mandai-me a roupa <strong>de</strong> cama. Mandarei<br />

buscá-la pelo meu moço.<br />

A disputa é apenas económico-material. O Con<strong>de</strong> é que introduz a nota<br />

mistificadora do tema da misoginia. O Cavaleiro limita-se a fazer apelo aos valores<br />

burgueses do comércio (dinheiro, sem cerimónias). Fazendo-o assim, mostra o método<br />

<strong>de</strong> Mirandolina. Recusa qualquer confiança, porque percebeu que Mirandolina dá<br />

confiança para não ter <strong>de</strong> dar mais conforto no albergue. Para já, não há motivos para<br />

exaltar o tema da misoginia do Cavaleiro. Ainda mais à frente, em I, 12, quando<br />

42 M. Dazzi, “Nota <strong>de</strong>l curatore”, in C. Goldoni, Commedie, a cura di M. Dazzi, Laterza, Bari 1961, p.<br />

105.<br />

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epreen<strong>de</strong> o Marquês: “Um fidalgo da vossa estirpe enamorado <strong>de</strong> uma estalaja<strong>de</strong>ira!<br />

Um homem sábio como vós sois, andar atrás <strong>de</strong> uma mulher!”. Começa a surgir o<br />

motivo anti-feminista, mas a primeira consi<strong>de</strong>ração que o Cavaleiro faz é <strong>de</strong> carácter<br />

social, lembra a inconveniência <strong>de</strong> uma ligação entre um marquês e uma mera<br />

estalaja<strong>de</strong>ira.<br />

Por outro lado, a confirmação <strong>de</strong> que as coisas estão nestes termos põe-na<br />

interessada. Apesar da insinuação do Con<strong>de</strong> sobre a misoginia do Cavaleiro, no início,<br />

Mirandolina ainda está bem longe <strong>de</strong> se <strong>de</strong>cidir a agir com base numa lógica <strong>de</strong> <strong>de</strong>speito<br />

feminino. Longe <strong>de</strong> pensar, nesta altura, no seu projecto <strong>de</strong> fazer o Cavaleiro apaixonarse<br />

por causa do seu <strong>de</strong>speito, Mirandolina está mais <strong>de</strong>dicada a uma solução diferente,<br />

muito mais coerente com o complexo quadro <strong>de</strong> referências económicas sobre o qual<br />

aqui insistimos. Aqui ficam as suas reflexões assim que o Cavaleiro se afasta:<br />

MIRANDOLINA Que homem selvático! Igual, nunca vi outro!<br />

CONDE Querida Mirandolina, nem todos reconhecem as vossas virtu<strong>de</strong>s.<br />

MIRANDOLINA Para dizer a verda<strong>de</strong>, fiquei tão ferida com o seu mau proce<strong>de</strong>r que<br />

agora mesmo o vou pôr na rua.<br />

MARQUÊS Sim! E se acaso replicar, dizei-mo a mim, que prontamente o farei partir.<br />

Fazei uso da minha protecção.<br />

CONDE E o dinheiro que per<strong>de</strong>r<strong>de</strong>s, eu provi<strong>de</strong>nciarei e tudo pagarei. (Para<br />

MIRANDOLINA.) Ouvi-me, mandai embora também o Marquês, que eu vos pagarei.<br />

MIRANDOLINA Obrigada, meus senhores, obrigada. Tenho coragem que basta para<br />

dizer a um forasteiro que o não quero. E quanto aos lucros, a minha estalagem nunca<br />

tem um quarto vago.<br />

A frustração – como é evi<strong>de</strong>nte – tem a ver com Mirandolina enquanto<br />

estalaja<strong>de</strong>ira, naquilo que diz respeito à sua esfera profissional, e não parece afectá-la,<br />

pelo menos por agora, enquanto mulher. A sua reacção está no mesmo comprimento <strong>de</strong><br />

onda do ataque lançado pelo Cavaleiro: ao invés <strong>de</strong> fantasiar imediatamente seduzi-lo,<br />

aposta em eliminar a causa (económica) da sua humilhação, riscando o Cavaleiro como<br />

cliente da estalagem. As intervenções do Marquês e do Con<strong>de</strong> não fazem mais do que<br />

exacerbar ainda mais a humilhação – exclusivamente profissional e económica,<br />

repetimos – <strong>de</strong> Mirandolina, que respon<strong>de</strong> exactamente com um duplo orgulho: <strong>de</strong> uma<br />

gestora <strong>de</strong> estalagem que é muito capaz <strong>de</strong> caçar sozinha um cliente insolente; e <strong>de</strong> uma<br />

estalagem apreciada e requisitada, que por isso não tem medo <strong>de</strong> ter quartos livres.<br />

Sobretudo a frase do Con<strong>de</strong> parece fazer mal a Mirandolina, porque repete, sem<br />

querer, a característica <strong>de</strong>sprezivelmente material da contenda. Para perseguir o lucro<br />

para além do que era <strong>de</strong>cente, Mirandolina enganou o Cavaleiro com roupa <strong>de</strong> cama <strong>de</strong><br />

baixa qualida<strong>de</strong>. Existe um problema <strong>de</strong> lucro, para a estalagem, que o rico Con<strong>de</strong> está<br />

disposto a compensar. Mirandolina sente-se <strong>de</strong>smascarada. De repente, reage com fúria,<br />

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eivindica a qualida<strong>de</strong> comercial da estalagem, que – sejam quais forem as reservas em<br />

relação ao serviço – “nunca tem um quarto vago”.<br />

Mas, pouco <strong>de</strong>pois, com calculismo, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> recomeçar daqui mesmo, da faute<br />

professionnelle. Em I, 15, Mirandolina vai ao quarto do Cavaleiro com os lençóis <strong>de</strong><br />

“cambraia” e as toalhas “da Flandres”. Por momentos, ameaça querer livrar-se do<br />

cliente que a pôs em dificulda<strong>de</strong>s, que <strong>de</strong>scobriu a mesquinhez da sua contabilida<strong>de</strong> do<br />

<strong>de</strong>ver e haver, mas limita-se a ameaçar. Percebe que expulsar o Cavaleiro seria uma<br />

fuga, uma maneira <strong>de</strong> terminar com a frustração negando o problema. Faz portanto uma<br />

autocrítica interior e recomeça do ponto crítico: “Aqui ten<strong>de</strong>s a melhor roupa <strong>de</strong> cama.”.<br />

“Melhor” é um comparativo que subenten<strong>de</strong> um segundo termo <strong>de</strong> comparação:<br />

“melhor” do que aquele outro. Com muita humilda<strong>de</strong> profissional, Mirandolina pe<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sculpa e recomeça do início: mostra que não tem apenas roupa <strong>de</strong> cama coçada e<br />

finge – implicitamente – que se tratou <strong>de</strong> um pequeno erro, se calhar da parte <strong>de</strong> um<br />

qualquer servidor tolo. Na verda<strong>de</strong>, não se tratou <strong>de</strong> um erro, mas sim, exactamente, do<br />

método <strong>de</strong> Mirandolina. Refira-se, <strong>de</strong> facto, que em I, 10, Fabrício pe<strong>de</strong> a Mirandolina<br />

que lhe dê a roupa <strong>de</strong> cama para levar ao Cavaleiro (“Vin<strong>de</strong> então ajudar-me a tirá-la do<br />

armário, para que eu lha leve”). A responsabilida<strong>de</strong> é sempre da dona da estalagem. Não<br />

estou <strong>de</strong> acordo, <strong>de</strong>sta vez, com Baratto, que mantém que seja apenas uma operação <strong>de</strong><br />

encobrimento (“representando o “papel” <strong>de</strong> estalaja<strong>de</strong>ira que se dirige ao cliente,<br />

Mirandolina escon<strong>de</strong> a mulher que se dirige ao homem”). 43 Mirandolina recomeça a<br />

partir da roupa <strong>de</strong> cama porque se abriu uma ferida. Ela foi atingida na sua<br />

honorabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comerciante, <strong>de</strong> estalaja<strong>de</strong>ira. O que não impe<strong>de</strong> que <strong>de</strong>pois (mas só<br />

<strong>de</strong>pois), se insinue ao nível da mulher, a estratégia <strong>de</strong> enamoramento. Os dois níveis não<br />

estão, parece-me, em contradição.<br />

Na verda<strong>de</strong>, Mirandolina é obrigada, por uma vez, a mostrar um bom serviço,<br />

mas a vitória sobre o Cavaleiro <strong>de</strong>verá percorrer uma única estrada, a do fascínio<br />

feminino. Só que <strong>de</strong>sta vez será mais difícil, porque o Cavaleiro não parece estar<br />

espontaneamente sensível às artes e lisonjas da mulher.<br />

Pouco antes <strong>de</strong> se iniciar o <strong>de</strong>cisivo encontro com o Cavaleiro, em I, 15, mais<br />

duas cenas fundamentais nos dizem qualquer coisa <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iramente importante sobre<br />

a história <strong>de</strong> Mirandolina: I, 9 e I, 10. Em I, 9, o monólogo da personagem,<br />

Mirandolina, exprime bem o seu próprio método existencial: “Casar-me, não penso<br />

nisso. Não preciso <strong>de</strong> ninguém. Vivo com honestida<strong>de</strong> e gozo a minha liberda<strong>de</strong>.<br />

Pratico com todos, não me enamoro <strong>de</strong> nenhum”. Baratto crê ver nesta auto<strong>de</strong>finição <strong>de</strong><br />

Mirandolina, “uma frigi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> “intelectual”, uma obstinação <strong>de</strong> um Don Giovanni <strong>de</strong><br />

saias, mais interessado na conquista que na posse”. Mas muitos anos <strong>de</strong>pois, em 1979,<br />

Baratto voltou à Estalaja<strong>de</strong>ira com um estudo on<strong>de</strong>, ainda que reutilize as páginas do<br />

ensaio <strong>de</strong> ’57 <strong>de</strong>dicadas à comédia, ele corrige parcialmente a sua leitura. Na reflexão<br />

mais recente, Baratto intui que há qualquer coisa mais profunda, mais enigmática em<br />

Mirandolina; assinala, seja como for, que aquele número <strong>de</strong> Don Giovanni feminino é<br />

43 Baratto, “Mondo” e “<strong>Teatro</strong>”..., pp. 202-203<br />

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apenas um esquema provisório, impreciso, que não chega à essência escondida,<br />

autêntica, da personagem. Baratto chega a falar <strong>de</strong> “um pequeno complexo <strong>de</strong><br />

inferiorida<strong>de</strong>, no plano social: que se expressa, não por acaso, com Fabrício, que lhe é<br />

subalterno, enquanto se sacia com os fregueses da estalagem, na sua maioria homens”,<br />

chegando à conclusão que “a arte teatral da estalaja<strong>de</strong>ira serve também para<br />

Mirandolina mascarar ou revelar uma parte da sua verda<strong>de</strong>ira personalida<strong>de</strong>”. 44 Depois<br />

<strong>de</strong> partir <strong>de</strong> uma fórmula que pretendia iluminar plenamente a personagem, Baratto, por<br />

sucessivas aproximações, <strong>de</strong>screve-a como uma entida<strong>de</strong> fugidia, misteriosa, que<br />

mascara/revela apenas “uma parte” <strong>de</strong> si mesma. Melhor explicada nesta frase: “ (...) é<br />

este o enredo das fugazes insinuações subterrâneas que o projecto <strong>de</strong> Mirandolina,<br />

concebido racionalmente, mas fundado numa provocação psicológica, <strong>de</strong>ixa aflorar<br />

pelos gestos e palavras das cenas”. Mais do que aquilo que diz, interessa-nos a<br />

linguagem que Baratto usa. Os itálicos, ambos nossos, mostram bem a camada fingida,<br />

esquiva, <strong>de</strong> uma personagem que pensamos (erradamente) conhecer <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre. E<br />

ainda mais à frente, o genial ensaísta explica: “Ainda que complexas, nem sempre são<br />

claras as motivações profundas da personagem (...)”.<br />

Mas por que – mais uma vez – não nos cingimos ao texto, ao que diz a<br />

personagem literalmente? Mirandolina não nos diz toda a verda<strong>de</strong> no seu monólogo em<br />

I, 9, claro. Ten<strong>de</strong> a <strong>de</strong>sviar-nos, dando-nos a primeira consistente motivação que apoia<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre a chave da leitura da comédia (Mirandolina, a mulher afectada que adora<br />

ser <strong>de</strong>sejada e servida e que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> vingar-se do Cavaleiro “rústico com um urso”). Mas<br />

diz-nos também algumas coisas que <strong>de</strong>vemos aceitar em perfeita consciência e ciência;<br />

que nem sequer pensa em casar; que não precisa <strong>de</strong> ninguém; que pratica com todos e<br />

não se apaixona por ninguém. São afirmações firmes e claras, que po<strong>de</strong>mos ligar a<br />

qualquer uma das felizes intuições <strong>de</strong> Mario Baratto. Não é o amor que interessa, mas a<br />

prática social. Mirandolina realiza-se (e satisfaz-se) não tanto como mulher (e por isso<br />

através das vicissitu<strong>de</strong>s sentimentais, passionais, em substância, através da experiência<br />

fulcral do amor), mas sim com o papel social, como estalaja<strong>de</strong>ira. Baratto assinalou<br />

bem que há “um pequeno complexo <strong>de</strong> inferiorida<strong>de</strong>, no plano social” (mas para nós, é<br />

um pouco mais do que “pequeno”...). A condição <strong>de</strong> estalaja<strong>de</strong>ira põe-na em contacto<br />

com fregueses que são “na maioria homens” (especifica Baratto), mas também (é<br />

subentendido), homens importantes, homens socialmente bem colocados. A humil<strong>de</strong><br />

estalaja<strong>de</strong>ira pratica, como igual, com marqueses, con<strong>de</strong>s e cavaleiros (que estão quase<br />

sempre aos seus pés, aspirando a ser seus amantes). E trata, <strong>de</strong> patroa para subordinado,<br />

com Fabrício e com todos os outros servidores da estalagem. Há um problema <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r,<br />

<strong>de</strong> comando, que obceca a personagem, numa zona inatingível do seu ser. Talvez haja<br />

qualquer coisa mais, um <strong>de</strong>sejo secreto <strong>de</strong> ser homem (mais uma vez Baratto é<br />

extraordinário quando diz que Mirandolina é inimiga do outro sexo tanto quanto o<br />

Cavaleiro). 45 Repensemos numa frase, Fabrício em diálogo com o Cavaleiro em II, 15:<br />

44 M. Baratto, “Nota sobre “A Estalaja<strong>de</strong>ira”, in Id., La Letteratura teatrale..., p. 130.<br />

45 Baratto vê “por baixo do jogo <strong>de</strong> galanterias, uma aversão mais profunda, o indício <strong>de</strong> um sentimento<br />

mais escondido, <strong>de</strong> medo, ou <strong>de</strong> outra coisa (Mirandolina parece “inimiga” do “outro” sexo como o<br />

Cavaleiro...)” Ib. P. 130<br />

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“Pois está a nossa ama a fazê-la a conta. // Pois ela é quem faz as contas? // Oh,<br />

sempre ela! Mesmo quando o pai <strong>de</strong>la era vivo. Escreve e sabe fazer as contas melhor<br />

do que um moço <strong>de</strong> negócios”. Abre-se <strong>de</strong> repente uma fenda numa Mirandolina que<br />

vivia já na tensão do trabalho quando o seu pai era vivo, quando trabalhava “melhor do<br />

que um moço <strong>de</strong> negócios”. Mirandolina era o braço direito do pai; <strong>de</strong> alguma maneira<br />

era o pai. Para ela, o po<strong>de</strong>r tem raízes na condição masculina. Resta o facto,<br />

indubitável, que Mirandolina é imaginada numa condição <strong>de</strong> solidão e <strong>de</strong> autosuficiência:<br />

não tem mãe, não tem pai (que morreu), e não tem marido. Não há nenhuma<br />

autorida<strong>de</strong> que a governe.<br />

O que não quer dizer necessariamente que Mirandolina seja frígida, ou<br />

sexualmente indiferente ao contacto com os homens. Mas parece-nos indubitável que<br />

Mirandolina ten<strong>de</strong> a <strong>de</strong>sempenhar, também neste domínio especial da existência, um<br />

papel, por assim, dizer, masculino, activo, <strong>de</strong>cisivo e <strong>de</strong>cisório. É muito provável que<br />

tenha um parceiro sexual, que é obviamente Fabrício, mas a escolha não é casual. O<br />

amante está também <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do negócio, ou seja, é um seu subordinado.<br />

Mirandolina trata Fabrício por tu, mas Fabrício trata-a sempre por vós. Nem sequer a<br />

familiarida<strong>de</strong> dos corpos consegue subjugar aquilo que está mais próximo do coração <strong>de</strong><br />

Mirandolina, o gosto pelas hierarquias, o prazer do po<strong>de</strong>r, do comando social. E aqui, énos<br />

útil o diálogo em I, 10, entre Mirandolina e Fabrício. Em I, 9, Mirandolina acabou<br />

<strong>de</strong> confirmar que não tem nenhuma intenção <strong>de</strong> se casar. Em I, 10, diante das<br />

solicitações <strong>de</strong> Fabrício neste sentido, não chega a contradizer-se, embora encubra<br />

diplomaticamente a sua negação: “Sim. Quando for tempo <strong>de</strong> me casar, então farei por<br />

me lembrar do que me disse meu pai.”; “E quando me quiser casar... hei <strong>de</strong> me lembrar<br />

<strong>de</strong> meu pai. Quem bem me servir não se po<strong>de</strong>rá queixar <strong>de</strong> mim. Sou agra<strong>de</strong>cida.<br />

Conheço o mérito”. É <strong>de</strong> assinalar que Mirandolina usa sempre verbos <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong><br />

(“farei por me lembrar”, “quando me quiser casar”). Aquilo que lhe interessa reforçar é<br />

o seu po<strong>de</strong>r, o seu querer. E o tempo verbal está <strong>de</strong>cididamente no futuro (“farei”). Na<br />

realida<strong>de</strong>, Mirandolina faz com Fabrício, na essência, o mesmo que faz com os seus<br />

clientes aristocratas. Há o mesmo cinismo sapiente, o mesmo gosto subtil <strong>de</strong> se ven<strong>de</strong>r,<br />

<strong>de</strong> dar o próprio corpo (ou só o sonho, a esperança, do próprio corpo) em troca <strong>de</strong><br />

dinheiro e <strong>de</strong> bens. Com os clientes <strong>de</strong> títulos nobiliárquicos ocorre tudo no plano<br />

fantasmático das ilusões e dos <strong>de</strong>sejos. Com Fabrício acontece tudo num plano real.<br />

Com os primeiros poupa dinheiro no serviço e ganha credibilida<strong>de</strong> para a estalagem.<br />

Com Fabrício poupa, provavelmente no pagamento (que será mo<strong>de</strong>radamente baixo), e<br />

obtém uma absoluta fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> laboral, isto é, <strong>de</strong>dicação em horas e eficácia. No diálogo<br />

directo (“Quem bem me servir não se po<strong>de</strong>rá queixar <strong>de</strong> mim. Sou agra<strong>de</strong>cida. Conheço<br />

o mérito....”), a lisonja é mais do que evi<strong>de</strong>nte e <strong>de</strong>scaradamente aberto o cálculo, o<br />

recato que exige disciplina e eficiência aos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, em nome <strong>de</strong> uma promessa<br />

incerta <strong>de</strong> futuro casamento. Mas no àparte, o cinismo <strong>de</strong> Mirandolina é<br />

repugnantemente confessado: “Forte tolo! E com pretensões! Hei <strong>de</strong> entretê-lo sempre<br />

<strong>de</strong> esperanças, a fim <strong>de</strong> me servir com lealda<strong>de</strong>.” “Forte tolo” é uma expressão com que<br />

classifica sistematicamente o <strong>de</strong>sgraçado Fabrício. Veja-se em III, 2: “Pobre tolo! Há <strong>de</strong><br />

servir-me ainda que não queira. Faz-me rir isto <strong>de</strong> os homens fazerem a meu modo.”.<br />

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Em I, 10, Mirandolina conta ter o “forte tolo” porque a “serve com fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>”. Em III,<br />

2, o “pobre tolo” também a <strong>de</strong>ve servir, a bem ou a mal, “ainda que não queira”.<br />

Vale a pena analisar <strong>de</strong> mais perto em I, 10 aquilo que é o nó final:<br />

FABRÍCIO Mas eu tenho a pele <strong>de</strong>licada e há coisa que não sei sofrer.<br />

MIRANDOLINA Mas quem julgas tu que eu sou? Uma tonta? Uma tola? Uma louca?<br />

Maravilho-me contigo. Que hei <strong>de</strong> eu fazer dos forasteiros que vêm e se vão? Se os trato<br />

bem é para o meu interesse, para dar crédito à minha estalagem. De presentes não<br />

preciso. É por causa dos amores? Basta-me um. E não tenho quem me falte. Sei bem<br />

quem me merece, quem é que me convém. E quando me quiser casar... Hei <strong>de</strong> me<br />

lembrar <strong>de</strong> meu pai. Quem bem me servir não se po<strong>de</strong>rá queixar <strong>de</strong> mim... que sou<br />

agra<strong>de</strong>cida. Conheço o mérito... mas a mim é que ninguém me conhece... Basta,<br />

Fabrício. Enten<strong>de</strong> o que te digo, se é que po<strong>de</strong>s. (Vai-se.)<br />

Foi uma discussão on<strong>de</strong> sempre se tratou por vós (“Vós com os hóspe<strong>de</strong>s sois<br />

muito <strong>de</strong>sabrido. // E vós <strong>de</strong>masiado gentil”) 46 . Fabrício tem ciúmes das atenções que<br />

Mirandolina conce<strong>de</strong> ao Cavaleiro (e em geral aos excessos <strong>de</strong> confiança que garante a<br />

todos os seus clientes). Gostaria <strong>de</strong> consumar o matrimónio que o pai <strong>de</strong> Mirandolina<br />

intimou à filha, no seu leito <strong>de</strong> morte. Ele lembra-lho explicitamente (mas sempre com<br />

o formalismo respeitoso do vós: “Lembrais-vos do que a nós dois nos disse o vosso pai<br />

antes <strong>de</strong> morrer?”). E no fim explo<strong>de</strong>, revela os seus ciúmes e o facto <strong>de</strong> que é<br />

<strong>de</strong>masiado sensível para aceitar “certas coisas”. Fabrício, empurrado, em parte, pela sua<br />

dor e, em parte, pelo <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> não conseguir concretizar o seu projecto matrimonial e<br />

económico, torna-se <strong>de</strong> repente audaz, quase temerário, mas continua a usar o vós<br />

(insisto neste pormenor). E pronto, surge este inesperado e surpreen<strong>de</strong>nte parêntese que<br />

Mirandolina abre, saltando do vós para o tu, regressando ao vós assim que o parêntese<br />

se fecha. Este excerto nasce como grito incontrolável do coração, que <strong>de</strong>spedaça as<br />

fronteiras da educação e da prudência impostas pelas regras sociais. Assim que o grito<br />

explo<strong>de</strong>, regressa o controlo <strong>de</strong> sempre. Por um instante, Mirandolina suspen<strong>de</strong> o<br />

comportamento <strong>de</strong> estalaja<strong>de</strong>ira, <strong>de</strong> patroa e dirige-se a Fabrício <strong>de</strong> mulher para homem,<br />

<strong>de</strong> amante para amante: “Mas quem julgas tu que eu sou? Uma tonta? Uma tola? Uma<br />

louca? Maravilho-me contigo.” (Itálicos nossos.) Mirandolina instala inesperadamente<br />

uma corrente <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> confiança. Chama as coisas pelo seu nome. Atribui um nome<br />

exacto (“tonta”, “tola”, isto é, puta) às fortes insinuações, mas formalmente<br />

circunspectas, <strong>de</strong> Fabrício. Este tu surpreen<strong>de</strong>nte confirma-nos a suspeição <strong>de</strong> que existe<br />

uma intimida<strong>de</strong> premente, mesmo sexual, entre patroa e empregado; que existe há<br />

algum tempo, <strong>de</strong> certeza <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o pai era vivo (isto é, há seis meses), 47 o qual, por<br />

isso, com razão, aconselhava a filha, in limine mortis, a fazer aquilo que era óbvio que<br />

<strong>de</strong>vesse fazer, casar com o criado-amante, ligando assim o plano legal com o plano<br />

fundamental. Por outro lado, a expressão “por causa dos amores?” (“ (...) por causa dos<br />

amores? Basta-me um. E não tenho quem me falta”), po<strong>de</strong> ser lida “no bom ou no mau<br />

46 Tradução minha.<br />

47 “Há seis meses que lhe morreu o pai”, informa-nos o Con<strong>de</strong> na cena <strong>de</strong> abertura da comédia, em I, 1.<br />

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sentido”, como dizia Tommaseo no seu Dizionario, on<strong>de</strong>, contudo, acrescentava<br />

explicitamente, “mas mais frequentemente no segundo”. Esta expressão é retomada três<br />

vezes durante a comédia e sempre com um significado que po<strong>de</strong>mos dizer<br />

especialmente fértil, evocativo <strong>de</strong> uma relação mesmo carnal. Mirandolina para o<br />

Cavaleiro: “Vêm para a estalagem para se hospedarem e <strong>de</strong>pois querem pôr-se <strong>de</strong><br />

amores com a estalaja<strong>de</strong>ira”. Monólogo do Cavaleiro: “Para um nada <strong>de</strong> divertimento,<br />

sempre gosto mais <strong>de</strong>sta do que <strong>de</strong> qualquer outra. Mas para os amores? Para per<strong>de</strong>r a<br />

liberda<strong>de</strong>?”. O Con<strong>de</strong> às actrizes: “Ter amores por uma <strong>de</strong> vós, para falar com<br />

franqueza, agrada-me pouco. Tanto estão aqui como já cá não estão”. A surpresa <strong>de</strong>ste<br />

episódio (do qual naturalmente nunca nos tínhamos apercebido, por causa daquele efeito<br />

intimidatório que um clássico como A Estalaja<strong>de</strong>ira exerce <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre sobre os<br />

leitores e espectadores) reforça obviamente a nossa <strong>de</strong>terminação metodológica em<br />

assumir Mirandolina como uma entida<strong>de</strong> misteriosa, dificilmente compreensível.<br />

Podíamos ter a impressão <strong>de</strong> uma mulher <strong>de</strong>sinteressada do sexo, <strong>de</strong>dicada a sublimarse<br />

no trabalho e no apagamento social. Agora <strong>de</strong>scobrimos que até há uma prática<br />

sexual em Mirandolina. Mas evi<strong>de</strong>ntemente, como necessida<strong>de</strong> fisiológica (isto é, <strong>de</strong><br />

maneira muito masculina). Como qualquer coisa que vem a lato, junto, discretamente,<br />

quase clan<strong>de</strong>stinamente, em relação à principal tarefa da existência que é, pelo<br />

contrário, o trabalho, a economia, o negócio, o lucro, o dinheiro. É claro que<br />

Mirandolina lucra com este encontro dialógico apaziguado, ao ter dado uma breve lição<br />

<strong>de</strong> economia ao seu empregado-amante <strong>de</strong> como se <strong>de</strong>vem tratar os fregueses. Expõelhe<br />

resumidamente aquilo que nós já sabemos, e que chamámos <strong>de</strong> método <strong>de</strong><br />

Mirandolina, isto é, a lógica da sua estratégia com os clientes (generosa nos sorrisos,<br />

mas avarenta nos custos <strong>de</strong> alojamento). Mirandolina mostra, enfim, conseguir passar<br />

com muito autocontrolo <strong>de</strong> uma dimensão a outra da sua vida, <strong>de</strong> saber interligar com<br />

<strong>de</strong>senvoltura o plano privado e o plano público, afectos e afazeres. Percebe-se que em<br />

ambos os níveis é sempre Mirandolina a dirigir o trânsito, a manter a situação sob<br />

controlo. O amante socialmente inferior quer dizer precisamente isto, que é ela quem<br />

tem a faca e o queijo na mão. É a sua sexualida<strong>de</strong>, por assim dizer, masculina que salta<br />

à vista. Está ligada ao <strong>de</strong>sesperado àparte <strong>de</strong> Fabrício no fecho da primeira cena do III<br />

acto: “Nada entendo. Ora me dá para cima, ora me dá para baixo. Nada entendo”.<br />

Goldoni constrói uma perfeita estrutura circular que começa e acaba com uma<br />

<strong>de</strong>claração <strong>de</strong> impotência, <strong>de</strong> incapacida<strong>de</strong> para compreen<strong>de</strong>r (“Nada entendo”). No<br />

interior <strong>de</strong>ste círculo <strong>de</strong> ignorância e <strong>de</strong> resignada passivida<strong>de</strong>, a imagem <strong>de</strong> uma<br />

relação <strong>de</strong> <strong>de</strong>spotismo absoluto <strong>de</strong>la sobre ele (“Ora me dá para cima, ora me dá para<br />

baixo”), por curiosa que seja, como imagem, leva-nos a interrogar se esta não será uma<br />

alusão arrojada e um pouco obscena a qualquer coisa misteriosa que anda para cima e<br />

para baixo... Fabrício vive constantemente neste clima <strong>de</strong> mudanças <strong>de</strong> humor <strong>de</strong><br />

Mirandolina, <strong>de</strong> alternância lunática e <strong>de</strong>spótica. Também nesta cena I, 10, <strong>de</strong>pois da<br />

tirada <strong>de</strong> Mirandolina a que já fizemos referência, Fabrício tem espaço para um pequeno<br />

monólogo <strong>de</strong> comentário. Vale a pena <strong>de</strong>ixá-lo registado integralmente:<br />

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Quem a pu<strong>de</strong>r enten<strong>de</strong>r há <strong>de</strong> ser mesmo sábio. Ora parece que ela me quer, ora que não<br />

me quer. Diz que não é tola, mas tudo quer a seu modo. Não sei que dizer. Veremos.<br />

Gosto <strong>de</strong>la, quero-lhe bem, a ela juntarei os meus interesses para todo o tempo da minha<br />

vida. Ai, tenho é <strong>de</strong> fechar os olhos e <strong>de</strong>ixar andar. No fundo, os forasteiros vêm e vão.<br />

Eu fico sempre. E o melhor há <strong>de</strong> sempre ser para mim.<br />

Na prática é uma espécie <strong>de</strong> duche escocês a que Mirandolina submete Fabrício<br />

(“Ora parece que (...) ora que”, itálicos nossos). E <strong>de</strong> novo, a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Fabrício para compreen<strong>de</strong>r a mulher, e o sublinhar da sua in<strong>de</strong>cifrabilida<strong>de</strong> (“Quem a<br />

pu<strong>de</strong>r enten<strong>de</strong>r há <strong>de</strong> ser mesmo sábio”, “Nada entendo”). Há uma impotência em<br />

Fabrício, uma subalternida<strong>de</strong> a Mirandolina que é social, mas também cultural. Fabrício<br />

não tem os instrumentos a<strong>de</strong>quados para adivinhar todos os jogos <strong>de</strong> Mirandolina<br />

(mesmo que tenha bem presente o seu próprio jogo, o seu projecto pessoal).<br />

Ao estar no negócio com Mirandolina, <strong>de</strong> facto, Fabrício apren<strong>de</strong>u o ofício,<br />

tornou-se um óptimo aluno. O cinismo do empregado iguala (e talvez ultrapasse) o da<br />

patroa. Sabemos que Mirandolina corre constantemente ao longo do abismo, mas nunca<br />

cai nele. Fabrício, pelo contrário, dá por adquirido que qualquer comércio sexual entre<br />

estalaja<strong>de</strong>ira e clientes aristocráticos está certo, mas abstém-se <strong>de</strong> quebrar a sua ligação<br />

(“Ai, tenho é <strong>de</strong> fechar os olhos e <strong>de</strong>ixar andar. No fundo, os forasteiros vêm e vão. Eu<br />

fico sempre. E o melhor há <strong>de</strong> sempre ser para mim”). A comédia torna-se assim uma<br />

dupla tensão <strong>de</strong> classe: <strong>de</strong> um lado a burguesia em contacto com antepassados<br />

aristocráticos e do outro lado o proletário em contacto com a burguesia. De um lado<br />

Mirandolina que, graças ao seu trabalho <strong>de</strong> estalaja<strong>de</strong>ira, entra em relações precárias,<br />

mas dinâmicas, com con<strong>de</strong>s, marqueses e cavaleiros, e com certeza tem efeitos <strong>de</strong><br />

perturbação e <strong>de</strong>sequilíbrio psicológico. Mirandolina <strong>de</strong>clara-se não interessada nas<br />

propostas <strong>de</strong> casamento que lhe chegam dos clientes, mas é uma fuga para a frente, para<br />

fugir das inevitáveis frustrações. Mais uma vez, Baratto viu isto muito bem:<br />

“Mirandolina sabe que nem o Marquês, nem o Con<strong>de</strong>, nem o próprio Cavaleiro po<strong>de</strong>rão<br />

transformar as ofertas <strong>de</strong> matrimónio em ofertas <strong>de</strong> amor.” 48 Do outro lado, Fabrício,<br />

que se acha amante da própria patroa e se vê perfilar a hipótese <strong>de</strong> um extraordinário<br />

salto <strong>de</strong> classe. A cuidadosa maneira como <strong>de</strong>clara o seu entendimento e o seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

resgate social diz muito sobre a astúcia <strong>de</strong>ste óptimo aprendiz <strong>de</strong> Mirandolina: “Gosto<br />

<strong>de</strong>la, quero-lhe bem, a ela juntarei os meus interesses para todo o tempo da minha vida”<br />

(itálicos nossos). Começa com <strong>de</strong>clarações sentimentais e <strong>de</strong>ixa para último lugar,<br />

oportunamente, o baixo plano das vantagens materiais. É uma pena que a sua <strong>de</strong>claração<br />

resulte tão pouco convincente e lacónica no primeiro nível quanto ampla e prolixa no<br />

segundo, severamente apostada em exaltar a centralida<strong>de</strong> do próprio eu (a mesma<br />

estrutura circular, com início e fim no possessivo: “os meus interesses para todo o<br />

tempo da minha vida”). Um lumpen eternamente voraz, como escreveu inteligentemente<br />

Mario Missiroli.<br />

48 Baratto, “Nota sobre a Estalaja<strong>de</strong>ira”.<br />

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Só a cegueira do discurso i<strong>de</strong>ológico po<strong>de</strong>ria ter levado um estudioso tão<br />

metodologicamente aguerrido como Bartolo Anglani a tresler o texto até ao ponto <strong>de</strong><br />

pensar em Fabrício como burguês (“Não nos po<strong>de</strong>mos per<strong>de</strong>r atrás do trabalho que ele<br />

faz: ainda que doméstico na sua profissão, Fabrício é um burguês i<strong>de</strong>ológica e<br />

moralmente puro”). 49 Fabrício não é Mirandolina, é um simples <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do negócio<br />

<strong>de</strong> Mirandolina (ela sim, só ela, burguesa). Aliás, Fabrício é mesmo um pobre vilão que<br />

chegou recentemente à cida<strong>de</strong>. No <strong>de</strong>curso do duríssimo showdown que é a última cena<br />

do terceiro acto, quando Fabrício quer fazer os “pactos”, antes <strong>de</strong> dar a sua mão (numa<br />

outra <strong>de</strong>liciosa inversão que reforça o lado masculino <strong>de</strong> Mirandolina), acontece-lhe<br />

ouvir gritar mesmo na sua cara: “Que pacto? Este é o pacto. Ou me dás a mão ou voltas<br />

para a tua terra.” 50 É a primeira e única vez, em toda a comédia, que se faz referência à<br />

origem camponesa do criado. 51 Mas é evi<strong>de</strong>nte por que razão acontece apenas neste<br />

momento. A burguesa Mirandolina está no ponto <strong>de</strong> permitir a Fabrício a possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> um segundo salto <strong>de</strong> classe: já passou <strong>de</strong> vilão a criado na cida<strong>de</strong>; agora po<strong>de</strong> passar<br />

<strong>de</strong> criado a patrão. A não-aceitação do ultimato significa a sua dispensa como criado,<br />

abre a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um regresso à terra, <strong>de</strong> uma viagem para trás, <strong>de</strong> regresso à<br />

“terra” natal. Mirandolina fala na “terra” para <strong>de</strong>signar uma ameaça, mas também para<br />

que Fabrício pon<strong>de</strong>re bem a gran<strong>de</strong>za do caminho que percorreu, que <strong>de</strong>ixou atrás das<br />

costas. Se não se percebe isto, não se consegue perceber toda a força da personagem <strong>de</strong><br />

Fabrício, que possui em si o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> subir, raiva, tenacida<strong>de</strong>, e que po<strong>de</strong> inclinar-se,<br />

diante <strong>de</strong> Mirandolina, quase como uma mulher, mas também como quando se põe um<br />

arco sob tensão: para <strong>de</strong>pois se disten<strong>de</strong>r com máxima violência. Se se transforma<br />

Fabrício num burguês, como quer Anglani, não se compreen<strong>de</strong> nada do assédio<br />

implacável que Fabrício vai construindo à volta <strong>de</strong> Mirandolina durante três actos.<br />

Mirandolina está, naturalmente, no centro <strong>de</strong>ste duplo nível <strong>de</strong> tensões sociais<br />

que se vão <strong>de</strong>finindo e ligando ao longo da estrutura da comédia (burguesia e<br />

aristocracia, proletariado e burguesia). Mirandolina é o anel <strong>de</strong> conexão entre o alto e o<br />

baixo, é o objectivo da dupla perseguição, do Cavaleiro e <strong>de</strong> Fabrício. Montada nesses<br />

dois mundos, sempre prestes a misturar-se com os clientes nobres, Mirandolina não<br />

está, <strong>de</strong> facto, disponível – pelo menos no início – para se unir ao proletário Fabrício.<br />

Com a amarga inteligência que muitas vezes os subalternos têm, Fabrício parece dizer:<br />

“Vós dos pobres não fazeis caso, e <strong>de</strong>masiado apreço ten<strong>de</strong>s pela nobreza”. Com o<br />

ímpeto que a leva a frequentar os círculos aristocráticos, Mirandolina começou, talvez,<br />

numa zona secreta do seu próprio inconsciente, a sentir o seu próprio fascínio. Sabe que<br />

não po<strong>de</strong> ascen<strong>de</strong>r a casar com um <strong>de</strong>stes nobres, mas também sabe a humilhação <strong>de</strong> um<br />

casamento que a rebaixe até Fabrício. No terceiro acto não hesita em dizer ao Cavaleiro<br />

(num sobressalto <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma confissão que vem do fundo do coração):<br />

49 Anglanio, Goldoni..., p. 243 (trata-se <strong>de</strong> uma longa análise da Estalaja<strong>de</strong>ira, que constitui a segunda<br />

parte do volume, e que já tinha aparecido numa revista alguns anos, em 1980).<br />

50 Tradução minha.<br />

51 Sobre esta origem camponesa <strong>de</strong> Fabrício, interpelei, por ter medo <strong>de</strong> falar, o máximo dos estudiosos<br />

vivos <strong>de</strong> Goldoni, o óptimo Nicola Mangini, que me confirmou a licitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal hipótese. Por outro lado,<br />

Guido Salvani – encenando A Estalaja<strong>de</strong>ira – mostrava acreditar num Fabrício “camponês <strong>de</strong><br />

nascimento, sapatos grossos e cérebro fino”. (...)<br />

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“Eu, enamorada <strong>de</strong> um criado? Que belo cumprimento me fazeis, senhor! Não tenho tão<br />

mau gosto, eu! Quando quiser amar não gastarei tão mal o meu tempo”. Se <strong>de</strong>pois, no<br />

fim, o aceita como marido, é porque aconteceu qualquer coisa. Mas a conclusão é um<br />

resultado imprevisto, não está inscrita no enredo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, como, pelo contrário,<br />

crê Baratto (“na base da sua escolha final está um instinto <strong>de</strong> classe”), como me<br />

escreveu uma vez, num comentário, uma óptima estudante da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Saint<br />

Etienne: “Elle se replace au rang social que est le sien en voulant épouser Fabrizio. Elle<br />

reviente à la raison, à sa raison”. Mas veremos mais adiante o que leva e <strong>de</strong>termina<br />

Mirandolina a este ponto <strong>de</strong> chegada, imprevisto e imprevisível.<br />

Está na hora <strong>de</strong> analisar a cena fulcral em I, 15. Já esclarecemos a necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Mirandolina <strong>de</strong> começar do zero, <strong>de</strong> restabelecer um contacto <strong>de</strong> estalaja<strong>de</strong>ira e<br />

cliente, <strong>de</strong> patroa e freguês. Daqui nasce a exibição da roupa <strong>de</strong> cama <strong>de</strong> bom nível,<br />

aliás, <strong>de</strong> classe superior (em contraposição com aquela <strong>de</strong> classe “vulgar” que ofendia o<br />

Cavaleiro). 52 Mirandolina foi apanhada numa faute profissionelle pelo Cavaleiro, mas é<br />

muito hábil a remediar: exibe o melhor que tem e justifica o erro: “Permitis que entre,<br />

senhor meu?”, “Peço-vos que, pelo menos, vos digneis ver se está a vosso gosto”, “Esta<br />

roupa tenho-a eu para pessoas <strong>de</strong> mérito. Para os que a sabem apreciar. E, para dizer a<br />

verda<strong>de</strong>, dou-vos a vós, Vossa Mercê, por ser<strong>de</strong>s vós. A outro não a daria”, “Com um<br />

cavaleiro da vossa estirpe, não olho a coisas tão pequenas. Tenho muitas toalhas <strong>de</strong>stas,<br />

e ficam todas para Vossa Senhoria”, “Ai, eu não me incomodo quando estou ao serviço<br />

<strong>de</strong> um fidalgo do vosso merecimento”. Toda esta série <strong>de</strong> formulações diz muito da<br />

inteligência <strong>de</strong> Mirandolina. Ela percebeu que o Cavaleiro não é (pelo menos, em<br />

primeira mão) capturável pelo charme feminino e conquista-o abrindo brechas na sua<br />

vaida<strong>de</strong> aristocrática. Ao tratar com ele, calça as luvas, faz exactamente o contrário do<br />

que faz com os outros: coloca-se à distância (em vez <strong>de</strong> encurtar as distâncias); evita<br />

qualquer intimida<strong>de</strong> (em vez <strong>de</strong> sugerir e <strong>de</strong>ixar sugerir intimida<strong>de</strong>). A rubrica que<br />

antecipa a primeira frase é significativa: “entrando com uma certa timi<strong>de</strong>z”. Talvez seja<br />

autêntica, a “timi<strong>de</strong>z”, mas muito provavelmente é simulada. Mirandolina quer fazer o<br />

aristocrata sentir que o humil<strong>de</strong> burguês é tímido perante um “ilustre”. A sua táctica<br />

visa estabelecer uma diferença, <strong>de</strong> distinguir o Cavaleiro <strong>de</strong> todos os outros. Ele e só ele<br />

– enquanto pessoa <strong>de</strong> mérito – tem direito a roupa <strong>de</strong> cama <strong>de</strong> alto nível à disposição na<br />

estalagem. Os outros não têm gosto, não saberiam apreciar, e por isso é absurdo dar-lhes<br />

esse tratamento, que está reservado para pessoas como o Cavaleiro. Subenten<strong>de</strong>-se que<br />

foi um equívoco, que os criados <strong>de</strong> Mirandolina não perceberam a qualida<strong>de</strong> do<br />

Cavaleiro e lhe aplicaram automaticamente o mesmo tratamento reservado aos outros. O<br />

Cavaleiro finge estar para além da vaida<strong>de</strong>, mas na verda<strong>de</strong> fica agradado com a<br />

<strong>de</strong>dicação e serventia <strong>de</strong> Mirandolina. Ele está habituado, por estatuto social, a receber<br />

cumprimentos. Aprecia que Mirandolina lhos dirija em gran<strong>de</strong> abundância. Fica apenas<br />

com uma suspeita, que tudo seja uma maneira diferente, mais subtil, <strong>de</strong> o seduzir, mas<br />

Mirandolina joga a carta da verda<strong>de</strong>. Revela o jogo com os clientes habituais e ao fazêlo<br />

i<strong>de</strong>ntifica a re<strong>de</strong> capaz <strong>de</strong> apanhar o Cavaleiro: “Que dizeis da fraqueza <strong>de</strong>sses dois<br />

52 Fabrício para Mirandolina: “O forasteiro que está lá no quarto do meio está aos gritos por causa da<br />

roupa da cama. Diz que é ordinária e que a não quer.”<br />

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fidalgos? Vêm para a estalagem para se hospedarem e <strong>de</strong>pois querem pôr-se <strong>de</strong> amores<br />

com a estalaja<strong>de</strong>ira! Há mais na nossa cabeça do que trela para os ditos <strong>de</strong>les!<br />

Procuramos zelar pelos nossos interesses. Se lhes dirigimos boas palavras, fazemo-lo<br />

para que eles fiquem”. Mirandolina revela o seu jogo <strong>de</strong>scaradamente: confessa, pelo<br />

meio das frases, que serve o seu próprio “interesse” poupando no serviço, <strong>de</strong>sfrutando<br />

da fraqueza daqueles cavaleiros que trocam a estalagem pelo bor<strong>de</strong>l e que são tão<br />

parvos que se <strong>de</strong>ixam enganar por simples “boas palavras”. A confissão surge natural,<br />

gradualmente. Primeiro aparece um nós impessoal (“Há mais na nossa cabeça do que<br />

trela para os ditos <strong>de</strong>les! Procuramos zelar pelos nossos interesses”, itálicos nossos).<br />

Mas um pouco mais à frente o interesse torna-se pessoal (“Não os maltrato, que o não<br />

querem os meus interesses, mas pouco falta”, itálico nosso). Depois <strong>de</strong> sublinhar a sua<br />

pertença a um grupo social, do comércio e da burguesia, Mirandolina reitera a sua<br />

própria condição, privada, <strong>de</strong> mulher <strong>de</strong> negócios, <strong>de</strong> manager. Talvez o Cavaleiro<br />

tivesse ficado com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que ela era uma assanhada, uma cocotte, mas trata-se <strong>de</strong><br />

outra coisa: “Bom se ten<strong>de</strong>s <strong>de</strong> que tratar, não vos pren<strong>de</strong>rei aqui comigo. // Sim,<br />

senhor. Vou aten<strong>de</strong>r ao serviço da casa. Que são esses os meus amores, os meus<br />

passatempos”. Mirandolina mostra a sua aparência dura – constantemente atarefada,<br />

atenta, tenaz – própria do trabalho na estalagem; revela a dimensão <strong>de</strong>sapiedada <strong>de</strong> uma<br />

condição <strong>de</strong> estalaja<strong>de</strong>ira que po<strong>de</strong> parecer à primeira vista frívola nas relações sociais.<br />

O Cavaleiro, habituado a per<strong>de</strong>r o seu tempo no ócio, é afectado, quase fascinado, pela<br />

serieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma vida tão diferentemente simulada, e é ele a assinalar, com <strong>de</strong>scrição, a<br />

oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a <strong>de</strong>ixar voltar ao trabalho.<br />

O mais bonito é que Mirandolina, nesta cena, não mente nunca; diz realmente a<br />

verda<strong>de</strong> toda: “Ve<strong>de</strong>s? Não sou uma rapariguinha. Tenho já uns anos. Não sou bonita,<br />

mas já tive boas oportunida<strong>de</strong>s. Mas nunca me quis casar, que infinitamente estimo a<br />

minha liberda<strong>de</strong>.”. Diz todas estas coisas, claro, para esten<strong>de</strong>r a armadilha ao Cavaleiro,<br />

mas também diz coisas autênticas, que correspon<strong>de</strong>m ao seu projecto existencial. A<br />

recusa <strong>de</strong> Mirandolina em casar-se significa isto mesmo: evitar o papel <strong>de</strong> mulher e a<br />

con<strong>de</strong>nação da maternida<strong>de</strong>, que lhe negaria tempo <strong>de</strong> realização do seu trabalho, na<br />

gestão da estalagem. E significa ainda evitar uma passagem do comando da estalagem,<br />

que <strong>de</strong>slizaria fatalmente para o marido (se tiver mesmo <strong>de</strong> acontecer, <strong>de</strong>ve tomar a<br />

cautelosa medida <strong>de</strong> escolher um marido socialmente inferior, como Fabrício, seu<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, seu subalterno).<br />

O Cavaleiro fica perturbado, e em parte seduzido, por esta exposição <strong>de</strong><br />

Mirandolina. Fica surpreendido com o lúcido realismo. Mas também confiante.<br />

Mirandolina é uma inimiga da sua classe, mas é uma inimiga que sabe estar no seu<br />

lugar, que projecta um espaço <strong>de</strong> acção próprio mas que, correctamente, não preten<strong>de</strong><br />

sair <strong>de</strong>le. Mirandolina vai atrás do fim económico do “interesse”, como é normal num<br />

burguês, mas não recusa o servilismo <strong>de</strong>vido a um representante da classe aristocrática<br />

como o Cavaleiro. E tudo isto se apresenta, por força das coisas, extremamente normal<br />

para ele. Há também, talvez, uma dimensão mais subtil, mais elusiva, que se po<strong>de</strong><br />

intuir. Talvez o Cavaleiro esteja impressionado pela imagem forte, por este aspecto<br />

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masculino <strong>de</strong> Mirandolina. Agrada-lhe a estalaja<strong>de</strong>ira que sabe o que quer e que recusa<br />

a escravatura do casamento para po<strong>de</strong>r continuar a fazer aquilo que quer. Talvez o<br />

Cavaleiro faça projecções. No fundo <strong>de</strong>le há uma fraqueza, que tenta ocultar<br />

protegendo-se com a sua misoginia e com a sua admiração por pessoas seguras (entre as<br />

quais, involuntariamente, está também esta Mirandolina que se revela em I, 15). O<br />

Cavaleiro tem com certeza medo das mulheres, mas porque tem medo <strong>de</strong> si próprio, e<br />

por isso vigia-a. O que não quer dizer que seja homossexual (peça <strong>de</strong> apoio muito frágil<br />

é a <strong>de</strong>claração do seu criado: “Não po<strong>de</strong> ver as mulheres mas, <strong>de</strong> outra forma, com os<br />

homens é muito cortês”), ou que sublime tudo na caça ou no gosto por amiza<strong>de</strong>s<br />

masculinas. O seu breve monólogo em I, 16, dá-nos informações preciosas sobre a sua<br />

história: “Tem não sei quê <strong>de</strong> extraordinário. Mas nem por isso me <strong>de</strong>ixarei enamorar.<br />

Para um nada <strong>de</strong> divertimento, sempre gosto mais <strong>de</strong>sta do que <strong>de</strong> qualquer outra. Mas<br />

para os amores? Para per<strong>de</strong>r a liberda<strong>de</strong>? Não há perigo. Tolos, tolos os que se<br />

enamoram das mulheres”. (...)<br />

Mas note-se como, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o citado monólogo em I, 16, o Cavaleiro <strong>de</strong>smente a<br />

lenda que o quer misógino. Avança e examina logo uma hipótese <strong>de</strong> relação com<br />

Mirandolina, ainda que esteja <strong>de</strong>ntro da sua escolha estratégica <strong>de</strong> relação fugaz,<br />

ocasional. “Para um nada <strong>de</strong> divertimento, sempre gosto mais <strong>de</strong>sta do que <strong>de</strong> qualquer<br />

outra”. Por que é que, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sta lógica e <strong>de</strong>stes limites, Mirandolina é melhor do que<br />

qualquer outra? Exactamente porque Mirandolina o tranquilizou na sua condição <strong>de</strong><br />

aristocrata, <strong>de</strong> pertença a uma raça superior, sublinhando consistentemente a sua<br />

posição <strong>de</strong> serva diante <strong>de</strong>le. Finalmente, quando toma a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> lhe agarrar na<br />

mão, sublinha a sua condição <strong>de</strong> criatura <strong>de</strong> raça inferior: “Por favor. Dai-me essa<br />

honra. Ve<strong>de</strong>, a minha está limpa”. A higiene está para os nobres como a porcaria para os<br />

plebeus: é uma outra maneira subtil <strong>de</strong> reconfirmar a diferença, o <strong>de</strong>svio social que há<br />

entre os dois. Mirandolina confessa indirectamente que sabe bem que a limpeza é um<br />

privilégio da classe aristocrática, mas, ao dizer isso, obriga o Cavaleiro a reconhecer que<br />

ela é uma excepção à classe popular, já que chama a atenção para a sua própria pessoa<br />

(“Ve<strong>de</strong>, a minha está limpa”). A seguir, a partir da base <strong>de</strong>ste contacto (mesmo físico,<br />

através do dar as mãos) entre os dois, Mirandolina <strong>de</strong>dica-se a admitir verbal e<br />

reiteradamente com insistência, todo o abismo que os separa. É a partir <strong>de</strong>ste ponto (e<br />

até ao fim em I, 15) que se complicam as fórmulas retóricas comuns na linguagem dos<br />

mais humil<strong>de</strong>s quando se dirigem aos membros das classes dirigentes: “Perdoe Vossa<br />

Mercê a minha impertinência. No que eu vos pu<strong>de</strong>r servir, dai-me as vossas or<strong>de</strong>ns com<br />

dignida<strong>de</strong>, e por vós hei <strong>de</strong> ter as atenções que mais ninguém neste mundo teve <strong>de</strong><br />

mim”; “Porque, para além do vosso mérito, para além da vossa condição, estou certa <strong>de</strong><br />

que convosco posso eu tratar em liberda<strong>de</strong>, sem suspeita <strong>de</strong> que queirais fazer uso das<br />

minhas atenções. E ten<strong>de</strong>-me na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vossa serva, sem vos atormentar<strong>de</strong>s com<br />

ridículas pretensões, com afectadas caricaturas”. Esta progressão verbal transforma a<br />

estalaja<strong>de</strong>ira a pouco e pouco, isto é, a proprietária burguesa <strong>de</strong> um negócio, numa<br />

humil<strong>de</strong> popular prostrada aos pés do aristocrata. Que <strong>de</strong>pois o Cavaleiro recuse esta<br />

hipótese que ele próprio avança, <strong>de</strong> uma intriga com Mirandolina, é outra questão.<br />

Depen<strong>de</strong> do facto <strong>de</strong> que ele intui, e com razão, que Mirandolina é uma personagem<br />

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<strong>de</strong>masiado forte para que não corra risco <strong>de</strong> passar <strong>de</strong> um esquema breve para uma<br />

ligação mais duradoura.<br />

Ainda mais algumas consi<strong>de</strong>rações sobre a profunda fragilida<strong>de</strong> da estrutura<br />

psicológica do Cavaleiro. Neste diálogo em I, 15, tanto ele como Mirandolina abusam<br />

do uso <strong>de</strong> termos ligados ao espectro lexical da “liberda<strong>de</strong>”. Em Mirandolina aparece<br />

cinco vezes: “ (...) dizei-mo com toda a liberda<strong>de</strong>” 53 ; “ (...) a minha liberda<strong>de</strong>”; “não<br />

terei a mais pequena liberda<strong>de</strong>”; “como é bom conversar em liberda<strong>de</strong>!” 54 ; “ (...)<br />

convosco posso eu tratar em liberda<strong>de</strong>”. O uso que o Cavaleiro faz é limitado, apenas<br />

duas vezes: “Ó, sim, a liberda<strong>de</strong> é um gran<strong>de</strong> tesouro”; “Que o céu me livre! Mulheres,<br />

não as quero”. É evi<strong>de</strong>nte que Mirandolina fala da boca para fora, porque sabe que este<br />

é o modo como po<strong>de</strong> tecer a re<strong>de</strong> à volta do Cavaleiro. Mas é diferente do peso que o<br />

Cavaleiro atribui, ao usar a mesma linguagem <strong>de</strong> Mirandolina. Para Mirandolina, a<br />

liberda<strong>de</strong> é, essencialmente, a sua liberda<strong>de</strong>, é uma riqueza interior que lhe permite<br />

abrir-se ao mundo; é a escolha <strong>de</strong> se negar a um marido-patrão para ter a total liberda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> várias relações, essencialmente sociais, laborais, e talvez até sexuais. A liberda<strong>de</strong> é<br />

um conceito dinâmico, é um ponto <strong>de</strong> partida para explorar e conquistar o universo, é<br />

um motor, é o início <strong>de</strong> um movimento, <strong>de</strong> uma aventura existencial. Para o Cavaleiro a<br />

liberda<strong>de</strong> é “um gran<strong>de</strong> tesouro”, uma riqueza mais exterior que interior. É a sua<br />

condição <strong>de</strong> aristocrata, isto é, a couraça que o <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> do mundo, porque no fundo tem<br />

medo do mundo, do contacto com os outros. A liberda<strong>de</strong> como tesouro, como soma <strong>de</strong><br />

dinheiro e <strong>de</strong> jóias, é qualquer coisa que isola, que minimiza o Cavaleiro (ao contrário<br />

<strong>de</strong> Mirandolina). Ainda mais significativo é o outro emprego dos termos. “Tem mulher,<br />

Vossa Senhoria?” pergunta Mirandolina, e o Cavaleiro respon<strong>de</strong>, “Que o céu me livre!<br />

Mulheres, não as quero”. A liberda<strong>de</strong> é um fruto <strong>de</strong> uma intervenção externa, é uma<br />

providência do Céu, e já não é uma capacida<strong>de</strong> máscula da personagem. Só na segunda<br />

frase aparece a óbvia correcção: “Mulheres, não as quero” (itálicos nossos). Há ainda<br />

uma vonta<strong>de</strong> do Cavaleiro, mas tão débil que tem <strong>de</strong> ser primeiro apoiada pelo Céu.<br />

Insistimos, até este ponto, em I, 15 (e I, 16, monólogo <strong>de</strong> comentário do<br />

Cavaleiro). Em I, 17 chegam as comediantes. Intervenção curiosa, personagens quase<br />

supérfluas (para além da exigência – do teatro material – que Goldini tem <strong>de</strong> dar dois<br />

papéis a duas actrizes da companhia Me<strong>de</strong>bach). Nas encenações do século XIX os<br />

directores muitas vezes suprimiam estes dois papéis. Ringger resgata-lhes a função que<br />

possuem <strong>de</strong>ntro da leitura complexa da comédia que oferecem, baseada no tema central<br />

da ficção. 55 Que é como dizer que Hortênsia e Dejanira são <strong>de</strong>sdobramentos <strong>de</strong><br />

Mirandolina. Mirandolina é uma melhor actriz que as outras duas profissionais da cena.<br />

A observação só nos convence em parte. O facto é que as actrizes querem representar<br />

quem não são (e por isso fracassam). Mirandolina por sua vez representa aquilo que é<br />

(e por isso consegue). Não é que Mirandolina seja uma actriz melhor que as<br />

comediantes. A representação <strong>de</strong> Mirandolina acontece por subtracção.<br />

53 Tradução minha.<br />

54 I<strong>de</strong>m.<br />

55 Veja-se sobretudo K. Ringger, La fonction dramaturgique <strong>de</strong>s comédiennes dans “La Locandiera”,<br />

“Forum Italicum”, 1976, nn, 1-2, pp. 31-42.<br />

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Desmascarando-se diante do Cavaleiro em I, 15, <strong>de</strong>scobrindo o seu próprio método,<br />

Mirandolina vence. Como se diz em I, 18, Hortênsia e Dejanira não sabem “manter uma<br />

personagem numa estalagem”, mas Mirandolina, em vez <strong>de</strong> “numa estalagem”, está<br />

<strong>de</strong>ntro da sua própria estalagem. Para as actrizes a estalagem é um palco <strong>de</strong> outro tipo;<br />

para Mirandolina é a sua realida<strong>de</strong>, a sua verda<strong>de</strong>, a sua vida. Percebe-se que as<br />

comediantes nos fazem lembrar Mirandolina, mas num sentido mais profundo, mais<br />

sedutor. São, na verda<strong>de</strong>, duas <strong>de</strong>sgraçadas, prontas a realizar qualquer ignomínia por<br />

um pouco <strong>de</strong> dinheiro. Dejanira engana o Marquês dizendo que é uma especialista a<br />

lavar a seco, para lhe extorquir uma moeda. (“Eu tenho um segredo para tirar as<br />

nódoas” (...) Sustento que com um quartinho vos faço <strong>de</strong>saparecer essa nódoa, que não<br />

se perceba aon<strong>de</strong> a tivestes”). Por pouco mais (ou pouco menos) estão dispostas a ir<br />

para a cama com qualquer um. São duas semi-prostitutas. E como tal as trata também<br />

Mirandolina, que leva algum tempo para as ir ver e <strong>de</strong> repente as avalia e consi<strong>de</strong>ra por<br />

aquilo que são. Mirandolina é a única que não se <strong>de</strong>ixa enganar (“Para mim tenho que<br />

damas é que elas não são. Se o fossem, não estariam sós” diz num àparte), ao contrário<br />

<strong>de</strong> todos os outros: <strong>de</strong> Fabrício (o que até é compreensível), mas também do Marquês,<br />

do Con<strong>de</strong> e do Cavaleiro, que <strong>de</strong>viam estar habituados a tratar com verda<strong>de</strong>iras damas.<br />

Porque há em Mirandolina qualquer coisa das comediantes: a comum procura <strong>de</strong><br />

dinheiro, a disponibilida<strong>de</strong> para se ven<strong>de</strong>rem, para se prostituírem. Hortênsia e Dejanira<br />

são variações fracassadas <strong>de</strong> Mirandolina, são o abismo em que Mirandolina nunca cai.<br />

Reforçam, pelo contrário, a escolha bem sucedida da estalaja<strong>de</strong>ira, também ela numa<br />

perseguição frenética <strong>de</strong> dinheiro e boa vida, mas não a todo o custo. Mirandolina<br />

encontra nas duas mulheres uma possível ruína <strong>de</strong> si própria, e é exactamente por isso<br />

que é dura com elas. Afasta-as <strong>de</strong> si como se fossem um <strong>de</strong>sdobramento maligno da sua<br />

personalida<strong>de</strong>, um cancro secreto que se <strong>de</strong>ve remover e eliminar: “Estejam à vonta<strong>de</strong><br />

na minha estalagem, como se fossem as donas. Mas peço-vos que, se aparecerem<br />

pessoas da nobreza, me cedam este apartamento. Que eu vos darei dois quartos muito<br />

cómodos”. Hortênsia revolta-se contra esta perspectiva <strong>de</strong> humilhante mudança, e<br />

procura mimar uma jactância nobiliárquica (“Pois eu, quando pago meu dinheiro, é para<br />

ser servida como uma senhora. E se estou neste apartamento, <strong>de</strong>le não saio”), mas a<br />

resposta <strong>de</strong> Mirandolina é tão oportuna como brutal (“Vá, senhora Baronesa, seja boa...<br />

Oh, que ali vem um fidalgo que está cá na estalagem. Assim que vê mulheres, avança”).<br />

Mirandolina trata as actrizes por aquilo que elas são, mulheres da vida à procura <strong>de</strong> um<br />

crédulo que possam emagrecer e, por isso, coloca-as logo em contacto com o trabalho,<br />

manda-as automaticamente para o primeiro mulherengo que aparece. Hortênsia encaixa<br />

o golpe e renuncia à própria ficção <strong>de</strong> dama, preocupando-se em perguntar logo se se<br />

trata <strong>de</strong> um crédulo passível <strong>de</strong> ser emagrecido (“É rico?”). Para já, é a vez do pobre do<br />

Marquês, mas as coisas ficarão melhores quando se encontrarem com o Con<strong>de</strong>. Mais<br />

uma vez a linguagem das actrizes será abertamente vulgar (“O senhor Con<strong>de</strong> há <strong>de</strong> ser o<br />

nosso protector. // Somos vossas amigas, e unidas havemos <strong>de</strong> gozar as vossas finezas.<br />

// (...) Maravilho-me convosco, senhor Con<strong>de</strong>, em vos <strong>de</strong>ixar<strong>de</strong>s pren<strong>de</strong>r a uma<br />

estalaja<strong>de</strong>ira. // Era menor o mal se vos dignásseis empregar as vossas finezas com uma<br />

cómica”). Mesmo neste caso, ocorreria sempre a violência maiêutica da representação<br />

teatral (penso sempre nas invenções <strong>de</strong> Missiroli e <strong>de</strong> Cobelli que orquestram uma<br />

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espécie <strong>de</strong> partouse 56 entre o Con<strong>de</strong> e as duas mulheres) para que viesse ao <strong>de</strong> cima<br />

aquilo que é bem claro no texto <strong>de</strong> Goldoni, mas que a censura inconsciente dos leitores<br />

e actores do passado impediu <strong>de</strong> ver durante quase dois séculos.<br />

Há em Goldoni uma dimensão <strong>de</strong> sombra, um lado mais obscuro, nocturno por<br />

assim dizer, sempre negligenciado, substancialmente negado, em <strong>de</strong>trimento do perfil<br />

diferente, solar, do buon papá Goldoni, feito <strong>de</strong> bonomia, <strong>de</strong> sentimentos cordiais, <strong>de</strong><br />

tons <strong>de</strong>licados e brincalhões, <strong>de</strong> superficialida<strong>de</strong> do século <strong>de</strong>zoito, no fundo. Entendase<br />

que não estamos aqui a propor uma mudança <strong>de</strong> trezentos e sessenta graus da<br />

imagem crítica que se foi consolidando ao longo <strong>de</strong> tantos <strong>de</strong>cénios <strong>de</strong> bibliografia<br />

sobre Goldoni. Basta-nos sublinhar como a superfície do texto escon<strong>de</strong> uma<br />

consistência profunda que é <strong>de</strong> massa diferente, menos mole e menos musical. Po<strong>de</strong> até<br />

acontecer que o lado exterior <strong>de</strong> Mirandolina seja o tal <strong>de</strong> uma “rainha dos corações”,<br />

que se move “no meio <strong>de</strong> uma sedução honesta e graciosa”, como queria um gran<strong>de</strong><br />

italianista a <strong>de</strong>terminada altura 57 , mas que é apenas a camada externa <strong>de</strong> uma escrita<br />

muito mais complexa e problemática. A <strong>de</strong>monstração po<strong>de</strong> ser vista rapidamente num<br />

excerto mais longo da comédia, no ponto final, o terceiro acto.<br />

O terceiro acto – diz sempre a crítica – é o acto que confirma o triunfo <strong>de</strong><br />

Mirandolina, que mostra em toda a sua plenitu<strong>de</strong> a vitória <strong>de</strong> Mirandolina sobre o<br />

Cavaleiro. De facto, o Cavaleiro está reduzido à comparação com todos os outros<br />

admiradores. Tal como o Con<strong>de</strong> e o Marquês, também o Cavaleiro é levado a oferecer<br />

presentes na ilusão <strong>de</strong> se abrir uma estrada que o conduzirá à cama <strong>de</strong> Mirandolina.<br />

Oferece-lhe o frasquinho <strong>de</strong> ouro com o espírito <strong>de</strong> melissa e pe<strong>de</strong>-lhe que o aceite (“E<br />

quereis este mal fazer-me a mim? E <strong>de</strong>sgostar-me?”). Fala exactamente como falava o<br />

Con<strong>de</strong> em I, 5. Mas o problema é exactamente este, o Cavaleiro – já o dissemos –<br />

exprime a plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r (a pureza <strong>de</strong> <strong>de</strong>scendência nobiliárquica e soli<strong>de</strong>z <strong>de</strong><br />

condição económica) que falta, <strong>de</strong> diferentes maneiras, tanto ao Con<strong>de</strong> como ao<br />

Marquês. É exactamente esta força social complexa que explica os traços <strong>de</strong> arrogância<br />

e dureza do Cavaleiro, os quais se juntam, obviamente, ao seu <strong>de</strong>sdém pelos códigos da<br />

corte. Des<strong>de</strong> o início que o Cavaleiro se caracteriza por um lado mais autoritário. No<br />

final do segundo acto, seja com o próprio criado (“Vai-te maldito. (...) Vai-te, que te<br />

racho a cabeça (Ameaça-o com o copo.)”), seja com o Con<strong>de</strong> e o Marquês (“Ao diabo<br />

todos! Passa fora! (Atira o copo ao chão e parte-o contra o Con<strong>de</strong> e o Marquês. Vaise.))<br />

Mas também com Mirandolina. Em II, 8 <strong>de</strong>scobre-se a força contida <strong>de</strong> uma<br />

rubrica (“(firme) Esperai, já vos disse”). E <strong>de</strong>pois, sobretudo no terceiro acto, a começar<br />

pela gran<strong>de</strong> cena da tábua <strong>de</strong> engomar. (...)<br />

56 Orgia. Em francês no original.<br />

57 A. Momigliano, Storia <strong>de</strong>lla letteratura italiana dalle origini ai nostri giorni, Principato, milano, 1960,<br />

p. 337.<br />

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Jorge Silva Melo<br />

CARLO GOLDONI<br />

Nasceu em Veneza em 26 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong> 1707, <strong>de</strong> uma família abastada, sendo<br />

seus pais Margherita Salvioni e Giulio Goldoni, médico. O avô paterno teria uma paixão<br />

pelo teatro e costumava organizar representações na sua casa <strong>de</strong> campo. E terão sido<br />

alguns espectáculos <strong>de</strong> marionetas que fizeram nascer no rapazinho o primeiro<br />

entusiasmo pelo teatro. Aos 12 anos, já escrevera mesmo uma pecinha. É então que o<br />

pai se muda para Perugia, em cujo Colégio <strong>de</strong> Jesuítas o jovem Goldoni vai estudar.<br />

Mas sobretudo ler os cómicos latinos, Aristófanes, Menandro e as comédias do<br />

renascimento italiano, A Mandrágora <strong>de</strong> Maquiavel, vê-se bem.<br />

A família irá <strong>de</strong>pois mudar-se para Chioggia, mas ele ficará em Rimini, on<strong>de</strong><br />

prossegue os estudos nos Dominicanos. É em Rimini que encontra uma companhia <strong>de</strong><br />

actores profissionais com quem acaba por fugir <strong>de</strong> barco para ir ter com a mãe, que está<br />

em Chioggia. E assim abandona a filosofia. Trabalhou uns tempos num notário, foi<br />

<strong>de</strong>pois para Pavia estudar Direito, sem nunca abandonar a leitura dos gran<strong>de</strong>s autores<br />

cómicos. Em 1725, escreveu uma sátira contra a nobreza <strong>de</strong> Pavia, Il Colosso, que lhe<br />

custou a expulsão da Universida<strong>de</strong>. Seguem-se anos <strong>de</strong> viagens, estudos irregulares,<br />

andanças teatrais, até que, em 1731, consegue o diploma na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pádua.<br />

Mas, logo, dois anos <strong>de</strong>pois, muda-se para Milão, fugindo a dívidas contraídas e a uma<br />

impru<strong>de</strong>nte promessa <strong>de</strong> casamento. Aí pensa que irá enriquecer escrevendo o libreto<br />

para um melodrama, Amalasunta; o fracasso da obra convenceu-o que a sua vocação<br />

seria o teatro cómico.<br />

Em 1734, está em Veneza e colabora com vários teatros. Até que é nomeado<br />

director artístico do teatro <strong>de</strong> San Giovanni Crisostomo; a sua primeira peça é <strong>de</strong> 1738,<br />

Momolo Cortesan (1738), que mais tar<strong>de</strong> se chamou L´Uomo di Mondo, e <strong>de</strong> que só o<br />

papel do protagonista fora escrito. La Donna di Garbo (1743) será a primeira obra<br />

completa <strong>de</strong> que escreveu todos os papéis. Isto terá sido uma verda<strong>de</strong>ira revolução, uma<br />

vez que os autores ao serviço das companhias <strong>de</strong> teatro se limitavam a <strong>de</strong>linear uma<br />

intriga e a escrever um breve sumário, <strong>de</strong>ixando aos actores a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

improvisar diálogos, monólogos, piadas e movimentos. E também Goldoni teve que se<br />

submeter a estes hábitos e compor uma gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> obras apenas esboçadas<br />

(os “scenari”). Uma das suas obras mais conhecidas será Il Servitore di Due Padroni<br />

(1745), escrita a pedido do gran<strong>de</strong> cómico Antonio Sacchi (célebre Truffaldino) que só<br />

anos <strong>de</strong>pois escreveu na íntegra.<br />

Decisivo seria o encontro com um dos mais famosos actores da época, Girolamo<br />

Me<strong>de</strong>bach, que, em 1748, o convidou para integrar a sua companhia no teatro veneziano<br />

<strong>de</strong> Sant’Angelo. É então que Goldoni abandona a advocacia para se ir instalar em<br />

Veneza acompanhando Me<strong>de</strong>bach. E foi este actor-empresário que lhe <strong>de</strong>u liberda<strong>de</strong><br />

para levar por diante a sua reforma que visava recolocar o autor no centro da activida<strong>de</strong><br />

teatral, voltando a dar dignida<strong>de</strong> literária às obras teatrais. Goldoni insistirá em escrever<br />

o texto para que os actores abandonassem as improvisações e apren<strong>de</strong>ssem <strong>de</strong> cor os<br />

papéis. E nisto a sua reforma marca o regresso da literatura ao palco; será, em primeiro<br />

lugar, uma restauração.<br />

Na temporada <strong>de</strong> 1748-1749, foram representadas várias das suas peças antigas,<br />

mas também se estrearam algumas, entre as quais I Due Gemelli Veneziani, La Vedova<br />

Scaltra, La Putta Onorata. E o êxito foi gran<strong>de</strong>. Inultrapassável foi o ano 1750-1751 em<br />

que o autor prometeu estrear <strong>de</strong>zasseis peças novas, promessa que cumpriu e o<br />

consagrou <strong>de</strong>finitivamente; mas que também lhe trouxe os primeiros dissabores com<br />

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Me<strong>de</strong>bach, que muito o elogiava, mas pouco lhe pagava. Da riquíssima produção <strong>de</strong>ste<br />

período no Sant´Angelo, assinalem-se Il Bugiardo, Il <strong>Teatro</strong> Comico (on<strong>de</strong> se<br />

representa a si próprio <strong>de</strong>batendo com actores pouco dados a mudar o estilo da<br />

representação), La Bottega <strong>de</strong>l Caffè, La Donna Volubile, I Pettegolezzi <strong>de</strong>lle Donne, La<br />

Famiglia <strong>de</strong>ll’Antiquario, La Serva Amorosa (escrita para a sensível Rosaura<br />

Me<strong>de</strong>bach), La Figlia Obbediente, Pamela e, por fim, A Estalaja<strong>de</strong>ira (1753) que<br />

escreveu para Corallina Marliani, a actriz que, na Commedia <strong>de</strong>ll´arte, fazia a mulher do<br />

criado Brighella.<br />

A “reforma” <strong>de</strong> Goldoni está em marcha. As máscaras <strong>de</strong>sapareceram. O autor<br />

escreve a peça inteira. Apresenta personagens verda<strong>de</strong>iras e nascidas da observação da<br />

vida. Elimina as piadas grosseiras. Elimina os absurdos “<strong>de</strong> efeito”. Tem o verosímil<br />

com objectivo. Usa uma única língua em cada peça, o veneziano ou o toscano. A sua<br />

reforma é o dobre a finados da comédia <strong>de</strong> intriga que fizera o triunfo do teatro<br />

improvisado, com as suas máscaras, os seus entrechos fantásticos, on<strong>de</strong> o espectador<br />

reconhecia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início a índole das personagens e dos seus comportamentos, sempre<br />

iguais, mas com enredos cada vez mais fantasiosos. Com Goldoni, entramos numa<br />

comédia (“commedia di carattere”) em que o carácter da personagem vai sendo revelado<br />

perante os olhos do espectador, em tramas menos complicadas, com <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong><br />

psicológica. Em que a surpresa vem da revelação da interiorida<strong>de</strong> das personagens e não<br />

dos seus feitos exteriores. Ele avança, assim, para um primeiro teatro naturalista,<br />

abrindo as portas ao mo<strong>de</strong>rno drama burguês. A sua reforma é, <strong>de</strong> certo modo, a directa<br />

consequência do racionalismo iluminista, num momento em que a gran<strong>de</strong> difusão <strong>de</strong><br />

periódicos confirma o crescente interesse pela crónica quotidiana em que a burguesia se<br />

revê, se comenta, se celebra. E é Goldoni quem, em 1750, na primeira edição do seu<br />

<strong>Teatro</strong> afirma que a sua escrita nasce da observação do mundo, da vida real.<br />

Goldoni manteve-se com Me<strong>de</strong>bach até à temporada <strong>de</strong> 1752-1753, em que foi<br />

substituído pelo seu adversário Pietro Chiari. Transferiu-se, então, para o <strong>Teatro</strong> San<br />

Luca, proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> família veneziana, os Vendramin, a que permaneceu<br />

ligado até 1762. Mas a ligação foi conflituosa: os empresários eram autoritários, e o seu<br />

êxito <strong>de</strong>spertara a inveja tremenda <strong>de</strong> outros autores, como Chiari e Carlo Gozzi; os<br />

actores continuavam a reivindicar uma autonomia perdida, e os espectadores, sempre<br />

se<strong>de</strong>ntos <strong>de</strong> novida<strong>de</strong>, começavam a manifestar cansaço em relação à “reforma”. São,<br />

no entanto, <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>cénio, algumas das suas obras-primas, como Il Campiello,<br />

Gl’Innamorati, I Rusteghi, La Trilogia <strong>de</strong>lla Villeggiatura, Sior To<strong>de</strong>ro Brontolon, Le<br />

Baruffe Chiozzotte e Una <strong>de</strong>lle Ultime Sere di Carnovale.<br />

Terminado o contrato com os Vendramin, Goldoni <strong>de</strong>ixou Veneza em 1762 para<br />

ir dirigir, em Paris, a Comédie Italienne. Mas as dificulda<strong>de</strong>s foram enormes, os actores,<br />

habituados à commedia <strong>de</strong>ll´arte, resistiram tenazmente contra a perda dos privilégios,<br />

não estavam dispostos a subordinar-se à vonta<strong>de</strong> do autor. E o público também achou<br />

que já vira a “reforma”, pois, <strong>de</strong> facto, em Paris ela começara antes, com Molière. E os<br />

espectadores, quando iam à Comédie Italienne queriam um teatro diferente, menos<br />

nobre do que aquele que era feito na Comédie Française. Nas suas cartas, Goldoni<br />

exprime muitas vezes o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> voltar para Itália, mal termine o seu contrato <strong>de</strong> dois<br />

anos. Mas, em 1765, Luis XV contratou-o para ensinar italiano às princesas Clotil<strong>de</strong> e<br />

Isabelle, irmãs daquele que viria a ser Luís XVI. Durante mais <strong>de</strong> 20 anos, Goldoni<br />

divi<strong>de</strong> a sua vida entre a corte em Versalhes e os teatros <strong>de</strong> Paris, on<strong>de</strong> foi<br />

particularmente activo como organizador <strong>de</strong> espectáculos. Mas a sua arte <strong>de</strong><br />

comediógrafo estava acabada. Em 1771 ainda conseguiu escrever, em francês, uma<br />

<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira obra, Le Bourru Bienfaisant, que estreou na Comédie Française com gran<strong>de</strong><br />

êxito (e elogios <strong>de</strong> Voltaire).<br />

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A partir <strong>de</strong> 1784 <strong>de</strong>dicou-se à escrita em francês das Mémoires que foram<br />

publicadas em 1787. E as suas obras começaram a ser editadas. O veneziano Zatta<br />

realizou, então, a edição mais completa, em 44 tomos. No entanto, o autor não via<br />

proventos <strong>de</strong>stes empreendimentos editoriais. E os <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iros anos, viveu-os Goldoni<br />

com uma pensão real, que lhe foi retirada ao eclodir a Revolução Francesa. Velho e<br />

doente, passou o último ano da vida numa penosa miséria.<br />

Morreu a 6 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong> 1793, na véspera <strong>de</strong> lhe ter sido, <strong>de</strong> novo, atribuída a<br />

pensão.<br />

______________________________________________________________________<br />

JORGE SILVA MELO fundou em 1995 os Artistas Unidos <strong>de</strong> que é director artístico.<br />

AMÉRICO SILVA tem o curso do IFICT (1989) e é diplomado (<strong>Teatro</strong>, 1994) pela<br />

ESTC, tendo trabalhado com Ávila Costa, José Peixoto, João Lagarto, Carlos Avilez,<br />

Rui Men<strong>de</strong>s, Diogo Dória, Depois da Uma… teatro?, Francisco Salgado, Manuel<br />

Wiborg e no cinema com Jorge Silva Melo e Alberto Seixas Santos. Colabora com os<br />

Artistas Unidos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1996, tendo participado recentemente em Comemoração <strong>de</strong><br />

Harold Pinter (2010), Um Homem Falido <strong>de</strong> David Lescot (2011), Chove em Barcelona<br />

<strong>de</strong> Pau Miro (2011), Da República e das Gentes <strong>de</strong> Manuel Gusmão e Jorge Silva Melo<br />

(2011), Não se Brinca com o Amor <strong>de</strong> Alfred <strong>de</strong> Musset (2011), À Porta Fechada <strong>de</strong><br />

Jean Paul Sartre (Antena 2) (2012), A Farsa da Rua W <strong>de</strong> Enda Walsh (2011), A Morte<br />

<strong>de</strong> Danton <strong>de</strong> Georg Büchner (2012), Os Caprichos da Marianne <strong>de</strong> Alfred <strong>de</strong> Musset<br />

(2012), Feliz Aniversário <strong>de</strong> Harold Pinter (2012), O Tempo <strong>de</strong> Lluísa Cunillé (2012).<br />

ANTÓNIO SIMÃO tem os cursos do IFICT (1992) e IFP (1994). Trabalhou com<br />

Margarida Carpinteiro, António Fonseca, Aldona Skiba-Lickel, Ávila Costa, João<br />

Brites, Melinda Eltenton, Filipe Crawford, Joaquim Nicolau, Antonino Solmer e Jean<br />

Jourdheuil. Integra os Artistas Unidos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1995, tendo participado recentemente em<br />

Comemoração <strong>de</strong> Harold Pinter (2010), Fala da Criada... <strong>de</strong> Jorge Silva Melo (2010),<br />

Um Homem Falido <strong>de</strong> David Lescot (2011), Barcelona, Mapa <strong>de</strong> Sombras <strong>de</strong> Lluisa<br />

Cunillé (2011), Da República e das Gentes <strong>de</strong> Manuel Gusmão e Jorge Silva Melo<br />

(2011), Não se Brinca com o Amor <strong>de</strong> Alfred <strong>de</strong> Musset (2011), À Porta Fechada <strong>de</strong><br />

Jean Paul Sartre (Antena 2) (2011), Por Tudo e por Nada <strong>de</strong> Nathalie Sarraute (Antena<br />

2) (2011), A Farsa da Rua W <strong>de</strong> Enda Walsh (2011), A Morte <strong>de</strong> Danton <strong>de</strong> Georg<br />

Büchner (2012), Os Caprichos da Marianne <strong>de</strong> Alfred <strong>de</strong> Musset (2012) e Feliz<br />

Aniversário <strong>de</strong> Harold Pinter (2012).<br />

CATARINA WALLENSTEIN é diplomada pela ESTC (<strong>Teatro</strong>, 2008) e frequentou o<br />

Conservatoire, em Paris. No cinema, integra o elenco <strong>de</strong> Os Lobos <strong>de</strong> José Nascimento,<br />

Après-Lui <strong>de</strong> Gael Morel, Um Amor <strong>de</strong> Perdição <strong>de</strong> Mário Barroso, A Vida Secreta <strong>de</strong><br />

Salazar <strong>de</strong> Jorge Quiroga, Singularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma Rapariga Loura <strong>de</strong> Manoel <strong>de</strong><br />

Oliveira, U-Mya <strong>de</strong> Miguel Clara Vasconcelos, O Filme do Desassossego <strong>de</strong> João<br />

Botelho, A Moral Conjugal <strong>de</strong> Artur Serra Araújo. Estreou-se no teatro profissional em<br />

Álbum <strong>de</strong> Família <strong>de</strong> Rui Herbon, no <strong>Teatro</strong> Aberto, com direcção <strong>de</strong> Tiago Torres da<br />

Silva (2011). Nos Artistas Unidos participou em Não se Brinca com o Amor <strong>de</strong> Alfred<br />

<strong>de</strong> Musset (2011).<br />

Rua <strong>de</strong> Campo <strong>de</strong> Ourique, 120 / 1250 – 062 Lisboa/ Tel: 21 391 67 50<br />

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ELMANO SANCHO é diplomado pela ESTC (<strong>Teatro</strong>, 2005), tendo estudado também<br />

em Madrid (RESAD), São Paulo/Brasil (CECA/USP) e Paris (CNAD). Integrou o<br />

elenco da primeira companhia teatral europeia (direcção <strong>de</strong> Virgínio Liberti e Annalissa<br />

Bianco, Festival <strong>de</strong> Nápoles e Mérida). Integrou a XVIII edição da École <strong>de</strong>s Maîtres<br />

com direcção <strong>de</strong> Arthur Nauzyciel. Em 2010-11 trabalhou, em Paris, no elenco da<br />

Comédie Française, com Bruno Bayen e Jacques Allaire. Nos Artistas Unidos<br />

participou em O Peso das Razões <strong>de</strong> Nuno Júdice (2009), Rei Édipo a partir <strong>de</strong> Sófocles<br />

(2010), A Nova Or<strong>de</strong>m Mundial <strong>de</strong> Harold Pinter (2010), Da República e das Gentes <strong>de</strong><br />

Manuel Gusmão e Jorge Silva Melo (2011), Não se Brinca com o Amor <strong>de</strong> Alfred <strong>de</strong><br />

Musset (2011), À Porta Fechada <strong>de</strong> Jean Paul Sartre (Antena 2) (2011), Por Tudo e por<br />

Nada <strong>de</strong> Nathalie Sarraute (Antena 2), Herodía<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Giovanni Testori (2012), A Morte<br />

<strong>de</strong> Danton <strong>de</strong> Georg Büchner (2012) e Os Caprichos da Marianne <strong>de</strong> Alfred <strong>de</strong> Musset<br />

(2012).<br />

RÚBEN GOMES frequentou os cursos da ACT. É uma presença regular na televisão<br />

(Vila Faia, Liberda<strong>de</strong> 21, entre outras séries e programas). No teatro participou em<br />

Amor das Três Laranjas, encenação <strong>de</strong> João Mota (<strong>Teatro</strong> Ibérico, 2005), Duelo,<br />

encenação <strong>de</strong> Phippe Leroux (<strong>Teatro</strong> Mínimo, 2009) e O Mundo Submerso <strong>de</strong> Gary<br />

Owen, encenação <strong>de</strong> Pedro Marques (<strong>Teatro</strong> Mínimo, 2010). Com os Artistas Unidos<br />

participou em A Nova Or<strong>de</strong>m Mundial <strong>de</strong> Harold Pinter (2010), Um Homem Falido <strong>de</strong><br />

David Lescot (2011), Três Autores Catalães em Lisboa (2011), Dias <strong>de</strong> Vinho e Rosas<br />

<strong>de</strong> Owen McCafferty (2012), A Morte <strong>de</strong> Danton <strong>de</strong> Georg Büchner (2012), Os<br />

Caprichos da Marianne <strong>de</strong> Alfred <strong>de</strong> Musset (2012) e Feliz Aniversário <strong>de</strong> Harold<br />

Pinter (2012).<br />

MARIA JOÃO FALCÃO é diplomada em <strong>Teatro</strong>, ramo Formação <strong>de</strong> Actores, da<br />

ESTC e Licenciatura da RESAD. Participou em vários seminários <strong>de</strong> formação com<br />

António Feio, Paulo Ferreira, Luca Aprea, Howard Sonenklar, Lúcia Sigalho, Filipe<br />

Crawford, Márcia Haufrecht, Emma Dante, Philippe Gaulier, Alex Navarro, Black<br />

Nexxus. Estreou-se em 1995 no <strong>Teatro</strong> <strong>de</strong> Carni<strong>de</strong>, com direcção <strong>de</strong> Mário Nunes e<br />

João Ricardo. Trabalhou regularmente com encenadores como Antonino Solmer,<br />

Amândio Pinheiro, Miguel Loureiro, André Amálio, Carlos Pimenta, André Murraças,<br />

Nuno Cardoso, Maria João Luís. Presença regular em séries <strong>de</strong> televisão, trabalhou em<br />

cinema, entre outros, com Daniele Napolitano, Ana Cabral Martins, Luís Filipe Rocha,<br />

João Pedro Rodrigues, Jacinto Lucas Pires, Hugo Diogo, Luís Correia. Nos Artistas<br />

Unidos participou recentemente em Dias <strong>de</strong> Vinho e Rosas <strong>de</strong> Owen McCafferty<br />

(2012), O Rapaz da Última fila <strong>de</strong> Juan Mayorga (2012) e O Tempo <strong>de</strong> Lluísa Cunillé<br />

(Antena 2) (2012).<br />

MARIA JOÃO PINHO concluiu o Curso <strong>de</strong> Interpretação da Aca<strong>de</strong>mia<br />

Contemporânea do Espectáculo, em 2005. Em 2008, dá continuida<strong>de</strong> à sua formação em<br />

La Nouvelle École <strong>de</strong> Maitres, com Enrique Diaz. Estreou-se em teatro, no ano <strong>de</strong> 2006,<br />

com o espectáculo A Mata, encenação <strong>de</strong> Franzisca Aarflot. Posteriormente trabalhou<br />

com Emmanuel Demarcy-Mota, em Tanto Amor Desperdiçado (2007), com Maria João<br />

Luís em A Casa <strong>de</strong> Bernarda Alba (2009), e com Gonçalo Amorim em A Morte <strong>de</strong> Um<br />

Caixeiro Viajante (2010) e Do Alto da Ponte (2011). Integrou o elenco <strong>de</strong> A Visita, com<br />

encenação <strong>de</strong> Natália Luiza, no <strong>Teatro</strong> Nacional D. Maria II (2011). Em 2012 trabalha<br />

com Gonçalo Amorim em Chove em Barcelona, com Ricardo Pais no Mercador <strong>de</strong><br />

Veneza. Em televisão integrou o elenco das novelas Dei-te Quase Tudo (2005) e Doce<br />

Fugitiva (2006) e dos telefilmes Casos da Vida (2008). Em cinema interpreta Olímpia<br />

Rua <strong>de</strong> Campo <strong>de</strong> Ourique, 120 / 1250 – 062 Lisboa/ Tel: 21 391 67 50<br />

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em A Corte do Norte, <strong>de</strong> João Botelho (2008), Felismina em A vida privada <strong>de</strong> Salazar,<br />

<strong>de</strong> Jorge Queiroga (2008), Con<strong>de</strong>ssa <strong>de</strong> Viso em Os Mistérios <strong>de</strong> Lisboa, <strong>de</strong> Raúl Ruiz<br />

(2010) e Adriana em Rosto, <strong>de</strong> Vítor Gonçalves (2010) (pós-produção), Cristiana em A<br />

Morte <strong>de</strong> Carlos Gar<strong>de</strong>l, Solveig Nordlund (2011) e Constança em Em Câmara Lenta,<br />

<strong>de</strong> Fernando Lopes. Nos Artistas Unidos participou em A Mata <strong>de</strong> Jesper Halle (2006) e<br />

A Morte <strong>de</strong> Danton <strong>de</strong> Georg Büchner (2012).<br />

JOÃO DELGADO é diplomado pelo Chapitô com o Curso <strong>de</strong> Artes da Escola <strong>de</strong> Artes<br />

e Ofícios (2007). Participou em várias animações circenses. Nos Artistas Unidos<br />

participou em A Mata <strong>de</strong> Jesper Halle (2006), Isto Não é um Concurso (2008), Seis<br />

Personagens à Procura <strong>de</strong> Autor <strong>de</strong> Luigi Piran<strong>de</strong>llo (2009), O Peso das Razões <strong>de</strong><br />

Nuno Júdice (2009), Rei Édipo a partir <strong>de</strong> Sófocles (2010), A Nova Or<strong>de</strong>m Mundial <strong>de</strong><br />

Harold Pinter (2010), Fala da Criada... <strong>de</strong> Jorge Silva Melo (2010), Da República e das<br />

Gentes <strong>de</strong> Manuel Gusmão e Jorge Silva Melo (2011) e A Morte <strong>de</strong> Danton <strong>de</strong> Georg<br />

Büchner (2012).<br />

TIAGO NOGUEIRA é diplomado pela ESTC (<strong>Teatro</strong>, 2009). Tem o curso do Espaço<br />

Evoé (2006) e o curso da InImpetus (2004). Trabalhou com <strong>Teatro</strong> O Bando, Yola<br />

Pinto, Joana Barros, Dinarte Branco, Pedro Marques, João Lagarto, Francisco Camacho,<br />

Paulo Lage, Jan Gomes, Pablo Fernando e Ávila Costa. É co-criador do espectáculo <strong>de</strong><br />

Máscara Encontros <strong>de</strong> Jardim. Com a banda Qwentin e o realizador Ricardo Leal<br />

Pereira criou Uomo-Tutto. É fundador da Molloy Associação Cultural. Nos Artistas<br />

Unidos participou em Fala da Criada... <strong>de</strong> Jorge Silva Melo (2010), Brilharetes <strong>de</strong><br />

Antonio Tarantino (2011), Não se brinca com o amor <strong>de</strong> Alfred <strong>de</strong> Musset (2011), A<br />

Morte <strong>de</strong> Danton <strong>de</strong> Georg Büchner (2012) e Os Caprinhos da Marianne <strong>de</strong> Alfred <strong>de</strong><br />

Musset (2012).<br />

RITA LOPES ALVES trabalha com Jorge Silva Melo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1987. Assinou o guardaroupa<br />

<strong>de</strong> vários filmes <strong>de</strong> Pedro Costa, Joaquim Sapinho, João Botelho, Margarida Gil,<br />

Luís Filipe Costa, Cunha Teles, Alberto Seixas Santos, Pedro Caldas, Teresa Vilaver<strong>de</strong>,<br />

Carmen Castelo Branco, José Farinha, Teresa Garcia, Fernando Matos Silva e António<br />

Escu<strong>de</strong>iro. É, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1995, a responsável, nos Artistas Unidos, pela cenografia e<br />

figurinos.<br />

PEDRO DOMINGOS trabalha com Jorge Silva Melo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1994, tendo assinado a luz<br />

<strong>de</strong> quase todos os espectáculos dos Artistas Unidos. Trabalha regularmente com o<br />

<strong>Teatro</strong> dos Aloés. É membro fundador da Ilusom e do <strong>Teatro</strong> da Terra, sediado em<br />

Ponte <strong>de</strong> Sor, que dirige com a actriz Maria João Luís.<br />

LEONOR CARPINTEIRO é diplomada em Estudos Artísticos – Artes do Espectáculo<br />

pela Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa (2011). Realizou o seu estágio<br />

curricular junto dos Artistas Unidos no mesmo ano. Foi bolseira do Programa Erasmus<br />

Estágios, através do qual estagiou no <strong>Teatro</strong> Archa, em Praga, República Checa<br />

(2011/2012).<br />

Rua <strong>de</strong> Campo <strong>de</strong> Ourique, 120 / 1250 – 062 Lisboa/ Tel: 21 391 67 50<br />

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